Resumo: A curiosidade científica humana leva a investigar aspectos que por vezes exigem conjunção de vários conhecimentos. A pesquisa multidisciplinar – por vezes transdisciplinar – é uma realidade dentro da complexidade das relações da vida e que envolvem o próprio ser humano. Nesse sentido, investigar os efeitos do fato morte humana, no que resulta para o meio ambiente, exige troca de informações técnicas entre as ciências sociais e as ciências sanitárias. Assim, a decomposição de corpos humanos conjuntamente sepultados em cemitérios, é capaz de produzir uma significativa alteração ambiental que, por meio da legislação pertinente, exige o controle da Administração Pública Ambiental. A morte do ser humano não encerra as suas relações jurídicas que, difusamente, ainda continuam a afetar a sociedade.
Palavras-chave: Direito Ambiental, cemitério, necrochorume, sepultamento, salubridade.
Abstract: Human scientific curiosity leads to investigate some aspects that, sometimes, requires the conjunction of several knowledges. The multidisciplinary research – sometimes transdisciplinary – is a reality within the complex relationships involving life and the human being. In this sense, investigating the effects of the human death fact, in its results in the environment, requires the exchange of technical information between the social sciences and health sciences. Thus, the decomposition of human bodies buried together in cemeteries, may produce a significant environmental impact. Through specific environmental legislation, this must require the control of the Environmental Public Administration. The death of the human being does not end its legal relations, which diffusely, still continue to affect a healthy quality of life.
Sumário: Introdução. 1. Meio ambiente e a ciência jurídico-ambiental. 2. Alteração adversa à vida. 3. Honra e memória ao corpo humano morto. 4. Efeitos ambientais da degeneração tissular humana. Considerações finais. Referências. Notas.
Introdução
Desassossego. Inquietação. Dúvida. Vontade de saber. A posição do pesquisador não é outra senão estar surpreso frente os fatos da vida e questioná-los, buscando sua razão. Estar-se-ia frente à universalidade do conhecimento tão dispersa fosse a busca e mais amplo o universo de respostas. Uma das características humanas é a racionalidade – além da inconstância – o que obriga que este em seu “procedere” de saber proceda por uma lógica linha investigativa. Dessa forma, é necessário método, ordem, isenção, disciplina, de forma que não se perca o foco no que realmente constrange a saciedade do conhecer específico[1].
A vontade de conhecer é inata ao homem, este como conjunto e sociedade. Ele, desde suas origens, esteve voltado a indagar e descobrir os fenômenos que o cercava, como forma de dar resposta ao seu desconhecimento ainda como filho novo que chega à vida. As análises de Aristóteles, em sua Metafísica, concluíam que o prazer das sensações humanas tomava parte no desejo de conhecer. E, esta aquisição de conhecimento quedava-se integrada à vida pela memória, via da reiteração experimental[2].
Assim, o empirismo, fixado na contínua e ampliativa aquisição de conhecimento, integra e ampara a arte do perceber humano como óbvia continuidade de um pensar antropocêntrico, descartiano e baconiano. Este se amplia e se transforma ao longo de um mesclar de idéias que exigem para o final do século passado, uma biunívoca recentralização do homem na unidades dos sistemas universais, assim como destes sistemas ao conhecimento do ser humano.
A filosofia, a matemática, o direito, a biologia, a medicina, por exemplo, exigem um novo olhar integrador, não só de si para o mundo, mas para dentro de si, integrando os aspectos que podem expandir suas conquistas. O conhecimento humano exige ser, efetivamente multi e transdisciplinar, importando que o ser humano – que nunca foi dominus – deixe a condição de pretenso senhor acima do pedestal para ser integrante e participante da aventura da vida, seja ela de qual espécie for.
Mediante essa óptica, as ciências jurídicas, para sua maior eficácia, não podem bastar-se de forma a rechaçar conhecimentos diversos que lhe complementem. O Direito Ambiental perpassa por essa condição, fazendo com que a tutela da existência e da sobrevivência humana em conjunto ao meio circundante, dirigida à sustentabilidade das diversas formas de vida, termine tentando interagir e regular uma complexa gama de outras áreas do conhecimento. A Tanatologia é uma delas, onde conhecer os efeitos e fenômenos decorrentes da morte do corpo humano e suas implicações ao ambiente, é estudo de grande importância ao equilíbrio ecológico e à qualidade de vida.
1. Meio ambiente e a ciência juridico-ambiental
É impossível negar que o conhecimento humano surge e se desenvolve como condição de sua própria sobrevivência e continuidade como espécie sobre o planeta no qual co-habita. O mito da ciência como busca da verdade extinguiu muitos seres vivos, posto que as mudanças nas ciências dependem das mudanças das necessidades humanas[3]. Proteção a um frio excessivo exige muita pele que por sua vez exige o abate de muitos animais; proteção às lavouras e criações domésticas exige o abate de predadores; mecanização acelerada exige elevada extração de ferro e carvão etc. Ao lado dessas intrínsecas relações, a ciência, mediante uma metodologia de pesquisa, investiga como obter e produzir melhor os bens que a sociedade humana sempre retirou da natureza.
Inicialmente a quantidade dava satisfação às necessidades da vida. Não é à toa que as designações das espécies do gênero humano perpassaram por “faber” e “habilis”. O ato de ter habilidade para fabricar – e aqui não se olvide a maravilha do polegar opositor que muito ajudou nessa condição – foi a óbvia condição de avanço tecnológico e científico humano frente às outras espécies com as quais competiu por sobrevivência. É claro que essa cumulativa experiência de investigar, aprender e dominar o entorno gerou efeitos na acumulação de riquezas – no que se considera riqueza a cada momento da biografia humana – onde o controle da escassez ou da abundância pela via do trabalho, determinava o poder sob qual fosse sua óptica[4].
Dessa forma, o volume de bens e o excedente produzido ao longo de séculos – envolvidos aí o aspecto material de necessidade e os psicológicos de “status” social ou satisfação pessoal – produziram um desequilíbrio nos recursos naturais – seres vivos –, predominantemente nos renováveis. A despeito da condição de “renovável”, esta é utilizada quando da perfeição da relação cíclica da capacidade limite de suporte desses seres vivos e que se desrespeitada, os extingue. Dada a essas necessidades humanas que carecem de elementos de um consumo responsável – por conseguinte equilibrado e sustentado –, a natureza passa a ser, então, contabilizada, valorada, administrada e juridicamente tutelada.
É óbvio que a proteção da ciência jurídica às complexas relações ecológicas terminaria por gerar uma legislação também complexa, tanto em assistematização quanto em procedimentos hermenêuticos[5]. O Direito, como fruto do homem voltado para o ser humano, ao regular as relações entre homem e ambiente termina por demonstrar, pelo menos, três de seus grandes conflitos internos. Como primeira colisão, o Direito Ambiental reproduz a anteriormente comentada complexidade, derivada de aspectos relativos à proteção dos excessos da caça ou da poluição dos países com elevado grau de industrialização e que chega ao século XXI com a tentativa de tutela sobre objetos abstratos tais como o clima ou as redes biodiversas mundiais; uma segunda tensão interna da ciência jurídico-ambiental está em integrar os aspectos jurídico-ecológicos complexos que terminam por exigir uma co-redação legislativa realizada por biólogos, geógrafos, sociólogos, antropólogos, juristas etc., gerando um Frankenstein legislativo capaz de exasperar o mais douto dos hermeneutas.
Finalmente, a ciência jurídica ambiental – o Direito Ambiental – apresentada à defesa de uma utilização racional dos recursos naturais por meio de um Poder de Polícia, conflita com as forças tremendas do capital que move todo um sistema produtivo já ancorado em um sistema de apropriação capitalista[6]. Não tem sido outro o resultado advindo dos embates internacionais ambientais provocados pela indústria do petróleo, do agronegócio, da produção madeireira, do processamento de minérios etc. A tutela jurídico-ambiental é vasta, complexa, voltada à manutenção da vida e constantemente abalroada em sua eficácia pelos interesses econômicos – “lobbies” – interessados na permanência de paradigmas medievais e modernistas, há muito ultrapassados.
A Ordem Internacional, sob a égide da Organização das Nações Unidas, percebeu o reclamo de seus membros ao longo dos últimos quarenta anos e deu-lhes resposta mediante conferências internacionais[7]. Cidades, fauna e flora, aquecimento global, ecossistemas sensíveis, cultura etc., permearam debates internacionais, cujos resultados influenciaram o universo normativo nacional, de forma a recepcionar, ou atualizar, comandos normativos destinados à promoção de sustentabilidade sócio-econômica e ambiental. A própria Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, CRFB88, recepcionou a variável ambiental no estatuto normativo máximo antes da Conferência das Organizações das Nações Unidas para Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992.
Essas características comentadas espraiaram-se na legislação infraconstitucional brasileira, de forma assistemática e complexa, via de regra submetida a revisões legais provocadas por interesses econômicos. Ocorre que o Poder Público, por determinação principiológica constitucional[8], é instado a promover a tutela ambiental, fazendo-a mediante seu poder de polícia, observada a organização do Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA. Para tanto, necessita aplicar uma legislação complexa que, para ser traduzida e fornecer a devida segurança jurídica, necessita apresentar definições legais, o que muitas vezes é levado a cabo pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA.
Como a melhor norma ambiental é aquela que nasce do consenso do ecologista com o jurista, voltada à efetivação da teoria tridimensional do desenvolvimento sustentado, usualmente faz-se necessária a inscrição de definições legais aos estatutos normativos para que as decisões dos tribunais nacionais tenham uma base uniforme que proporcione segurança jurídica. O Direito Ambiental brasileiro, nessa índole, proporciona autoconfiança à sua jurisprudência em diversos temas, quais sejam as definições de meio ambiente, impacto ambiental, licença ambiental, manejo, restauração etc.. Além destas, entre diversas fixações normativas e relativas ao objeto de estudo desta apertada análise, ainda se apresentam os resultados das atividades humanas sobre o ambiente, havidas como degradação e poluição.
2. A alteração adversa à vida
Qualquer atividade humana, neste planeta, altera o meio onde esta se aplique. O circular de uma bicicleta, o funcionamento de uma geladeira, uma hidroelétrica, produziu ou produz, em algum momento de seu uso ou de sua produção industrial, uma alteração às condições originárias ambientais. De outra banda, o Poder Público nacional, constitucionalmente instado ao controle ambiental das atividades humanas[9], em face das alterações produzidas pelas atividades humanas, pode, em sua tutela, entender que esses resultados devam ser objetos de sanções, produzindo efeitos indesejáveis ao desenvolvimento dos interesses econômicos e necessidades sociais, mesmo que atuando em plena defesa do meio ambiente.
A tutela ambiental opera sob equilíbrio das triplas parcelas econômicas, sociais e ambientais, o que faz perceber que o favorecimento de uma delas faz perder a necessária continuidade para a promoção de estabilidade entre essas três correntes. A sanção estatal ao simples funcionamento – e alteração ambiental – de uma atividade faz perceber um indiscutível exagero de um Poder de Polícia, assim como sua parcialidade para com a plena proteção ambiental. Essa condição radical deve ser deixada à parte para ser contemplada sob a mirada de uma “significativa alteração ambiental” ou expressiva mudança no equilíbrio ecológico.
A tutela nacional do meio ambiente objetiva a sua proteção na ordem de um contínuo equilíbrio de ações e resultados entre a atuação humana e o meio no qual este está inserto. Por sua vez, a Política Nacional de Meio Ambiente, lei 6.938/81, apresenta a delimitação do que orienta a ação dos poderes públicos ambientais quanto à aplicação da responsabilização de atos contrários ao equilíbrio ambiental. Assim, se a atividade humana sobre o meio circundante provoca alterações que não interferem nos ciclos ecológicos, estas devem ser entendidas como uma mera degradação ambiental. Porém, quando estas mudanças assomam destaque na expressiva piora de condições sócio-econômicas e ambientais, a ação humana deve ser compreendida como poluição e sancionada pela ordem pública[10].
O princípio geral da responsabilidade ambiental preconiza que aquele que produzir um significativo impacto ambiental, sem que promova as devidas compensações, estará incurso em responsabilidades administrativas e penais, além da obrigação de reparar o dano causado. Tal princípio opera a partir da observação fática e técnica do que é considerado impacto ambiental e que tem identidade com os efeitos de poluição[11]. Pelo que se depreende dessa interpretação sistemática, os resultados das ações humanas sobre o ambiente não podem alcançar resultados excessivos, expressivos, significativos, sob pena de interpretação legal de poluição, sujeita às cominações administrativas, cíveis e penais.
Com esse embasamento, as relações entre o ser humano e o ambiente devem estar limitadas a alterações de pequena monta – que não desestabilizem de maneira excessiva as relações ecológicas – de forma que a vida possa subsistir. Uma empresa que se localiza em um lote de um distrito industrial não pode ser sancionada por retirar o mato que cresceu no local onde implantará seu galpão, mas, dependendo do tratamento que ela venha a fornecer aos rejeitos de sua produção, poderá provocar impactos ambientais que justifiquem a reprovação sancionatória de sua conduta. Assim, a utilização humana do meio no qual sobrevive e do qual retira sua subsistência, não pode ser levada a efeito de forma que prejudique a continuidade de relações ecológicas essenciais, capazes de permitir, abrigar e reger a vida com qualidade, uma sadia qualidade de vida.
3. Honra e memória ao corpo humano morto
A morte possui um véu de mistério justificado pelo desconhecimento em haver outra vida. Como a resposta a esse questionamento só é efetivamente resolvido por quem morre, a cessação da vida não deixa de produzir medo ao vivente. Essa mística da morte coexiste em diversas culturas e perduram ao longo dos milênios desde o paleolítico, em investigações que buscam respostas em diversos segmentos da cultura humana, quais possam ser mitológicos, artísticos, religiosos ou filosóficos, de forma a tornar o sentimento da perda e da dúvida do destino final do ente querido mais assimilável porquanto menos angustiante.
Nessa ordem, a questão da morte do ser humano no âmbito de suas sociedades, sofreu diversas interpretações sócio-culturais ao longo do seu aprimoramento enquanto espécie pensante. Há um ponto muito importante desse fato social que foi a necessidade de dar ao ente morto uma despedida digna, não só como comportamento respeitoso ao passamento ocorrido, mas como forma de honrar os feitos, a sua memória. As obras e o poder exercido ao longo da biografia do morto em conjunto com a dor da sua ausência dentro do conjunto sócio-familiar, sempre foram os aspectos que deram azo ao culto de sua lembrança, cuja tradução jurídica até estes dias pós-modernos, exigem preitos à sua honra por intermédio de sua família.
A razão desse aspecto advém de um direito natural já debatido por Cícero, onde a lei suprema é originada dos deuses, sendo a justiça a diferença entre o justo e o injusto numa base de medida segundo a Natureza[12]. Muito antes dessa interpretação românica, mitologia grega influenciava a consideração jurídica no que se pode notar em Antígona, criação de Sófocles, onde aquela ao desafiar os desmandos de Creonte, declara que as leis deste não sobrepujam as leis divinas, que “não são leis nem de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos: ninguém sabe quando apareceram”[13].
Com essa base naturalista e como exemplo da variabilidade da tradução da morte entre várias culturas, o sepultamento na cultura mesopotâmica ocorria com a juntada ao corpo, de vários objetos usados pelo falecido quando ainda em vida, inclusive seus alimentos preferidos. Esse ritual de fornecimento de objetos e alimentos demonstrava que a percepção da morte para essa sociedade era de passagem em destino a outro mundo, ao mundo da morte, que existia no subsolo terrestre.
A cultura helênica não divergia dessas bases e se utilizava dos sepultamentos e de libações de leite e mel para honrar o falecido. As cerimônias fúnebres eram de tamanha importância, em função de que o morto era, agora, considerado um deus. Finalmente, a incineração pela pira estava destinada aqueles considerados heróis em razão de grandes feitos ou aqueles de linhagem nobre, de forma que o cremado – seu nome e feitos – fosse destinado à eternidade[14].
Diferentemente dos gregos, os hindus possuíam outra noção do evento morte. Enquanto naqueles a morte na pira era destinada à imortalidade, à honra eterna e à memória, para os hindus a incineração do corpo morto traduzia o perdimento da identidade, da personalidade e da hierarquia social. Como os mesopotâmicos, a morte para os hindus traduz uma passagem na qual o morto alcança outro plano de existência, plasmando-se com o Absoluto, o eterno, alcançando o que conhecem como Nirvana. A contrario sensu dos gregos, os hindus em seus rituais de morte, acreditam que os grandes feitos não traduzem o herói, mas sim é herói aquele que se nega a si mesmo, abandonando sua própria identidade ao deixar o mundo material[15].
As divergências entre patrícios e plebeus da Roma antiga fez editar a Lei das XII Tábuas que reduziu os costumes a escritos. Mesmo sem ter a técnica legislativa adequada, não deixou de transparecer um aspecto “constitucional” como lei máxima dos Estados modernos. Essa codificação quase nada tinha de regulamentos de relações jurídicas públicas, porquanto a lei, entendia-se, estava destinada aos particulares. A lei demonstra, portanto, que não era outra a compreensão dos antigos romanos dos perigos da decomposição dos corpos mortos, que não isolar-los do convívio humano. No caso dessa codificação, mais precisamente na Tábua X, os sepultamentos, as piras de incineração, assim como a criação de novas locais de enterramento humano exigiam distância dos sítios habitacionais, onde na proximidade de propriedades privadas, não poderiam localizar-se a menos de 20 m das casas, salvo consentimento do proprietário[16]. Revendo as palavras de Cícero no que concerne às exéquias aos mortos, este afirma ser crime o desrespeito religioso aos sepulcros a ausência de rituais, assim como a sua localização imprecisa[17].
Com a cultura brasileira não foi diferente, especialmente em sua formação originariamente católica, onde a crença em outra vida após a morte era regra geral. Aqui, como terra em contínuo desbravamento utilitário – como ainda está experimentando o ultimo bastião amazônico – as paisagens interiores, recém conquistadas às florestas e aos indígenas, justificavam muitas vezes, a ausência dos viventes do seu lar, de suas famílias. Morrer, portanto, longe de casa, sem as canduras finais dos parentes, com a impossibilidade de ser pranteado, de merecer um préstito fúnebre e usufruir a eternidade em um féretro adequado, era uma idéia tão abominável quanto estar destinado ao inferno cristão. Morrer na travessia do oceano, então, era o terror, onde a ausência de uma campa capaz de marcar um local de honra à memória do estimado contrariava todas as expectativas de uma “boa morte”[18].
Tal condição era mitigada com a associação a uma irmandade religiosa – mantida a bom soldo –, que não só cuidavam das exéquias como acolhiam o corpo morto em um local dentro das igrejas. Lá, os despojos passavam a ter um contato mais amiúde com os vivos, além de merecer a lembrança de necessárias rezas pelas suas salvações. Apesar do olhar estrangeiro ver esses enterramentos humanos como um grande desrespeito onde os vivos pisavam nas sepulturas ou passeavam sobre os mortos contidos em tumbas espalhadas pelo chão das igrejas, a hierarquia eclesiástica católica tinha o fato como um bom alerta à finitude da vida para a persistência nos ditames da fé católica.
Interessante notar a orientação de Ribeiro Sanches sobre a condição dos enterramentos humanos realizados à época nas igrejas, aonde inicialmente restritos no século IV à hierarquia eclesiástica, chegaram ao século XI em anarquia que perdurou até o século XIX onde qualquer pio contribuinte obtinha direito a tanto. Conta Sanches que as exalações, tanto dos vivos como dos despojos humanos, em um local fechado como as igrejas, adornadas de velas e tochas acesas, terminavam por tornar o ar irrespirável a um ponto de provocar mal estar e desmaios[19]. Finalmente, esse “convívio” entre vivos e mortos não perdurou além do início da transição do século XIX ao século XX, sob as novas regras de um teoria higienista, voltada à políticas de necessário sanitarismo nas emergentes metrópoles, separando – mesmo que não definitivamente em razão do Espiritismo de Kardec – os vivos dos mortos.
Um fato notável que terminou por produzir efeitos sobre os campos santos foi a segunda revolução industrial inglesa que gerou um embate entre capitalismo e proletariado capaz de promover as mudanças políticas radicais que abalaram o mundo do início do século XX. Nas cidades, o planejamento urbano segregou a classe rica e dominante das indústrias, daquelas que, de modo feudal, trocavam desde criança a sua qualidade de vida por um trabalho que lhes provia a subsistência diária, além de ser a massa utilitária do chão da fábrica. A Revolução de 1848, a Comuna de Paris, foi o estopim da reorganização e do planejamento urbano.[20] Fez surgir a teoria sanitarista destinada a pacificar a sociedade e eliminar os focos de doenças, normalmente localizados nos bairros pobres e operários das cidades industrializadas. Não se olvide que o nascente Estado Social nada mais foi que a manutenção política da salubridade ambiental das massas pauperizadas para que a doença do empregado não fosse o estorvo do empregador.
Com isso, os cortiços são eliminados, o alinhamento das ruas é retificado para evitar emboscadas, as ruas são alargadas para facilitar a atividade das forças policiais de choque, o transporte público é modernizado para que possa levar as massas trabalhadores mais rapidamente às fábricas, a sociedade é imunizada à força contra endemias e as sepulturas são retiradas das igrejas[21]. A Revolta da Vacina e a luta de Pereira Passos contra as “cabeças de porco” no Rio de Janeiro, assim como a política urbana de afrancesar o centro urbano de Belém, todos fatos ocorridos no início do século XX, são exemplos dessa nova corrente não democrática de planejamento das cidades[22] que também incluiu a organização e administração dos cemitérios, chegando a fechar alguns (Cimetière du Père Lachaise em Paris, Soledade em Belém do Pará) em nome do controle das doenças, criando outros campos santos distanciados dos centros das cidades. Estava implantado o higienismo ou a medicalização das cidades como quer Foucault[23] e que produz efeitos até o presente momento.
4. Efeitos ambientais da degeneração tissular humana
A dissolução dos tecidos humanos, desde há muito, é sabida prejudicial à saúde. Como os ritos de homenagem e perpetuação da memória do morto estão incorporados à conduta social, a administração dos enterramentos tornou-se necessária como forma de controle de veiculação de doenças – em escala de grupos, inclusive – e contaminação do ambiente onde se inumam corpos mortos.
Analisando-se os efeitos que a morte havida sobre o corpo humano gera, surgem diversos efeitos transformativos na organização celular, ocorrendo por princípio a acidificação do conjunto tissular em razão da falta de circulação, da respiração e da ingesta alimentar. Nesse processo privado de trocas iônicas de manutenção do pH celular, o tecido humano degenera e começa a apodrecer costumeiramente pelos intestinos, onde a flora aeróbica, anaeróbica e elementos diversos são o gatilho da corrupção tecidual. Todo esse processo avança para um momento coliquativo, no qual ocorre a dissolução pútrida do cadáver que se desintegra e perde sua forma inicial de tecidos sobre ossos[24].
Essa desagregação corpórea dá-se, inclusive, com perda líquida orgânica conhecida por necrochorume e que apresenta em sua constituição uma fauna típica qual possa ser Escherichia coli, Enterobacter, Klebsiella citrobacter (bactérias que formam o grupo coliforme total), Streptococcus faecalis; alguns clostrídios como Clostridium perfringes e Clostridium welchii, entre outros. Além destes elementos vivos, ainda poderá haver bactérias patogênicas, tais como Salmonella typhi e vírus humanos, como enterovírus[25].
Ainda observando a orientação da Fundação Nacional de Saúde, tal liquefação dos tecidos humanos – necrochorume – termina por conter além de água, sais minerais, proteínas e 471 substâncias orgânicas, incluindo duas diaminas que são muito tóxicas, a cadaverina e a putrescina, além de vírus e bactérias. Não resta dúvida, portanto, que os efeitos deletérios da decomposição tissular são contrários à sanidade, à vida e ao meio ambiente. Deve ser entendido dessa forma porque os organismos patogênicos oriundos da degeneração tissular terminam por contaminar os solos e os aqüíferos neles contidos, mediante percolação.
Mesmo que as organizações sociais tenham se transformado ao longo dos milênios de sua evolução, o lugar de um enterramento de corpo humano morto nunca deixou de possuir uma distinção especial, sempre identificado e demarcado. Essa forma de registro e memento terminou por marcar um aspecto interessante nos grupamentos humanos porque as covas eram costumeiramente agrupadas e encimadas por um amontoado de pedras. Dessa forma, os enterramentos humanos desde o paleolítico, demonstram que as “cidades” dos mortos precederam em formação e organização as cidades dos vivos. Tais “cidades”, campos santos ou cemitérios, em função dos efeitos que a decomposição dos corpos termina por produzir, exigem controle sanitário e ambiental das autoridades competentes.
Produzindo tais efeitos nocivos, os locais de sepultamento demandam projeto, construção, operação e manutenção adequadas a evitar problemas ao ambiente, em função da produção e infiltração do necrochorume humano no solo e nos corpos d’água do subsolo. A imperiosa necessidade de proteção aos aqüíferos subterrâneos assoma uma preocupação importante quando esses são os fornecedores de água para dessedentar e suportar a vida. Nesse sentido, é perceptível que os cemitérios são fontes de significativo impacto ambiental com importante produção de poluição, com capacidade de desequilibrar excessivamente as relações ecológicas do ambiente onde estes campos santos se encontrem. Por conseguinte, estão obrigados a requererem licenciamento ambiental, justificado e fundamentado nos princípios jurídico-ambientais da prevenção e do controle do poluidor, respectivamente amparados na Resolução CONAMA 237/97 e art. 225, § 1o, V, CRFB.
É por essa razão que os locais destinados ao enterramento humano são considerados fontes de elevada energia – matéria viva – nociva e contaminante do solo e da água. A tutela jurídica desses locais de enterramento humano é exigível como forma de controle de poluição por substância patogênica contaminante, conforme orienta o CONAMA por intermédio de sua Resolução 335/2003, alterada pelas resoluções 368/2006 e 402/2008[26]. O que é perceptível nessa tutela jurídico-ambiental é a obrigatoriedade de autorização administrativa ambiental, por meio de licenciamento, das paisagens cemiteriais conforme as condições hidrogeológicas onde se encontrem, o que não deixa escapar a obrigação estatal de controlar efeitos deletérios de contaminação do conjunto solo/água. Essas resoluções possuem como objetos o solo e os aqüíferos, onde a princípio, seu núcleo de proteção está em manter a salubridade do entorno dos cemitérios.
Está aqui um ponto que exige uma visão por demais ampla. A resolução não persegue simplesmente a manutenção ou o fornecimento de saúde ao entorno dos cemitérios, com o farol do texto constitucional da norma-princípio de número 225. O que o Poder Público ambiental imprime à conduta social pelo viés resolutivo é a necessidade de salubridade como fundamento, base e condicionante estrutural da condição de “saúde”, como assevera Foucault[27]. Chega-se ao ponto que não haverá saúde sem um ambiente higiênico, salubre e adequado ao desenvolvimento humano. É possível demonstrar esse raciocínio quando a Organização Mundial de Saúde – OMS/ONU, em seu documento internacional de sua Carta-Constituição, aponta que saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, rechaçando a ultrapassada idéia que saúde é a simples ausência de enfermidade[28]. Voltando-se à Constituição da República, em seu artigo 193, eis que a determinação principiológica da Ordem Social como seu objetivo é, também, o bem-estar. Finalmente, corroborando a ordem internacional, a lei 8.080/90, ou Lei do SUS, grava indubitavelmente em seu artigo 3o que o meio ambiente, entre outros aspectos, é fator determinante e condicionante para a obtenção de saúde[29].
A análise da questão faz descobrir que a mera condição de saúde – em seu ultrapassado e vicioso ciclo curativo – exige muito mais. Exige a conduta preventiva pela educação e pelas políticas públicas dirigidas à construção e proteção de salubridade ao ambiente como base de todas as vidas de lhe dão equilíbrio ecocêntrico. Portanto, tem-se que a promoção e a obtenção de saúde – no vínculo de responsabilidades entre Poder Público e coletividade – perpassam por uma condição-objetivo de bem-estar e de salubridade, ambas amparadas por um ambiente ecologicamente equilibrado.
A orientação legal desse conjunto de resoluções do CONAMA, em consonância com a Política Nacional de Meio Ambiente e a Constituição da República, não é outra que proteger a salubridade da paisagem autorizada a localizar um espaço de enterramento de corpos humanos, de forma a evitar que a disposição incontida de necrochorume dos cemitérios venha a poluir fontes de sobrevivência tais como o solo e a água, capazes de produzir alimento, trabalho, pouso e vida.
Considerações finais
Mistério, curiosidade, saber. A vida do ser humano é um eterno aprendizado que se materializa inclusive no momento da morte, onde o ser está de face com o conhecimento último do que a civilização conhece por “morrer”. Como saber da morte, se boa ou má? Nas palavras de Platão ao descrever os momentos finais de Sócrates, “Chegado é o tempo de partirmos. Eu para a morte, vós para a vida. Qual dos destinos é o melhor, a não ser o deus, ninguém o sabe”[30]. Na verdade, além da questão metafísica está a necessidade de regulação jurídica do fato do enterramento do corpo humano morto, assim como os efeitos ambientais que dele decorrem. Isto se dá pela razão da alteração nociva do ambiente por meio da poluição do solo e da água com resultados perniciosos à saúde dos seres vivos.
Na verdade, a questão não está no Direito ou na norma, em sua imperatividade ou da medida da sanção. A solução está na ética, na educação e na moral voltadas ao sentimento e exercício de cidadania, assim como da função social das atividades públicas ou privadas. O Direito Ambiental é mais exigente, pois está fundamentado sobre direitos difusos e uma responsabilidade solidária. Esses são aspectos opostos a uma pós-modernidade pautada em comportamento individualista, que torna difícil que alguém queira assumir responsabilidades por terceiros ou mesmo dar de si na questão da educação ambiental. É necessário, portanto, pela via tripartite da leitura, da interpretação e da crítica, o ser humano pela ordem jurídica possa reintegrar-se ao ambiente. Esse conjunto ativo – composto de ética, moral, educação e ordem – deve estar destinado à participação da espécie humana voltada à produção de resultados que possam estar voltados à produção de salubridade, bem estar e sadia qualidade de vida.
Nessa ordem de obrigações, é necessário conhecer, investigar, dar à letra fria da lei a luz na qual ela brilha. Como fonte e apoio, a pesquisa científica está diretamente imbricada com a hermenêutica jurídica, no que reúne os fatos da vida e como devem ser regidos em prol do melhor a uma sociedade. O ser e o dever ser não devem ser dicotomizados de forma insolúvel, mas sim unidos por meio de uma ponte ética e moral que sirva à harmonia da continuidade geracional. A questão dos efeitos da morte humana, investigada pela ciência jurídica ambiental, não deixa esquecer o “topoi” 17 do Código de Manu, a qual conclui que “A justiça é o único amigo que acompanha os homens depois da morte; porque qualquer outro afeto é submetido à mesma destruição que o corpo”[31]. Sendo assim, para os viventes que ficam, a preocupação da Administração Pública dos campos santos – ou mesmo a gestão de cemitérios privados – com direitos de terceiros e responsabilidade solidária, implica que observem, sob peso de sanção, a norma ambiental.
Referências bibliográficas:
Advogado, Engenheiro Civil, Especialista em Engenharia Ambiental Urbana, MSc. em Direito do Estado – Direito Urbanístico, Doutorando da Universidad Nacional de La Plata – AR, Integrante da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB – Seção Pará; Presidente da Câmara Jurídica do Conselho Municipal de Meio Ambiente do Município de Belém – CONSEMMA, Docente Universitário da Universidade da Amazônia – UNAMA e Faculdade de Belém – FABEL.
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