Responsabilização, julgamento e ditadura no Brasil: O perdão pode curar?

Resumo: o artigo investiga em que medida o julgamento e a responsabilização penal dos agentes militares possibilitariam a cura da nossa relação obsessiva com o passado traumático da ditadura, indicando uma via para o perdão. Para tanto, é constatada a necessidade do devido processo, o qual viabiliza o estabelecimento da “justa distância” entre agressor e vítima, por delimitar suas respectivas responsabilidades num espaço em que a memória brasileira pode ser pública e amplamente acessada, perlaborada, reescrita. Diante da premissa de que o perdão é um lembrar para se esquecer, afirma-se o papel do Direito na reconciliação das feridas do nosso passado.1


Palavras-chaves: processo; responsabilização; ditadura; Ricoeur; perdão.


Abstract: This article investigates to what extent the trial and the criminal responsabilization of the military agents would allow the healing of our obsessive relation with the traumatic past of the dictatorship, indicating a way for the forgiveness. Therefore, it is found the need for due process, which enables the establishment of the fair distance between the victim and the aggressor, by defining their respective responsibilities, in a place where the Brazilian memory can be public and widely accessed and rewritten. Given the assumption that forgiveness is one to remember to forget, it is affirmed the role of law in the reconciliation of wounds of our past.


Key-words: process; responsabilization; dictatorship; Ricoeur; forgiveness.


Sumário:  Introdução.  1.  Memória  e  memória  do  golpe:  entre  o  luto  e  a  melancolia.  2. Memória,  direito  e  esquecimento:  reinterpretar  a  lei  de  anistia.    3.  Julgamento  e responsabilização  na  construção  de  um  perdão  nem  fácil,  nem  impossível.  Considerações finais. Referências.


Summary:  Introduction. 1. Memory  and  memory  of  the  blow:  among  the mourning  and melancholia. 2. Memory,  law  and  forgetting: reinterpret  the  law  of  amnesty. 3. Trial  and accountability  in  the  construction  of  a  pardon  nor  easy,  nor  impossible. Closing remarks. References.


O perdão é difícil de dar, de receber, mas também de conceber” Paul Ricoeur


Introdução


“Falar de cura é falar de doença. Ora, poderá falar de doença alguém que não seja médico, nem psiquiatra, nem psicanalista?” (RICOEUR, 1996, p.1). Em outros termos, um jurista seria também capaz de incitar um debate sobre o caminho terapêutico para a superação de um trauma? Juntamente com Ricoeur, acreditamos que sim. As noções de trauma ou de traumatismo, de ferida e de vulnerabilidade pertencem à consciência comum e ao discurso ordinário. (RICOEUR, 1996, p.1)


É nesse nível que se pode inferir que as faltas e os crimes passados deixam uma marca negativa na história do homem, que conduz a sua memória a um estado de verdadeira enfermidade. Diante das cicatrizes e dos ferimentos contraídos num tempo pretérito, o perdão, poderíamos dizer, propõe a cura. E tal cura consiste num uso crítico da memória que no tempo presente reconcilia-se com o passado traumático para, enfim, livrar-se do sofrimento que paralisa toda e qualquer ação humana.


O que ocorre é que a cura das “doenças da memória” situa-se entre o excesso e o déficit de rememoração. A memória doente é aquela que se encontra atada ao passado de forma obsessiva, numa situação em que o sujeito é impedido de lembrar com clareza o que lhe causa tanto sofrimento. Com um passado indisponível, a memória torna-se refém do trauma e passa a repeti-lo: ao fugir das recordações a dor não só permanece, mas intensifica-se. A cura, por assim dizer, é um trabalho que concilia lembrança e esquecimento de forma a possibilitar que o passado seja desligado e que a promessa num outro futuro se torne saída das feridas pretéritas.


O mesmo, poderíamos afirmar com Ricoeur (2007): é válido para a compreensão da noção de memória compartilhada, em que eventos traumáticos coletivos passam a ser determinantes na escrita da história de toda uma sociedade. É o caso, portanto, do traumatismo gerado por várias décadas de ditadura militar no Brasil.


O período de repressão deixou-nos o legado de feridas que ainda não foram cicatrizadas. As torturas e os assassinatos, promovidos pelos próprios agentes públicos nessa mesma época, deixaram uma marca traumática em nossa história que a transição democrática não foi capaz de apagar. O trabalho de luto coletivo a fim de apaziguar nossa relação com o passado doloroso foi-nos negado na medida em que a abertura ao futuro se daria a custa do apagamento dos rastros, dos documentos e dos crimes.


Assim como nos regimes totalitários, a transição para a democracia, que insurgiu no Brasil, perpetuou o silêncio na esfera pública[1], impulsionado especialmente pelo advento da lei de anistia. Sob o lema de uma amnésia institucional, geral e irrestrita, pretendeu-se impor ao Brasil uma identidade rígida e intangível, contada de uma vez por todas: “a partir de agora somos uma democracia!”.


Mas a democracia cria um problema. Ela traz consigo o selo do inacabamento, isto é, “algo que está sempre a se realizar, embora nunca se realize por completo, pois quando pensamos tê-la atingido, ela já está a nossa frente.” (COSTA JUNIOR; GALUPPO, 2009a, p.429). Um projeto democrático, portanto, não se constrói sob o manto do silêncio imposto ou de uma identidade manipulada por uma memória rígida e acabada. As interpretações são integrantes da nossa relação com o passado e com a nossa identidade, é preciso reconhecer sempre a força das narrativas como um elogio ao discurso. “Pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases, refigurando diferentemente os protagonistas da ação assim como os contornos dela.” (RICOEUR, 2007, p.455).


 Diante dessa figura de homens capazes de agir, de lembrar, de se responsabilizar, de narrar e de se narrar é que a democracia no Brasil é a promessa de superação de tempos difíceis e traumáticos, em que se espera sempre a construção de uma esfera pública que reconheça a pluralidade de narrativas silenciadas a partir da abertura constante à palavra do outro.


O Direito passa a ter um papel importante nessa dinâmica, uma vez que a construção do provimento final se dá dentro de uma cerimônia pública e comunicativa que põe em jogo a pluralidade dos protagonistas. O processo judicial apóia-se numa confrontação de argumentos em que as partes opostas têm um acesso igual à palavra; pelo próprio modo como ocorre, essa controvérsia organizada quer ser um modelo de discussão em que as paixões que alimentaram o conflito são transferidas para dentro da arena da linguagem. (RICOEUR, 2007, p.334-335).


 Nessa perspectiva, o Direito constitui-se num olhar para trás de forma a assegurar que a violência passada seja narrada e, portanto, substituída por um verdadeiro “acerto de contas”, a fim de que seja possível consubstanciar uma reconciliação com os traumas e feridas que não deixam de nos assombrar em nosso tempo presente.


O ouvir a voz do outro, da vítima numa arena pública e simbólica, como é a jurídica, é um passo importante na busca pela cura da nossa relação patológica com o passado da ditadura militar.  Translaborar juridicamente, isto é, trabalhar a memória, buscando refazer os laços é permitir que uma nova história possa ser contada com vistas a um outro amanhã.


O caminho terapêutico é a narrativa: é preciso falar do que foi para que a relação obsessiva com o passado seja desligada. Eis o objetivo da OAB, ao propor a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 para apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, procurando pleitear uma interpretação mais clara acerca da lei de Anistia.


Buscou-se, com isso, desconstruir a interpretação hegemônica da lei que visa estender a imunidade jurisdicional aos militares que cometeram delitos durante a época sobre a maliciosa ampliação do conceito de crime político. O estabelecimento de uma “justa distância” entre agressor e vítima, a fim de delimitar as suas respectivas responsabilidades frente ao passado brasileiro é o grande ideal que se abre com a possibilidade de julgamento dos agentes públicos da repressão.


É diante da premissa de que o perdão não significa esquecimento dos fatos, mas destruição da dívida (RICOEUR, 2007; 1996) que se pretende analisar o papel do julgamento criminal na construção de uma memória reconciliada consigo mesma e aberta novamente a grandes projetos. Isso significa reconhecer que a experiência negativa existiu e produziu efeitos traumáticos que não deixam de emergir no presente, devendo, portanto, ser confrontados para que sejam, enfim, perdoados.


1. MEMÓRIA E MEMÓRIA DO GOLPE: entre o luto e a melancolia


A história não paira sobre nossas cabeças como algo sem sentido e desprovido de qualquer utilidade. Tampouco o Direito é destituído e dissociado de sentido histórico. O Direito e a História estão profundamente imbricados de forma que a temporalidade constitui a marca essencial de ambos. O papel desses campos do conhecimento consiste também num reconstruir o passado atribuindo-lhe uma significação própria a partir do presente. E esse recontar narrativo daquilo que já foi só é possível a partir de um exercício vivo da memória.


A memória é fundamental para a compreensão do tempo histórico, e, considerando o excerto em questão, para a compreensão do Direito como fenômeno histórico-espacial, haja vista que as abordagens jurídicas e as formas de inserção e interpretação do Direito estão intimamente ligadas ao momento, ao contexto, ao espaço de criação e aplicação do mesmo e ao seu questionamento, no tempo e na História.


O foco a ser dado aqui é a análise da Lei da anistia, inserida esta no contexto do período da Ditadura militar brasileira, ocorrido de 1964 a 1985, mais especificamente no final do governo Figueiredo, fase de nossa história e principalmente de nossa memória que marcou o Brasil, dado o caráter de falso “esquecimento” e de conivência que alicerçou a “promulgação” da mesma.


Após o período supramencionado no qual ocorreram incisivas propagandas dos denominados “subversivos” em prol da anistia ampla e irrestrita, a Lei de anistia tomou forma e teor, numa tentativa, (acredita-se) de mascarar as atrocidades cometidas contra os cidadãos brasileiros pelas forças militares dominantes no período, uma vez que redimiu, formalmente, os atos atentatórios[2] às figuras emblemáticas que lutavam contra o regime ditatorial e foram severa e exemplarmente “punidas” por isto.


A anistia que se realizou no Brasil consistiu numa via de mão-dupla, não diferenciando aqueles que agiram contra ou em nome do regime ditatorial. A lei de anistia brasileira acabou igualando homicidas e torturadores, que utilizaram a estrutura repressiva estatal para impingir dor, sofrimento e morte, aos políticos, militares, estudantes, jornalistas, artistas, clérigos, sindicalistas que se engajaram em ações políticas na defesa de um ideal.  “Em um golpe de pena, o direito arrogou-se capaz de tornar inerte a memória vívida da experiência recente de toda a população que sofreu, direta ou indiretamente, os horrores da tortura no país.” (SARAPU; MARANHÃO, 2008, p. 5749)


Dentro dessa perspectiva, a reconstrução da História e da memória da ditadura no Brasil se faz necessária, na medida em que as lacunas existentes neste contexto, e a demonstração, principalmente no que concerne a Lei da Anistia, impossibilitaram e ainda impossibilitam a emergência de uma memória revisitada e, por essa razão, capaz de exercitar-se criticamente.


E isso se torna factível se formos capazes de reelaborar a partir do tempo presente o passado da Ditadura Militar, no intuito de rememorar os acontecimentos a partir também das vítimas para que alcancemos uma interpretação mais adequada acerca da lei de anistia. Diante das inúmeras possibilidades de desvios hermenêuticos, a proposta que se coloca é da irrupção de uma “justa memória” (RICOEUR, 2007, p. 17) que se encontra exatamente entre o inquietante espetáculo da tirania do “tudo” lembrar e da tendência sempre confusa e alienante do “tudo” esquecer. É exatamente nesse “entre” que o uso da memória torna-se crítico, porque capaz de indicar caminhos para superar a obsessão de “recordações traumáticas” (RICOEUR, 1996, p.1) de um passado totalitário que não deixa de nos assombrar.


O período militar, dessa forma, pode ser visto como um trauma mnemônico[3] imbuído de uma tentativa interior de apagar seus próprios vestígios. “Se as ditaduras têm sempre a clara intenção de calar e de desaparecer com as falas, as democracias fazem o elogio ao discurso.” (TELES, 2007, p.63) E falar é lembrar. Enunciar a memória é possibilitar a narração de um passado a partir do outro, da vítima, dentro de uma “dimensão pública livre e respeitosa”. (TELES, 2007, p.63). Ao contrário da democracia, o totalitarismo é o silêncio imposto pela violência, é esquecimento amnético. “A violência seria, pois, a solidão de um olhar mudo, de um rosto sem palavra, a abstração do ser”. (tradução nossa) (DERRIDA, 1989)


Contudo, a memória não deve ser pensada como a tentativa de ultrapassar fatos decorridos no passado, mas revivê-los de forma salutar com o objetivo de reconstrução embasada dos acontecimentos. Recordar é reviver. O trabalho da memória é esse situar; é, portanto, “o fenômeno de presença de uma coisa ausente[4], permanecendo implícita a referência ao tempo passado.” (RICOEUR, 2007, p.26).


Isso significa reconhecer o papel temporalizante e também fidedigno da memória. O que foi não é mais. Mas o que foi existiu e tais experiências, hoje, só sobrevivem nas nossas lembranças. A memória, então, seria esse ato de atualizar a coisa passada e para isso ela exerce profundidade temporal, distanciamento. Rememorar significa também resgatar o que foi experimentado, como uma espécie de repetição: “a coisa não vem, mas vem a sua imagem” (GONÇALVES, 2007, p. 42).


“A memória é do passado”[5] (RICOEUR, 2007, p.26), a anterioridade é sua marca. Há, assim, uma ambição veritativa ao se exercitar a memória, porque ela quer reconhecer o que foi e já não é mais. E por isso mesmo, rememorar exige um esforço, uma busca anamética dos acontecimentos. Mas o que aconteceu também não foi experimentado de forma solipsista, uma vez que o mundo da experiência é um mundo compartilhado.


A memória, nessa perspectiva, não deve ser pensada como algo individual, de um ente que sofreu diretamente, nem coletiva ou de vários entes, mas compartilhada, algo que transcende o eu-nós. Porque a memória haveria de ser atribuída apenas a mim, a ti, a ela ou a ele, ao singular das três pessoas gramaticais suscetíveis quer de designar a si próprias, quer de se dirigir cada uma a um tu, quer de narrar os fatos e os gestos de um terceiro numa narrativa em terceira pessoa do singular?E por que essa atribuição não se faria diretamente a nós, a vós, a eles? (RICOEUR, 2007, p.105)


A concepção de memória, então, insere-se entre a tradição do olhar interior e do olhar exterior do passado, isto é, se coloca para além de uma visão “egológica” (RICOEUR, 2007, p.106) em que a memória é um exercício meramente individual e para além de uma “irrupção sociológica” (RICOEUR, 2007, p. 106), em que a consciência individual se dissolve na coletiva. A memória é singular, na medida em que não é possível transmitir as minhas lembranças a outro, transferindo a significação que eu atribuo ao meu passado.


Mas a memória que tenho também pertence a minha sociedade e ao mundo que eu compartilho. Os olhares dos outros também nos asseguram acesso às nossas lembranças. A memória é minha e do outro, sendo que os indivíduos estão interagindo com o social. Existe articulação, acordo, reconhecimento. A memória individual e coletiva podem até ser distintas, mas se exercitam de forma mútua e cruzada (RICOEUR 2007, p. 107), numa noção em que viver é sempre um viver junto.


Sendo assim, lembrar da ditadura militar no Brasil significa perceber que as feridas que ainda continuam expostas não só pertencem as vítimas impossibilitadas de narrar a sua própria dor, mas a própria sociedade brasileira, numa perspectiva em que “as noções de trauma ou traumatismo, de ferida e de vulnerabilidade pertencem à consciência comum e ao discurso ordinário” (RICOEUR, 1996, p.1).


“A busca da lembrança comprova uma das finalidades principais do ato da memória, a saber, lutar contra o esquecimento, arrancar alguns fragmentos de lembrança à “rapacidade” do tempo, ao “sepultamento no esquecimento””. (RICOEUR, 2007, p.48). O processo de reconstrução do passado através da memória se dá exatamente quando nos lembramos de algo, tornando o passado, passado-presente. E lembrar de algo também significa lembrar de si mesmo. (RICOEUR, 2007)


Uma coletividade, portanto, só é construída com base numa memória compartilhada, e é ao Direito que cabe instituí-la. Instituir o passado, certificar os fatos acontecidos, garantir a origem dos títulos, das regras, das pessoas e das coisas: eis a mais antiga e permanente das funções do jurídico (OST, 2005, p.49). Na falta de tais funções, surgiria o risco de anomia, como se a sociedade se construísse sobre areia. (OST, 2005, p.49)


Entretanto, a única forma que possuímos para tornar a memória presente é buscando o passado, rememorando a verdade dos acontecimentos. No momento do esquecimento dos rastros, dos vestígios, do testemunho, não há passado, este não existe, foi transposto, esquecido, é o indizível. Não se está aqui chegando ao momento do perdão, mas do esquecimento puro e vazio. Na medida em que há a recordação, há também a “revivência”, a reiteração do passado, visando o perdão futuro e o possível esquecimento. Para esquecer o trauma é também necessário lembrar os acontecimentos.


“É preciso realçar aqui que é na narrativa que a memória é levada à linguagem. […] Narrativa [é] toda arte de contar, narrar, que encontra, nas permutas da vida cotidiana, na História das histórias e nas ficções narrativas, as estruturas apropriadas do linguajar” (RICOEUR, 1996, p.4). O esforço da memória exige um trabalho que ultrapassa somente a reiteração.


Será a partir da narrativa que ocorrerá a reconstrução da memória da ditadura e também da memória da Lei da Anistia, narrativa esta essencialmente crítica, que desvela as verdades impostas e abre espaço para as verdades construídas, denunciando uma amnésia vestida de esquecimento. Esta amnésia consiste no simples exercício de fechar os olhos para o passado e tampá-lo em um local onde este não possa ser mais discutido e desmascarado, diferente do esquecimento, que se alcança com o perdão. “O esquecimento, como a memória, exige, pois, ser revisitado, selecionado, ultrapassado, superado, subsumido num tempo que não se reduz tão somente a declinação do passado”. (OST, 2005, p. 145).


É exatamente por essa razão que anistia e perdão no Brasil sempre foram conceitos tão distintos, para não dizer antitéticos. A anistia consistiu num apagamento que foi bem além da execução das penas. Incluiu, outrossim, a proibição de ações em juízo, ou seja, proibição de todo e qualquer processo movido a criminosos e também a proibição de mencionar os próprios fatos com sua qualificação criminal. “Trata-se mesmo de um esquecimento jurídico limitado, embora de vasto alcance, na medida em que a cessação dos processos equivale a apagar a memória em sua expressão de atestação e a dizer que nada ocorreu” (RICOEUR, 2007, p.462).


Dessa forma, aduz Ricoeur (2008), se tratar a anistia, de uma verdadeira amnésia institucional que nos convida a agir como se o fato não tivesse ocorrido. Para ele, todos os delitos do esquecimento estão contidos nessa incrível, para não dizer “mágica” (RICOEUR, 2008, p.195), pretensão, de apagar os vestígios das discórdias públicas e, é nesse sentido que a anistia é o contrário do perdão, pois este, como veremos mais adiante, exige memória.


Enquanto amnésia comandada, ressalta Ricoeur (2008), a anistia dissimula um passado declarado proibido, entretanto, não tem o condão de provocar o seu total esquecimento. Se assim o fosse, a memória individual e coletiva seria privada da fundamental crise de identidade que possibilita uma reapropriação lúcida do passado e de sua carga traumática. Inclusive o que ocorre é justamente o oposto: cada vez que o sujeito ou o Estado tentam submeter as lembranças a um processo de amnésia forçada, estas voltam com mais força, uma vez que elas passam a se constituírem como trauma para o indivíduo ou para a sociedade (RICOEUR, 2007).


É o caso da ditadura militar no Brasil em que a anistia visou também apagar os rastros, silenciar as vítimas e impossibilitar que as violências e as feridas não cicatrizadas fossem colocadas a limpo. Poderíamos dizer então, apropriando-nos das palavras de Ricoeur (2007), que a nossa memória compartilhada foi, na verdade, impedida.


O conceito de Memória impedida remonta à contribuição da teoria psicanalista elaborada por Freud (1914, 1917). Diante de uma situação traumática vivenciada no passado, as imagens da memória tendem a se apresentar ao indivíduo de duas formas: ou como luto ou como melancolia.  O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante (FREUD, 1917, p.1).Por mais que o luto, envolva um grave distanciamento daquilo que pode ser considerado normal na vida de alguém , não se pode considerá-lo como uma atitude patológica. “Confiamos que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele” (FREUD, 1917, p.1).


A melancolia, em contrapartida, manifesta-se nas pessoas que reagem à perda de forma doentia. Há aqui uma relação difícil com a memória. O sujeito não consegue se desligar totalmente do seu objeto de amor que é também seu objeto de ódio. “Combalido pela realidade hostil e catastrófica, o sujeito melancólico interna-se de modo passivo na situação dramática vivida e torna-se incapaz de reagir.” (TELES, p.76).


A pessoa, portanto, fica inteiramente determinada pelo seu passado, mas o trauma que ele experimentou continua inacessível. Por isso, dizemos que nessa situação a memória torna-se impedida, porque indisponível. Entretanto, isso não significa dizer que ela foi abandonada, o que ocorre é que ela volta mascarada, cheia de sintomas. “O paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo.” (FREUD, 1914, grifos do autor).


O indivíduo, então, submete-se a compulsão de repetição que, agora, passa a substituir o impulso de se recordar a dor e o trauma. Cria-se uma resistência ao exercício da memória.


Essa compulsão de repetição é o que nos interessa aqui na análise da memória impedida pela lei de anistia no Brasil. Mas será que o recorte psicanalítico pode também ser apropriado para a compreensão da memória compartilhada em sociedades como a brasileira que vivenciaram feridas ainda não cicatrizadas? A resposta de Ricoeur é afirmativa no sentido de que sociedades inteiras podem vivenciar traumatismos coletivos, estabelecendo, assim, uma relação doentia com o seu passado doloroso:


“É com a mesma obsessão do passado que se comprazem os povos, as culturas, as comunidades acerca das quais se pode dizer que sofrem de um excesso de memória.  Mas é a mesma compulsão que conduz outros a fugir do seu passado, com o temor de se perderem na angústia da compulsão”. (RICOEUR, 1996, p. 3)


O problema que emerge é que justamente uma lembrança mal resolvida pode acarretar o risco da repetição também na esfera pública. A ditadura se insere aqui, no sentido em que quanto mais se resiste ao exercício de translaborar nossa memória compartilhada, mais a ferida aumenta. “É nos antípodas deste esquecimento de fuga que será preciso colocar o esquecimento activo, libertador, que seria como que a contrapartida e o complemento do trabalho de lembrança” (RICOEUR, 1996, p.6).


Portanto, não lembrar não significa esquecer a dívida, a dor, o trauma e caminhar diante de um futuro que se abre aos cidadãos. Mas permanecer religado a um passado que atormenta e que pode vir a se repetir na história brasileira.


E é diante dessa relação patológica que o Brasil estabelece com o seu passado totalitário é que insurge a imprescindibilidade de um verdadeiro trabalho de cura. Lembrar não é simplesmente impedir o esquecimento, mas possibilitar a consubstanciação de uma memória que se reconcilie consigo própria e evite o risco da repetição. Nesse sentido, ao contrário da relação melancólica, o trabalho de luto é imprescindível, já que ao exercer criticamente a memória, desligando dela a dívida, “o ego fica outra vez livre e desinibido’ (FREUD, 1917).


Tal “reconciliação com o material reprimido” (FREUD, 1914) não deixa de ser um exercício permanente e vivo de uma busca da verdade dos fatos através de seus vestígios e pistas. Um exercício que é, ao mesmo tempo, terapêutico e capaz de abrir caminho para a difícil via do perdão.


2. Memória, direito e esquecimento: reinterpretar a lei de anistia


No Brasil, após longos anos de ditadura ocorridos no período de 1964 a 1985, erigiu-se o Estado Democrático de Direito com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 (BRASIL, 2009). A transição lenta e gradual para a democracia aos poucos trouxe a tona denúncias de casos de tortura, desaparecimentos forçados e assassinatos como o do jornalista Vladimir Herzog[6], informações antes abafadas e contidas pelo regime que detinha total controle dos meios de informação.


A partir do aumento de manifestações pela democracia, e com o surgimento de uma nova cultura capaz de sinalizar o respeito aos direitos humanos,,a Constituição de 1988 passa a trazer em seu Artigo 5º novos direitos e garantias fundamentais para a sociedade brasileira suprimidos no tempo da repressão, que podem servir atualmente como base para questionar os fatos ocorridos.


Num período ainda anterior ao advento da nossa Constituição, em fins da década de 70, o presidente general João Batista Figueiredo encaminha um projeto de lei ao Congresso Nacional que passa a ser sancionado em 28 de agosto de 1979, criando a lei 6.683, denominada “lei de anistia”. Completando atualmente 30 anos, a lei gerou e ainda gera opiniões um tanto quanto divergentes, especialmente no que diz respeito aos efeitos que ela traria na reconstrução da democracia em nosso país.


Alguns a consideram como um ponto final dos tempos totalitários vivenciados no Brasil e, por isto, deveria cumprir o seu papel de forma a inibir qualquer investigação e rememoração dos acontecimentos nos porões da Ditadura. Tal postura, ao procurar impedir a reflexão da lei e a busca de uma memória dos tempos de autoritarismo no Brasil, encontraria amparo na crença de que uma sociedade deve virar a página da sua história e esquecer eventos traumáticos do passado para que seja-lhe assegurado a abertura a um futuro contingente.


Nesse caso, a ausência de respostas institucionais e jurídicas evitaria o desvelamento de uma “caixa-preta”, o que possibilitaria o perdão necessário para que a sociedade continue seguindo em frente e, ao mesmo tempo, evitaria “ciclos de ódio e violência” (SAVELSBERG, 2007, p.14). Esse posicionamento pôde ser visto na palestra do criminalista e professor da FGV Thiago Bottino do Amaral, proferida no Seminário “Limites e possibilidades para a responsabilização jurídica dos agentes violadores de direitos humanos durante o estado de exceção no Brasil”[7], que ocorreu no dia 31 de Julho de 2008 e foi patrocinado pelo Ministro da Justiça Tarso Genro.


Nessa ocasião, ele declarou que os crimes estariam prescritos, além de não haver base legal para punir por tortura, visto que o direito penal segue o princípio “nullum crimen sine lege”, não há crime sem lei anterior que o defina e o crime de tortura não estava tipificado. Alia-se a tal idéia, o medo do revanchismo como resultado da quebra de um pacto histórico que visava apagar ódios e rancores mútuos, como chegaria a afirmar o ministro da defesa Nelson Jobim: “mexer com uma coisa destas pode gerar uma bola de neve”[8].


Por outro lado, os movimentos sociais que lutaram pela redemocratização consideram a lei da anistia “ampla, geral e irrestrita”, feita única e exclusivamente para proteger o interesse dos militares para não serem julgados pelos crimes cometidos contra a humanidade, como desparecimento forçado, tortura, estupro entre outros.


Levanta-se, nesse caso, uma tese contrária, no sentido de reforçar que uma sociedade só se abre para um amanhã democrático se enfrentar também os seus fantasmas. O perdão não significaria esquecimento, mas reconciliação com o passado de forma a desligar-se de uma relação patológica e obsessiva com os traumas das lembranças de um totalitarismo mal-resolvido.


Reconstruir a memória compartilhada, a partir do julgamento criminal, assegurando-lhe um acesso no tempo presente implicaria reforçar “respeito pelos direitos humanos e pelo humanitarismo.” (SAVELSBERG, 2007, p. 14). Tal argumento ainda sustenta-se na posição jurídica do equívoco que se procedeu até o atual momento acerca do alcance da interpretação da lei de anistia, que iguala agentes públicos que cometeram os crimes em nome do regime e os cidadãos que lutaram contra a ditadura, identificando, com base em tratados internacionais, os crimes contra a humanidade como imprescritíveis.


Compartilha desta idéia o presidente da comissão de anistia Paulo Abrão que afirma ser favorável à responsabilização por crimes de tortura ocorridos no período da ditadura militar, afirmando que: “crimes de tortura não são políticos, portanto não prescreveram”. (ABRÃO, 2008). Convidado a vir ao Brasil, o juiz Baltasar Garzón, famoso por ter decretado em 1998 a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, também defendeu a punição penal para crimes contra a humanidade ocorridos no período da repressão, afirmando não ser cabível a anistia e tão pouco a prescrição. Ressaltou também que os países que fazem parte do sistema internacional de Justiça como o Brasil permitem a primazia do direito internacional sobre o direito local. (GARZÓN, 2008).


Recentemente, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) posicionou-se favorável a este segundo argumento, propondo uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 153 no Supremo Tribunal Federal (STF) que busca, então, uma reinterpretação da lei da anistia. O Artigo 1º da Lei de Anistia traz:


“Artigo 1º – É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de Fundações vinculadas ao Poder Público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares” (vetado).


Porém, o que é questionado pela OAB na ADPF é o § 1º do Artigo 1º “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. (grifo nosso) (BRASIL, Lei 6683, 1979). A Ordem dos Advogados do Brasil busca uma decisão do Supremo Tribunal Federal no sentido “de saber se houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor”. (grifo nosso) (BRASIL, ADPF 153, 2008).


A tese sustenta-se na fundamentação do professor Tércio Sampaio Jr. que define a anistia como um esquecimento na criação de uma ficção legal, o que significa não apagar propriamente a infração, mas o direito de punir. Por esta razão, surge após o fato criminoso, o que não se confunde com novação legislativa, isto é, não transforma crime em ato lícito. (SAMPAIO, 2008). A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 afirma que o Artigo 1º parágrafo 1º, foi redigido intencionalmente de forma obscura a fim de incluir no âmbito da anistia criminal os agentes que executaram crimes comuns contra os opositores do regime, sendo na história do Brasil, a primeira vez que se procurou fazer tal extensão.


A conexão criminal implica uma identidade ou comunhão de propósitos ou objetivos, nos vários crimes cometidos. Quando o agente é apenas um, a lei reconhece a decorrência de concurso material ou formal de crimes. Sendo vários agentes, na comunhão de propósitos ou objetivos haverá co-autoria. Reconhece-se que no Código de Processo Penal (BRASIL, Lei 3689, 1941) há a conexão criminal, quando os agentes atuam uns contra os outros, mas esta se trata apenas de uma regra de unificação de competência de modo a evitar julgamentos não sendo norma de direito material.


Irrefutavelmente, não poderia haver e, de fato, não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão, sendo reconhecida a conexão somente na hipótese de crimes políticos e crimes comuns perpetrados pela mesma pessoa ou várias pessoas em co-autoria, portanto, a anistia somente abrange os autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional e, eventualmente, de crimes comuns a ele ligados pela comunhão de objetivos.


Os agentes públicos que mataram, torturaram, e violentaram sexualmente opositores políticos, entre 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, não atentaram contra a ordem política e a segurança nacional. Sob este pretexto de proteger o regime militar, praticaram crimes comuns com aqueles que, supostamente, punham em perigo a ordem política e a segurança do Estado, portanto, não houve comunhão de propósitos e objetivos entre os agentes criminosos, de um e de outro lado.


A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 demonstra que a conexão criminal é inválida por descumprir vários preceitos fundamentais inscritos na Constituição Federal de 1988, tais como o da isonomia em matéria de segurança, descumprimento por parte do Estado em não ocultar a verdade, desrespeito aos princípios democrático e republicano e o preceito de que a dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro não pode ser negociada.


No descumprimento por falta de isonomia em matéria de segurança, a ADPF salienta as aplicações históricas mais tradicionais do princípio da isonomia, em especial o preceito fundamental “nullum crimen sine lege” inscrito no inciso XXXIX do artigo 5º de nossa atual Constituição (BRASIL, 2009). A petição inicial salienta que tal preceito surgiu no “século das luzes”, quando a ética universal passou a considerar odiosa a discriminação pessoal em matéria de crimes e penas.


A lei de anistia, por outro lado, sobrevém como o exato oposto da definição criminal, uma vez que, diversamente da graça e do indulto, ela não apenas extingue a punibilidade, mas descriminaliza a conduta criminosa, não devendo se referir a pessoas, mas a crimes objetivamente tipificados em lei. A lei 6.683/79 declara como objeto de anistia os crimes políticos, e estende a uma classe absolutamente indefinida de crimes: “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos” e “[…] ou praticados por motivação política”.


Incumbe àqueles que problematizaram o tema, pela via processual e junto ao poder judiciário, e não ao legislador, definir o significado dos termos “relacionados” e “motivação”, contidos nas disposições legais supracitadas e, justamente por não haver tal classificação alguns criminosos não foram processados e tão pouco julgados, contando, portanto, com a imunidade penal durante o regime de repressão.


A possibilidade de uma reinterpretação da lei da anistia favorável à punição dos crimes cometidos pelos militares revela que não mais pode ser negado aos brasileiros um “acerto de contas” com sua própria história a fim de se evitar que erros do passado sejam repetidos.


Em setembro de 2008, o Brasil realizou a primeira cerimônia oficial em que se desculpou publicamente a treze vítimas do regime autoritário. No início de outubro, o Poder Judiciário reconheceu, pela primeira vez que um militar cometeu atos de tortura. O caso foi movido pela família Teles contra o Coronel Ustra (MAMORU, 2008) e teve um efeito meramente declaratório. Embora tal decisão não tenha tido caráter punitivo, acredita-se que o reconhecimento da responsabilidade de um agente no âmbito jurisdicional pode permitir um primeiro passo em busca da memória impedida no Brasil.


A pressão para que o Estado brasileiro ofereça uma nova interpretação à lei de anistia surge da comunidade internacional, por meio de redes transnacionais, das Nações Unidas e do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, principalmente nos tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o da Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada de Pacto de San José da Costa Rica). Trata-se de um acordo internacional entre os países-membros da Organização dos Estados Americanos que foi subscrito durante a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969, na cidade de San José da Costa Rica,  entrando em vigência em 18 de Julho de 1978, sendo ratificado no Brasil em 1992.


A convenção consagra diversos direitos civis e políticos, como o direito à vida, direito à integridade pessoal, direito à liberdade pessoal e garantias judiciais, direito à proteção da honra, reconhecimento à dignidade, dentre outros. (WIKIPÉDIA, 2009)


O que ocorre nos dias de hoje é que há alegações referentes ao fato da convenção ter ocorrido em 1969 e a lei de anistia ser de 1979, o Brasil, então, não estaria obrigado a cumprir seus termos, pois foram ratificados apenas em 1992. Mas tal ordem de idéias não procede, porque o Tratado de Viena, sobre o direito dos Tratados, esclarece que um país que tenha firmado um tratado, mesmo que não o tenha ratificado, não pode frustrar seu cumprimento. Portanto, no caso do Brasil, as violações à Convenção Americana, anteriores à sua ratificação, não legitimaram a situação daqueles que, na qualidade de agentes do governo, atentaram contra direitos reconhecidos da pessoa humana.


Os crimes contra a humanidade também podem ser considerados imprescritíveis[9] diante do que se assevera na Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade, adotada pela resolução 2391, da Assembléia Geral das Nações Unidas em 26 de novembro de 1968. A Assembléia Geral se convence de que “a repressão efetiva dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade se constitui em fator importante da prevenção destes crimes e da proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais” (ONU, 1968)


No processo de transição para a democracia, o Brasil buscou salientar no plano externo do país o respeito aos direitos humanos, permanecendo incondizente com os valores pactuados e declarados perante a comunidade internacional e interna, caso tenha de responder à Corte Interamericana de Direitos Humanos pela recusa em cumprir com as obrigações internacionais como o dever de investigar, processar e punir e o dever de revelar a verdade.


Diante, então, dessa possibilidade que se abre acerca da responsabilização criminal dos militares da Ditadura Brasileira, o que se pretende é discutir essa difícil tarefa do Direito em reconstruir um passado traumático, ora ligando-o ora desligando-o. E reconstruir esse passado consiste também numa reelaboração da memória de forma a assegurar o seu acesso através também das narrativas dos silenciados. Essa tentativa de reconciliação com o passado numa esfera pública e jurídica, como a do julgamento criminal, implica reconhecer que a experiência negativa existiu e produziu efeitos traumáticos que não deixam de emergir no presente, devendo, portanto, ser confrontados para que possam também ser perdoados.


3. Julgamento e Responsabilização na construção de um perdão nem fácil, nem impossível


O estudo do perdão escapa a muitas convenções e exigências metodológicas, porque vive num terreno de enigmas, aporias, paradoxos. O perdão envolve aspectos filosóficos, sociais, religiosos, políticos, morais e jurídicos; revelando assim a complexidade, a temporalidade e a falibilidade humana. É um conceito que nos conduz adentrar na discussão acerca da própria condição do homem no mundo, revelando a sua vulnerabilidade, sua miséria, sua dívida, mas também toda a sua potencialidade.


Ao abordarmos a temática do perdão, estaremos necessariamente penetrando o campo da culpabilidade e da reconciliação com o passado, uma vez que as dívidas, as faltas e os delitos pretéritos precisam perpassar por uma espécie de “acerto de contas” a fim de assegurar uma outra chance para escrita da história, no dizer de Migliori:


“Enfim, a idéia do perdão se depara com fenômenos díspares como o crime, a culpa, o pecado, o sofrimento, a morte, todos situados no plano do caráter enigmático do mal, do mal cometido, do mal sofrido. Haveria em princípio, em todos esses casos, uma dívida a ser paga, conseqüência de atos passados.” (MIGLIORI, 2007, p.20)


Paul Ricoeur (2007, p.465) afirma que há um duplo enigma no perdão; de um lado a culpa que paralisa o poder de agir desse “homem capaz” que somos e de outro, a eventual superação da incapacidade existencial. Esse duplo enigma atravessa de viés o da representação do passado, pois os efeitos da falta e os do perdão recruzam todas as operações constitutivas da memória e da história, imprimindo no esquecimento uma marca muito particular. (RICOEUR, 2007, p.465).


Memória, história e esquecimento estão intimamente imbricados de forma que o entrecruzar entre eles asseguraria um acesso a um passado reconciliado. Reconciliação não significa, pois, somente esquecimento, podendo ser construído, até mesmo, a partir de um processo de responsabilização pelas faltas passadas. Faltas essas que consistem na transgressão a uma regra, lei ou dever capaz de acarretar um verdadeiro mal ao outro.


“De fato, não pode haver perdão a não ser que se possa acusar alguém, presumi-lo ou declará-lo culpado.” (RICOEUR, 2007, p.467). A existência da culpabilidade, dessa forma, é condicionada a imputabilidade. Por imputável, Ricoeur (2007) compreende aquele homem que é capaz de agir, e se expor, de ser responsável pelos seus atos, sendo que tal responsabilidade também poderia repercutir no campo do Direito.


Entende-se, portanto, que o imputável só poderia ser o homem livre, uma vez que tal imputabilidade seria igualmente esse lugar em que o agente se liga a sua ação e admite sua responsabilidade por ela. (RICOEUR, 2007, p.465). “Posso falar, agir, narrar, levar meus atos à minha conta – eles podem ser a mim imputados.” (RICOEUR, 2007, p.467) O homem é capaz de refazer os lanços e dar um novo sentido a um passado, que apesar de inapagável, está sempre suscetível ao exercício de novas interpretações.


A liberdade é, pois, condição para o perdão. Somente o sujeito livre pode desligar-se pelo perdão e ligar-se por novas promessas. Somente o sujeito livre tem a capacidade de começar a si mesmo. O perdão permite, então, referir-se ao passado, solucionando o problema da irreversibilidade da ação humana, enquanto a promessa é a solução para a imprevisibilidade da mesma ação, referindo-se ao futuro. Enquanto a memória pertenceria unicamente ao tempo pretérito, sendo a anterioridade a sua marca essencial, o perdão, por outro lado, seria a dialética do passado e do futuro que é resposta em movimento, isto é, o potente projeto no recurso imenso das promessas não realizadas no passado. (RICOEUR, 1996, p. 7).


E se o passado da história de toda sociedade aparece-nos como povoado de projetos não cumpridos, um “grande cemitério das promessas” (RICOEUR, 1996, p.5), o perdão é esse recomeçar, é aquilo que assegura, na história, todo o horizonte possível para a construção continuada de um sempre novo amanhã.


“O perdão redime a ação, na medida em que nos permite desfazer, reiniciar, de modo a não parecermos vítimas das conseqüências das nossas ações para sempre. O perdão nos autoriza a agir de novo.” (MIGLIORI, 2007, p.82) Essa restituição da capacidade de agir exprime um ato de fé como fonte de regeneração de si. Isso implica em dissociar o culpado do seu ato, já que conforme Ricoeur (2007) se perdoa não ao culpado, e sim ao outro, a vítima. O perdão só pode ser devido ao silenciado, cuja falta foi a ele dirigida.


Para isso, a posição de anterioridade da falta em relação ao perdão exige uma memória capaz de lembrar e esquecer, seja na história individual ou coletiva. Lembrar, porque os fatos passados são inextirpáveis, mas esquecer, porque é necessário destruir o trauma e reparar o irreparável para que se possa seguir em frente.


Portanto, “o perdão, se ele tem um sentido e ele existe, constitui horizonte comum da história, da memória e do esquecimento.” (RICOEUR, 2007, p.465) No processo de perdoar, liga-se o passado pela memória, desligando-o pelo perdão e comprometendo-se com o futuro. Ao livrar-se de uma obsessão cega pelo passado, o perdão permite essa abertura para um amanhã que tem que ser capaz de se libertar das faltas e assegurar sempre um novo recomeço para a história; dentro, é claro, de um tempo pretérito reconciliado consigo mesmo.


Desligar-se pelo perdão, diante dessa perspectiva, não significa simplesmente esquecer, fugir da lembrança, do luto. Pelo contrário, o desligamento é a lembrança trabalhada, o luto trabalhado. Como já salientado, essa noção foi exposta por Freud (1914; 1917). O autor afirma que o luto consiste em desmembrar por etapas do objeto de amor, o qual também é objeto de ódio – até o ponto no qual ele poderá ser novamente interiorizado, num movimento de reconciliação, semelhante ao que se opera em nós no trabalho da lembrança.


Portanto, o perdão opõe-se ao esquecimento de fuga, a essa estratégia de evitar o trauma, pois só se pode perdoar o que não foi esquecido; quebrando-se a dívida e não a lembrança. (RICOEUR, 1996, p.6-7). É imprescindível lembrar dos fatos, compreender com clareza o que ocorreu, para que as faltas sejam perdoadas e, portanto, desligadas de seus respectivos agentes. Isso se dá porque o perdão dirige-se não aos acontecimentos cujas marcas devem ser protegidas, mas à própria dívida cuja carga paralisa a memória e por extensão, a capacidade de se projetar de forma criadora no porvir. (RICOEUR, o perdão…, p.7). Por isso mesmo, o silêncio imposto e o esquecimento passivo se opõem a figura do perdão, que não é nem fácil nem impossível.


O perdão difícil é cura e o esquecimento ativo é a chave de seu caráter terapêutico. Perdoar significa interrompimento com o tempo passado, mas também quer dizer saída. É recomeço, restabelecimento, em que se condena a falta, mas o agente livra-se do trauma obsessivo. “O esquecimento, como a memória, exige, pois, ser revisitado, selecionado, ultrapassado, superado, subsumido num tempo que não se reduz tão somente à declinação do passado.” (OST, 2005, p.145).


Mas para isso a memória impedida precisa livrar-se de sua condição patológica, que pode se dá tanto na esfera individual como na coletiva. Da mesma forma, poderíamos dizer que o traumatismo gerado por décadas de ditadura militar no Brasil deve igualmente encontrar a sua cura numa esfera de perdão. É imprescindível a translaboração, isto é, o exercício crítico da memória capaz de possibilitar tanto a revelação dos delitos e dos documentos da época quanto indicar a via para um esquecimento feliz.


Ao ignorar a memória, a dor permanece, mas ao exercitá-la o presente pode se reconciliar com o passado, reconhecendo nele uma outra realidade possível. As vítimas do autoritarismo no Brasil, então, precisariam narrar essa outra história não contada, os autores de seus sofrimentos, por outro lado, precisariam ser identificados e suas confissões devidamente publicadas. Sem dúvida alguma, o exercício da atividade jurisdicional constitui uma das esferas em que a translaboração pode ser construída nesse ambiente público e comunicativo.


“Do perdão, assim entendido como segunda chance do passado, reescritura de um texto tornado insuficiente, o direito, e particularmente a jurisprudência, oferecem inúmeros exemplos.” (OST, 2005, p.135) E dentre esses, a possibilidade de responsabilização criminal dos militares que cometeram delitos durante a ditadura militar permite uma revisão do que foi, num verdadeiro trabalho de luto a ser empreendido pela memória partilhada no Brasil.


É, portanto, um exercício contrário daquele identificado na anistia aos torturadores, porque não quer apagar os rastros e silenciar as vítimas, mas assegurar a narrativa do outro, sob o ponto de vista do outro na reelaboração de uma outro passado possível. “A voz do Outro é, portanto, revelação e convida o Eu ao reconhecimento de sua humanidade e, por conseguinte, a um ato de não violência, de responsabilidade e de justiça.” (GALUPPO; COSTA JUNIOR, 2008, p.44)


Mas o perdão não se resume à soma trabalho de lembrar/trabalho de luto. Ele está presente em um e outro, ele se acrescenta em um e outro. E, acrescentando ele traz nele o que não é trabalho, mas dom, (RICOEUR, 1996, p.7) até porque ele não é relação de troca, mas consiste na própria graça. O perdão é dom também por excepcionar a lei do possível, o direito posto e a resposta jurisdicional. Essa extrapolação do limite do possível rompe a troca, o cálculo, a cobrança correlata e enfatiza a desproporcionalidade do perdão.  O perdão é incondicional, sem exceção e sem restrição. Não pressupõe um pedido de perdão. (RICOEUR, 2007)


Por essa razão, um perdão desse tipo é um tanto sublime demais para ser jurídico integralmente; ele estaria ligeiramente para além do direito, assim como toda amnésia institucionalizada (vide interpretação hegemônica da lei de anistia) estaria frequentemente aquém de suas virtualidades (OST, 2005, p. 145). Contudo, nada impede pensar que o ideal de reabilitação e reparação por ele implicado, que o processo judicial coloca em ação, não seria aquilo que, na prática de reconhecimento recíproco dos querelantes, inspira muitas instituições penais, mesmo que estas continuem amplamente matizadas de cálculo de interesses, de relações de força e de compromissos políticos (OST, 2005, p. 145).


Sendo assim, apesar de o perdão não pertencer totalmente ao direito, ele encontra no direito, e mais especificamente no julgamento, a sua possibilidade de concretização no mundo humano que é sempre contingente.


Não se pode, pois, substituir simplesmente a justiça que o Direito busca pela graça sobrehumana. Caso contrário, “perdoar significaria ratificar a impunidade, o que seria uma grande injustiça cometida à custa da lei e, mais ainda, das vítimas.” (RICOEUR, 2007, p.479). A resposta no âmbito jurisdicional não constitui a reencarnação do perdão, mas também não deixa de se responsabilizar com uma reconciliação a ser indicada por essa via.


Da mesma forma, a possibilidade de reinterpretação da lei de anistia, ao ser construída no interior de um processo judicial, pode ser considerada um comprometer-se com o jogo de temporalidades, assegurando um acesso a um passado revisitado e tirado a limpo a partir da memória e, ao mesmo tempo, um caminhar para um outro futuro, que não implique mais lembranças traumáticas nem mesmo condenação infinita aos agressores, no dizer de Ost, para quem


“A opção feita em favor de um futuro reconciliado não se paga com preço da amnésia; ao contrário, é porque um gesto forte de memória foi colocado pelo perdão, e então, a liberação dos espíritos pode intervir sem medo de retorno permanente do que foi recalcado. Longe de fugir à prova do espetáculo da divisão social, a sociedade, colocando-a em cena sob a forma de uma exposição pública, pode enfim, operar-lhe a catarse.” (OST, 2005, p.176)


O processo criminal é, nessa perspectiva, fundamental para o perdão, vez que o mesmo possibilita a constituição da justa distância entre o delito que desencadeia a cólera da vítima e da sociedade, e a punição aplicada pela instituição judiciária. Ricoeur (2008) afirma que, enquanto a vingança cria um curtocircuito entre os dois sofrimentos, quais sejam, o da vítima e o daquele que foi infligido pelo vingador, o processo se interpõe entre os dois, instituindo assim, um justo distanciamento entre ambos.


Desta forma, a separação entre a palavra violência e a palavra justiça se dá basicamente por meio de quatro elementos estruturais, senão vejamos:


Primeiramente, está pressuposto um terceiro, que não é parte do debate e está qualificado para abrir um espaço de discussão. Situa-se em três instâncias distintas: em primeiro lugar, a instituição de um Estado distinto da sociedade civil; em segundo lugar, deve-se considerar como terceiro a instituição judiciária; e por fim, o Estado e a instituição judiciária.


O segundo elemento é o sistema jurídico que qualifica o terceiro estatal como Estado de Direito. Ao mesmo tempo, ocorre o movimento inverso, já que esse sistema é qualificado por aquilo que chamamos de Estado Democrático de Direito, sem o qual não haverá qualquer debate no âmbito público.


Tal debate vem em terceiro lugar. É o componente essencial que dá título à estrutura inteira. Sua função é conduzir a causa pendente de um estado de incerteza a um estado de certeza. É importante que o debate seja processualizado, sendo assim edificado pelos princípios fundamentais do contraditório, da ampla defesa, da isonomia, da legalidade e do acesso ao direito, bem como estabelecido por um procedimento conhecido que se imponha a todos os seus protagonistas.


A sentença, palavra que profere o direito é, por fim, o quarto componente estrutural do processo. Só deve ser pronunciada no final de um debate público e contraditório, no decorrer do qual a vítima e suspeito tiveram sucessivamente a palavra. Através dela, a culpa é legalmente estabelecida; o réu presumido inocente é declarado culpado; põe fim à incerteza; atribui às partes do processo os lugares que determinam a justa distância entre vingança e justiça; reconhece aqueles que cometeram a ofensa e sofrerão a pena. Aí está a réplica mais significativa dada pela justiça à violência: a sentença suspende a vingança.


Neste sentido, assim como Ricoeur, Ost (2005) também assevera essa imprescindibilidade do processo criminal para o perdão, pois tenta estabelecer a justa distância entre delito e sanção, ao contrário da vingança privada, que opõe sem distância a vítima e o culpado. O processo atuaria como uma separação, um recuo, uma mediatidade, na medida em que introduz uma mediação entre justiça e perdão, operando um trabalho progressivo de reconhecimento recíproco dos protagonistas.


Através dele, a vítima, logo de início é reconhecida como tal e, este reconhecimento público da injustiça que a atinge, possibilita, de certa forma, a recuperação da sua dignidade e autoestima, significando o seu primeiro ato do trabalho de luto. Este reconhecimento opera também do lado do réu: ao assumir sua falta e pedindo perdão, ele se coloca em situação de obtê-lo. Em seguida, é preciso que a sociedade, que lhe intenta este processo, reconheça-o como um ser racional e moral, e não como um monstro infra-humano.


Na medida em que o culpado significa punível, a culpabilidade remonta dos atos a seus autores. (RICOEUR, 2007, p.480). Algo, portanto, se deve ao culpado, isto é, uma consideração que é o contrário do desprezo. Os autores dos crimes, até mesmo os mais hediondos como aqueles cometidos pelos agentes públicos durante a ditadura militar, têm direito à consideração, porque continuam sendo homens como seus juízes; nessa condição, são presumidos inocentes até sua condenação; além disso, eles são chamados a comparecer com suas vítimas no âmbito da mesma encenação do processo; eles também são autorizados a ser ouvidos e a se defender (RICOEUR, 2007, p.480).


Ao se propor a discussão, pela via jurisdicional, dos delitos cometidos durante o período ditatorial, não se está buscando uma condenação a priori ou a completa humilhação dos agressores, mas o reconhecimento público das partes do processo e a reconciliação com um passado impedido, sendo assegurado, no processo, todas as garantias constitucionais e democráticas aos ofensores.


Poderíamos então, parar por aqui, com o reconhecimento público das vítimas, agressores e de seus delitos? Não, a condenação é devida, sendo crucial para o perdão, pois o fracasso do reconhecimento da condenação pelo condenado nos conduz à noção, já mencionada de justa distância. Certo é que, de modo geral, a condenação é recebida pelo condenado como excesso de distância, representado, física e geograficamente, pela condição de detento, cuja prisão marca a exclusão da vida em sociedade. Esse excesso é representado, também, pelos efeitos da condenação, tais quais, perda da estima pública e privada, perda de capacidade jurídica e cívica.


Entretanto, ao contrário do que pode parecer ao condenado, às vítimas e à sociedade, tal punição reduz, grau a grau o excesso de distância, restabelecendo, assim, um distanciamento justo. O que a discussão no âmbito jurisdicional acerca da responsabilidade dos militares na época da ditadura militar no Brasil poderia acarretar é esse afastamento necessário e justamente posto entre réu e vítima. Isso porque abriria caminhos para um reconhecimento recíproco no sentido de cada um tomar parte na sociedade, desconstruindo a demasiada proximidade entre ambos no conflito e o demasiado distanciamento entre um e outro na ignorância, no ódio ou no desprezo.


Ost (2005) ratificando os ensinamentos de Hegel, menciona que a sanção honra o culpado. Através da mesma, a sociedade declara que ele é responsável por seus atos, qualquer que seja a gravidade de seu delito e, portanto, ele também é capaz de outra coisa. Há, portanto, o perdão (RICOEUR, 2007, p.465), o que significa dizer que o agressor vale mais do que as suas faltas e os seus delitos e, por isso, a ele será devolvido a sua capacidade de continuar e de agir. Neste sentido, a sanção surge como o primeiro passo na direção de um outro futuro, que se encontra para além da simples repetição de um passado eternamente culpável.


Aí está o significado moral da condenação jurídica: o reconhecimento da vítima, publicamente, como ser ofendido e humilhado, excluída, assim, da reciprocidade por aquilo que faz do crime a instauração de uma injusta distância. Através deste reconhecimento a sociedade declara o queixoso como vítima ao declarar o acusado como culpado. São restabelecidas a honra, reputação, autorrespeito, autoestima e dignidade. Tal reconhecimento contribui para o trabalho de luto com o qual a “alma ferida se reconcilia consigo mesma, interiorizando a figura do objeto amado que foi perdido” (RICOEUR, 2008, p.189).


Ricoeur (2008, p.189) afirma que aí estaria uma aplicação um tanto inesperada das famosas palavras do Apóstolo: “a verdade vos libertará”. O que poderíamos acrescentar é que ao lidar também juridicamente com as responsabilidades dos delitos cometidos no período do Estado de Exceção brasileiro, esse trabalho de luto não seria oferecido apenas às vítimas, mas a seus descendentes, parentes e amigos, cuja dor ainda merece ser honrada.


No dizer de Ost,


“Resta, pois, que este passado, do qual não nos desembaraçamos com tanta facilidade, permanece em grande parte um enigma para nós. Se não é mais ‘sombra tutelar’ ou ‘herança maldita’, ele se constitui não menos que para falar como Gauchet, ‘o lastro enigmático de uma identidade que nós construímos através do devir.’ Talvez aqui fosse necessário evocar o enigmático “corcundinha de que falava W. Benjamin: este estranho e insistente passado que não cessa de nos interpelar. ‘Menos nós vemos o corcundinha, escrevia ele, mais ele nos observa.’ E este olhar, nós o pressentimos, é às vezes aquele que censura. Pelo menos uma parte do passado nos acusa, ou pelo menos lembra a dívida contraída em relação aos abandonados, ou mesmo às vítimas de nossa história. Eis, então, que a relação com a tradição se complica: não se trata mais unicamente de recolher os dividendos do passado, mas também pagar as dívidas que aí foram contraídas. Assumir a herança será, pois, também assumir as responsabilidades em relação aos nossos erros de ontem, no duplo sentido de reparação do mal feito às vítimas e da recusa de tudo o que pode conduzir a tais erros.” (OST, 2005, p.150)


Mas como já mencionado, o perdão também escapa a essa esfera jurídica.  E é justamente por isso que incumbe à vítima a faculdade de exercer, ou não, o perdão. Ressalte-se que, é importante que este perdão não seja meramente concedido pela vítima, todavia sim, solicitado pelos agressores. Isto porque, o pedido de perdão, assegura que as vítimas exerçam o seu papel narrativo no processo judicial. Nesta solicitação se deixa ouvir algo da história dos esquecidos pela memória, aos quais uma justiça retrospectiva é feita, como se a memória dominante aceitasse a reescrita de alguns de seus capítulos, de forma a assegurar que as promessas interrompidas sejam enfim restauradas.


E é esse o caminho que também propomos para a história do Brasil: uma reconciliação com o seu passado traumático que não significa de forma alguma apagamento dos fatos, nem mesmo ausência de atribuição das responsabilidades pelas dívidas contraídas. Está aí a importância de problematizar o tema e de se levar ao Judiciário, pela via do Devido Processo, a discussão acerca dos delitos cometidos na ditadura militar. As sessões públicas, proporcionadas pela apreciação jurisdicional, podem possibilitar que as vítimas explicitem seus sofrimentos, rediscutam o seu passado doloroso, reconstruam narrativamente uma outra história, realizando, assim, uma catarse compartilhada.


Reinterpretar a lei de anistia a fim de assegurar o julgamento dos militares significa dar também, publicamente, a oportunidade da palavra à vítima. É um recontar da nossa história que passa pelos silenciados de forma a possibilitar que as diversas histórias vivenciadas em uma comunidade política possam adquirir uma ressignificação coletiva e um sentido no tempo. (COSTA JUNIOR, 2009b)


Tal ressignificação perpassa pelo julgamento criminal dos agressores, abrindo-se a interpelação da imprensa, da sociedade civil, da instituição policial, dos movimentos sociais e das universidades, que passam a ser também convidados a dar a sua contribuição a história e ao exercício da memória compartilhada. “O processo da visibilidade aos acontecimentos que ele reencena num palco acessível ao público.” (RICOEUR, 2007, p. 338).


Há, portanto, um desligamento do trauma que só pode se dar com a translaboração pública, com a discussão aberta e irrestrita dos acontecimentos, um verdadeiro “falar sobre”, que seja capaz de mobilizar a sociedade brasileira a se posicionar quanto à responsabilidade de cada um pelas faltas passadas. Dessa forma, responsabilizar criminalmente agressores e militares da época da ditadura não significa revanchismo ou vingança pública.


Mas “compreender para não vingar”, “compreender para não repetir”, de forma a desligar o agente de uma dívida eterna, assegurando tanto a vítima quanto o agressor uma justa e verdadeira consideração. “Condenar e compreender” é o lema dessa proposta de reinterpretação da lei de anistia no Brasil, o que significa compreender a falta e os delitos pretéritos, sem contudo “tornar-se cúmplice da fuga e da denegação” (RICOEUR, 2007, p.341) . Nesse sentido, a função desse processo criminal é a de substituir a violência pelo discurso e o assassinato pela palavra. (RICOEUR, 2007, p.480)


Está aí também a palavra de ordem do perdão: seguir em frente, sem deixar de olhar para trás. O perdão é, portanto, capaz de curar uma memória impedida, que repete em vez de lembrar, acabando com o seu luto. Libertando-se o peso da dívida dos tempos ditatoriais, a memória histórica brasileira fica livre para grandes projetos. O perdão dá futuro à memória (RICOEUR, 2008). Estamos diante tanto de um ato de memória, quanto de remissão. O ofendido deixa o ofensor quite de uma falta, cuja realidade é reconhecida pelos dois protagonistas.


A falta tolerada traduz a complacência da indulgência, a falta esquecida revela a atonia da consciência moral e da demissão do direito, ao passo que a falta perdoada inaugura uma nova história que rompe o eterno retorno da pulsão de morte que está na base do ciclo crime-vingança. Neste sentido, o passado doloroso exige, pois, ser revisitado, selecionado, ultrapassado e superado. Isso virá nos conduzir ao limiar do perdão, um perdão que é simultaneamente anamnésia e remissão: ato de memória e aposta no futuro. (OST, 2005)


Os delitos, as torturas e a intolerância do nosso passado traumático é, sem dúvida, irreversível; entretanto é concedido, ao menos, um eco àquilo que, então, poderia ser dito e que atualmente faz sentido para os herdeiros, carrascos e vítimas da história da ditadura no Brasil. O tempo do perdão não é inverso da memória e da tradição, é antes o tempo de uma outra memória, de uma memória segunda, de uma memória crítica que, do próprio interior da sociedade, traça as primeiras linhas de um outro programa para os nossos dias. (OST, 2005)


Considerações Finais


O perdão encontra-se num jogo de temporalidades. Diferentemente da memória, ele não se opera olhando unicamente para trás, ele consiste num caminhar em direção ao amanhã. Mas, para isso, ele precisa também perpassar pela representação do passado, buscando nela um outro horizonte possível: o da superação. É um lembrar para se esquecer, que se opera com os olhos de uma memória crítica e feliz, porque reconhece a dívida passada, mas ainda assim é capaz sobrepujá-la. A lembrança é aqui meio para recriar os laços com o passado a partir do acoplamento com uma sempre nova promessa.


Por outro lado, o que nos parece, é que as tentativas de apagamento dos rastros, dos documentos e dos crimes da ditadura no Brasil caminham num sentido bem diferente daquele preconizado pela cura indicada pelo perdão. A memória é, nesse sentido, impedida por um esquecimento de fuga, instituindo uma relação patológica com o passado traumático.


 Imprescindível se faz, portanto, o trabalho de lembrança, que é também um trabalho de luto, porque estabelece novos vínculos com as feridas do passado, possibilitando, assim, a sua cura. Para isso, é preciso falar, narrar a dor, o sofrimento, numa esfera pública capaz de dar destaque às vozes silenciadas, como aquela oferecida pelo processo judicial.


Possibilitar o julgamento dos agentes públicos que cometeram delitos na época de repressão não é simplesmente mexer em feridas ou fomentar o ódio, mas permitir que o Brasil trilhe seu caminho em direção a cura pelo perdão. Isso implica reconhecer o papel terapêutico da translaboração, da construção de uma memória que busque a verdade dos fatos e a narração das vítimas.


O perdão, nessa lógica, é interrompimento, mas não é impunidade; é esquecimento da dívida, mas não dos fatos; é generosidade, porque se abre ao Outro ferido e se recusa a dar a última palavra. O grande projeto de nossa recente democracia é esse “condenar e compreender”, a fim de reconhecer as próprias potencialidades de um “homem capaz” de recontar a sua história e de se responsabilizar pelas suas faltas como única forma de seguir em frente.


“Há o perdão”, o que significa afirmar que o homem não se reduz a suas faltas e a negatividade imbricada nos delitos por ele praticados. Mas é justamente, por isso, que ele também está suscetível a ser imputado dentro de uma esfera jurídica, que lhe assegure também o momento da sua narração. A partir do Devido Processo, ele encontra-se na posição de ser perdoado pela vítima e de ter restabelecida a sua dignidade.


Todavia, há algo no perdão que extrapola todo o cálculo do direito que é a sua generosidade incondicional. Ele é sublime demais para ser unicamente jurídico, mas nem por isso encontra-se totalmente desligado do papel a ser desempenhado pelo processo judicial. O perdão encontra, sim, no Direito a capacidade de estabelecer-se no mundo dos homens que é sempre contingente, indicando caminhos para a superação das doenças da memória e da relação obsessiva que instituímos com o nosso passado traumático.


 


Referências

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Nota:

1 Artigo fruto das pesquisas realizadas pelo Grupo de Estudos de Direito, Constituição e Processo Prof. José Alfredo de Oliveira Baracho, da Faculdade Mineira de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

[1] O termo esfera pública é utilizado aqui como a dimensão na qual os assuntos públicos são discutidos pelos próprios cidadãos num espaço de debate e de formação de opinião. Como ambiente próprio para um debate engajado e crítico, a esfera pública é esse lugar de reflexão coletiva sobre a vida em comum e sobre o futuro de uma comunidade política. Dessa forma, a esfera pública não se confunde com a esfera unicamente estatal, devendo ser uma dimensão de livre associação das idéias capaz de abrigar a multiplicidade de vozes.

[2] Pode-se citar como exemplo dos atos atentatórios ocorridos no período ditatorial: a perda de direitos políticos, sociais, a restrição à liberdade de ir e vir, a ausência ou restrição à possibilidade de produção de provas, a ausência de inviolabilidade, a prática de tortura, dentre vários outros. A ditadura militar brasileiro decorreu da chamada ameaça comunista e da insatisfação dos militares com as políticas adotadas pelo Presidente João Goulart, políticas estas que visavam amenizar as questões sociais brasileiras. Ela significou, portanto, a supressão de Direitos políticos e a desconsideração da ordem e legitimidade constitucional.

[3] O trauma mnemônico consiste na impossibilidade de esquecimento do evento em decorrência da própria tentativa reiterada de se esquecer. No caso do período ditatorial, o trauma segue, tendo em vista que este continua a ser revisto e rememorado, devido à ausência do próprio perdão, o perdão conciliador, que permite o esquecimento.

[4] Ricoeur (2007, p.27-34) apropria-se da tese de Platão de que a memória é a presentificação daquilo que está ausente. A memória, nessa perspectiva, seria um fazer surgir algo que, na verdade, não é mais. Mas em Platão há dois mundos: o inteligível e o sensível, sendo que o ato de lembrar é um emergir daquilo que já existe no interior da alma humana, porque essa apenas recorda as experiências vivenciadas no mundo inteligível. Apesar de aderir à tese da representação presente de uma coisa ausente proposta por Platão, Ricoeur (2007) defenderá, na mesma linha de Aristóteles, que o homem não busca suas lembranças no mundo das idéias, mas no próprio mundo sensível, estabelecendo uma relação inarredável entre tempo e memória.

[5] Ricoeur (2007, p.34-40) parte da concepção de Aristóteles, afirmando que é a partir da percepção do movimento que podemos perceber o tempo, mas esse só é percebido de forma diferente do movimento quando somos capazes de distinguir dos instantes: o anterior e o posterior. Isso significa dizer que a memória sempre institui uma referencia a um tempo e esse tempo é o passado.

[6] Nascido na Croácia e naturalizado brasileiro, Vladimir Herzog era jornalista professor e dramaturgo. No dia 24 de Outubro de 1975, na época em que era diretor de jornalismo da TV cultura, foi convocado a prestar depoimento sobre suas relações com o Partido Comunista. Compareceu no dia seguinte, seu depoimento era dado através de uma sessão de tortura, estava preso com mais dois jornalistas que confirmaram o fato. No dia 25 de Outubro, Vladimir foi encontrado enforcado com o cinto de sua própria roupa, embora a causa oficial do óbito seja suicídio por enforcamento, na foto oficial há várias inverossimilhanças referente à posição do corpo. Outro fato é que os prisioneiros do DOI-CODI não tinham permissão para usar cintos. Disponível em: <http://www.unificado.com.br/calendario/10/herzog.htm> Acesso: 14  fev/ 2009

[7] O referido seminário reuniu uma platéia repleta de “ex-subversivos”, militantes políticos, anistiados, anistiandos, familiares de mortos e desaparecidos, a fim de discutir sobre os mecanismos e medidas para que a verdade seja revelada e a cidadania das vítimas restabelecida. Partindo dos pilares verdade, memória e reparação, o Ministério da Justiça defende que o processo de transição democrática não deve deixar de empenhar-se na reparação das vítimas e na responsabilização pelas violações dos direitos humanos, seguindo, portanto, uma posição diferente daquela proferida pelo criminalista Thiago Bottino do Amaral.

[8] Disponível em: <http://brasilacimadetudo.lpchat.com/index.phpoption=com_content&task=view&id=5023&Itemid=222)>

[9] Há uma grande divergência entre os juristas no que diz respeito à imprescritibilidade dos delitos cometidos na época da ditadura militar no Brasil, principalmente no que se refere à interpretação dos tratados internacionais. Entretanto, o objeto de nosso artigo nos impede de aprofundarmos nessa discussão. O que se pretende nesse breve texto, na verdade, é discutir as relações entre perdão, memória e responsabilização jurídica frente à  possibilidade de reinterpretação da lei de anistia. O problema que nos orienta é, portanto, o papel do direito e do julgamento criminal no exercício da memória coletiva e na concretização narrativa do perdão.


Informações Sobre os Autores

Ernane Salles da Costa Junior

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas

Fernando Horta Tavares

Pós-doutoramento em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (POR). Doutor em Direito e Mestre em Direito Processual, pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor Adjunto III da Graduação e Pós-Graduação da Faculdade Mineira de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Advogado.

Diogo Lima Trugilho

Advogado. Especialista em Processo Civil

Frederico Fernando Pereira Gomes

Acadêmico de Direito na Faculdade Mineira de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)

Rane Ferreira Rios Hollanda Cavalcante de Morais

Acadêmica de Direito na Faculdade Mineira de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)

Thiago Penzin Alves Martins

Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e graduando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bolsista do CNPQ.


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