Sistema multiportas: o Judiciário e o consenso


As recentes análises sobre a explosão de litigiosidade no âmbito do sistema de justiça tem destacado a cultura excessivamente adversarial do povo brasileiro.[1]


Embora esse fenômeno revele uma dimensão positiva ao expressar a consciência dos cidadãos em relação aos seus direitos, o culto ao litígio, por ação parece refletir a ausência de espaços – estatais ou não – voltados à comunicação de pessoas em conflito.


Com raras exceções, não há, no Brasil, serviços públicos que ofereçam oportunidades e técnicas apropriadas para o diálogo entre partes em litígio. Diante de tal carência, as pessoas utilizam os meios de resolução de conflito disponí­veis: a aplicação da “lei do mais forte”, seja do ponto de vista físico, seja do armado, do econômico, do social ou do polí­tico – o que gera violência e opressão; a resignação – o que provoca descrédito e desilusão; o acionamento do Poder Judiciário, cuja universalidade de acesso ainda É uma utopia.


Aqueles que acessam a via judicial enfrentam as dificuldades impostas por um sistema talhado na lógica adversarial. Os profissionais do direito nem sempre dispõem de habilidades específicas para a condução de processos de construção do consenso. Ao contrário, o que se verifica, em geral, É a aplicação de técnicas excessivamente persuasivas, comprometendo a qualidade dos acordos obtidos.


Nesse contexto, ainda que o sistema de justiça se esforce em modernizar os seus recursos – humanos, materiais, normativos e tecnológicos -, a dinâmica da explosão de litigiosidade ocorrida nas últimas décadas no Brasil continuarão apresentando uma curva ascendente em muito superior a  relativa aos avanços obtidos. Para o sistema operar com eficiência, é preciso que as instâncias judiciárias, em complementaridade à  prestação jurisdicional, implementem um sistema de múltiplas portas, apto a oferecer meios de resolução de conflitos voltados à  construção do consenso – dentre eles, a mediação.


Por essa técnica, as partes constroem, em comunhão, uma solução que atenda as suas reais necessidades. O mediador não o julga, não o sugere nem aconselha. O seu papel é o de facilitar que a comunicação seja (re)estabelecida, sob uma lógica cooperativa, e não adversarial. Além de efetiva na resolução de lití­gios, a mediação confere sentido positivo ao conflito, pois patrocina o diálogo respeitoso entre as diferenças; o empoderamento individual e social; a consciência das circunstâncias em que repousam os conflitos; a prevenção de futuros lití­gios; a coesão social e, com ela, a diminuição da violência.


A mediação, ao lado de outras técnicas de edificação do consenso – a conciliação e a negociação -, pode ser manejada por agentes efetivamente capacitados para tal função e adotada tanto nas demandas pré-processuais quanto nas já judicializadas. O atual arcabouço legal permite, pois, que as instâncias judiciárias sensíveis a novos paradigmas viabilizem um sistema de múltiplas portas que possa gerar um choque de eficácia na gestão judiciária. Indispensável, pois, a destinação de recursos para intensificar as possibilidades de acesso e, sobretudo, qualificar a prestação jurisdicional.


Somente após a consolidação de múltiplas experiências em ní­vel nacional É que haverá elementos para eventual proposta legislativa que regulamente a matéria. Vencidos os desafios institucionais para a implantação do sistema, caberá à  sociedade, que legitimamente anseia por justiça e paz, intensa participação para que o exercí­cio do diálogo e do consenso colabore na construção de uma sociedade mais pacífica, coesa e solidária.


Para a abertura dessas múltiplass portas, não se pode conceber a paz social sem a paz jurí­dica e, por meio da consciência coletiva do dever individual e respeito mútuo, atinge-se uma convivência humana sem diferenças geradoras de conflitos. É o dialogo e a conduta assertiva, ensinados desde os primeiros passos e em todos os cantos, que têm a condição de conduzir a humanidade ao equilí­brio da vida harmoniosa.


Idade cede lugar à  sintonia de objetivos e os rumos da beligerância podem ser abandonados para dar lugar à Justiça doce, que respeita a diversidade em detrimento da adversidade. Descortina-se, assim, uma nova estrada que todos podem construir, na busca do abrandamento dos conflitos existenciais e sociais, com a utilização do verdadeiro instrumento e agente da transformação – o dialogo conduzido pelo mediador – no lugar da sentença que corta a carne viva.




Notas:

[1] Artigo publicado em 24.6.08 na Folha de S. Paulo


Informações Sobre os Autores

Nancy Andrighi

Ministra do STJ

Glaucia Falsarella Foley

Juí¬za Coordenadora do Programa Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça do DF


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