A separação dos poderes configura um dos mais importantes princípios do constitucionalismo moderno. Consagrado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão como matéria constitucional por excelência, é o mesmo corolário básico do Estado Moderno.
Considerado como o primeiro teórico do princípio da separação dos poderes, afirmou Aristóteles que em todo governo existem três poderes essenciais, o que delibera sobre os negócios do Estado, o que compreende todas os poderes necessários à ação do Estado e aquele que abrange os cargos de jurisdição (ARISTÓTELES, 1998, p. 127). A partir daqui, já no século XVIII, sua essência foi resgatada e possibilitou o nascimento de um novo modelo de Estado que encontrou na lei o seu limite, atribuiu ao governante a responsabilidade pelos seus atos e que promoveu a divisão do poder de modo eficiente. A limitação do poder político, tão necessária quanto desejada, possibilitou o surgimento de um novo paradigma de Estado, até então desconhecido, o Estado de Direito.
Como conseqüência lógica da sua importância, a teoria da separação de poderes resultou do esforço não apenas de um, mas de vários pensadores comprometidos com uma nova ordem estatal, como John Locke e Benjamin Constant. No entanto, a versão que apresentou a melhor formulação da separação dos poderes foi a elaborada por Montesquieu, no célebre “O espírito das leis”, publicado em 1748. Nesse sentido, a afirmativa de Hamilton segundo a qual “em matéria de separação de poderes o oráculo sempre consultado e sempre citado é Montesquieu” (HAMILTON et al, 2003, p.299).
O elogio é justificável. A teoria da separação de poderes de Montesquieu possibilitou a redefinição do poder do Estado como poder limitado. Ao chamar a atenção para o perigo de se concentrar em um só órgão todos os poderes do Estado, afirmou que o mesmo deveria ser divido em funções distintas atribuídas a órgãos estatais diversos, propondo uma separação de funções equilibrada (MONTESQUIEU, 1998, p. 168).
A divisão do poder do Estado em funções especializadas (especialização funcional) e a sua atribuição a órgãos independentes (independência orgânica) possibilitaram a limitação do poder em razão da sua incompletude: o poder não mais se apresentaria absoluto, mas limitado pelo próprio poder.
Neste cenário, ao Parlamento competia a função de legislar, editar normas gerais e abstratas em nome do povo, e a natureza representativa da sua atuação lhe conferia uma situação de privilégio em relação aos demais poderes. Ao Executivo a função de administrar o Estado, de executar as resoluções públicas e ao Judiciário a função de aplicar as leis em caso de conflito. A função jurisdicional era vista como uma função secundária, de menor importância, e de modo algum poderia impor aos demais poderes qualquer limitação a não ser aquela decorrente da própria separação. Como explicita João Vieira Mota:
“Montesquieu reputou o poder de julgar “de certo modo nulo”, e tal juízo exige esclarecimentos. É que ele reservava ao Juiz uma função restrita e rígida; ele o conceituava como “a boca que pronuncia as palavras da lei”, ao passo que considerava os juízes seres inanimados incompetentes para moderar quer a força, quer o rigor da lei” (MOTA, 1998, p. 178).
Como decorrência da própria separação e da independência das funções desenvolvidas no âmbito do Estado, Montesquieu configurou um sistema de freios, composto pela “faculdade de estatuir” e pela “faculdade de impedir”, que possibilitava a interação e o controle recíproco entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo.
Devemos compreender por faculdade de estatuir o poder de ordenar por si ou de corrigir o que foi por outro ordenado. Já a faculdade de impedir importa no poder de tornar nula a resolução adotada por outrem (MONTESQUIEU, 1998, p. 174).
A aplicação de tais faculdades possibilitaria ao Executivo o poder de frear as iniciativas do Legislativo, evitando a sua transformação em um poder despótico. O Legislativo, por sua vez, teria a faculdade de examinar o modo como foram executadas as leis que elaborou (MONTESQUIEU, 1998, p. 176). Ao Poder Judiciário, enquanto poder nulo, Montesquieu não atribuiu faculdades.
No entanto, outro foi o posicionamento adotado pelos federalistas americanos que, preocupados com a garantia da supremacia da constituição em discussão, aperfeiçoaram o sistema de freios adotado por Montesquieu e nele incluíram o Poder Judiciário com a função de controlar a validade das normas editadas pelo Legislativo. Para eles, de nada serviriam as restrições feitas à autoridade das legislaturas dos Estados, se a Constituição não tivesse estabelecido uma força que as fizesse observar. Tal força deveria residir na atribuição aos tribunais de competência para a apreciação da sua compatibilidade com a lei da União, como afirmou Hamilton (HAMILTON et al, 1998, p. 469).
Completa-se, dessa forma, o complexo sistema de limitação do poder do Estado: por um lado o princípio da separação dos poderes promove um distanciamento operacional entre os órgãos do Estado, titulares de funções especializadas, por outro lado, a doutrina dos freios e contrapesos impede que no exercício de uma função própria possa o Estado atuar de modo ilimitado, violando os limites constitucionalmente impostos.
O sistema de freios e contrapesos apresenta-se como complemento natural e ao mesmo tempo garantidor da separação de poderes, possibilitando que cada poder, no exercício de competência própria, controle outro poder e seja pelo outro controlado, sem que haja impedimento do funcionamento alheio ou mesmo invasão da sua área de atuação.
No entanto, apesar do caráter complementar existente entre os dois princípios, a prática do controle recíproco foi, por muitos, interpretada como uma violação ao princípio da separação dos poderes, principalmente quando o poder controlado era (é) o Poder Legislativo. Tome-se como exemplo as reações contrárias ao exercício do controle de constitucionalidade das leis por parte do Poder Judiciário brasileiro, acusado de extrapolar os limites da atividade jurisdicional e de invadir área de competência do Poder Legislativo.
Da mesma forma, tem-se acusado o Executivo de impor uma agenda ao Legislativo em razão do excessivo número de medidas provisórias editadas, que impedem a orientação do Legislativo segundo uma agenda própria.
A inoperância do Legislativo, ainda que justificada, leva a uma superatividade do Judiciário, que chamado a resolver conflitos envolvendo os diversos poderes, acaba por revestir matérias políticas de viés judicial, promovendo a chamada judicialização da política.
A harmonia que deveria pairar entre os Poderes no exercício das suas respectivas funções cede à tensão decorrente tanto de uma interpretação quanto de uma aplicação equivocada da teoria dos freios e contrapesos.
É preciso, portanto, problematizar a origem da tensão. O que devemos compreender por judicialização da política? Estará o Judiciário, ao decidir toda e qualquer matéria política, impedido de atuar sob pena de violar o princípio da separação de poderes? Levando-se em consideração que a separação de poderes não se apresenta absoluta, tampouco suficiente na tarefa de conter a atuação do Estado dentro dos seus limites constitucionais, sendo necessária uma limitação recíproca do poder, a resposta só pode ser, em princípio, não.
A judicialização da política deve ser compreendida como o resultado da atuação do Judiciário face à provocação de um terceiro, que provoca modificação de uma decisão política. A judicialização da política nem sempre importa na inovação do ordenamento jurídico ou na prática do ativismo jurídico. A partir dessa primeira afirmação, é possível identificar um sentido de judicialização que chamaremos de fraco, segundo o qual a judicialização da política ocorre sempre que o Poder Judiciário é chamado a decidir acerca da violação ou ameaça a direito decorrente de uma decisão tomada no âmbito do legislativo ou do executivo, ou seja, de uma decisão política. Se essa decisão ao final sofrer modificação na sua essência, terá padecido do mal da judicialização.
No entanto, mesmo a judicialização em sentido fraco levanta questionamentos por parte dos defensores do princípio da separação dos poderes, contrários a uma supremacia do Poder Judiciário em detrimento de uma supremacia do Parlamento.
Foi o que ocorreu com a adoção do controle difuso de constitucionalidade no Brasil, em 1891, quando aos juízes e tribunais federais foi atribuída a competência para processar e julgar as causas em que alguma das partes fundava a ação, ou a defesa, em dispositivo da Constituição, nos moldes pensados pelos convencionais da Filadélfia e tal como adotado por Marshall na famosa decisão da Suprema Corte Norte-americana, Marbury vs. Madison, de 1803.
O controle judicial de constitucionalidade das leis foi inicialmente interpretado como violador do princípio da separação de poderes, uma vez que sujeitava as decisões do Legislativo ao crivo do Judiciário. Tamanha ingerência importava em uma politização do Judiciário e uma conseqüente exclusão do Legislativo.
A reação não se resumiu à crítica ao texto da Constituição de 1891. Reportou Ruy Barbosa a deflagração de uma guerra inescrupulosa, durante a qual o Governo e o Congresso negaram de modo ostensivo e desrespeitoso obediência às decisões do Supremo Tribunal Federal, com o pretexto de que o Supremo Tribunal, no exercício do controle de constitucionalidade, exorbitava, prevaricava, usurpava competência alheia (BARBOSA, 1928, p. 162).
A judicialização da política foi compreendida como um atentado à soberania popular e à função representativa do Parlamento. Contra uma compreensão absolutizada do principio da separação de poderes e limitada do controle de constitucionalidade, coube a Ruy Barbosa promover a defesa da Constituição de 1891, da separação dos poderes e do controle difuso de constitucionalidade.
Asseverou que a adoção do presidencialismo em substituição ao parlamentarismo demandava a criação de uma justiça constitucional como a americana, guardiã da Constituição contra as ingerências do Presidente, contra os excessos das maiorias legislativas, contra a onipotência dos Governos e a irresponsabilidade dos Congressos. A ausência de um órgão capaz de defender a supremacia da constituição importaria na entrega do país ao domínio das facções e dos caudilhos (BARBOSA, 1928, p. 165). A atribuição de tal competência do Poder Judiciário não implicaria na subordinação da vontade do Legislativo, afirmou Ruy, mas na defesa da Constituição.
“Quando quer que se impugnarem medidas políticas, legislativas, executivas ou administrativas, num pleito legal, como causa próxima de uma lesão donde resulte dano, alegando-se que tais medidas não são autorizadas pelas leis do paiz ou as transgridem, esses actos se tornam sujeitos ao conhecimento da justiça” (BARBOSA, 1928, p. ).
Ainda segundo Ruy Barbosa, a natureza da atividade não devia ser definida pela natureza do ato, mas pela finalidade da ação do Judiciário consistente na defesa da Constituição. Exerce o controle judicial de constitucionalidade a função de frear e contrabalancear a vontade política em face da constituição. Tem-se aqui a aplicação do sistema de freios e contrapesos como complemento obrigatório da separação dos poderes.
Asseverava Ruy que o controle judicial de constitucionalidade das leis deveria ser compreendido como o substitutivo do princípio da supremacia do Parlamento presente nos Estados parlamentaristas. No sistema presidencialista de governo, deve competir ao Judiciário a defesa da Constituição e do próprio princípio da separação dos poderes (BARBOSA, 1928, p. 165).
Com esse objetivo, nos ensina Ruy Barbosa, para garantir a supremacia da constituição, o regime democrático e a soberania popular, que a Constituição de 1891 armou a Justiça Federal da competência para e processar e julgar todas as causas propostas contra o Governo da União fundadas em disposições da constituição, contrariando uma visão técnica da função jurisdicional, de menor expressão, como proposta por Montesquieu.
Mas se, como afirmamos antes, a judicialização da política deve ser compreendida como resultado natural da adoção de regimes democráticos, não quer dizer que a mesma não encontre limites no próprio princípio da separação de poderes. Se a judicialização da política não pode ser superestimada, tomada como sinal de risco à ordem democrática, mas como constitutiva dela, também não deve ser subestimada.
Hoje, vinte anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, mais de um século após a adoção do controle difuso no constitucionalismo brasileiro, encontramo-nos diante dos mesmos questionamentos em face do controle de constitucionalidade.
Entretanto, a judicialização da política foi e continua a ser produto da própria Constituição do Estado, que encontra na separação dos poderes não apenas a sua origem, mas os seus limites, e que por isso mesmo não tem o poder de transformar o Legislador em corregedor do Judiciário, o Judiciário em Legislador, o juiz em representante do povo, a sentença em lei.
A diferença substancial entre o sentido fraco e um sentido forte de judicialização da política reside no alcance das decisões do Supremo Tribunal Federal e não propriamente no exercício do controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário.
É fato notório a progressiva concentração do controle de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a paulatina limitação do controle difuso, transformado em instrumento deflagrador do controle concentrado, além da mutação constitucional promovida pelo Supremo que arbitrariamente retirou do Senado Federal a competência para suspender através de resolução lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do STF.
Nesse contexto, é preocupante a posição assumida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADI 3105, que declarou constitucional o art. 5o. da Lei 11.105, de 24 de março de 2005, que regulamenta o uso de células tronco em pesquisas científicas.
Em seu voto, afirmou o Ministro Gilmar Mendes que o Supremo Tribunal Federal estava a demonstrar, com aquele julgamento, “que pode, sim, ser uma Casa do povo, tal qual o parlamento. Um lugar onde os diversos anseios sociais e o pluralismo político, ético e religioso encontram guarida nos debates procedimental e argumentativamente organizados em normas previamente estabelecidas” (BRASIL, 2008).
Ora, assim como o direito não se confunde com a política, mas, ao contrário, impõe-lhe limites (STRECK et al., 2008), também o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário Brasileiro não se confunde com o Congresso Nacional, órgão competente para o exercício do Poder Legislativo.
Uma é a função jurisdicional, cuja legitimidade é garantida através pelo princípio do devido processo legal, outra a legislativa, cuja legitimidade é garantida através de um devido processo legislativo. A partir do pressuposto segundo o qual a produção legítima do Direito depende da institucionalização jurídica de processos e pressupostos da comunicação (HABERMAS, 1997, p. 153), uma compreensão adequada do papel do Supremo Tribunal Federal no exercício do controle concentrado de constitucionalidade à luz do princípio da separação dos poderes, nos remete à diferenciação entre os tipos de processos adotados para a produção legislativa e judicial do direito. Tais processos se diferenciam não apenas em razão dos atos que compõem a sua estrutura, mas também da natureza dos discursos que encerram (GUNTHER, 2000).
A função legislativa, voltada à produção de normas gerais, abstratas, obrigatórias e inovadoras do ordenamento jurídico, ocorre através de um processo legislativo estruturado normativamente pela Constituição Federal (art.s 59 e seguintes) e acolhe um discurso de justificação. Sua finalidade é a de produzir legitimamente normas gerais, abstratas, obrigatórias e inovadoras do ordenamento jurídico, cuja validade reside na sua compatibilização com um interesse universalizável, dada situações constantes (GUNTHER, 2000, 90).
Por sua vez, a função jurisdicional objetiva determinar qual norma válida dentre todas aquelas que compõem o ordenamento jurídico, melhor atende às especificidades do caso concreto submetido à apreciação do Poder Judiciário. Daí se falar que as normas jurídicas são apenas em princípio aplicáveis.
Significa dizer que a validade da norma não é argumento suficiente para determinar a aplicação ao caso concreto, mas requer a apresentação, por parte dos destinatários da decisão, de argumentos a favor da derrogação ou modificação de outras normas que também se apresentam em princípio aplicáveis posto que válidas, resultando um ônus de argumentação por parte dos participantes do processo (GUNTHER, 2000, 92).
O Supremo Tribunal Federal logicamente realiza atividade argumentativa no exercício do controle de constitucionalidade, mas da mesma forma o faz o Congresso Nacional no exercício da atividade legislativa. A diferença reside no tipo de discurso e no processo adotados e nas características da norma produzida. Ao assumir o papel de representante argumentativo do povo em face do Congresso, subverte o Supremo Tribunal Federal o princípio da separação de poderes adotado pela Constituição Federal de 1988, uma vez que utiliza do discurso de justificação no exercício da atividade jurisdicional.
Libertando-se da função de guardião da Constituição, transforma-se no seu dono, assumindo a feição de um verdadeiro poder constituinte permanente. Aqui, a judicialização extrapola os limites da separação de poderes, apresentando o seu sentido forte e ao mesmo tempo inconstitucional. Deixa de atuar como freio ou contrapeso e configura poder tirano, corruptor da democracia, e sem democracia, não há Estado de Direito, sem Estado de Direito, não há liberdade.
Nesse sentido é que a distinção entre o sentido fraco da judicialização da política (compreendido como resultado do exercício do controle de constitucionalidade das leis dentro dos limites impostos pela Constituição Federal) e o sentido forte (que importa em um ativismo judicial não amparado constitucionalmente), precisa ser evidenciado.
Não há como se exigir do Poder Judiciário que, no exercício próprio da jurisdição, não interprete. Não há atividade de aplicação do direito sem a correspondente atividade interpretativa e produção normativa. Lado outro, a atividade interpretativa realizada pelo Poder Judiciário não pode levar à inovação do ordenamento jurídico, ao ativismo judicial, posto que prescinde tanto de um órgão representativo quanto de um devido processo legislativo como requisito de legitimidade.
O princípio da separação dos poderes apresenta-se hoje tão essencial à garantia das liberdades individuais, quanto há duzentos anos, e não pode ser suplantado, ainda que por um bom motivo. No Estado Democrático de Direito, a máxima segundo a qual “os fins justificam os meios”, não se aplica. Os meios são garantidores da legitimidade do direito produzido. No presente caso, o meio legítimo refere-se ao processo legislativo, o órgão competente o Congresso Nacional.
Nesse sentido, esperamos ter contribuído em parte para a discussão sobre a construção de um Estado democrático, no qual os argumentos jurídicos são utilizados a favor da garantia da ordem constitucional legitimamente adotada e não da sua inversão.
Informações Sobre o Autor
Cintia Garabini Lages
Mestre e Doutoranda em Direito Processual pela PUC MINAS. Professora de Direito Constitucional da PUCMINAS e do UNI BH