Resumo: Este artigo objetiva esclarecer detalhes acerca da responsabilidade civil da transportadora de passageiros e da empresa concessionária da rodovia quando da ocorrência de acidente veicular. Após a necessária conceituação da temática e da menção a classificações doutrinárias das espécies de responsabilidade civil, será abordada diretamente as consequências jurídicas suportadas pela transportadora bem como pela concessionária no caso de acidente, a fim de conceder a melhor reparação possível à vítima do infortúnio, sempre com suporte em doutrina especializada e na jurisprudência atinente à matéria.
Palavras-chave: Responsabilidade. Civil. Acidente. Transportadora. Concessionária.
Abstract: This article aims to clarify details about the liability of the carrier of passengers and the highway concessionaire in the event of vehicular accident. After the necessary conceptualization of the theme and the mention of the species doctrinal classifications of liability will directly addressed the legal consequences incurred by carrier and by the concessionaire in the event of an accident, in order to provide the best possible reparation to the victim of misfortune, always supported in specialized doctrine and jurisprudence in regard to the matter.
Keywords: Responsibility. Civil. Accident. Carrier. Concessionaire.
Sumário: Introdução. 1. Conceito de responsabilidade civil. Algumas espécies. 2. Acidente veicular: a responsabilidade da empresa transportadora 3. A responsabilidade da concessionária da rodovia. 4. As causas excludentes de responsabilidade. Conclusão. Referências.
Introdução
Quando os usuários de transporte coletivo de passageiros se veem envolvidos em algum tipo de acidente veicular em rodovia pedagiada, é natural que surjam inúmeras dúvidas sobre a correlata responsabilidade civil pelo infortúnio. Nesse cenário, o presente trabalho objetiva trazer uma pequena contribuição aos operadores do Direito que lidam com a temática – bem como às vítimas e familiares –, no sentido de esclarecer a real amplitude da responsabilidade das empresas envolvidas na relação jurídica, a quais regras e princípios estão submetidas, bem como as causas que mitigam ou mesmo excluem o dever indenizatório das referidas corporações.
1. Conceito de responsabilidade civil. Algumas espécies
Com o objetivo de garantir a livre fruição de direitos, o ordenamento jurídico brasileiro vale-se de diversos mecanismos protetivos, dentre os quais se destaca o instituto da responsabilidade civil. Ocorrida alguma espécie de fato danoso, pode a vítima exigir do autor do dano que responda pela reparação da ofensa, seja fazendo regressar o bem violado (ou outro similar) à esfera patrimonial do ofendido, seja arcando com indenização criteriosamente fixada.
Sobre a temática, leciona Sérgio Cavalieri Filho:
“Em sentido etimológico, responsabilidade exprime a ideia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa ideia. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário.” (2006, p. 24).
A doutrina de Paulo Roberto Gonçalves segue a mesma linha de entendimento:
“Pode-se afirmar, portanto, que responsabilidade exprime a ideia de restauração do equilíbrio, de contraprestação, de reparação do dano. Sendo múltiplas as atividades humanas, inúmeras são também as espécies de responsabilidade, que abrangem todos os ramos do direito e extravasam os limites da vida jurídica, para se ligar a todos os domínios da vida social.” (2013, p. 19-20).
Para este breve estudo, interessam as distinções entre algumas das espécies de responsabilidade civil.
Por responsabilidade contratual, entende-se aquela oriunda da inobservância de determinada cláusula estabelecida no pacto de vontades. Noutro sentido, a responsabilidade extracontratual ou aquiliana advém do descumprimento de um dever legal, ou seja, surge com a prática de um ato ilícito (Código Civil, art. 186).
A responsabilidade objetiva e a subjetiva diferenciam-se porque, na primeira, basta a comprovação do nexo de causalidade entre o dano sofrido e o autor da ofensa, enquanto que na segunda é necessário que se prove que o responsável pelo evento danoso agiu dolosa ou culposamente.
Por fim, mas não menos importante, diz-se que a responsabilidade é solidária quando há mais de um ofensor e cada um deles é responsável pelo pagamento integral da indenização, podendo o ofendido exigir a reparação de cada um separadamente ou de forma conjunta (DINIZ, 2011, p.308). Já a responsabilidade subsidiária caracteriza-se pelo fato de que um dos devedores só pode ter seu patrimônio afetado para quitar a verba indenizatória quando o devedor principal não conseguir, sozinho, arcar com os prejuízos da vítima do dano.
2. Acidente veicular: a responsabilidade da empresa transportadora
De plano, cumpre asseverar que a empresa transportadora e o passageiro integram uma típica relação de consumo, relação contratual essa regida, portanto, pelos princípios (Código de Defesa do Consumidor, art. 6º) e regras consumeristas.
No que diz respeito à legislação atinente à matéria, destaca-se o art. 14 do CDC:
“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.
O Código Civil, ao abordar as relações contratuais, também trata dos contratos de transporte e, na sequência, da reparação de danos. Confira-se:
“Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
Da análise dos comandos legais adrede listados, dessume-se que, em caso de acidente veicular, a empresa transportadora responde objetivamente pelos danos causados aos passageiros. Em outras palavras, por se tratar de uma atividade de risco (condução de pessoas via transporte rodoviário) e de um típico contrato de resultado com cláusula implícita de incolumidade – em que a empresa de transporte tem a obrigação de conduzir o contratante, incólume, até seu destino –, o dever de reparação do dano independe da comprovação de dolo ou culpa, nem tampouco permite a fixação de cláusula contratual excludente de responsabilidade.
A matéria está sedimentada na jurisprudência brasileira. Por todos, traz-se à baila o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSO CIVIL, CIVIL E CONSUMIDOR. TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PESSOAS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. DEFEITO NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. PRESCRIÇÃO. PRAZO. ART. 27 DO CDC. NOVA INTERPRETAÇÃO, VÁLIDA A PARTIR DA VIGÊNCIA DO NOVO CÓDIGO CIVIL.
– O CC/16 não disciplinava especificamente o transporte de pessoas e coisas. Até então, a regulamentação dessa atividade era feita por leis esparsas e pelo CCom, que não traziam dispositivo algum relativo à responsabilidade no transporte rodoviário de pessoas.
– Diante disso, cabia à doutrina e à jurisprudência determinar os contornos da responsabilidade pelo defeito na prestação do serviço de transporte de passageiros. Nesse esforço interpretativo, esta Corte firmou o entendimento de que danos causados ao viajante, em decorrência de acidente de trânsito, não importavam em defeito na prestação do serviço e; portanto, o prazo prescricional para ajuizamento da respectiva ação devia respeitar o CC/16, e não o CDC.
– Com o advento do CC/02, não há mais espaço para discussão. O art. 734 fixa expressamente a responsabilidade objetiva do transportador pelos danos causados às pessoas por ele transportadas, o que engloba o dever de garantir a segurança do passageiro, de modo que ocorrências que afetem o bem-estar do viajante devem ser classificadas de defeito na prestação do serviço de transporte de pessoas.
– Como decorrência lógica, os contratos de transporte de pessoas ficam sujeitos ao prazo prescricional específico do art. 27 do CDC.
Deixa de incidir, por ser genérico, o prazo prescricional do Código Civil.
Recurso especial não conhecido.” (REsp 958.833/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/02/2008, DJ 25/02/2008, p. 1)
3. A responsabilidade da concessionária da rodovia
Como é notório, a atividade de manutenção e conservação das rodovias caracteriza-se como um serviço público, e, como tal, deve ser exercido pelo Poder Público, podendo este delegar a particulares sua execução, após regular procedimento licitatório (Constituição Federal, art. 175).
Sobre a questão, enuncia Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Concessão de serviço público é o instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob a garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço.” (2007, p. 686).
No tocante ao tema da responsabilidade civil, é fundamental consignar que as empresas concessionárias, ao receberem do Estado a missão de colocar em funcionamento os serviços públicos – o que traz consigo a permissão de obter lucro com a atividade –, também tem o dever constitucional de reparar os danos porventura produzidos (CF, art. 37, §6º).
Após passar por um longo processo evolutivo, hodiernamente a responsabilidade estatal é considerada objetiva, mas sob a modalidade do risco administrativo. Admite-se, portanto, a existência de causas atenuantes ou excludentes do dever de corrigir os efeitos do evento danoso. Esclarece a doutrina:
“Foi com lastro em fundamentos de ordem política e jurídica que os Estados modernos passaram a adotar a teoria da responsabilidade objetiva no direito público.
Esses fundamentos vieram à tona na medida em que se tornou plenamente perceptível que o estado tem maior poder e mais sensíveis prerrogativas do que o administrado. É realmente o sujeito jurídica, política e economicamente mais poderoso. O indivíduo, ao contrário, tem posição de subordinação, mesmo que protegido por inúmeras normas do ordenamento jurídico. Sendo assim, não seria justo que, diante de prejuízos oriundos da atividade estatal, tivesse ele que se empenhar demasiadamente para conquistar o direito à reparação dos danos.
Diante disso, passou-se a considerar que, por ser mais poderoso, o Estado teria que arcar com um risco natural decorrente de suas numerosas atividades: à maior quantidade de poderes haveria de corresponder um risco maior. Surge, então, a teoria do risco administrativo, como fundamento da responsabilidade objetiva do Estado.” (CARVALHO FILHO, 2007, p. 489-490).
Assim sendo, por imperativo lógico, também é objetiva a responsabilidade civil das concessionárias. Por se tratar de concessão de serviço público, a empresa responde, como se o Estado fosse, em termos de reparação civil pelos danos causados ao público consumidor.
Especificamente no que toca às concessões de rodovias, não se pode negar a nítida relação de consumo que se estabelece entre o usuário do serviço e a empresa concessionária (CDC, art. 22). Mesmo quando o pedágio não é pago diretamente (como no caso dos passageiros de ônibus), a tarifa está embutida no preço da passagem, o que não altera o caráter do elo jurídico.
Diante das premissas acima fixadas, na hipótese de acidente de veículo de transporte de passageiros, cabe ao ofendido somente demonstrar o nexo de causalidade entre a conduta comissiva ou omissiva da empresa concessionária e o resultado danoso. Ou seja, provada a ligação fática entre os danos da vítima e a falta de manutenção ou de sinalização do trecho da rodovia em que ocorreu o sinistro, ou mesmo a negativa, demora ou má qualidade na assistência médica pré-hospitalar, o dever de indenizar afigura-se irrefutável.
Outro não é o entendimento do Tribunal da Cidadania:
“CIVIL E PROCESSUAL. ACIDENTE. RODOVIA. ANIMAIS NA PISTA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. SEGURANÇA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRECEDENTES.
I – De acordo com os precedentes do STJ, as concessionárias de serviços rodoviários estão subordinadas à legislação consumerista.
II – A presença de animais na pista coloca em risco a segurança dos usuários da rodovia, respondendo as concessionárias pelo defeito na prestação do serviço que lhes é outorgado pelo Poder Público concedente.
III – Recurso especial conhecido e provido.” (REsp 687.799/RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 15/10/2009, DJe 30/11/2009).
Por derradeiro, urge salientar que a responsabilidade pela reparação do dano não pode ser imputada ao Poder Público quando estiver em discussão rodovia concedida, salvo em duas situações: a) ficar constatada a ocorrência de falha no processo licitatório; b) a execução do contrato concessório não for devidamente fiscalizada pela Administração Pública.
4. As causas excludentes de responsabilidade
Em certas situações concretas, tanto a empresa transportadora quanto a concessionária da rodovia podem ter excluídas as suas responsabilidades pelo evento danoso. Para que isso ocorra, deve haver uma comprovada ruptura do nexo de causalidade entre a ação/omissão das empresas e o dano sofrido pelo usuário do serviço de transporte.
Com efeito, dá-se a quebra da ligação entre a conduta das empresas e o dano correlato nas situações em que se configura o caso fortuito ou a força maior, ou seja, fato cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (CC, art. 393, parágrafo único). A doutrina ressalva, entretanto, as circunstâncias nas quais o evento extraordinário faz parte da esfera de previsibilidade das empresas ligadas às atividades de transporte, enquadrando-se no chamado “risco do empreendimento”. Como exemplo, podem ser citados os casos de estouro de pneus ou falha mecânica no veículo, mal súbito do motorista, pista escorregadia por conta de água ou óleo, pouca visibilidade em razão de forte chuva ou nevoeiro etc. Em tais situações, o dever reparatório fica mantido em sua integralidade.
O chamado “fato de terceiro” também é outro elemento capaz de excluir a responsabilidade, mas somente quando a ação da terceira pessoa, alheia à relação contratual, for dolosa, intencional (v.g. roubo no interior do ônibus, culminando com o descontrole e tombamento do veículo). Na hipótese de condutas culposas de terceiros, a responsabilidade indenizatória é preservada, podendo quem arcou com a indenização ajuizar ação regressiva contra o causador do dano (CC, art. 735 e Súmula 187 do STF). Confira-se o precedente abaixo:
AGRAVO REGIMENTAL. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. CONTRATO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS. FATO DE TERCEIRO CONEXO AOS RICOS DO TRANSPORTE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA NÃO AFASTADA. SÚMULA 187/STF. INTERESSE PROCESSUAL. SÚMULA 07. AGRAVO IMPROVIDO.
1. Esta Corte tem entendimento sólido segundo o qual, em se tratando de contrato de transporte oneroso, o fato de terceiro apto a afastar a responsabilidade objetiva da empresa transportadora é somente aquele totalmente divorciado dos riscos inerentes ao transporte.
2. O delineamento fático reconhecido pela justiça de origem sinaliza que os óbitos foram ocasionados por abalroamento no qual se envolveu o veículo pertencente à recorrente, circunstância que não tem o condão de afastar o enunciado sumular n. 187 do STF: a responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.
3. A indigitada falta de interesse processual, decorrente de suposta transação extrajudicial, o Tribunal a quo a afastou à luz de recibos exaustivamente analisados. Incidência da Súmula 07/STJ.
4. Agravo regimental improvido.” (AgRg no Ag 1083789/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 14/04/2009, DJe 27/04/2009).
Dando sequência, vale mencionar que, se a vítima do infortúnio for exclusivamente responsável pelo evento danoso, a responsabilidade da empresa transportadora e da concessionária estará afastada. Verificando-se a culpa concorrente entre o ofendido e uma ou ambas as empresas, o dever de reparar persiste, porém o montante da verba indenizatória deve ser diminuído.
Urge consignar, ainda, que é vedado, tanto à transportadora de passageiros quanto à concessionária da rodovia, tentar elidir sua responsabilidade pelo evento danoso sob a alegação de que a culpa advém da conduta da outra empresa envolvida na relação contratual. Ambas exploram comercialmente a atividade que originou o resultado lesivo, de modo que devem suportar o peso de eventual indenização, salvo comprovada a presença de alguma das causas excludentes já referidas.
Conclusão
Presente o liame entre a ação ou omissão e o resultado danoso, configurado estará o dever imperativo de reparação da ofensa. A empresa transportadora de pessoas e a concessionária da rodovia onde ocorreu o evento deverão responder solidariamente pelos prejuízos suportados pela vítima, conforme determina o CDC (art. 7º, parágrafo único e art. 25, §1º). Dessa forma, poderá o ofendido direcionar sua pretensão indenizatória contra ambos os responsáveis ao mesmo tempo e receber de qualquer deles a totalidade da verba fixada pelo Poder Judiciário.
O objetivo da mencionada previsão legal, portanto, é garantir a máxima salvaguarda dos direitos e interesses do consumidor. No que toca, particularmente, ao usuário de transporte público rodoviário, busca a legislação, bem como os Tribunais que a aplicam, minorar as consequências do evento danoso. Isso porque, dificultar a pretensão indenizatória da vítima ou de seus familiares seria como condená-los a reviver os dissabores do infortúnio, além de funcionar como combustível para o sentimento de injustiça e para a sensação de impunidade.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 24. ed. rev. e atual. até a emenda constitucional 55, de 20.9.2007. São Paulo: Malheiros, 2007.
Informações Sobre o Autor
Igor Pereira Matos Figueredo
Procurador Federal lotado na Procuradoria Seccional Federal em Ilhéus/BA