Resumo: Trata-se de trabalho que busca discutir a persistência da tarifação da prova no sistema de justiça criminal brasileiro, consubstanciada na obrigatoriedade do exame de corpo de delito. Num sistema de livre convicção motivada, como é o brasileiro, que garante a admissibilidade de todos os meios de provas lícitos no processo penal, como forma de assegurar um devido processo penal, a obrigatoriedade do exame de corpo de delito revela um fetichismo injustificado, sustentado no discurso técnico-científico que prestigia tão fortemente a verdade oficial, desobrigando, por vezes, ao Estado-acusador de produzir outras provas.
Palavras-chave: corpo de delito; exame de corpo de delito; prova.
Abstract: This is work that discusses the persistence of the pricing test in Brazilian criminal justice system, embodied in the requirement of a forensic examination. In a system of free conviction motivated, as is the Brazilian, which guarantees the admissibility of all lawful means of evidence in criminal proceedings as a means of ensuring due process of criminal prosecution, the requirement of a forensic examination reveals an unjustified fetish, sustained in technical-scientific discourse that honors the truth so strongly officer, dispensing, sometimes accusing the State to produce other evidence.
Keywords: corpus delicti; forensic examination; proof.
Sumário: 1 Introdução 2 O Sistema de Prova Brasileiro: A Obrigatoriedade do Exame de Corpo de Delito; 2.1 Corpo de Delito; 2.2 A Formação do Corpo de Delito; 2.3 A Obrigatoriedade do Exame de Corpo de Delito; 2.3.1 Exame de Corpo de Delito Indireto; 2.3.2 Da Ausência do Corpo de Delito 3 Considerações Finais.
Summary 1 Introduction 2 The Brazilian Test System: The Compulsory Exam Body of Crime, Crime Body of 2.1, 2.2 The Formation of Body of Crime; 2.3 The Compulsory Exam Body of Crime; 2.3.1 Examination of Body Indirect offense; 2.3.2 The Absence of the Body of Crime 3 Concluding Remarks.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo descrever e explicar o sistema de prova adotado no Brasil e a obrigatoriedade do exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, em contraponto à previsão constitucional de admissibilidade de utilização de todos os meios de prova lícitas no processo penal brasileiro.
Quando falamos de processo penal num Estado democrático de direito, devemos ter vista não qualquer processo, mas aquele fundado em preceitos de garantistas de racionalidade e justiça. Um processo justo depende não apenas da observância firme da lei, mas também de um conjunto direitos e garantias que assegurem um equilíbrio entre o poder do Estado de investigar, processar e julgar o delito e do acusado de defender de forma adequada e amplamente contra a imputação que lhe feita.
No tocante a instrução processual, realizada durante a investigação criminal de forma antecipada, cautelar e não repetível — na linguagem adotado pelo Código de Processo Penal – CPP, e no processo judicial, um processo justo pressupõe a participação ativa das partes e das instituições públicas imparciais (Polícia Judiciária e juiz) na formação do conjunto probatório.
Contudo, a busca da verdade processual atingível, dita equivocadamente real, não é ilimitada. A Constituição e as leis impõem limites à atividade probatória, seja vedando o uso de elementos de prova[1] obtidos ilicitamente (p.ex.: confissão mediante tortura), seja impondo determinados tipos ou meios probatórios específicos (exame de corpo de delito). A regra, todavia, deve ser a liberdade probatória que consiste na compreensão de que no processo tudo pode ser provado, por qualquer meio de prova legítimo.
As s principais razões para ampla admissibilidade dos meios prova no processo penal estão fundadas, sobretudo: a) no fato de não haver prova perfeita; e b) na necessária observância do contraditório no processo; c) no princípio da livre convicção motivada.
Em primeiro lugar, em princípio, toda prova é apta a formar a convicção do juiz sobre o fato a ser provado, seja em benefício da acusação ou da defesa. Com isso, tanto as partes como o juiz tem a sua disposição o poder de buscar (por meio de diligências diretas ou por solicitação/requisição) as provas que entenderem necessárias e suficientes à demonstração fática e jurídica da verdade processual.
Em segundo lugar, reconhece-se que nenhuma prova é, por si mesmo, superior a outra. Diante disso, repudia-se qualquer sistema que preveja a hierarquização ou tipologias de provas, possibilitando-se, assim, uma maior liberdade na busca dos meios mais eficazes e menos custosos para a comprovação do fato.
Em terceiro, não basta que a prova seja licita para formação do convencimento do juiz. Não se pode falar em processo justo sem o necessário jogo dialético de provas e contraprovas objetivando confirmar ou refutar os fatos aduzidos pelas partes. Dito de outro modo, a partes devem participar ativamente da produção da prova. Assim, ao se tarifar determinada prova há um claro prejuízo à dialética processual e à obtenção da verdade.
Nesses termos, a idéia aqui é situar a funcionalidade da prova pericial, dita técnica[2], para persecução penal, mormente no que diz respeito ao exame de corpo de delito.
Desse modo, iremos discutir a indevida obrigatoriedade na lei processual brasileira do exame de corpo de delito — seja na presença ou na ausência dele — para prova das infrações penais que deixam vestígios. Quais seriam, portanto, as implicações da tarifação do exame de corpo de delito para preservação de um devido processo penal?
2 O SISTEMA DE PROVA BRASILEIRO: A OBRIGATORIEDADE DO EXAME DE CORPO DE DELITO
Consoante se depreende da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-Lei nº 3.689, de 3/10/1941), a lei processual em vigor optou predominantemente pelo sistema de avaliação de provas consistente na persuasão racional, da livre convicção motivada ou do livre convencimento motivado[3], aparentemente repudiando o sistema das provas legais, da certeza legal ou tarifadas que estabelece, de regra, uma hierarquia entre as provas, estipulando valor superior de uma sobre outra[4].
Observa-se, porém, que a despeito da opção manifestada pelo legislador processual pelo sistema da livre convicção motiva[5], ainda perduram resquícios do sistema da prova tarifada em nosso direito, conforme se extrai do art. 158 e 184 do CPP[6], que exige, por um lado, o exame de corpo de delito para formação da materialidade do crime que deixar vestígios, não podendo este ser substituído pela confissão[7]; e, por outro, prescreve que o exame de corpo de delito não pode ser recusado pela autoridade policial ou judicial quando requerido pelas partes.
Mas, antes de falar sobre o exame de corpo de delito e a sua insustentável obrigatoriedade, é importante distinguir o que vem a ser corpo de delito e exame de corpo de delito.
2. 1 CORPO DE DELITO
Embora todos reconheçam que para se condenar alguém faz necessária a prova do corpo de delito, divergem sobre sua natureza e extensão. Alguns entendem por corpo de delito o fato objetivo, a ação típica punível tanto permanente quanto transitória, prescindindo de seu autor (um incêndio, um homicídio, uma injúria). Outros que se trata do efeito material do delito, ou seja, a mesma ação típica só que restrita ao seu efeito material permanente (o incendiado; uma morte). Ou, ainda, há aqueles que consideram tão-somente os vestígios materiais permanentes resultantes de uma ação material (a faca; a arma; o corpo) (ELLERO, 1994) [8].
Para a primeira posição haveria corpo de delito em todo delito. Já para a segunda somente nos de fato permanente. E, por último, para os que firmam a terceira posição somente nos de fato permanente que deixam vestígios.
Adotamos a posição de que por corpo delito entendem-se os elementos (vestígios) sensíveis do fato criminoso que podem ser natureza material ou imaterial (moral). Um sensível, corpóreo que deixa marcas ou sinais físicos ou químicos gravados, permanente (facti permanentis) ou temporariamente (facti transeuntis)[9] sobre a matéria dos seres (p.ex.: lesões corporais). O outro, intangível, incorpóreo que se perde logo após a consumação do delito, por não serem apropriáveis e nem passíveis de registro pelos sentidos humanos (p.ex.: injúria verbal)[10] (NUCCI, 2005; ALMEIDA JUNIOR, 1959).
Desse modo, “tudo o quanto se pode ver, ouvir, tocar, sentir em geral, atribuível ao delito, antes, na durante ou depois sua execução, é o seu corpo, o corpo de delito” (MENDES DE ALMEIDA, 1973, p.35).[11]
A partir da idéia de que todo elemento perceptível aos sentidos decorrente da ação (conduta) forma o corpo de delito, é possível enfocar seus elementos desde três esferas distintas: a) o corpus criminis; b) corpus instrumentorum; c) corpus probatorium.
O corpus criminis é toda coisa ou pessoa sobre a qual incide a ação delitiva executada por uma pessoa ou grupo de pessoas determinadas, isto é, os elementos materiais do delito. Por exemplo: No furto, a coisa alheia móvel; no homicídio, o corpo da vítima; na falsificação e estelionato, os documentos falsos; no seqüestro a pessoa seqüestrada etc. O corpus instrumentorum são os meios ou instrumentos utilizados pelo indiciado ou imputado para praticar o fato delituoso. Por exemplo: A arma de fogo para ocasionar a morte do ofendido ou lesões corporais; o veículo para transportar o material entorpecente; a ferramenta para arrombar a porta da casa e subtrair os bens móveis. O corpus probatorium são aqueles indícios materiais (rastros, vestígios, impressões) que deixados pelo investigado no lugar do crime auxiliam na formação da convicção sobre o fato, ou em outras palavras, são vestígios que possibilitam a reconstrução histórica do fato praticado. Por exemplo: as lesões na vítima de agressão, as fechaduras quebradas nos furtos, as manchas de sangue nos homicídios, os materiais queimados em um incêndio (NUCCI, 2005).
Desse modo, pode-se dizer que o corpo de delito tem dupla natureza probatória: a) material; e b) probatória em sentido estrito.
Sob a perspectiva material, são as evidências físico-materiais que nos permitem conduzir ao descobrimento de um determinado fato punível, esclarecendo a forma do modus operandi que resultou na consumação, bem como a identificação do autor ou dos autores (ARBUROLA, 2009).
Sob o ponto de vista probatório, é todo fato conhecido e devidamente comprovado, por meio do qual podemos inferir através de uma operação lógica o conhecimento de outro fato desconhecido (ARBUROLA, 2009).
Em resumo, o corpo de delito pode ser identificado como a materialidade do delito, em caso de existência de vestígios materiais, ou sua materialização, caso estes vestígios sejam incorpóreos ou transitórios. É a existência do crime do qual não se pode duvidar de que ele foi de fato praticado ou a prova objetiva do delito.
Ressalta-se que todo crime tem um corpo de delito, isto é, prova de sua existência, já que se exige sempre materialidade (materialização) demonstrada para se atribuir pena a alguém, embora nem todas demandem um corpo de delito constituído por vestígios materiais, conforme ressaltado (NUCCI, 2005).
2.2 A FORMAÇÃO DO CORPO DE DELITO
A formação do corpo de delito seria a observação e a recomposição dos vestígios ou elementos percebidos pelos sentidos que, dispostos e conjuntos, constituem o fato criminoso e o dano causado (ALMEIDA JUNIOR, 1959).
A questão da formação do corpo de delito está diretamente à gestão da prova, consistente na reconstituição do evento criminoso em todas as suas fases, tanto quanto possível, e em todos seus elementos sensíveis, quer relativos à causa eficiente principal ou instrumental, quer relativos à causa material, ou ainda, na recomposição desses elementos, quer relativos aos meios, quer relativos ao fim (ALMEIDA JUNIOR, 1959)[12].
A busca e formação do corpo de delito no direito brasileiro sempre foi tarefa da polícia judiciária[13]. Depreende-se do Código de Processo Penal – CPP que é tarefa da autoridade policial[14], no bojo da instrução preliminar ou provisória consubstanciada no inquérito policial, provar plenamente o corpo de delito e lograr, ao menos por indícios veementes, a autoria e a culpa (MENDES DE ALMEIDA, 1973).
Todavia, a participação da autoridade policial na formação do corpo de delito demanda que se faça uma distinção, no que diz respeito à formação do corpo de delito ou materialidade constitutiva do corpo de delito, entre prova material e a prova pessoal.
Com suporte em Malatesta (2005), podemos entender por prova material (real) aquela em que a materialidade constitutiva do corpo de delito está diretamente sujeita à percepção do juiz, ou seja, a verificação propriamente judiciária. Ao contrário, quando esta materialidade não é percebida direta pelo juiz, mas por intermédio de outras pessoas, ela é pessoal (tal qual o testemunho pericial ou testemunho não-qualificado). Contudo, o próprio autor italiano adverte da existência da chamada prova material imprópria — ou prova material por ficção jurídica. Esta que, embora não sujeita à direta percepção do juiz, é constatada (percebida) por testemunhas oficialmente competentes ou uma autoridade delegada, tal como um juiz de instrução (idem, 2005).
O sistema processual brasileiro, ao tempo em que repudiou a proposta de um juiz de instrução, conferiu autoridade de polícia judiciária a tarefa de realizar essa constatação quase-judicial (art. 6º, I do CPP). Por conta disso, o comparecimento ao local do crime não é mais facultada à autoridade, mas uma incumbência da qual esta não pode se furtar, já que a esta foi emprestada competência particular para constatação do corpo de delito. Ademais, cercou-lhe de formas protetoras da verdade, ao prever não somente o acompanhamento de peritos, como em algumas situações de testemunhas (ex: apreensão; busca e apreensão)[15].
Na formação do corpo de delito, assim, a prova material, no sentido que lhe empresta Malatesta (2005), aqui entendida como constatação da materialidade constitutivo do corpo de delito, no direito brasileiro, não corresponde por si só ao exame de corpo de delito realizado por peritos oficiais ou não-oficiais, mas a eventual constatação judicial ou quase-judicial do corpo de delito.
É que, sem embargo não haja um “juiz de instrução” no direito brasileiro na fase da investigação criminal, compete à autoridade policial e, excepcionalmente ao juiz, desprezadas as partes, proceder à instrução provisória referente ao processo-crime[16]. Em outras palavras, atribuiu-se à autoridade de polícia judiciária o papel de proceder a verificação oficial do fato, com apoio da perícia[17].
Sendo assim, somente com o desaparecimento ou inexistência dos vestígios ou da existência de melhor prova, é que se deve dispensar a constatação oficial do delito na formação do corpo de delito.
De outro modo, os demais meios de prova da materialidade delitiva só irão prevalecer sobre a verificação oficial do corpo de delito na sua impossibilidade em razão da inexistência de vestígios ou quando demonstrarem maior aptidão para melhor demonstrar a materialidade delitiva[18].
2.3 DA OBRIGATORIEDADE DO EXAME DE CORPO DE DELITO NO DIREITO BRASILEIRO
A obrigatoriedade do corpo de delito como meio probatório decorre do mandamento contido no art. 158 do CPP que tornou indispensável esse exame nas infrações que deixam vestígios, não podendo este ser suprido sequer pela confissão do acusado.
Tal indispensabilidade se trata, como se percebe, de uma reminiscência inaceitável do superado sistema da certeza moral do legislador que se afastou, sem sombra de dúvida, do sistema da livre convicção motivada (HAMILTON, 1996).
Frederico Marques (2000, p. 438) condena a equivocada previsão contida no CPP, ao afirmar que:
“Na verdade, fora do sistema da prova legal, só um Código como o nosso, em que não há a menor sistematização científica, pode manter a exigibilidade do auto de corpo de delito sob pena de considerar-se nulo o processo. Que isso ocorresse ao tempo da legislação do Império, ainda se compreende. Mas que ainda se consagre tal baboseira num estatuto legal promulgado em 1941, eis o que se não pode explicar de maneira razoável.”
O problema da importância indevida dada ao exame de corpo de delito, vinculando o sistema probatório a um meio específico de prova (prova tarifada), como o exame pericial[19], está justamente na incompreensão quanto à formação do corpo delito que não se caracteriza, pela natureza dos meios probatórios empregados, mas na natureza de seu fim que é coligir e reunir, direta ou indiretamente, todos os dados sensíveis do fato delituoso a ser apurar, reconstituindo a materialidade do ilícito (MENDES ALMEIDA, 1973). Sob esse enfoque, toda atividade investigativa dirigida ao fim de esclarecer o fato delituoso representa a formação do corpo de delito.
Como já visto anteriormente, o direito brasileiro consagrou quanto à atividade probatória os parâmetros de exigência de uso de prova lícita (art. 5º, LVI da CRFB), da livre convicção motivada do juiz (art. 155 do CPP e art. 93, IX da CRFB), da presunção de inocência e do contraditório e da ampla defesa como corolários de um devido processo legal. Desse modo, afronta a Constituição regra infraconstitucional que impõe prova tarifada ao processo penal, limitando a postura contraditória e defensiva do acusado que, presumivelmente inocente, tem o direito de influir sobre a formação do convencimento do juiz na avaliação das provas.
O sistema da prova legal parte do pressuposto de que alguns dados probatórios permitem deduzir incontestavelmente a conclusão fática, graças à sua conjugação com premissas legalmente presumidas como verdadeiras que, de modo geral, conectam o tipo de fato experimentado como prova e o tipo considerado provado[20]. Em outros termos, tem como suficiente determinada prova a partir de sua conjugação com a norma, atestando, assim, a culpabilidade ou a inocência, e por sua vez, excluindo a investigação e a livre apreciação do juiz (FERRAJOLI, 2002)[21].
Assim, ao tarifar o exame de corpo de delito[22] como único meio de prova[23][24], nos casos em que infração penal deixa vestígios, a lei processual impede a realização de um processo penal justo, na medida em cerceia tanto da acusação quanto da defesa de desenvolverem a atividade probatória[25].
A obrigatoriedade do exame de corpo de delito revela um fetichismo injustificado, sustentado no discurso técnico-científico que prestigia tão fortemente a verdade oficial, desobrigando, por vezes, ao Estado-acusador de produzir outras provas.
Por outro lado, verifica-se que conferir maior valor ao exame de corpo de delito, mesmo que apoiado no discurso científico, nada mais é do que substituir a prova pericial à confissão como rainha das provas, próprio de sistemas de natureza inquisitorial, que por vezes se apóiam em um único meio de prova como fonte legítima de revelação da verdade (real).
Nesse passo, como aceitar a situação contraditória em que embora haja vestígio (elemento material de um crime), a perícia não seja conclusiva? Cita-se, como exemplo, o exame grafoscópico sobre documento supostamente falsificado. No caso, o suporte material sobre o qual se realizou o delito de falso existe e é submetido a exame de corpo de delito, contudo a perícia não consegue determinar que os escritos contidos no papel partiram do punho do suspeito. Imaginemos, todavia, que o suspeito confesse que falsificou o documento e que testemunhas confirmem sua versão sobre o fato. Nesse caso, pode-se dizer que não há corpo de delito?
Se entendermos que não, devemos admitir que o corpo de delito e exame de corpo de delito são coisas indistintas, ou seja, que os vestígios materiais do crime somente se tornam corpo de delito (materialidade do crime) quando submetidos a exame técnico. O que, convenhamos, é um absurdo, sobretudo quando fracionamos a compreensão do que vem a ser corpo de delito[26] (vide item 2.1 supra).
Ressalta-se que jurisprudência já consagrou, com base nos postulados da verdade real, do livre convencimento do magistrado e da inexistência de hierarquia legal em matéria probatória, a legitimidade da utilização da prova testemunhal, da prova documental e, até mesmo, da confissão do próprio réu, como elementos hábeis ao válido suprimento da ausência do exame pericial de corpo de delito (MIRABETE, 2000).
A demonstração do corpo de delito, que não se confunde com o exame de corpo de delito (perícia), pela atividade probatória da polícia judiciária, do juiz ou das partes, não pode se sujeitar às amarras legais que condicionam a validade do processo a meio exclusivo de prova que, como já assinalado, é incapaz de demonstrar sua infalibilidade, sobretudo, quando estamos diante de um esdrúxulo exame de corpo de delito indireto (art. 158 do CPP).
2.3.1 DO EXAME DE CORPO DE DELITO INDIRETO
Ora, qual a justificativa de se exigir, a todo custo, um exame de corpo de delito indireto, ou seja, aquele praticado por profissionais sobre outros meios de prova (testemunhos ou documentos)?
É que se não há possibilidade física ou jurídica de se realizar o exame de corpo de delito diretamente, em verdade, há de se concluir que os vestígios não estão disponíveis, isto é, que não há vestígios a serem analisados pela perícia. E, como tal, deve-se adotar a solução conciliadora do art. 167 do CPP (Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta)[27], ou ainda, admitir-se qualquer outro meio de prova disponível e legítimo.
Se deixarmos de lado exemplos mais comuns, veremos que maior ainda é a dificuldade de se exigir o exame de corpo delito em modalidades delituosas, como por exemplo, os crimes tributários ou financeiros. É que, em relação aos crimes tributários, entende-se, com base na lei, que a atividade constituição definitiva do tributo — como atividade privativa da administração fazendária — é condição necessária a existência de algumas hipóteses de crime fiscal. Portanto, o procedimento administrativo, elaborado não por peritos oficiais, mas pelo órgão fiscal, constitui o corpo de delito do crime tributário.
De igual forma, no tocante aos crimes de financeiros, a comprovação da conduta de operação de câmbio não autorizada com o fim de evadir divisas para o exterior, documentada pelo Banco Central do Brasil, por meio de processo administrativo, também constitui o corpo de delito do crime contra o sistema financeiro nacional[28].
Há várias situações, como as relatadas, em que se tem admitido equivalente ao exame de corpo de delito a análise e documentação do fato pelo órgão competente, tais como: Agência de Vigilância Sanitária – ANVISA (falsificação de medicamentos); Instituto Brasileiro de Meio Ambiente – IBAMA (crime ambiental); Banco Central do Brasil – BACEN (crimes financeiros); Receita Federal do Brasil – RFB (crimes tributários).
Trata-se, como se viu anteriormente, de melhor meio de prova que, nesse caso, autoriza a dispensa do exame de corpo de delito. Em outras palavras, deve-se dispensar o exame naquelas situações em que o fato possa ser demonstrado por outro meio de prova, devendo nessa hipótese o exame pericial ser considerado inútil ou supérfluo.
Desse modo, verifica-se imprópria qualquer predileção pelo exame de corpo de delito, sobretudo realizado indiretamente.
Volta-se a perguntar, há razão de se submeter um documento, com por exemplo, um procedimento administrativo do Banco Central a exame de peritos, igualmente funcionários públicos cujos atos são dotados de presunção de legitimidade? A resposta é simples: nenhuma.
Assim, a compreensão que deve ser dada à idéia de que formação do corpo de delito indireto é outra, qual seja, a de que a prova do fato pode se dar por todos os meios legítimos de prova, diversos ao exame realizado por perito oficial, seja por prova testemunhal, documental ou outro meio capaz de adequadamente provar a existência do crime ou circunstância essencial que importe na formação do delito[29].[30]
2.3.2 DA AUSÊNCIA DO CORPO DE DELITO
Se considerarmos a dispensabilidade do exame de corpo de delito, quando presentes os vestígios materiais do crime, mais obsoleto pode ser tido tal exame quando desaparecerem os elementos constitutivos da materialidade do delito.
A prática demonstra que dificilmente alguém é condenado pelo crime de homicídio sem que constate materialmente a existência de uma vítima. A razão para isso está no temor dos falsos juízos e no medo de que a suposta vítima apareça viva tempos depois. Ocorre que isso não se justifica na medida em que não é racional conferir força probatória diversa à prova testemunhal ou ao testemunho pericial, simplesmente em razão da qualidade ou natureza — transitória ou permanente — dos vestígios do crime (ELLERO, 1994).
Como é possível atribuir parcialmente o caráter de certificação a uma prova conforme se trate de vestígios materiais transitórios ou permanentes ou incorpóreos. Assim, como admitir que o testemunho prove uma injúria ou um adultério e não faz o mesmo com uma lesão.
Diante disso, sabiamente o legislador[31], quando da inexistência do corpo de delito direto, permitiu que o exame de corpo de delito pudesse ser suprido por outros elementos de caráter probatório existentes nos autos da persecutio criminis, notadamente os de natureza testemunhal ou documental.
Assim, nos crimes contra a liberdade sexual, por exemplo, desde que cometidos mediante grave ameaça ou com violência presumida, não se exige, obrigatoriamente, o exame de corpo de delito direto, porque tais infrações penais, quando praticadas nessas circunstâncias (com violência moral ou com violência ficta), nem sempre deixam vestígios materiais.
Outra situação em que ausente o corpo de delito é aquela em que a pessoa se utiliza de documento falso para enganar a terceiro, obtendo com isso vantagem econômica, o que configura, em tese, crime de estelionato. A ausência do documento — elemento material do crime — meio empregado para ludibriar a vítima, não pode ser utilizado como argumento para afastar a tipicidade da conduta, podendo esta ser provada por outros meios probatórios, dispensando a consideração quanto ao falso documental.
Ressalta-se, ainda, que a lei processual previu em caso de lesões corporais aparentemente graves, que possam resultar em incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias (art. 129, § 1º, I do Código Penal[32]), a necessidade de realização de exame complementar (art. 168 do CPP). Contudo, no § 3º do mesmo artigo dispôs que a falta de exame complementar poderá ser suprida pela prova testemunhal[33]. Em outras palavras, relativizou a necessidade de exame pericial nesses casos, em razão da possibilidade dos vestígios terem desaparecido.
Trata-se, portanto, de previsão que legal que dispensa o exame de corpo de delito nas situações em que estes, mesmo que outrora tenham existido, deixaram de existir. O perecimento dos vestígios não pode ensejar impunidade quanto ao delito, devendo-se, admitir, com as devidas cautelas, qualquer meio de prova capaz (apto) a demonstrar a materialidade delitiva e quem seja seu autor.
O exame de corpo delito, portanto, somente pode ser exigido de forma indispensável quando a sua falta deixa a prova incompleta ou não se possa realizar de outro modo.
Por fim, nada impede que se favoreça o exame pericial até onde seja possível sua obtenção. Todavia, deve-se ter em vista que o exame de corpo de delito deve ser algo útil à instrução probatória e não necessária.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mito da verdade real, de cunho nitidamente autoritário, esmoreceu diante dos postulados garantistas do Estado de direito. As limitações decorrentes do devido processo legal e das garantias dele decorrentes (inadmissibilidade da prova ilícita, ampla defesa, contraditório, direito ao silencio, a não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo entre outros) demonstram que a verdade processual é somente e tão-somente aquela possível, atingível nos estreitos limites da legalidade.
De outra sorte, a consagração da admissibilidade de qualquer meio de prova não significa meramente, em sentido inverso, a vedação ao uso de prova ilícita. O sentido da norma constitucional, que consubstancia um sistema de livre apreciação motivada e de liberdade probatória, também proíbe a prova tarifada ou o fetichismo probatório, a despeito da esdrúxula previsão contida no Código de Processo Penal brasileiro em relação ao exame de corpo de delito.
A razão para tal absurdo, quiçá, consista na confusão entre o que vem a ser corpo de delito e o exame de corpo de delito que, no bojo deste trabalho, deixamos claro se tratarem de coisas distintas.
De tal maneira, sob esse enfoque o sistema de prova tarifada pertinente ao exame de corpo delito é incompatível com a liberdade probatória condicionada aos limites da estrita legalidade (prova lícita) e da existência da melhor prova idônea ao esclarecimento dos fatos.
Assim, se constar dos autos o corpo de delito, seu elemento sensível, dispensável é o testemunho pericial se outros meios de prova corroboram de forma mais adequada a existência do crime e quem seja o seu autor. Somente dessa forma estará assegurado que eventual falha na coleta de vestígios não importe no fracasso na justiça criminal, na medida em que não se permite a elevação a patamar absoluto de determinado meio de prova em detrimento de outros igualmente idôneos a demonstrar a veracidade dos fatos afirmados.
Conclui-se, assim, que a confissão ou qualquer outra prova, trabalhadas em um contexto de pluralidade provas licitamente admitidas, de igual hierarquia, podem servir para formação da convicção do juiz sobre a procedência ou não da hipótese acusatória, desde que este motive adequadamente as razões de seu convencimento. Assim, não há que se entender válida a norma do art. 158 do CPP põe relevo à prova pericial, sob pena de se converter, em última análise, o perito em julgador, uma vez que ele daria a palavra final sobre o evento.
Por derradeiro, queremos deixar claro que o exame pericial (testemunho pericial) é muito importante e, no mais das vezes, é sempre a melhor prova para demonstrar o fato, sobretudo quando a constatação demanda conhecimento especializado. Contudo, reafirmamos que somente pode haver devido processo penal num Estado de direito que assegure um sistema de liberdade probatória, dentro dos limites da lei.
Delegado de Polícia Federal
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