Socioafetividade: uma análise sobre a possibilidade de deferimento do pedido de regulamentação de visitas elaborado pelo pai afetivo sem vínculo jurídico

Resumo: O presente artigo busca analisar a possibilidade de deferimento do pedido de regulamentação de visitas elaborado por pai socioafetivo. Verificou-se que doutrina e jurisprudência atribuem como fundamento do direito de visita o vínculo de afeto existente entre visitante e visitado, de modo que o parentesco não influencia substancialmente no deferimento do pedido. Concluiu-se, portanto, que uma vez demonstrados os requisitos que corroboram a existência de socioafetividade no âmbito familiar, inegável a possibilidade de que pai e filho afetivos mantenham o convívio através da regulamentação de visitas.[1]

Palavras-chave: Direito de família. Direito de visita. Paternidade.

Abstract: This article aims to examine the possibility of granting the application of rules of hits produced by socio-emotional parent. It was found that the doctrine and jurisprudence attribute the foundation of the right to visit the bond of affection between visitor and visited, so that kinship does not substantially affect the granting of the application. It was concluded therefore that since the requirements stated that corroborate the existence of socio-emotional in the family, undeniable the possibility of parent and child maintain emotional interaction through regulation of visits.

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Keywords: Family law. Right of visit. Fatherhood.

Sumário: Introdução. 2 A evolução do direito de família e a constitucionalização das relações familiares. 2.1 Conceito de direito de família. 2.2 A família como base da sociedade: sua origem e evolução. 2.2.1 Da família patriarcal e hierarquizada. 2.2.2 A família no Código Civil de 1916. 2.2.3 A nova ordem constitucional e suas consequências no direito de família. 2.3 Da entidade familiar. 2.3.1 A interpretação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 no que tange às entidades familiares. 2.3.2 Casamento. 2.3.3 União estável. 2.3.4 Família monoparental. 2.4 Família pós-moderna: seus rumos e desafios. 3 Filiação socioafetiva: o afeto como instituto jurídico tutelado pelo estado. 3.1 Filiação e seus aspectos. 3.1.1 Conceito de filiação. 3.1.1.1 Princípio da igualdade de filiação. 3.1.2 Breve histórico. 3.1.3 As espécies de parentesco abarcadas pelo Código Civil de 2002. 3.1.3.1 O parentesco resultante de “outra origem”. 3.2 A família baseada no afeto e a paternidade socioafetiva propriamente dita: uma nova dimensão das relações parentais. 3.2.2 Espécies de filiação socioafetiva. 3.2.2.1 A adoção judicial (Lei 12.010/09). 3.2.2.2 A adoção à brasileira ou adoção simulada. 3.2.2.3 A inseminação artificial heteróloga. 3.2.2.5 Os filhos de criação: a filiação socioafetiva sem vínculo jurídico propriamente dita. 3.2.3 Posse do estado de filho. 3.3 A sobreposição da paternidade socioafetiva ante a biológica. 4 Sociofetividade: uma análise sobre a possibilidade de deferimento do pedido de regulamentação de visitas elaborado pelo pai afetivo sem vínculo jurídico. 4.1 Princípios relativos ao direito de família. 4.1.1 Princípio da dignidade da pessoa humana. 4.1.2 Princípio da afetividade. 4.1.3 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. 4.1.4 Princípio da convivência familiar e comunitária. 4.2 Do direito de visita. 4.2.1 Conceito do direito de visita. 4.2.2 Natureza jurídica do direito de visita. 4.2.2.1 Do ponto de vista dos pais. 4.2.2.2 Do ponto de vista do visitado. 4.2.3 Fundamento do direito de visita. 4.2.2 O direito de visita de terceiro: o pai socioafetivo sem vínculo jurídico. 4.2.5 Considerações finais. Conclusão. Referências

Introdução: O presente artigo busca verificar a possibilidade de deferimento do pedido de regulamentação de visitas elaborado pelo pai socioafetivo, em face daquele que por longo período fora criado como se seu filho fosse (filho afetivo).

Para tanto, delinear-se-á o tema conforme o disposto nos tópicos seguintes:

No primeiro capítulo será analisada a evolução do direito de família ao longo dos séculos, bem como se delimitará as entidades familiares abarcadas pela Constituição Federal de 1988.

No capítulo seguinte, delinear-se-á a socioafetividade, bem como serão enumeradas suas espécies e o entendimento de doutrinadores e Tribunais pátrios sobre a relevância da afetividade no âmbito familiar.

No terceiro e último capítulo explanar-se-á sobre o direito de visita propriamente dito, conceituar-se-á princípios que consubstanciam a defesa do tema ora proposto e, por fim, as conclusões obtidas serão delineadas.

2 A evolução do direito de família e a constitucionalização das relações familiares

2.1 Conceito de direito de família

Inicialmente, faz-se necessário considerar que o direito de família, de todos os ramos do Direito, é aquele que está mais intimamente ligado à própria vida, haja vista que todos nós somos frutos de um organismo familiar e a ele permanecemos vinculados, ainda que venhamos a constituir nova família pelo casamento ou pela união estável (GONÇALVES, 2011, p. 17).

Beviláquia (1937 apud VENOSA, 2009, p. 9) conceituou o direito de família como sendo “o complexo das normas, que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos, que dele resultam, as relações pessoais e econômicas da sociedade conjugal, a dissolução desta, as relações entre pais e filhos, o vínculo do parentesco e os institutos complementares da tutela e curatela”.

Observa-se, no entanto, que para os dias de hoje tal definição encontra-se incompleta, tendo em vista a imprescindibilidade de o direito de família abarcar normas que regulem também as uniões sem casamento.

Venosa (2009, p.10) leciona que o direito de família "é o ramo do direito civil integrado pelo conjunto de normas que regulam as relações jurídicas familiares, orientado por elevados interesses morais e bem-estar social”.

Destarte, pode-se concluir que o Estado tem permanente interesse no direcionamento da família, visto que esta é célula básica da sociedade e, por isso, dedica-lhe proteção especial (VENOSA, 2009, p. 10).

Nesse sentido, compartilhamos do entendimento de Dias (2010, p. 29) a qual disserta: “a família é o primeiro agente socializador do ser humano. De há muito deixou de ser uma célula do Estado, e é hoje encarada como uma célula da sociedade. É cantada e decantada como a base da sociedade e, por essa razão, recebe especial atenção do Estado. Sempre se considerou que a maior missão do Estado é preservar o organismo familiar sobre o qual repousam suas bases”.

O ordenamento jurídico deve, portanto, acompanhar a realidade social e contemplar as inquietações da família contemporânea, o que gera a necessidade constante de oxigenação das leis (DIAS, 2010, p. 29), para que estas não restem obsoletas.

A seguir, construiremos um breve relato acerca da evolução da entidade familiar ao longo dos séculos.

2.2 A família como base da sociedade: sua origem e evolução

Durante séculos a tradição jurídica ocidental identificou a família como a realidade social fruto do casamento (ROCHA, 2009, p. 9). A lei nunca se preocupou em definir a família, apenas a identificava como “um conjunto de pessoas ligadas a um casal unido pelo vínculo do matrimônio” (DIAS, 2001).

Contudo, é sabido que nos tempos contemporâneos não há mais espaço para uma conceituação tão restrita de um organismo que sofreu imensuráveis transformações no curso dos séculos.

O envolvimento afetivo entre os membros de uma mesma família ganhou relevância nunca antes experimentada e fez surgir modalidades conceituais de família bastante distantes das civilizações do passado (VENOSA, 2009, p.3).

Desta feita, analisar-se-á nos tópicos seguintes, a mudança do paradigma familiar frente ao surgimento da nova ordem constitucional.  

2.2.1 Da família patriarcal e hierarquizada

A família patriarcal ocupou um lugar de proeminente destaque durante um período considerável do direito de família brasileiro (SOUZA, 2010). Neste norte, Dias (2010, p. 28) sustenta que “em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio”.

Historicamente, a família sempre esteve ligada à ideia de instituição sacralizada e indissolúvel. A ideologia patriarcal somente reconhecia a família matrimonializada, hierarquizada, patrimonializada e heterossexual, atendendo à moral conservadora de outrora, há muito superada pelo tempo (DIAS, 2010).

O paradigma ocidental da família está fortemente assentado no modelo romano, o qual tinha como principal característica a concentração de todo o poder na figura do pater familias (SOUZA, 2010). Este era o senhor absoluto de sua casa e exercia total autoridade sobre a esposa e os filhos, cumprindo à mulher apenas zelar pelos serviços domésticos e cuidar da prole.

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Da lição de Welter (2003 apud SOUZA, 2010, p. 13) extrai-se que “no Brasil, na França e no mundo ocidental, a organização familiar está edificada com lastro na família romana, eminentemente patriarcal, em que a autoridade paterna era praticamente incontestável”.

Ainda nesse período, a família tinha um caráter eminentemente rural, sendo integrada por todos os parentes e com forte incentivo à procriação. Sabido que era uma entidade patrimonializada, todos os seus membros tinham um caráter produtivo para o trabalho, de modo que a expansão da família significava uma melhor condição de vida para seus integrantes (SOUZA, 2010).

No entanto, no decorrer dos tempos e na medida em que a rígida estrutura hierárquica foi sendo substituída pela coordenação e comunhão de interesses de vida, “a família patriarcal, que a legislação civil brasileira tomou como modelo, desde a Colônia, o Império e durante boa parte do século XX, entrou em crise, culminando com sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1988” (LÔBO, 2008. p. 1).

Eis sobre o que dissertaremos nos tópicos seguintes.

.2.2 A família no Código Civil de 1916

Em estudo sobre a evolução legislativa do Direito de Família ao longo dos anos, Dias (2010, p. 30) produz resumo pontual no qual disserta: “o Código Civil de 1916 regulava a família do início do século passado, constituída unicamente pelo matrimônio. Em sua versão original, trazia uma estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao grupo originário do casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinções entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações. As referências feitas aos vínculos extramatrimoniais e aos filhos ilegítimos eram punitivas e serviam exclusivamente para excluir direitos, numa vã tentativa de preservação do casamento”.

O Código Civil de 1916 estabelecia, em seu artigo 229, que o efeito primordial do casamento era a criação da família legítima. Sobre o tema, Gonçalves (2011, p. 28) indica: “a família estabelecida fora do casamento era considerada ilegítima e só mencionada em alguns dispositivos que faziam restrições a esse modo de convivência, então chamado concubinato, proibindo-se, por exemplo, doações ou benefícios testamentários do homem casado à concubina, ou a inclusão desta como beneficiária de contrato de seguro de vida”.

Em crítica sobre a escolha do legislador de 1916, Venosa (2009, p. 21) preleciona: “o legislador do Código Civil de 1916 ignorou a família ilegítima, aquela constituída sem casamento, fazendo apenas raras menções ao então chamado concubinato unicamente no propósito de proteger a família legítima, nunca reconhecendo direitos à união de fato. O estágio social da época impedia o legislador de reconhecer que a grande maioria das famílias brasileiras era unida sem o vínculo do casamento”.

No tocante aos filhos, estabelecia o Código revogado que aqueles que não procediam das chamadas justas núpcias, mas de relações extramatrimoniais, “eram classificados como ilegítimos e não tinham sua filiação assegurada pela lei, podendo ser naturais e espúrios” (GONÇALVES, 2011, p. 29). Acerca desta classificação, Gonçalves (2011, p. 29) prossegue explicando: ”os primeiros eram os que nasciam de homem e mulher entre os quais não havia impedimento matrimonial. Os espúrios eram os nascidos de pais impedidos de se casar entre si em decorrência de parentesco, afinidade ou casamento anterior e se dividiam em adulterinos e incestuosos. Somente os filhos naturais podiam ser reconhecidos, embora apenas os legitimados pelo casamento dos pais, após sua concepção ou nascimento, fossem em tudo equiparados aos legítimos (artigo 352)”.

O mesmo Código trazia ainda em seu bojo a veemente proibição de reconhecimento dos filhos adulterinos e incestuosos, sendo este dispositivo revogado apenas em 1989 por meio da Lei nº 7.841, “depois que a Constituição Federal de 1988 proibiu, no artigo 227, §6º, qualquer designação discriminatória relativa à filiação, proclamando a igualdade de direitos e qualificações entre os filhos, havidos ou não da relação do casamento” (GONÇALVES, 2011, p. 29).

Em suma, podemos concluir que a visão da família trazida no aludido Código era altamente discriminatória, visto que o grupo familiar estava restrito ao originado pelo casamento. A constituição da família ocorria exclusivamente pelo matrimônio, de modo que a sua dissolução somente foi permitida a partir da promulgação da Lei do Divórcio, o que se deu apenas no ano de 1977 (DIAS, 2007, p. 30 apud SOUZA, 2010, p. 15).

Salienta-se ainda, que a maioria dos dispositivos do revogado Código, no tocante às relações familiares, “tem nítido conteúdo patrimonializante, relegando ao segundo plano o elemento que deveria ser o vetor norteador da maior parte dos dispositivos legais, qual seja, o elemento pessoal e afetivo” (OLIVEIRA, 2002, p. 239). No mesmo norte, o doutrinador prossegue concluindo que “este código provocou uma inegável inversão de valores, pois aquilo que deveria ser acessório tomou o lugar do que é o principal, vale dizer, o elemento afetivo, cuja função é a manutenção do grupo familiar” (OLIVEIRA, 2002, p. 239-246).

No que se refere à direção da sociedade conjugal, o antigo Código Civil dispunha que esta era exercida com exclusividade pelo marido, de modo que “pertencia a ele o poder de direção de toda a família, cabendo à esposa e aos filhos aceitar as determinações advindas do chefe do lar” (MADALENO, 2001, p. 115 apud SOUZA, 2010, p. 15).

É sabido que a entidade familiar passou por inúmeras mutações ao longo dos anos e, por tal motivo, a legislação precisou se transformar para acompanhar a realidade social. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, observou-se a plena desarmonia entre o disposto no Código Civil de 1916 – legislação engessada nos moldes patriarcais de família – e a Carta Magna – Constituição Cidadã a qual abarcou novas realidades de família -.

Da lição de Lôbo (2008, p. 4) colhe-se: “se é verdade que entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta, a Constituição do Estado Social de 1988 foi a que mais interveio nas relações familiares e a que mais as libertou. Consumou-se a redução ou menos eliminação, ao menos no plano jurídico, do elemento despótico existente no seio família, no Brasil”.

Às portas do século XXI, não havia mais espaço para uma visão tão autoritarista. A evolução social no tocante ao direito de família, ocorrida após a promulgação da Constituição Federal, exigiu que a legislação infraconstitucional se adequasse aos novos paradigmas impostos, de modo que a criação de um novo Código Civil baseado na nova realidade das famílias era medida que se impunha.

A respeito do divisor de águas que foi a promulgação da Constituição Federal de 1988, trataremos no item seguinte.

2.2.3 A nova ordem constitucional e suas consequências no direito de família

A nova ordem constitucional superou o antigo modelo e ocasionou uma profunda revolução no direito de família brasileiro, pois ampliou a proteção estatal à entidade familiar e estendeu o seu conceito. A Constituição Cidadã de 1988 abarcou a nova realidade social ao reconhecer a união estável como entidade familiar, igualar os direito e deveres dos cônjuges e dispensar especial proteção às pessoas dos filhos vedando qualquer espécie de discriminação.

Essa resposta social às necessidades dos indivíduos apresentou-se convergente com o Estado Democrático de Direito e foi embasada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Sobre estas inovações, preleciona Venosa (2009, p. 7): “em nosso país, a Constituição de 1988 representou, sem dúvida, o grande divisor de águas do direito privado, especialmente, mas não exclusivamente, nas normas de direito de família. O reconhecimento da união estável como entidade familiar (art. 226, §4º) representou um grande passo jurídico e sociológico em nosso meio. É nesse diploma que se encontram princípios expressos acerca do respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Nesse campo, situam-se os institutos do direito de família, o mais humano dos direitos, como a proteção à pessoa dos filhos, direitos e deveres entre cônjuges, igualdade de tratamento entre estes etc. Foi essa Carta Magna que também alçou a princípio constitucional da igualdade jurídica dos cônjuges e dos companheiros (art. 226, §5º) e igualdade jurídica absoluta dos filhos, não importando sua origem ou a modalidade de vínculo (art. 227, §6º). Ainda, a Constituição de 1988 escreve o princípio da paternidade responsável e o respectivo planejamento familiar (art. 226, §7º)”.

Salienta-se ainda, que o legislador constitucional, traduzindo uma conjuntura social cada vez mais freqüente, foi mais além ao reconhecer também sob proteção do Estado a chamada família monoparental, sendo esta a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Vale transcrever o parágrafo 4º do artigo 226 da Constituição: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. […] § 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. […]” (BRASIL, 1988).

Acerca do dispositivo, Dias (2001) observa: “a Constituição Federal de 1988 alargou o conceito de família, passando a integrá-lo as relações monoparentais, de um pai com os seus filhos. Esse redimensionamento, calcado na realidade que se impôs, acabou afastando da ideia de família o pressuposto de casamento. Para sua configuração, deixou-se de exigir a necessidade de existência de um par, o que, conseqüentemente, subtraiu de sua finalidade a proliferação”.

Encerrando o período onde os olhos permaneciam voltados ao sistema patriarcal, com o advento da Constituição de 1988 o relacionamento entre todos os membros da família sofreu transformações para voltar-se à realização dos interesses dos indivíduos. Assim sendo, a afetividade dentro do ambiente familiar passou a gozar de relevância nunca antes experimentada pelo ordenamento jurídico pátrio (CARDOSO; KLEIN, 2004, p. 100).

No intuito de corroborar a ideia de família como meio de realização pessoal do indivíduo, declarou-se a igualdade entre os filhos, inclusive do que tange aos direitos decorrentes da filiação, implicando a análise do interesse do menor. A partir da promulgação da Constituição, o bem-estar do menor deve ser assegurado em primeiro lugar nas decisões judiciais.

Os termos pejorativos até então aplicados pelo Código Civil de 1916 foram extirpados e em 1990 surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual dispõe sobre a proteção integral às crianças e adolescentes.

Não se pode olvidar que todas essas inovações foram fundamentadas no preceito basilar da dignidade da pessoa humana “que impõe o reconhecimento de que o valor do indivíduo enquanto ser humano prevalece sobre todos os demais” (MOTTA FILHO; BARCHET, 2009, p. 85). Trataremos com mais propriedade sobre esse princípio no terceiro capítulo.

Há que se notar, portanto, que o direito de família fora totalmente remodelado com o surgimento da Constituição de 1988, saindo do foco o indivíduo-proprietário para o surgimento do indivíduo como pessoa humana, abrindo-se um novo paradigma que é a afetividade.

Corrobora este pensamento o doutrinador Almeida (2002): “a Constituição Federal de 1988 foi, efetivamente, um divisor de águas do que concerne aos valores da família contemporânea brasileira. A iniciar pelo artigo 1º, III, que traduz o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, somado ao artigo 3º, I, do mesmo diploma legal, que consagra o princípio da solidariedade, parte-se rumo ao fenômeno da repersonalização das relações entre pais e filhos, deixando para trás o ranço da patrimonialização que sempre os ligou, para dar espaço a uma nova ordem axiológica, a um novo sujeito de direito nas relações familiares e, até mesmo, a uma nova face da paternidade: o vínculo socioafetivo que une pais e filhos, independentemente de vínculos biológicos”.

As consequências do surgimento de uma nova ordem constitucional também repercutiram no Código Civil de 2002, o qual buscou incorporar as mudanças e atualizar a essência do direito de família. No entanto, em que pese ter trazido em seu bojo, por exemplo, diretrizes para a constituição de união estável, Dias (2010) entende que o novo Código manteve preservada a estrutura do Código Civil de 1916. A mesma doutrinadora ressalta ainda: “não se pode dizer que é um código novo – é um código antigo com um novo texto. Tenta, sem muito sucesso, afeiçoar-se às profundas alterações por que passou a família do século XX. Talvez o grande ganho tenha sido excluir expressões e conceitos que causavam grande mal-estar e não mais podiam conviver com a nova estrutura jurídica e a moderna conformação da sociedade. Foram sepultados todos aqueles dispositivos que já era letra morta e que retratavam ranços e preconceitos discriminatórios. Assim as referencias desigualitárias entre o homem e a mulher, as adjetivações da filiação etc” (DIAS, 2010, p. 32).

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Confirma-se o entendimento da eminente doutrinadora ao percebermos que o Código Civil de 2002 preferiu não disciplinar, por exemplo, as diretrizes para as famílias monoparentais e aquelas formadas precipuamente nos laços do afeto, ainda que a constituição destes modelos de família seja realidade cada vez mais corriqueira em nossa sociedade.

Valemo-nos do ensejo para estudar no tópico seguinte as entidades familiares abarcadas pela Constituição Federal de 1988, tendo em vista ser este entendimento ponto nodal para a compreensão deste trabalho.

2.3 Da entidade familiar

Faz-se imperioso destacar que a instituição familiar exerce importância fundamental na formação do indivíduo e de sua personalidade única, haja vista ter o condão de orientá-lo para que ocupe determinado locus dentro da sociedade.

Por tal motivo, a entidade familiar deve ser vista sob o aspecto da “satisfação pessoal de seus membros e não meramente como forma de imposição de interesses que refletem uma visão ultrapassada e patrimonialista” (SMARANDESCU, 2008) que não merece amparo nos dias de hoje.

Como dito em tópicos anteriores, a instituição familiar evoluiu ao longo dos tempos e experimentou diversos rumos até culminar com o modelo da família contemporânea. Percebe-se que a evolução da estrutura familiar segue para relações baseadas, cada vez mais, no sentimento e na afeição mútuos, ou seja, nos laços do afeto.

A sociedade percebeu que a família deve servir de instrumento para o bem estar de seus membros e não apenas como modelo formal a ser imposto aos indivíduos que em torno dela convivem muitas vezes insatisfeitos com tamanho conservadorismo (SMARANDESCU, 2008).

Dias (2010, p. 10) trata com propriedade sobre o tema: “cada vez mais a ideia de família se afasta da estrutura do casamento. A possibilidade do divórcio e o estabelecimento de novas formas de convívio revolucionaram o conceito sacralizado de matrimônio. A existência de outras entidades familiares e a faculdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação na própria família. Assim, na busca do conceito de entidade familiar, é necessário ter uma visão pluralista, que albergue os mais diversos arranjos vivenciais. É preciso achar o elemento que autorize reconhecer a origem do relacionamento das pessoas. O grande desafio dos dias de hoje é descobrir o toque diferenciador das estruturas interpessoais que permita inseri-la em um conceito mais amplo de família. Esse ponto de identificação é o afeto. Envolvimento emocional que subtrai um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade – e o conduz para do direito das famílias, cujo elemento estruturante é o sentimento de amor, e elo afetivo que funde as almas e confunde os patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos”.

É sabido, portanto, que o conceito de entidade familiar transcende o matrimônio, de modo que sua constituição deriva dos laços do afeto e da vontade mútua de oferecer a seus integrantes uma vida digna.

“A família moderna é pluralizada e permite tantas quantas forem suas formas de constituição. É multifacetada, de caráter democrático e desprovido de preconceitos, tendo como fim principal a satisfação de seus membros” (SMARANDESCU, 2008).

Isto posto, conclui-se que o modelo de família atual não tem uma estrutura predeterminada e permite a sua formação de acordo com os laços de afeto entre as pessoas que o compõem.  Simplesmente não há mais paradigmas.

2.3.1 A interpretação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 no que tange às entidades familiares

Em princípio, cumpre transcrever o artigo 226 da Constituição Federal (BRASIL, 1988): Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º – O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.  § 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º – Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. § 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

A interpretação dominante do artigo 226 da Constituição, entre os civilistas, é no sentido de tutelar apenas os três tipos de entidades familiares, explicitamente previstos – casamento, união estável e entidade monoparental -, configurando numerus clausus (LÔBO, 2008).

De encontro a esta interpretação, Lôbo (2008, p. 59) ressalta: “a questão que se impõe diz respeito à inclusão ou exclusão dos demais tipos de entidades familiares. A análise detida da dimensão e do alcance das normas e princípios contidos no artigo 226 da Constituição, em face dos critérios de interpretação constitucional […], leva ao convencimento da superação do numerus clausus das entidades familiares”.

O mesmo doutrinador prossegue expondo que “a exclusão não está na Constituição, mas na interpretação que se lhe dá” (LÔBO, 2008, p. 60), haja vista que “cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em virtude dos requisitos de constituição e efeitos específicos, não estando uma equiparada ou condicionada aos requisitos da outra” (LÔBO, 2008, p. 60).

O autor persiste ensinando: “quando a legislação infraconstitucional não cuida de determinada entidade, ela é regida pelo princípios e regras constitucionais, pelas regras e princípios gerais do direito de família aplicáveis e pela contemplação de suas especificidades. Não pode haver, portanto, regras únicas, segundo modelos únicos ou preferenciais. O que as unifica é a função de espelho de afetividade e da tutela da realização da personalidade das pessoas que a integram; em outras palavras, o lugar dos afetos, da formação social onde se pode nascer, ser, amadurecer e desenvolver os valores da pessoa” (LÔBO, 2008, p. 60).

O estudo detido do texto constitucional mostra que nele há três preceitos, os quais, uma vez interpretados, indicam que as entidades familiares não referidas explicitamente também estão incluídas em seu bojo.

Nos moldes da lição de Lôbo (2008), passemos ao estudo destes preceitos:

a) Artigo 226 – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado;

b) Artigo 226, §4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes;

c) Artigo 226, §8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

No caput do artigo 226 operou-se a mais suntuosa transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família, visto que não há qualquer menção a determinado tipo de família, como ocorreu com as Constituições revogadas (LÔBO, 2008, p. 60).

De acordo com o entendimento de Lôbo (2008, p. 60): “ao suprimir a locução “constituída pelo casamento”, sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família constituída socialmente. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos”.

Como já explanado, anteriormente a finalidade da norma era reprimir as famílias “ilícitas” – deste modo consideradas todas aquelas que não estivessem sob o véu do matrimônio -. Hoje, no entanto, “o objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas humanas que a integram” (LÔBO, 2008, p. 60), tendo em vista a imperiosidade do princípio da dignidade humana.

Por conseguinte, o caput do artigo 226 deve ser considerado cláusula geral de inclusão, não sendo cabível excluir da tutela jurídica qualquer entidade que esteja imbuída em afetividade.

A respeito do §4º do mesmo artigo, Lôbo (2008, p. 61) preleciona que esta “integra-se à cláusula geral de inclusão, sendo esse o sentido do termo ‘também’ nela contido. ‘Também’ tem o significado de igualmente, da mesma forma, de inclusão de fatos sem exclusão de outros. Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto (grifo nosso)”.

Por fim, pode-se concluir que as entidades familiares explicitadas nos parágrafos do artigo 226 da Constituição configuram um rol exemplificativo e, por serem as mais comuns, merecerem especial referência.

Os demais modelos de entidades familiares que surgiram ao longo da evolução das famílias – por exemplo, a família mosaico e eudemonista, as quais trataremos nos capítulos seguintes -, “são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família, indicado no caput” (LÔBO, 2008, p. 61).

Nos tópicos seguintes, conceituaremos alguns meios de formação da entidade familiar.

2.3.2 Casamento

Inúmeras são as definições de casamento. Leite (2004, p. 47) defende que “casamento é o vínculo jurídico entre o homem e a mulher que se unem material e espiritualmente para constituírem uma família. Estes são os elementos básicos, fundamentais e lapidares do casamento”.

No entender de Venosa (2009, p. 25): “o casamento é o centro do direito de família. Dele irradiam suas normas fundamentais. Sua importância, como negócio jurídico formal, vai desde as formalidades que antecedem sua celebração, passando pelo ato material de conclusão até os efeitos do negócio que deságuam nas relações entre os cônjuges, os deveres recíprocos, a criação e assistência material e espiritual recíproca e da prole etc”.

O casamento estabelece um vínculo jurídico entre o homem e a mulher, objetivando uma convivência de auxílio moral e material, além da criação e amparo da prole – se houver. A plena comunhão de vida é o efeito por excelência do casamento.

“Há um sentido ético e moral no casamento, quando não metafísico, que extrapola posições que veem nele, de forma piegas, mera regularização de relações sexuais” (VENOSA, 2009, p. 27).

O Código Civil (BRASIL, 2002) pátrio não traz um conceito preciso de casamento, limitando-se apenas a dispor em seu artigo 1.511 que “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. Nos artigos subseqüentes, o mesmo Código trata de todos os elementos que devem ser observados para que o casamento seja válido, como por exemplo, capacidade, impedimentos, causas suspensivas, habilitação, forma de celebração etc.

Considera-se casamento tanto o ato de celebração do matrimônio como a relação jurídica que dele surge (relação matrimonial). O sentido da relação matrimonial melhor se expressa pela noção de comunhão de vidas e conseqüente vivência do afeto mútuo. Já o ato do casamento cria um vínculo entre os nubentes, que passam a gozar do estado de casados (DIAS, 2010).

O casamento reveste-se de diversas peculiaridades, dentre elas: é ato eminentemente solene (é ato repleto de solenidades que têm o condão de enfatizar a sua seriedade. Inobservadas as formalidades, o casamento torna-se ato inexistente); as normas que o regulamentam são de ordem pública (não podem ser derrogadas por convenções particulares); estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges; não comporta termo ou condição (é negócio jurídico puro e simples) e; permite liberdade de escolha do nubente (conseqüência natural do seu caráter pessoal) (GONÇALVES, 2011).

2.3.3 União estável

A união estável nasce da convivência. “O que se exige é a efetiva convivência more uxório, com características de união familiar, por um prazo que denote estabilidade e objetivo de manter a vida em comum entre o homem e a mulher assim compromissados” (DIAS, 2010, p. 170). Para Leite (2005, p. 418), a união estável “é sinônimo de família sem casamento”.

É sabido que há similitudes entre o casamento e a união estável. Ambas são estruturas embasadas no convívio originado em elo afetivo. A divergência existe apenas no modo de constituição. Enquanto o casamento tem seu início marcado pela celebração do matrimônio, a união estável não tem termo inicial estabelecido. “Nasce da consolidação do vínculo de convivência, do comprometimento mútuo, do entrelaçamento de vidas e do embaralhar de patrimônios” (DIAS, 2010, p. 171-172).

Dias (2010, p. 173) entende: “a lei não imprime à união estável contornos precisos, limitando-se a elencar suas características: convivência pública, contínua e duradoura estabelecida com o objetivo de constituição de família. Preocupa-se em identificar a relação pela presença de elementos de ordem objetiva, ainda que o essencial seja a existência de vínculo de afetividade, o desejo de constituir família”.

Como complemento do já definido na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), o Código Civil brasileiro (BRASIL, 2002) estabelece em seu artigo 1.723 que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

A ação de reconhecimento de união estável dispõe de uma carga exclusivamente declaratória, de modo que a sentença se limita a reconhecer que a relação de fato existiu e o termo inicial e final do relacionamento.

Já a ação de dissolução de união estável, “reconhece que a união existiu e identifica o período de convivência em face dos efeitos patrimoniais, pois os bens adquiridos, durante o tempo de vida em comum, pertencem a ambos, ensejando partição igualitária” (DIAS, 2010, p. 189-190).

Cumpre ressaltar que, em maio de 2011, os ministros do Supremo Tribunal Federal, ao julgarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, reconheceram, por unanimidade, a união estável para casais do mesmo sexo. 

Desta forma, a entidade familiar formada por casal do mesmo sexo deixou de ser considerada uma sociedade de fato para passar a merecer a mesma proteção estatal dispensada às demais formas de constituição familiar.

Como terceira forma de composição familiar amparada constitucionalmente, temos a família monoparental a qual será analisada a seguir.

2.3.4 Família monoparental

Conceitua-se a família monoparental como aquela formada por um dos pais e seus filhos menores, de modo que a causa para tanto pode estar em ato de própria vontade – mãe solteira, inseminação artificial – ou em inúmeras situações circunstanciais – viuvez, separação de fato, divórcio -. É sabido, no entanto, que independentemente da causa, “os efeitos jurídicos que produzem são os mesmos, notadamente quanto ao poder familiar e ao estado de filiação” (LÔBO, 2008, p. 66).

A família monoparental recebeu tutela explícita na Constituição, todavia não é dotada de estatuto jurídico próprio, diferentemente do casamento e da união estável.

Sobre o tema, Lôbo (2008, p. 67) explana que “as regras de direito de família que lhe são aplicáveis, enquanto composição singular de um dos pais e seus filhos, são as atinentes às relações de parentesco, principalmente da filiação e do exercício do poder familiar, que neste ponto são comuns às das demais entidades familiares. Incidem-lhe sem distinção ou discriminação as mesmas normas de direito de família nas relações recíprocas entre pais e filhos, aplicáveis ao casamento e à união estável, considerado o fato de integrá-la apenas um dos pais. Quando os filhos atingem a maioridade ou são emancipados, deixa de existir o poder familiar, reduzindo-se a entidade monoparental apenas às relações de parentesco, inclusive quanto ao direito aos alimentos, em caso de conflito. Também se lhe aplica, sem restrições, a impenhorabilidade do bem de família, entendido como sua moradia”.

Ante aos fatos expostos anteriormente, podemos dizer que a primeira característica da família monoparental é, portanto, a presença de um só genitor, de modo que apenas este desempenha a função parental, a qual em uma família biparental, é cumprida em conjunto.

Em seguida, temos a presença da prole. “As crianças deste modo familiar tem de crescer e conviver com situações e problemas diferentes advindos da monoparentalidade, sendo o primeiro deles, a ausência de um dos pais no convívio cotidiano” (SANTOS, 2008).

Por derradeiro, temos a situação, a causa que originou tal modelo de entidade familiar. “Esta pode ser fruto de uma decisão voluntária ou involuntária do genitor. Existem várias possibilidades de situações que originam a monoparentalidade, entre elas o divórcio, a viuvez, inseminação artificial etc” (SANTOS, 2008).

Por fim, reunindo todas estas características, podemos definir a família monoparental, “como a entidade familiar compreendida por um único progenitor que cria e educa sozinho seus filhos, sendo esta unidade decorrente de uma situação voluntária ou não” (SANTOS, 2008) de modo que, por ser situação cada vez mais frequente nas famílias brasileiras, também mereceu amparo constitucional.

Nó tópico seguinte, finalizaremos este capítulo com breves conclusões sobre o modelo atual de família.

2.4 Família pós-moderna: seus rumos e desafios

Ante a tudo o que foi exposto neste primeiro capítulo, podemos constatar que o conceito de família sofreu profundas transformações a partir da promulgação da Constituição de 1988.

A família retratada no revogado Código Civil de 1916 era patriarcal e hierarquizada, fundada exclusivamente no casamento e nos filhos oriundos da relação matrimonial. Todavia, este conceito de família não tem mais espaço nos dias atuais. Os paradigmas deixaram de existir “a partir do momento em que nos deparamos com outra realidade social; um novo conceito de família onde pais e filhos são unidos pelos laços do amor. Passou-se a visualizar os vínculos familiares pela ótica da afetividade” (GUIMARÃES, 2008).

Doutrina e jurisprudência já entendem que a afetividade, os laços de afeto e o carinho mútuo são as diretrizes da família contemporânea, sendo superiores ao mero vínculo biológico.

3 Filiação socioafetiva: o afeto como instituto jurídico tutelado pelo estado

No capítulo anterior discutimos basicamente sobre a entidade familiar, sua evolução histórica e amparo jurídico. Neste segundo capítulo, passaremos ao estudo da socioafetividade, seus desdobramentos e consequências jurídicas.

É sabido que a ideia formal de família – constituída por pai, mãe e filhos frutos da relação matrimonial – há muito vem cedendo lugar à certeza de que “é o envolvimento afetivo que garante um espaço de individualidade e assegura uma auréola de privacidade indispensável ao pleno desenvolvimento do ser humano” (DIAS, 2010, p. 55).

A família eudemonista surge neste diapasão: a entidade familiar deve ser reconhecida pelo envolvimento afetivo dos seus integrantes, de modo que a comunhão de vida e de perspectivas deve ser seu norte identificador.

A expressão “eudemonista” provém do grego e tem ligação com o adjetivo “feliz”. Sua utilização remete à doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o supedâneo da conduta humana moral, o que quer dizer que entendem como moralmente boas todas as condutas que deságuam na felicidade plena (FERREIRA, p. 592 apud DIAS, 2010, p. 55).

Dias (2010, p. 55), precursora desta doutrina, ensina que “a busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade ensejam o reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida. Esse, dos novos vértices sociais, é o mais inovador” (grifo nosso).

A doutrinadora prossegue pontuando brilhantemente: “o novo modelo de família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado” (DIAS, 2010, p. 43).

Conclui-se, por conseguinte, que a absorção do princípio eudemonista enseja o redirecionamento do foco da instituição para o indivíduo integrante da entidade familiar, de modo que a busca da sua realização pessoal é o marco do novel formato democrático da família, “pois ninguém mais deseja e ninguém mais pode ficar confinado à mesa familiar” (MADALENO, p. 20 apud DIAS, 2010, p. 55).

Prosseguindo neste norte, analisaremos neste capítulo a valia do afeto no âmbito familiar e a sua sobreposição ao vínculo meramente biológico, bem como ponderaremos as consequências que produz na relação filial.

3.1 Filiação e seus aspectos

Necessária se faz a análise da relação jurídica denominada ‘filiação’, bem como as consequências advindas de tal parentesco. Vejamos:

3.1.1 Conceito de filiação

Filiação procede do latim filiatio, que significa procedência, laço de parentesco dos filhos com relação aos pais etc (LÔBO, 2008, p. 192).

No entender de Gonçalves (2011, p. 318): “Filiação é a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou a receberam como se a tivessem gerado. Todas as regras sobre parentesco consanguíneo estruturam-se a partir da noção de filiação, pois a mais próxima, a mais importante, a principal relação de parentesco é a que se estabelece entre pais e filhos”.

Avaliação ainda mais exata traz Lôbo (2008, p. 192) ao prelecionar: “Filiação é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga. Quando a relação é considerada em face do pai, chama-se paternidade, quando em face da mãe, maternidade”.

De acordo com os ditames do Direito, a filiação é um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos. Já ante uma perspectiva mais ampla, a filiação compreende todas as relações que têm como sujeitos os pais no tocante aos filhos, bem como sua constituição, modificação e extinção. Sob este aspecto, portanto, podemos dizer que o direito de filiação abrange também o poder familiar que os pais exercem em relação aos filhos menores, assim como os direitos protetivos e assistenciais em geral (VENOSA, 2009).

O estudo da filiação exige que perpassemos brevemente pela análise do princípio da igualdade dos filhos.

3.1.1.1 Princípio da igualdade de filiação

Ensina o Código Civil (BRASIL, 2002), em seu artigo 1.596, que “os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. No entender de Lôbo (2008, p. 193), este enunciado “é ponto culminante da longa e penosa evolução por que passou a filiação, ao longo do século XX”. Por conseguinte, uma vez estabelecida absoluta igualdade entre todos os filhos, não se admite mais a retrógrada distinção entre filiação legítima, ilegítima ou proveniente de adoção.

Hoje são todos simplesmente filhos com iguais direitos e qualificações e sem adjetivações.

No tópico seguinte analisaremos a evolução histórica da filiação e pontuaremos acontecimentos que promoveram a instituição do princípio agora em tela e a consequente vedação do uso de termos discriminatórios.

3.1.2 Breve histórico

“Em nome da moral e dos bons costumes, a história do direito das famílias é uma história de exclusões” (DIAS, 2010, p. 75). O Código Civil de 1916, elaborado em época histórica de valores essencialmente patriarcais e individualistas, centrou suas normas e deu especial proteção à família considerada legítima – sendo esta aquela provinda do casamento, das justas núpcias -, e, “em paradoxo com a sociedade brasileira, formada em sua maioria por uniões informais” (VENOSA, 2009, p. 18), relegou à marginalização as famílias constituídas por outros meios (VENOSA, 2009).

Característica pontual deste período foi a “catalogação” dos filhos havidos fora da relação matrimonial. Ademais, era ignorada a possibilidade de estes terem reconhecidos os direitos advindos da relação filial. Em suma, além de nesta época os filhos serem adjetivados, estes não tinham acesso aos meios cabíveis para reclamar do genitor que assumisse as responsabilidades decorrentes do poder familiar.

Nos dizeres de Dias (2010, p. 75): “A tentativa era estimular o cumprimento do dever de fidelidade e inibir a prática do crime de adultério. A negativa de reconhecer os filhos havidos fora do casamento talvez seja o exemplo mais eloquente da tendência repressora do legislador, visando a impedir a procriação fora dos ‘sagrados laços do matrimônio’”.

A necessidade de preservar o núcleo familiar e, por conseguinte, o seu patrimônio, autorizava o legislador a fazer uso de terminologia plena de discriminação. Neste sentido, os filhos eram classificados em legítimos, legitimados e ilegítimos.

Os filhos considerados legítimos eram, por óbvio, aqueles concebidos sob o enlace do matrimônio. Quanto aos demais termos, o doutrinador Rodrigues (2004, p. 288) os conceitua da seguinte forma: “Os filhos havidos fora do casamento, isto é, os chamados filhos ilegítimos, distinguiam-se em naturais e espúrios. Naturais eram os filhos gerados por pessoa que, embora não casadas entre si, não estavam, de forma absolutamente dirimente, impedidas de se casar uma com a outra; espúrios eram os filhos provindos de pessoas que estavam impedidas de se casar uma com a outra, de forma absolutamente dirimente. Quando esse impedimento decorresse de parentesco, esses filhos espúrios eram chamados incestuosos; quando o impedimento derivasse do fato de um dos genitores já ser casado com outra pessoa, dizia-se que o filho espúrio era adulterino. Ainda, existia a legitimação segundo a qual um filho concebido fora do casamento passava a ter a condição de legítimo pelo superveniente matrimônio dos genitores”.

Pode-se constatar então, que esta classificação tinha como único critério norteador a circunstância de a prole proceder ou não de genitores casados entre si. Deste modo, “a situação conjugal do pai e da mãe refletia-se na identificação dos filhos: conferia-lhes ou subtraia-lhes não só o direito a identidade, mas também o direito à sobrevivência” (DIAS, 2010, p. 351).

A partir de meados do século XX, porém, nossa legislação, aderindo à tendência universal, foi sendo levemente alterada para que fossem introduzidos direitos familiares e sucessórios aos filhos provindos de relações extramatrimoniais. O ponto culminante desta mudança foi a Constituição de 1988 que, por sua vez, tratou de vedar expressamente qualquer qualificação relativa à filiação (VENOSA, 2009).

Anteriormente à promulgação da Constituição Federal, o advento de duas normas em especial, nos anos de 1942 (Dec.-lei nº 4.737) e 1949 (Lei nº 883), já apontavam mudanças relevantes – ainda que com ressalvas -. Ambas permitiam “o reconhecimento do filho havido fora do matrimônio, mas somente após a dissolução do casamento do genitor” (DIAS, 2010, p. 351).

A respeito destas modificações, Dias (2010, p. 351) disserta: “O máximo a que chegou o legislador foi conceder o direito de investigar a paternidade para o fim único de buscar alimentos, tramitando a ação em segredo de justiça. Ainda assim, tais filhos eram registrados como filhos ilegítimos e só tinham direito, a título de amparo social, à metade da herança que viesse a receber o filho legítimo ou legitimado”.

A vedação de reconhecimento dos filhos considerados ilegítimos foi alvo de progressivos abrandamentos e só veio a ser expressamente afastada no ano de 1989 – a Lei 7.841 expressamente revogou o artigo 358 do Código Civil de 1916, que vedava o reconhecimento dos filhos espúrios -. Nota-se, portanto, que chegou com atraso, pois “essa odiosa diferenciação já havia sido derrubada pela Constituição Federal, ao proibir tratamento discriminatório quanto à filiação” (DIAS, 2010, p. 351).

Com esta mudança de paradigma – cumpre aqui relembrar o princípio discutido no tópico anterior -, a regulamentação passou a ser do fato do nascimento, de modo que a filiação há que se estabelecer ainda que a concepção não tenha sido ética, haja vista que, a partir deste momento, todos são apenas filhos. Por conseguinte, todos devem ter os direitos oriundos da relação filial legalmente resguardados.

3.1.3 As espécies de parentesco abarcadas pelo Código Civil de 2002

“Parentesco é a relação jurídica estabelecida pela lei ou por decisão judicial entre uma pessoa e as demais que integram o grupo familiar, nos limites da lei” (LÔBO, 2008, p. 181). Sobre o tema, institui o artigo 1.593 do Código Civil pátrio (BRASIL, 2002): “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.

Refere-se o artigo citado a dois tipos de parentesco: o natural e o civil. Considera-se natural o parentesco que decorre da consanguinidade dos parentes, sendo, portanto, biológico. “Já o parentesco civil remete a ‘outra origem’, cujas espécies se enquadram na genérica expressão de socioafetividade, além do parentesco por afinidade” (LÔBO, 2008. p. 182).

Do conceito trazido por Leite (2004, p. 182-183), apreendemos que “o parentesco pode se originar da consanguinidade (também denominado, parentesco natural, porque ditado pela natureza, pelo sangue) ou da adoção (também denominado parentesco civil, porque decorre da lei)” (grifo nosso).

Prossegue o mesmo autor, lecionando: “O parentesco por consanguinidade […] é a relação que vincula entre si as pessoas que descendem do mesmo tronco ancestral. O parentesco civil é o decorrente da adoção, isto é, o vinculo legal que se estabelece à semelhança da filiação consanguínea, mas independente dos laços de sangue. É por força de uma ficção legal que se estabelece este parentesco. Ou, como pretende parte da doutrina civilista, por força de uma filiação artificial, estabelece-se um liame jurídico entre duas pessoas, o adotante e o adotado” (LEITE, 2004, p. 182-183).

Constata-se, portanto, que o parentesco tem origem na consanguinidade e em outros fatores juridicamente considerados como constitutivos de parentesco socioafetivo, tais como a adoção de uma pessoa por outra, a concepção mediante utilização de material genético alheio e a posse de estado de filho.

Esta questão será tratada em seus pormenores no tópico seguinte.

3.1.3.1 O parentesco resultante de “outra origem”

O artigo 1.593 do Código Civil não encontra precedente no sistema codificado de 1916 e ainda não foi suficientemente avaliado pela doutrina civil brasileira, “talvez porque a maioria da doutrina visualize no ‘ou outra origem’ do citado artigo, uma variante do parentesco civil” (LEITE, 2004, p. 192). No entanto, não é esta a melhor exegese do artigo em questão.

Deve-se atentar que, na primeira parte do artigo, o legislador não alterou o seu discurso e apenas repetiu a postura tradicional do direito brasileiro relativamente às relações de parentesco: ou resultam elas do parentesco natural – consanguinidade – ou do parentesco civil – adoção -.

Leite (2004, p. 192) entende que o que há de inédito e de maior relevância, encontra-se no fim do artigo em apreço, pois o termo “ou outra origem” "escancara as portas a uma nova forma de parentesco, nem natural, nem civil, mas que fundamenta a filiação socioafetiva”.

Neste diapasão incluem-se as relações de parentesco oriundas das inseminações artificiais, dos filhos de criação, do surgimento das famílias pluriparentais, enfim, todas aquelas que surgiram baseadas tão somente nos laços do afeto. “Em última análise, é a aceitação ampla e irrestrita da noção de posse de estado de filho, que adentra com legitimidade total em ambiente, até então, reservado aos meros laços da consanguinidade” (LEITE, 2004, p. 193).

Por derradeiro, constata-se que esta proposta revolucionária tratou de reconhecer assento ao afeto nas relações paterno-materno-filiais, afeto este capaz de gerar efeitos na ordem jurídica familiar. Em suma, “é a vitória do afeto sobre o mero elemento biológico” (LEITE, 2004, p. 193).                                                                          

Valemo-nos do ensejo para, a partir do tópico seguinte, tratar efetivamente do tema trazido à baila por este trabalho: a filiação socioafetiva.

3.2 A família baseada no afeto e a paternidade socioafetiva propriamente dita: uma nova dimensão das relações parentais

Conforme já exposto, a promulgação da Constituição Federal de 1988 proporcionou um alargamento no conceito de entidade familiar, de modo que também emprestou especial proteção à família constituída pela união estável e àquela formada por um genitor e sua prole.

A nova ordem constitucional, embasada na doutrina da proteção integral, consagrou como fundamental o direito à convivência familiar e transformou crianças e adolescentes em sujeitos de direito. Priorizou a dignidade humana em todos os seus aspectos e abandonou por definitivo a feição patrimonialista da família, bem como proibiu qualquer discriminação e o emprego de adjetivações no tocante aos filhos.

Todas essas transformações refletem-se na assimilação dos vínculos parentais, uma vez que a partir deste momento, a filiação passou a ser identificada pela presença do vínculo afetivo paterno-filial e não mais pelo mero liame biológico. A ampliação trazida ao conceito de paternidade imprimiu a sobreposição da afetividade à mera verdade biológica, trazendo à baila a expressão “desbiologização da paternidade”. Desta feita, temos configurada a filiação social, a qual tem seu norte identificador no elemento estruturante do direito das famílias: o afeto.

Nos dizeres de Dias (2010, p. 352), temos que: “A desbiologização da paternidade identifica pais e filhos não biológicos, não consanguíneos, mas que construíram uma filiação psicológica. O ponto essencial é que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não. Em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não biológica”.

A paternidade socioafetiva tem uma base fortemente sociológica. Para essa nova definição, pai ou mãe não é apenas a pessoa que tenha vínculo genético com a criança. Neste diapasão, ser pai ou ser mãe é ser a pessoa que cria, instrui, ampara, dá amor, proteção e educação, ou seja, que realmente exerce as funções próprias de pai ou mãe, sempre em busca do melhor interesse da criança.

Lima (2011) disserta sobre o tema: “A filiação socioafetiva encontra sua fundamentação nos laços afetivos constituídos pelo cotidiano, pelo relacionamento de carinho, companheirismo, dedicação, doação entre pais e filhos. Está cada vez mais fortalecida tanto na sociedade como no mundo jurídico, ponderando a distinção entre pai e genitor, no direito ao reconhecimento da filiação, inclusive no direito registral, tendo-se por pai aquele que desempenha o papel protetor, educador e emocional”.

Deste modo, a verdadeira paternidade é aquela que se revela dia após dia com a convivência familiar e que busca a realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação. É pai quem assumiu esses deveres, ainda que não seja o genitor.

Cumprida esta fase de explanação sintética quanto ao instituto da filiação socioafetiva, passaremos a analisar as suas subespécies, bem como as consequências advindas de seu reconhecimento nos tópicos seguintes.

3.2.2 Espécies de paternidade socioafetiva

3.2.2.1 A adoção judicial (Lei 12.010/09)

“Adoção é o ato jurídico solene pelo qual alguém recebe em sua família, na qualidade de filho, pessoa a ela estranha” (GONÇALVES, 2011, p. 376). Diniz (2009, p. 416 apud GONÇALVES, 2011, p. 376) conceitua o mesmo instituto da seguinte forma: “Adoção é o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha”.

No mesmo sentido, Lôbo (2008, p. 248) ensina: “A adoção é ato jurídico em sentido estrito, de natureza complexa, pois depende de decisão judicial para produzir seus efeitos. Não é negócio jurídico unilateral. Por dizer respeito ao estado de filiação, que é indisponível, não pode ser revogada. O ato é personalíssimo, não se admitindo que possa ser exercido por procuração”.

A adoção de crianças e adolescentes é, portanto, irrevogável não podendo ser extinta por ato das partes. Ademais, rompe todos os laços em relação à família biológica comportando apenas uma exceção: “o desligamento da família de origem apenas deixa um resíduo da relação de parentesco anterior, relativamente aos impedimentos matrimoniais. Trata-se de vedação que tem por fito evitar o incesto” (LÔBO, 2008, p. 262).

Cumpre destacar que há a possibilidade de manutenção dos vínculos biológicos na hipótese de um dos cônjuges ou companheiros adotar o filho do outro.

Neste caso: “o filho permanece tal em relação ao genitor biológico e aos respectivos parentes, combinando-se com o parentesco que se estabelece com o cônjuge ou companheiro que o adotou e seus respectivos parentes. Surgem, então, duas relações de parentesco, ou dois ramos de família” (LÔBO, 2008, p. 262).

Desde o advento da Constituição Federal de 1988, estão assegurados os mesmos direitos aos filhos havidos ou não da relação do casamento ou por adoção. No entendimento de Dias (2010, p. 477) “não cabe mais falar em ‘filho adotivo’, mas em ‘filho por adoção’. A partir do momento em que é constituída pela sentença judicial e é retificado o registro de nascimento, o adotado é filho”.

Neste norte e de modo a reforçar o valor jurídico do afeto, Lôbo (2008, p. 247) nos traz a seguinte conclusão: “A total igualdade entre os filhos biológicos e o que foram adotados demonstra a opção da ordem jurídica brasileira, principalmente constitucional, pela família socioafetiva. A filiação não é um dado da natureza, e sim uma construção cultural, fortificada na convivência, no entrelaçamento de afetos, pouco importando sua origem. Nesse sentido, o filho biológico é também adotado pelos pais, no cotidiano de suas vidas” (grifo nosso).

É salutar, portanto, repisar que a adoção judicial é modalidade de filiação socioafetiva, pois o vínculo gerado advém de um ato de vontade, baseando-se em fator sociológico e não no mero liame biológico.

3.2.2.2 A adoção à brasileira ou adoção simulada

Prática bastante corriqueira na nossa sociedade, a adoção à brasileira consiste no fato de ”o companheiro de uma mulher perfilhar o filho dela, simplesmente registrando a criança como se fosse seu descendente” (DIAS, 2010, p. 489). Contudo, a nosso entender, em que pese ser apropriado o conceito retro, imperioso salientar que este ato pode também ser praticado somente pela figura materna – o que, notadamente, é menos comum -, ou por ambos os cônjuges ou companheiros.

Neste sentido, conceito ainda mais completo nos traz o acórdão proferido no recurso especial de número 833.712 – RS (2006/0070609-4) de relatoria da eminente ministra Nancy Andrighi, nos seguintes termos: “Inserida no contexto da filiação sócio-afetiva, compreendida como uma relação jurídica de afeto, marcadamente nos casos em que, sem nenhum vínculo biológico, os pais criam uma criança por escolha própria, destinando-lhe todo o amor, ternura e cuidados inerentes à relação pai-filho, encontra-se a “adoção à brasileira”. Esta caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra o menor como seu filho, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses da criança. Marca maior dessa espécie transversa de adoção, é a falsidade ideológica de que é eivado o registro público de nascimento, pois, para todos os fins, daquela filiação presume-se a existência do vínculo biológico, quando este inexiste. Prepondera ainda a ausência de dados genéticos no tocante à pessoa “adotada”, que, se porventura for acometida de enfermidade hereditária, não poderá se socorrer no histórico de saúde de sua verdadeira família biológica” (BRASIL, 2007) (grifo do autor).

No entanto, ressalta-se que tal prática é tipificada como crime no ordenamento pátrio, não tendo, todavia, resultado em condenações em virtude da motivação afetiva que envolve este tipo de ação.

Ademais, ante ao fato de o registro resultar de vontade livre e consciente, tem-se entendido descabido o manejo da ação negatória de paternidade por parte do pai que registrou voluntariamente o filho que, sabidamente, não era seu.

Neste norte, compartilhamos do entendimento de Dias (2010, p. 79), a qual explana que “admitir a ação violaria a legítima confiança do filho. Tal comportamento afrontaria a boa-fé objetiva incidente sobre aquela relação familiar, ou um dever mais amplo de solidariedade no âmbito da família”.

Diante do exposto, notório tratar-se de modalidade de filiação socioafetiva, tendo em vista não haver elo biológico que impere na relação paterno-filial.

3.2.2.3 Inseminação artificial heteróloga

Em linhas gerais, a fecundação artificial heteróloga (também conhecida como inseminação artificial heteróloga), consiste na fecundação do óvulo da esposa por meio da doação de sêmen por um homem que não seja o marido, mas com a concordância deste.

Júnior (2003) complementa: “A inseminação artificial heteróloga é a combinação da chamada terapia da infertilidade com o moderno método de eugenia positiva (a criação de seres humanos de pretensa qualidade superior através do recurso a material genético masculino selecionado). Também nesse contexto surgem os chamados ‘bancos de sêmen’, para a conservação no tempo do material genético masculino. O primeiro "banco de sêmen" brasileiro encontra-se instalado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, desde o ano de 1993”.

No que tange ao sigilo sobre a identidade dos doadores e dos receptores, este deve obrigatoriamente manter-se. Todavia, em que pese essa proibição de identificação, “não há como negar a possibilidade de o fruto de reprodução assistida heteróloga propor ação investigatória de paternidade para a identificação da identidade genética, ainda que o acolhimento da ação não tenha efeitos registrais” (DIAS, 2010, p. 364).

Relativamente ao consentimento exarado pelo marido, aquele deve ser prévio e não admite retratação após a implantação do óvulo fecundado. Isto porque, a partir deste momento, a gestação já se encontra em andamento. A manifestação do cônjuge corresponde, portanto, “a uma adoção antenatal, pois revela, sem possibilidade de retratação, o desejo de ser pai” (DIAS, 2010, p. 364).

Ressalta-se ainda que a fecundação heteróloga faz surgir uma presunção jure et de jure da paternidade, pois não há a possibilidade de a filiação ser impugnada. Reportamo-nos aqui, ao artigo 1.597, inciso V do Código Civil (BRASIL, 2002), o qual estabelece: “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: […] V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.

Dias (2010, p. 364) aborda o tema nos seguintes termos: “Trata-se de presunção absoluta de filiação socioafetiva. A paternidade constitui-se, desde a concepção, no início da gravidez, configurando hipótese de paternidade responsável. Se fosse admitida impugnação, haveria uma paternidade incerta, devido ao segredo profissional do médico e ao anonimato do doador do sêmen. Assim, de nada serve a prova da inexistência do vínculo biológico”.

Ante ao exposto, seria forçoso defender que o verdadeiro pai do filho gerado a partir da inseminação heteróloga seria aquele que tem um vínculo biológico com o nascituro. Deparamo-nos aqui, com mais uma modalidade de filiação socioafetiva, haja vista que o real pai será aquele que criar e educar a criança.

Por derradeiro, em que pese não ser relevante para o deslinde do presente trabalho, necessário pontuarmos a existência de outro meio de inseminação artificial, denominada homóloga.

A respeito desta forma de reprodução assistida, Venosa (2009, p. 229) disserta que “denomina-se homóloga a inseminação proveniente do sêmen do marido ou do companheiro”. Isto posto, subentendido está que não se trata de uma espécie de filiação socioafetiva, tendo em vista tratar-se de concepção obtida extracorpos, mas com material genético proveniente dos próprios pais.

Perpassemos ao estudo da última modalidade de filiação socioafetiva.

3.2.2.5 Os filhos de criação: a filiação socioafetiva sem vínculo jurídico propriamente dita

Também é esta uma espécie de paternidade socioafetiva. No caso dos filhos de criação, embora não haja vínculo biológico ou de adoção, os pais criam o filho afetivo por mera opção. Nos dizeres de Ribeiro (2008), “o mesmo possui existência a partir do momento que, mesmo não havendo nenhum vínculo biológico ou jurídico, os pais criam uma criança por mera opção, entregando a esta todo amor, carinho e cuidado”.

Importante ressaltar que, no tocante à terminologia utilizada – “filhos de criação” -, uma crítica deve ser levantada, “haja vista o seu caráter pejorativo. Isto porque, uma vez que a Constituição não admite qualquer forma de discriminação entre os filhos […], tal igualdade deve prevalecer, inclusive, na sua titulação” (RIBEIRO, 2008).

De forma bastante clara, Fujita (2009, p. 80 apud SOUZA, 2010, p. 38) nos traz uma conceituação precisa: “Os denominados “filhos de criação” são os que, embora pertencentes a outrem, são sustentados, educados, amados e providos por casais que os consideram como filhos próprios, embora apenas se encontrem sob a sua guarda, e não sob o amparo de uma adoção. […] Podem ser órfãos; parentes distantes; ou filhos de uma empregada que os deixou na casa do empregador doméstico, diante da impossibilidade de os criar; ou os filhos de um compadre ou comadre; os filhos de um amigo pobre; enfim pessoas de qualquer origem”.

No entanto, o fato de estes “filhos” não serem registrados, ou seja, de inexistir uma formalidade burocrática (como ocorre na adoção), impede que aqueles sejam portadores dos direitos decorrentes da própria relação paterno-filial, como por exemplo, o direito de suceder hereditariamente e pleitear alimentos. Neste aspecto, o entendimento majoritário dos tribunais traz que a relação de afeto pura e simples nada comprova acerca da intenção do pai de fato de adotar aquela criança (RIBEIRO, 2008).

Contudo, em que pese este entendimento majoritário, recentes decisões pululam nos tribunais pátrios já concedendo alguns direitos aos filhos socioafetivos. Colhe-se da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina: APELAÇÃO CÍVEL – ALVARÁ JUDICIAL – LEVANTAMENTO DE VALORES RESIDUAIS DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO JUNTO AO INSS DEIXADOS PELO PAI DE CRIAÇÃO DO RECORRENTE – NECESSIDADE COMPROVADA PARA REEMBOLSO DO MONTANTE GASTO COM FUNERAL – PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA – ART. 1.109 DO CPC – RECURSO PROVIDO. Comprovado o pagamento das despesas com funeral, o julgador deve abandonar o excesso de formalismo e atentar à finalidade social da norma, determinando a liberação do valor contido junto ao INSS para o “filho de criação”. […] Ora, restou comprovado nos autos, principalmente pela nota fiscal de fl. 15, que foi o apelante quem arcou com as despesas de funeral. Logo, possui sim legitimidade para postular o presente pedido. Depois, não se esqueça que o requerente é “filho de criação” do de cujus, possuindo com ele grande relação de afeto, tanto é que o funeral foi todo pago por este. Portanto, não se podendo considerar o apelante parte ilegítima e tendo este comprovado o gasto, o deferimento do pedido é medida que se impõe (SANTA CATARINA, 2009).

Por meio deste julgado, percebemos que pouco a pouco tem a jurisprudência se tornado mais flexível ante a nova realidade social, no tocante aos chamados ‘filhos de criação’. Passemos à análise de outro acórdão: “DIREITO DE FAMÍLIA. DEMANDA DECLARATÓRIA DE PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO E AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. EQUIVOCADA EXTINÇÃO DA DEMANDA. CONDIÇÕES DA AÇÃO QUE, CONTUDO, NO CASO, REVELAM-SE PRESENTES. PLEITO QUE, EM TESE, SE AFIGURA POSSÍVEL, INOBSTANTE O FALECIMENTO DOS SUPOSTOS PAIS SOCIOAFETIVOS. INTELECÇÃO DOS ARTS. 1.593 DO CC E 227, § 6º, DA CRFB. SENTENÇA CASSADA. RECURSO PROVIDO. A pretensão ao reconhecimento da parentalidade socioafetiva tem ressonância no art. 1.593 do Código Civil, segundo o qual a filiação origina-se do laço consaguíneo, civil ou socioafetivo. Nada obsta o reconhecimento da filiação após a morte dos pretensos pai e mãe socioafetivos. Se ao filho biológico é franqueado o acesso à justiça na hipótese de investigação de paternidade ou de maternidade post mortem, ao filho socioafetivo, por força do princípio da igualdade entre as filiações (art. 227, par. 6º, da Constituição da República), deve ser assegurado idêntico direito de ação. De mais a mais, ao contrário do que se consignou na sentença, o fato é que, independentemente da expressa e específica manifestação de vontade dos pais socioafetivos quanto à filiação se comprovado, no processo, por todos os meios de provas admissíveis em direito, haverem eles assumido, de fato, a recorrente como filha, para todos os fins e efeitos de direito (tractatus, nominatio e reputatio), a declaração revelar-se-á inolvidável. Saliento, aliás, que a própria assunção já consubstancia, em princípio, a exteriorização da vontade dos pais socioafetivos. Do contrário, não fosse essa a intenção deles, jamais haveriam de tratar como filha, diante de seus pares na sociedade, uma criança que não o é. Portanto, parece irrecusável admitir que, abstratamente considerado, o pedido encontra suporte no direito positivo vigente. Agora, se a pretensão tal qual deduzida vai ser acolhida, ao final, quando do julgamento de mérito, após a necessária dilação probatória, isso somente a sentença irá dizê-lo. De se sublinhar, ainda, que circunstância de haver, nos assentamentos civis da apelante, o registro do nome de sua genitora biológica, não constitui óbice ao reconhecimento da filiação socioafetiva. De fato, fosse assim, só poderia pleitear o reconhecimento do vínculo socioafetivo a pessoa que não tivesse absolutamente ninguém registrado como pai e mãe nos assentos civis! Não é isto, porém, o que sucede. Tanto é assim que na Justiça pululam casos que versam sobre a dissociação entre os laços biológicos e afetivos, a respeito dos quais o Poder Judiciário é instado a decidir qual deles deva prevalecer. O registro público compraz-se, tão-só, com a verdade real – seja a biológica ou a socioafetiva-, de sorte que, na hipótese de se revelar equivocado, a sua alteração é medida que se impõe, até mesmo como simples consectário da sentença de acolhimento do pedido. Ante o exposto, pelo meu voto eu dou provimento ao recurso, para o fim de, cassando a sentença, determinar que o processo, na origem, prossiga como de direito” (SANTA CATARINA, 2012a).

Decisão absolutamente inédita fora esta prolatada pelo Tribunal de Justiça catarinense. Como bem dito, em que pese não haver suporte jurídico no direito positivo, cada caso deve ser minuciosamente estudado para que os requisitos necessários para a constituição da posse do estado de filho não restem inobservados e o filho por afeto, prejudicado.

Ante ao exposto, entendemos ser esta a filiação socioafetiva por excelência, haja vista estar baseada tão somente no afeto recíproco, não havendo liame biológico e tão pouco relação jurídica que una o pai socioafetivo ao filho de fato.

No entanto, para que entendamos corretamente como se dá o reconhecimento desta modalidade de filiação socioafetiva, necessário o estudo do instituto da posse do estado de filho.

3.2.3 Posse do estado de filho

“A posse do estado de filiação refere à situação fática na qual uma pessoa desfruta do status de filho em relação a outra pessoa, independentemente dessa situação corresponder à realidade legal” (LÔBO, 2008, p. 211).

Ribeiro (2008) também explica: “A posse do estado de filho ou posse do estado de filiação constitui espécie do gênero status familiae. Ela é uma realidade social, apreensível no mundo dos fatos e condição si nen qua non para o estabelecimento de uma realidade jurídica da filiação alicerçada na verdade socioafetiva. Tem-se esta quando alguém assume o papel de filho em face de alguém que assuma o papel ou lugar de pai ou mãe; lugar este, vale dizer, que independe de vínculo biológico. A posse de estado de filho é a responsável por revelar a relação paterno-filial”.

Nos dizeres precisos de Lôbo (2008, p. 211): “A posse do estado de filho oferece os necessários parâmetros para o reconhecimento da relação de filiação, fazendo ressaltar a verdade socioafetiva. Tem a maleabilidade bastante para exprimir fielmente a verdade que procura, para mostrar onde se encontra a família socioafetiva cuja paz s quer defender pelo seu valor social e pelo interesse do filho”.

O estado de filiação compreende, portanto, um apanhado de circunstâncias que solidificam a presunção da existência de relação afetiva entre pai e filho, capaz de suprir a ausência do registro do nascimento. “Em outras palavras, a prova da filiação dá-se pela certidão do registro do nascimento ou pela situação de fato. Trata-se de conferir à aparência os efeitos de verossimilhança, que o direito considera satisfatória” (LÔBO, 2008, p. 211).

“A aparência do estado de filiação revela-se pela convivência familiar, pelo efetivo cumprimento pelos pais dos deveres de guarda, educação e sustento do filho e pelo relacionamento afetivo” (LÔBO, 2008, p. 212).

Para o reconhecimento da posse do estado de filho, a doutrina atenta a três elementos constitutivos: a) tractatus (trato) – quando o filho é tratado como tal, criado, educado, sustentado e apresentado para a sociedade como filho pelo pai e pela mãe; b) nominatio (nome) – o filho usa o nome da família de fato e assim se apresenta; e c) reputatio (reputação) – é conhecido pela opinião pública e pela sociedade como pertencente à família de seus pais (DIAS, 2010, p. 366).

Salienta-se que “essas características não necessitam de estar presentes conjuntamente, pois não há exigência legal nesse sentido e o estado de filiação deve ser favorecido, em caso de dúvida” (LÔBO, 2008, p. 212).

A jurisprudência do Tribunal de Justiça do estado de Santa Catarina traz a seguinte explanação: “A filiação socioafetiva, fundada na posse do estado de filho e consolidada no afeto e na convivência familiar, pressupõe a existência de três elementos caracterizadores: o nomem – utilização do sobrenome paterno; o tratactus – pessoa deve ser tratada e educada como filho; e a reputatio – o reconhecimento pela sociedade e pela família da condição de filho” (SANTA CATARINA, 2012b).

Qualquer meio de prova pode ser empregado, desde que admitido em direito, para o convencimento do magistrado quanto a existência da posse do estado de filiação, não tendo a lei estabelecido restrições ou primazias.

Contudo, Lôbo (2008, p.212) traz ressalvas no tocante à validade desses documentos: “essas provas são complementares de dois requisitos alternativos que a lei prevê: a existência de começo de prova por escrito, proveniente dos pais, ou presunções veementes da filiação resultantes de fatos já certos. Entendemos que, para alcançar a finalidade da lei, em conformidade com a Constituição, que estabelece a prioridade absoluta da convivência familiar afetiva para a criança e o adolescente, basta um dos requisitos na falta de outro. Considera-se como de prova por escrito, proveniente dos pais, quaisquer documentos que revelem a filiação, como cartas, autorizações para atos em benefícios de filhos, declaração de filiação para fins de imposto de renda ou de previdência social, anotações dando conta do nascimento do filho”.

A tutela jurídica da posse de estado de filiação abriga os chamados filhos de criação, de modo que essas hipóteses correspondem a veementes presunções de fatos já certos. Ainda sobre este entendimento, citamos Fachin (1992, p. 169 apud LÔBO, 2008, p. 212): “Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços de paternidade numa relação socioafetiva, aquele, enfim, que, além de emprestar o nome da família, o trata como sendo verdadeiramente seu filho perante o ambiente social”.

Em que pese tal instituto não ser devidamente regulado pelo ordenamento pátrio e ser uma construção basicamente doutrinária e jurisprudencial, inegável tratar-se de relevante meio de constituição de paternidade socioafetiva que merece maior atenção do legislador e dos aplicadores do Direito.

Ante a tudo o que fora exposto, constata-se que o instituto da paternidade hoje se mostra muito mais flexível do que nos tempos de outrora. Isto porque, doutrina e jurisprudência vêm impondo cada dia mais, uma maior relevância aos vínculos afetivos construídos no âmbito familiar. É o que se denota na adoção – judicial ou à brasileira -, na inseminação artificial heteróloga e na posse do estado de filho, nas quais a afetividade delimita a verdadeira filiação.

No tópico seguinte, elencaremos decisões que sobrepuseram a socioafetividade ao vínculo biológico, por entender ter aquela maior relevância em alguns casos concretos.

O estudo deste tema demonstra ser de grande valia para que exemplifiquemos casos em que a socioafetividade se sobrepôs ao vínculo biológico.

Vejamos:

3.3 A sobreposição da paternidade socioafetiva ante a biológica

No tocante à adoção à brasileira, aquela em que o sujeito registra a criança como se seu filho fosse, é comum nos depararmos com casos em que, uma vez rompido o vínculo afetivo do casal e ante a obrigatoriedade de arcar com alimentos em favor do filho, o pai recorre ao Judiciário para desconstituir o registro de nascimento por meio de ação anulatória ou negatória de paternidade (DIAS, 2010, p. 490). Contudo, acerca do tema Dias (2010, p. 490) pontua: “A jurisprudência, reconhecendo a voluntariedade do ato, praticado de modo espontâneo, por meio da “adoção à brasileira”, passou a não admitir a anulação do registro de nascimento, considerando-o irreversível. Não tendo havido vício de vontade, não cabe a anulação, sob o fundamento de que a lei não autoriza a ninguém vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento”.

Devemos aqui recorrer ao artigo 1.604 do Código Civil pátrio (BRASIL, 2002) o qual preleciona: “Ninguém pode reivindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”.

Entretanto, cumpre salientar que ainda que dito dispositivo legal elenque a possibilidade de anulação por motivo de erro ou falsidade, incabível a alegação de falsidade do registro levada a efeito pelo autor da prática delitiva. “Assim, registrar filho alheio como próprio, sabendo não ser verdadeira a filiação, impede posterior pedido de anulação” (DIAS, 2010, p. 490).

Acórdão bastante ilustrativo do caso em tela já foi prolatado pelo Tribunal de Justiça catarinense: APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO NA ORIGEM. –REGISTRO DE NASCIMENTO ENTEADO. CONSCIÊNCIA E VOLUNTARIEDADE DO RECONHECIMENTO. VÍCIO DE CONSENTIMENTO. NÃO ALEGAÇÃO. CAUSA DE PEDIR. TÉRMINO DA UNIÃO ESTÁVEL E "INJUSTIÇA" DA MANUTENÇÃO DO VÍNCULO PARENTAL. ATO JURÍDICO IRREVOGÁVEL. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.604 DO CC. – SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. – Para a desconstituição do vínculo parental reconhecido de forma voluntária, afigura-se necessária a demonstração da ocorrência de vício de consentimento, nos termos do que alude o art. 1.604 do Código Civil. – Na hipótese vertente, a causa de pedir veiculada pelo autor arrima-se tão somente na dissolução da união estável havida entre ele e a genitora do réu e, ainda, na "injustiça" de mantê-lo como pai nessas circunstâncias. Assim, porque nem sequer alegado vício de vontade hábil a viabilizar o pleito constitutivo negativo ou a inexistência de vínculo socioafetivo com a criança, acertada é a sentença impugnada quando reconhece a carência da ação por impossibilidade jurídica do pedido (SANTA CATARINA, 2011a).

No caso em tela, o Tribunal decidiu por manter o registro do pai socioafetivo, sob o argumento de que vício de consentimento algum fora comprovado. Ademais, a alegação de ruptura da união estável e ‘injustiça’ na manutenção do nome do pai registral no assento, não se mostra digna de respaldo tendo em vista sua mesquinhez.

Dias (2010, p. 490) prossegue defendendo que “o registro não revela nada mais do que aquilo que foi declarado – por conseguinte, corresponde à realidade do fato jurídico. Descabido falar em falsidade”.

Necessário também se faz citar o artigo 39, §1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), o qual determina: “A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei” (grifo nosso).

Outro argumento que impede a desconstituição do registro é o fato de pai e filho já terem convivido durante razoável período de suas vidas como se genitor e gerado realmente fossem. Tutela-se aqui a manutenção da filiação socioafetiva para que se impeçam os prejuízos advindos de sua brusca interrupção, notadamente no tocante à criança.

Neste norte, Dias (2010, p. 489) prossegue com seu discurso: “A intenção de formar um núcleo familiar deveria ensejar a adoção do filho da companheira, e não o seu indevido registro. E, como a adoção é irrevogável, não se pode conceder tratamento diferenciado a quem faz uso de expediente ilegal. Inquestionável a vontade de quem assim age em assumir a paternidade, não podendo ser aceito arrependimento posterior. Imperativo prestigiar a posse de estado de filho de que desfruta o registrado, na medida em que se configurou a filiação socioafetiva. Ainda que a desconstituição seja obstaculizada ao pai, impedimento não existe com relação ao filho, que pode fazer uso da ação anulatória de registro, pois está ele a vindicar seu estado de filiação” (grifo nosso).

De outra banda, quando não é reconhecida a existência de socioafetividade, imperioso admitir a anulação do registro de nascimento, se este for o desejo do filho e não a vontade exclusiva do pai. Neste sentido, dispõe o filho do direito de excluir do registro o nome de quem lá consta como seu genitor, sem que para isso precise deflagrar uma ação investigatória de paternidade em face do pai biológico (DIAS, 2010, p. 490).

Colhe-se da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina: “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. PREFACIAL AFASTADA. NULIDADE DO ASSENTO DE NASCIMENTO. LAVRATURA DO REGISTRO ACREDITANDO SER O PAI BIOLÓGICO DO NEONATO. REALIZAÇÃO DE TESTE DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. EXCLUSÃO DA PATERNIDADE CONFIRMADA. AUSÊNCIA DE VÍNCULO AFETIVO ENTRE AS PARTES. FILIAÇÃO SÓCIO-AFETIVA INEXISTENTE. VÍCIO DE CONSENTIMENTO CONFIGURADO. DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. Delineado o vício de consentimento a que foi levado a incorrer o suposto pai e inexistente a filiação sócio-afetiva, deve prevalecer a verdade real estampada no teste por análise de DNA negativo à paternidade biológica” (SANTA CATARINA, 2011b).

No acórdão acima descrito, o Tribunal averiguou a inexistência de socioafetividade, bem como a configuração de vício de consentimento. Desta feita, notória a necessidade de alteração no assento do neonato.

Para finalizar, trazemos à baila acórdão da lavra do relator Júnior, também do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o qual argumenta de forma contundente sobre a necessidade de manter-se a socioafetividade em alguns casos concretos. Vejamos: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO. RELAÇÃO SOCIOAFETIVA. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. NÃO COMPROVAÇÃO DE ERRO OU FALSIDADE DE REGISTRO ÔNUS PROBANTE QUE INCUMBIA AO AUTOR. ARTIGO 333, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. IRREVOGABILIDADE DO RECONHECIMENTO. RECURSO DESPROVIDO. I – Conforme preconizam os artigos 1.604, 1.609 e 1.610, todos do Código Civil, o reconhecimento dos filhos fora do casamento é irrevogável, embora admita-se a possibilidade de revisão do estado de filiação quando atrelada a erro ou falsidade de registro, ou a vício de vontade por parte do autor da ação negatória de paternidade. Assim, deixando o requerente de comprovar a ocorrência de uma das situações excepcionais supramencionadas – ônus processual que lhe competia (artigo 333, II, do Código de Processo Civil) -, somando-se ao fato do reconhecimento pelo declarante ter ocorrido por livre e espontânea vontade há mais de 25 anos, não há falar em desconstituição de paternidade. II – A irrevogabilidade do ato de reconhecimento de paternidade protege a dignidade e a imagem do filho perante a comunidade em que vive e os seus mais profundos sentimentos e valores morais e afetivos. Ademais, no momento em que se passa mais de 25 anos do efetivo reconhecimento da filiação, não há falar em sua desconstituição, até mesmo pela existência da paternidade socioafetiva. Destaca-se aqui que não é por conta, tão somente, da configuração da paternidade socioafetiva que o pedido formulado na inicial deve ser julgado improcedente. Isso porque o autor, por meio da sua própria e consciente vontade, criou um vínculo indissolúvel com o requerido e, em não sendo comprovada a ocorrência de vício, coação ou erro, nada terá o condão de impugnar o ato jurídico e perfeito praticado. No mesmo sentido, importante mencionar que transcorridos mais de 25 anos desde o nascimento do demandado até a data de hoje, é certo que ele e todos aqueles que com ele mantêm relações possuam plena consciência a qual família pertence, seu sobrenome, filiação, relação de parentesco e seus desdobramentos. Assim, não é condizente, neste momento, sequer cogitar em tirar-lhe a condição de filho, até mesmo se o exame de DNA tivesse sido realizado e comprovasse que o requerente não é pai do réu, pois o estado de filiação não tem caráter exclusivamente genético-biológico. Além disso, com a comprovação da posse do estado de filho, não há falar em revogabilidade da filiação, pois, se assim fosse, também seriam suscetíveis de impugnação a adoção e a própria paternidade biológica comprovada por DNA, a qualquer tempo, instituindo-se a insegurança jurídica. Frisa-se, dessa forma, que a verdadeira paternidade é fato social e jurídico que, muitas das vezes, sobrepõe-se ao biológico (SANTA CATARINA, 2011c) (grifo nosso).

Ante a tudo o que foi apresentado, inconcebível defender que a consanguinidade deve imperar em todos os casos concretos. A socioafetividade é merecedora de amparo jurídico, uma vez que se mostra realidade cada vez mais frequente e demonstra a plenitude das relações familiares.

Superados os conceitos que norteiam a entidade familiar e a socioafetividade, no capítulo que segue abordaremos o assunto delimitado no título deste trabalho de conclusão de curso, qual seja, analisar a possibilidade de o pai socioafetivo sem vínculo jurídico – o pai de fato – ver deferido em seu favor o pedido de visita, em face daquela criança que por longo período fora criado como se seu filho realmente fosse. 

Iniciaremos o estudo dissertando sobre o surgimento das famílias mosaico, também conhecidas como pluriparentais.

4 Socioafetividade: uma análise sobre a possibilidade de deferimento do pedido de regulamentação de visitas elaborado pelo pai afetivo sem vínculo jurídico

Delimitamos anteriormente conceitos que envolvem a socioafetividade, bem como pontuamos a sua relevância social e jurídica. Neste capítulo que iniciamos, trataremos do direito de visita propriamente dito e demonstraremos nosso posicionamento a respeito do tema escolhido.

No entanto, ab initio, necessário tratarmos de um tema de absoluta relevância para o deslinde da presente pesquisa: o surgimento das denominadas “famílias mosaicos”.

Famílias mosaico ou pluriparentais é o termo utilizado para designar aquelas “famílias reconstituídas através de casamento, união estável ou outro tipo de arranjo familiar, no qual os componentes são pessoas advindas de relacionamentos anteriores e unem-se a outrem em situação idêntica ou não” (RODRIGUES; VIANA, 2010). Entretanto, o ponto principal desta remodelação é o fato de os novos cônjuges ou companheiros levarem para esta nova formação familiar também os filhos de cada um – caso existam. Daí advém o termo ‘pluriparental’, haja vista ser esta formação familiar oriunda de uma “composição diversa e livre” (RODRIGUES; VIANA, 2010) que em nada tem ligação com o rigorismo das antigas famílias brasileiras.

No tocante à escolha do título ‘família mosaico’, uma das doutrinas mais autorizadas traz a seguinte explicação: “O mosaico é uma arte milenar feita com materiais diversos que podem ser vidros, pedras, cerâmica, entre outros, com o objetivo de formar desenhos que preencham espaços vazios no chão ou em paredes. Por analogia, vê-se que a família, como é desenhada atualmente, tem semelhanças com a arte do mosaico, pois é formada por pessoas que vieram de outras relações e juntas formam um novo contexto de família, multiplicando a parentalidade e inserindo pessoas de gênero, personalidade e grau de afinidade diversos, em um mesmo ambiente familiar. Uma família reconstituída é um mosaico que se forma” (RODRIGUES; VIANA, 2010).

O supedâneo da formação das famílias mosaico é o afeto puro e simples, de modo que “sem a presença deste elemento não há como reconstruir uma família que foi dilacerada pelo divórcio, separação ou outro motivo extremo que fomentou o rompimento da relação” (RODRIGUES; VIANA, 2010). Neste norte, a doutrina de Rodrigues e Viana (2010) disserta:

“Por isso, a cada dia, surgem mais “famílias mosaico”, que representam o desejo de refazer a vida ao lado de outra pessoa, de criar os filhos num ambiente de amor, paz e integração, onde existam figuras típicas de uma família como pai, mãe e irmãos, que homens e mulheres optam por redesenhar a família, permitindo a inserção do legado de seu novo companheiro (os filhos), pois a partir de então, estes farão também parte de uma mesma família”.

E prossegue: “A formação de uma “família mosaico” exige, além do interesse e do afeto dos membros componentes, a desmistificação de nomenclaturas pejorativas, como a atribuída à figura da madrasta, retratada em personagens infantis como uma pessoa má que surge para destruir os lares harmoniosos. Também é preciso a aceitação em relação ao meio-irmão, ao padrasto, aos avós, tios e sobrinhos que, consequentemente, passam a compor a fotografia da família recomposta” (RODRIGUES, VIANA, 2010).

Em verdade, esta nova formação familiar se tornou ainda mais comum com o passar dos últimos anos, pois têm se observado a volatilidade dos casamentos e o novo estilo de vida da população. A busca pela liberdade, pelo autoconhecimento e, principalmente, pela felicidade, pode ser considerada a mola propulsora que ensejou o surgimento desta pluriparentalidade.

Neste sentido, inevitável a conclusão de que, por diversas vezes, o filho de um dos cônjuges ou companheiros acaba por delinear um vínculo recíproco de profunda afetividade com aquele que agora se torna um novo membro de sua família. Cabe aqui relembrar que neste momento, a depender do grau de proximidade da criança com o pai/mãe biológicos, passam a surgir os requisitos para a caracterização da posse de estado de filho, nos moldes do que foi explanado no capítulo anterior. Com o prosseguimento da convivência diária familiar e das manifestações de consideração e afeto mútuos, inegável a possibilidade de estarmos diante de um caso de socioafetividade, o qual deverá ser tutelado para que se alcance sempre o melhor interesse da criança.

Por dar ensejo à caracterização da posse de estado de filho, este novo modelo de família traz consigo um novo repertório de conflitos jurídicos que devem ser sanados e respondidos de forma efetiva pelo Estado, pois “apesar de ter se resguardado em não falar expressamente sobre as ‘famílias mosaico’ no texto Constitucional, o Estado Democrático de Direito assegura tratamento igualitário entre as famílias brasileiras” (RODRIGUES; VIANA, 2010).

Neste diapasão, nos tópicos seguintes trataremos sobre um dos prováveis conflitos que podem bater às portas do Judiciário: o pai socioafetivo sem vínculo jurídico – o padrasto de qualquer criança que tenha sido criada como se filho fosse – tem o direito de ver deferido em seu favor o pedido de visita do filho afetivo?

De início, vamos tratar dos princípios de aplicabilidade essencial para a defesa do tema. Vejamos:

4.1 Princípios relativos ao direito de família

“O princípio é uma norma jurídica que positiva um valor” (BARROS, 2007). Os princípios jurídicos estão além da norma posta. Princípio é aquilo que paira subjacente à norma, de modo que esta pode ser alterada, mas aquele permanecerá.

Nos tópicos seguintes, elencaremos e conceituaremos sinteticamente alguns princípios absolutamente necessários para um melhor entendimento do tema

4.1.1 Princípio da dignidade da pessoa humana

“A Constituição Federal proclama como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito e da ordem jurídica ‘a dignidade da pessoa humana’ (art. 1º, III)” (LÔBO, 2008, p. 39). É, pois, o princípio maior e basilar de todo o ordenamento jurídico pátrio.

Dias (2010, p. 62) disserta que “a preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional”, de modo que sua essência incide sobre tão grande quantidade de situações que se torna impossível elencá-las de antemão. É princípio de manifestação primeira dos valores constitucionais e por ensejar a impossibilidade de uma compreensão exclusivamente intelectual, também é sentido do plano dos afetos (DIAS, 2010, p. 62).

Ao tratar da correlação entre o princípio em tela e o direito de família, Dias (2010, p. 63) preleciona: “O direito das famílias está umbilicalmente ligado aos direitos humanos, que têm por base o princípio da dignidade da pessoa humana, versão axiológica da natureza humana. O princípio da dignidade humana significa, em última análise, igual dignidade para todas as entidades familiares. Assim, é indigno dar tratamento diferenciado às várias formas de filiação ou aos vários tipos de constituição de família, com o que se consegue visualizar a dimensão do espectro desse princípio, que tem contornos cada vez mais amplos”.

“A dignidade da pessoa humana é o núcleo existencial que é essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do gênero humano, impondo-se um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade” (LÔBO, 2008, p. 37). Assim sendo, “a família, tutelada pela Constituição, está funcionalizada ao desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que a integram. A entidade familiar não é tutelada para si, senão como instrumento de realização existencial de seus membros” (LÔBO, 2008, p. 39).

Lôbo (2008, p. 38) destaca que o caráter intersubjetivo e relacional da dignidade da pessoa humana enseja a existência de um dever de respeito no âmbito da comunidade dos seres humanos. “Nessa dimensão, encontra-se a família, como o espaço comunitário por excelência para realização de uma existência digna e da vida em comunhão com as outras pessoas” (LÔBO, 2008, p. 38).

Dias (2010, p. 63) corrobora o entendimento de Lôbo ao defender: “A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum -, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas”.

No entender de Lôbo (2008, p. 39), concretizar esse princípio é um desafio imenso, pois, ainda que o pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas seja uma garantia, não podemos olvidar sua violação diante da realidade social, principalmente no tocante às crianças.

No que diz respeito a esta dignidade da pessoa da criança, Lôbo (2008, p. 39) defende que o fato de a Constituição ter estabelecido diversos deveres da família já demonstra uma espetacular mudança de paradigma. Vale reproduzir o disposto no artigo 227, caput, da Constituição Federal (BRASIL, 1988): “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Podemos concluir então, que o princípio em estudo constitui um norte para a atuação do Estado, de modo que este não poderá praticar atos que atentem contra a dignidade humana. Ademais, no âmbito das relações familiares, temos que se consumaram na ordem jurídica as condições necessárias “para que as pessoas realizem e respeitem reciprocamente suas dignidades como pais, filhos, cônjuges, companheiros, parentes, crianças, idoso, ainda que a dura realidade da vida nem sempre corresponda a esse desiderato” (LÔBO, 2008, p. 39).

4.1.2 Princípio da afetividade

“É o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico” (LÔBO, 2008, p. 48).

Conforme o publicado no capítulo anterior, as mudanças ocorridas na estruturação das entidades familiares e a busca pela felicidade e dignidade plenas, elevou o afeto a um nível de relevância nunca antes experimentado. “A partir do momento em que o afeto surgiu e passou a perdurar na vida dos seres humanos, tornou-se um sentimento necessário para que o indivíduo possa encontrar sua verdadeira felicidade” (REHBEIN; SCHIRMER, 2010).

Resultado da evolução da família brasileira nas últimas décadas do século XX, este princípio fora consagrado na Constituição de 1988, de modo a especializar os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, bem como entrelaçar-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, o que faz por ressaltar a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família (LÔBO, 2008, p. 48).

O princípio da afetividade está implícito na Constituição Federal de 1988 e por tal motivo sua compreensão se dá por vias reflexas. Dias (2010, p. 70) disserta acerca do tema: “O Estado impõe a si obrigações para com os seus cidadãos. Por isso elenca a Constituição um rol imenso de direitos individuais e sociais, como forma de garantir a dignidade de todos. Isso nada mais é do que o compromisso de assegurar afeto: o primeiro obrigado a assegurar o afeto por seus cidadãos é o próprio Estado. Mesmo que a Constituição tenha enlaçado o afeto no âmbito de sua proteção, a palavra afeto não está no texto constitucional. Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que a afetividade, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual”.

O princípio em tela está diretamente associado ao princípio da dignidade humana, “uma vez que a fundamentação do princípio da afetividade surge da sistemática interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana e ambos instituem e preservam o mesmo valor, qual seja, o digno desenvolvimento do ser humano” (REHBEIN; SCHIRMER, 2010).

Com a consagração do afeto a direito fundamental e as mudanças ocorridas no seio das entidades familiares nos últimos anos, podemos concluir que esta “recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida” (LÔBO, 2008, p. 48). Deste modo, “fazer coincidir a filiação com a origem genética é transformar aquela, de fato cultural e social em determinismo biológico, o que não contempla suas dimensões existenciais, podendo ser a solução pior” (LÔBO, 2008, p. 52).

A chamada verdade biológica nem sempre é a adequada, pois esta, não raro, é insuficiente para fundamentar a filiação, “especialmente quando esta já tiver sido constituída na convivência duradoura com pais socioafetivos (posse de estado) ou quando derivar da adoção” (LÔBO, 2008, p. 52). A respeito da repercussão do princípio da afetividade no âmbito familiar, Lôbo (2208, p. 52) ensina: “A família atual é tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo. A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais, […] reencontrou-se no fundamento da afetividade, na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que se constitui entre um pai ou mãe e seus filhos. A afetividade […] entrou nas cogitações dos juristas, que buscam explicar as relações familiares contemporâneas”.

Podemos concluir então, que no tocante à filiação o princípio da afetividade nos remete – a depender do caso concreto – à primazia da posse do estado de filho, independentemente da origem biológica. Como dito no capítulo anterior, acórdãos de diversos tribunais já vêm defendendo a sobreposição da socioafetividade ante ao vínculo sanguíneo.

A seguir, trataremos de outro princípio de conhecimento obrigatório para a compreensão do tema.

4.1.3 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente

De acordo com o entendimento de Lôbo (2008, p. 53), o princípio em tela significa que “a criança deve ter seus interesses tratados com prioridade, pelo Estado, pela sociedade e pela família, tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos que lhe digam respeito, notadamente nas relações familiares, como pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade”.

No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio encontra respaldo no artigo 227 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), o qual estabelece: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Necessário também citar a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1989), da qual o Brasil é Estado-Parte, cujo texto estabelece que todas as ações relativas aos menores devem considerar, primordialmente, “o interesse maior da criança” (LÔBO, 2008, p. 55). Instituído em seu artigo 3º, alínea I, está: “Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança”.

O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente também está consagrado em alguns artigos da Lei nº 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), no que segue: “Art. 4. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (grifo nosso); “Art. 6. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.

Conclui-se, portanto, que o princípio sob exame servirá sempre de norte para o julgador, por ser o interesse da criança e do adolescente critério significativo e de imensa relevância no momento de se aplicar a lei e dirimir os conflitos.

Necessário ainda conceituarmos outro princípio, o da convivência familiar e comunitária.

4.1.4 Princípio da convivência familiar e comunitária

“O direito à convivência familiar, previsto no artigo 227 da Constituição Federal de 1988, é um dos direitos da personalidade da criança e do adolescente – portanto, direito essencial” (XAVIER, 2008, p. 59).

Da lição de Cação (2007, p. 66) extrai-se que a definição do que seja convivência familiar e comunitária nada mais é do que “o direito de ser criado e educado no seio da família, seja ela biológica ou substituta”.

O mesmo autor prossegue ensinando que: “O direito à convivência familiar e comunitária encerra em si todo um conjunto de ideias que se destinam a proteger a criança e adolescente, visando sua completa formação. Dentre estas ideias se pode relacionar a proteção á família, que deveria sempre ser o primeiro ambiente de acolhimento, onde esta criança possa se sentir segura e receber os cuidados adequados” (CAÇÃO, 2007, p. 66).

Xavier (2008, p. 60) destaca que esta convivência familiar “deve se pautar em uma ética humanitária, de responsabilidade social, de cooperação solidária e de respeito ao próximo, para o estabelecimento de vínculos interpessoais duradouros que propiciem elevação da auto-estima e bem-estar psicossocial”.

Inclui-se também na conceituação deste princípio, “a noção de socialização, ou seja, o relacionamento entre pessoas diferentes, a atuação em conjunto, a tolerância e a construção de parâmetros que ajudarão a criança, como cidadã, a conhecer e respeitar o outro” (CAÇÃO, 2007, p. 67).

O princípio em tela encontra respaldo também no artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), o qual dispõe: “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”.

Rodrigues (2007, p. 187), ao dissertar sobre este dispositivo do Estatuto em comento, teceu o seguinte comentário: “Dentre os direitos fundamentais reproduzidos pelo Estatuto, em seu artigo 19 dispôs que “toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família”, procurando ressaltar a importância da vida em família como ambiente natural para o desenvolvimento daqueles que ainda não atingiram a vida adulta, valorizando essa convivência quer na família natural, quer na substituta”.

É sabido que a entidade familiar exerce papel fundamental no desenvolvimento psicológico e social da criança em formação, de modo que esta não pode ser privada da convivência diária com aqueles que são membros de sua família, sob pena de sofrer profundas consequências. Neste sentido, o Estado deve sempre priorizar o melhor interesse da criança e promover sua proteção integral, nos moldes do disposto em nossa Constituição.

Feitos os comentários iniciais de conhecimento necessário para a defesa do tema, passemos ao estudo do direito de visita propriamente dito.

4.2 Do direito de visita

A partir da promulgação da Lei nº 12.398/2011, o direito de visita, que até então era permitido apenas aos genitores, foi estendido aos avós.

Desta feita, fora acrescentado um parágrafo único ao artigo 1.589 do Código Civil (BRASIL, 2002), o qual passou a ter o seguinte teor: Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação.Parágrafo único.  O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente (grifo nosso).

O inciso VII do artigo 888 do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973) também fora modificado: “Art. 888. O juiz poderá ordenar ou autorizar, na pendência da ação principal ou antes de sua propositura: […] VII – a guarda e a educação dos filhos, regulado o direito de visita que, no interesse da criança ou do adolescente, pode, a critério do juiz, ser extensivo a cada um dos avós; […]” (grifo nosso).

Frisa-se que os tribunais brasileiros já vinham concedendo o direito de visita dos avós aos netos, de modo que a promulgação da Lei 12.398/2011 veio a preencher uma lacuna até então existente no ordenamento e promover o bem-estar dos pequenos.

Ademais, nada mais coerente do que permitir que avós continuem a conviver com seus netos e, deste modo, colaborar para o seu desenvolvimento social e psicológico.

Nos tópicos seguintes, trataremos dos pormenores que envolvem este instituto de direito de família.

4.2.1 Conceito do direito de visita

Dispõe o artigo 1.589 do Código Civil (BRASIL, 2002): “O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.

De forma bastante simplória, podemos conceituar o direito de visita como sendo aquele que “as pessoas unidas por laços de afetividade tem de manter a convivência quando esta for rompida” (BOSCHI, 2006, p. 35).

Novo comentário nos traz Gonçalves (2011, p. 299) ao explanar sobre o tema, no que segue: “O cônjuge que não ficou com a guarda dos filhos menores tem o direito de visitá-los”.

Rodrigues (2005, p. 254) elaborou a seguinte conceituação: “De um modo geral a visita é o ato e ir ver alguém. Porém, no Direito de família é mais do que isso: não é só a ação de ir ver alguém, mas também de estar consigo de forma não permanente. Exercita a visita tanto o pai que vai ver o filho e passa com ele algumas horas, como aquele que fica com os filhos aos finais de semana e nas férias escolares”.

Deste modo, o direito de visita pressupõe a existência de alguns elementos essenciais, quais sejam: “A visita pressupõe que visitador e visitado não estão numa situação de presença permanente. É óbvio: não se visita pessoa com quem se vive, e sim, alguém com a qual não se convive constantemente. A visita importa assim intermitência, intervalo, descontinuidade. Dá-se a visita no direito de família quando preexiste a guarda de um menor por outra pessoa. Quem tem a guarda não visita; faz visita quem não tem a guarda. Se um deve visitar é porque a guarda é de outro” (RODRIGUES, 2005, p. 255) (grifo nosso).

No entanto, cumpre ressaltar que tal direito “pode ser restringido e até suprimido temporariamente, em situações excepcionais, quando as visitas estiverem sendo comprovadamente nocivas aos filhos” (GONÇALVES, 2011, p. 301), tendo em vista que o melhor interesse da criança deve ser sempre preservado.

Neste sentido, colhe-se da doutrina: “O direito de visita, com efeito, na medida em que se invoca a sua natureza puramente afetiva, ‘não tem caráter definitivo, devendo ser modificado sempre que as circunstâncias o aconselharem; e também não é absoluto, pois, por humana que se apresente a solução de nunca privar o pai ou a mãe do direito de ver seus filhos, situações se podem configurar em que o exercício do direito de visita venha a ser fonte de prejuízos – principalmente no aspecto moral -, sendo certo que todos os problemas devem ser solucionados à luz do princípio de que é o interesse dos menores o que deve prevalecer’” (MATTIA, 1982, p. 431 apud GONÇALVES, 2011, p. 301).

Boschi (2006, p. 3) teceu alguns comentários acerca da escolha da locução “direito de visita” para nomear tal instituto, por considerá-la imprópria para designar o seu verdadeiro alcance e conteúdo. Baseou seu entendimento nos argumentos que seguem: “A locução ‘direito de visita’ é inadequada para simbolizar seu verdadeiro conteúdo e alcance, podendo em muitos casos conduzir a equívocos, conforme os significados que se atribuem às palavras ‘direito’ e ‘visita’. No tocante ao vocábulo ‘direito’, em sua associação com o termo ‘visita’, tem-se a impressão errônea de que sempre se trata d faculdade ou autorização dada a alguém (o visitante) pra visitar outrem (o visitado), segundo um critério de conveniência e oportunidade do primeiro em relação ao segundo, o que não corresponde à realidade” (BOSCHI, 2006, p. 3).

O mesmo autor prossegue seu raciocínio: “A palavra ‘direito’, sempre associada ao instituto da visita, acaba dando-lhe uma conotação distorcida, capaz, inclusive, de induzir a erros de interpretação, levando o operador do direito a acreditar que se trata de direito do visitante, quando, na verdade, é dever deste ou, está subordinado ao superior interesse do visitado, este sim o verdadeiro detentor do direito. […] O direito de visita guarda alguma semelhança com o sentido comum atribuído à palavra ‘visita’, quando se refere ao ato de ir ver alguém. Todavia, na acepção técnico-jurídica dada ao termo […] a visita vai muito além daquele ato” (BOSCHI, 2006, p. 4).

Quanto ao sentido técnico-jurídico conferido ao termo “visita”, o autor finaliza: “A visita, no sentido técnico conferido pelo direito, envolve a comunicação entre as partes, o pernoite, a companhia, a vigilância e o compartilhamento das emoções, além de possibilitar ao visitante o exercício, quando for o caso, de determinadas funções vinculadas ao poder familiar. No sentido técnico-jurídico […], ‘visita’ assume um significado muito maior, cuja melhor expressão seria ‘conviver’. A convivência denota familiaridade ou trato diário, indo muito além do significado da palavra ‘visita’, encerrando, ao nosso ver, a finalidade do direito de visita, que é exatamente manter o trato ou o convívio rompido entre o visitante e o visitado” (BOSCHI, 2006, p. 4-5).

Pode-se concluir que o direito de visita busca preservar a convivência [geralmente] entre pais e filhos, para que estes mantenham o elo de afetividade que os une e seja canal para que aquele exerça os deveres que do poder familiar lhe resultam. Cumpre ressaltar ainda, que o melhor interesse do menor deve sempre ser o norte no direcionamento do convencimento do magistrado, no que diz respeito ao deferimento ou não do pedido de visitação.

No tópico seguinte, prosseguiremos com o estudo do instituto da visita, sob a ótica de sua natureza jurídica.

4.2.2 Natureza jurídica do direito de visita

A natureza jurídica do direito de visita modifica-se conforme o referencial utilizado para sua apreciação. Nos tópicos seguintes analisaremos as hipóteses doutrinariamente previstas.

4.2.2.1 Do ponto de vista dos pais

Antes da promulgação da nova ordem constitucional, o direito de visita dos pais em relação aos filhos sempre foi visto apenas “como um direito destes, que poderiam ou não exercê-lo sempre que, por qualquer motivo, viessem a ser privados da companhia do filho, em geral por rompimento da possível união existente entre os genitores do visitado” (BOSCHI, 2006, p. 49-50).

Tal entendimento derivava do fato de considerar-se a regulamentação do exercício do direito de visita uma faculdade dos genitores tendo, portanto, caráter não obrigatório.

Ressalta-se, no entanto, que o cenário jurídico no tocante ao direito de família sofreu profundas alterações em decorrência do advento da Constituição Federal e consolidou-se com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (BOSCHI, 2006, p. 52). Como consequência, a natureza jurídica do direito de visita também sofreu modificações relevantes.

Conforme visto em tópicos anteriores, o disposto no artigo 227 da Constituição Federal estabelece ser direito da criança e do adolescente a convivência familiar, “devendo tal prerrogativa ser assegurada pela família, pela sociedade e pelo Estado com absoluta prioridade” (BOSCHI, 2006, p. 53). Por consequência “desse direito de convivência familiar das crianças e adolescente, decorre logicamente o dever jurídico dos pais de assegurá-lo, independente do fato de estarem ou não separados” (BOSCHI, 2006, p. 53).

Estabelece o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990): “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”.

Neste norte, ainda que a família encontre-se fragmentada “o infante continua a ter o direito de ser criado por ambos, de forma que, se a um deles for atribuída a guarda, ao outro corresponderá o dever de visita, a fim de que possa exercitar as funções que lhe são impostas por lei” (BOSCHI, 2006, p. 53) (grifo nosso).

É sabido que dentre os vários deveres inerentes aos genitores em relação aos seus filhos, temos o dever de sustento, de educação, de assistência e de criação, de modo que, se a um dos genitores é concebida a guarda, ao outro também caberá o dever de exercer com zelo e dedicação as obrigações que a lei lhe impõe (BOSCHI, 2006, p. 54). Podemos constatar então, que é no exercício regular do dever de visita que o pai não guardião irá exercer tais deveres.

Cumpre ainda ressaltar que o genitor não deverá se limitar a prestar apenas assistência material, na forma de alimentos, “mas também imaterial, consubstanciada no afeto, no carinho, aconchego, apoio moral, sustentação nas dificuldades da vida, aconselhamentos, troca de experiência e defesa de seus direitos e interesses” (BOSCHI, 2006, p. 54-55).

É, portanto, no decorrer do exercício do direito de visita, que o genitor não guardião poderá contribuir para a criação, o desenvolvimento da personalidade e o sustento psicológico do filho.

Por derradeiro, podemos concluir que, sob a ótica dos pais, o direito de visita é na verdade um dever, uma vez que a presença de ambos é de suma importância para o pleno desenvolvimento da criança.

E sob a perspectiva da criança? Analisaremos a seguir.

4.2.2.2 Do ponto de vista do visitado

Tomando-se por referencial o visitado, a natureza jurídica do direito de visita assume nova moldura. Compartilhamos do entendimento de Boschi (2006, p. 76), o qual entende ser o visitado o verdadeiro titular do direito de visita, uma vez que é ele o possuidor do maior interesse ao qual se subordinam todos os demais. Neste norte, “quem tem direito de visitar e ser visitado é o menor ou maior incapaz” (BOSCHI, 2006, p. 76).

No mesmo sentido, Rodrigues (2005, p. 257) pontua: “O direito de visita – melhor seria direito à visita – consiste no direito de ser visitado, e não no direito de ir visitar o outro. A expressão “direito de visita” deve ser interpretada como a faculdade que alguém tem de receber visita, quer dos pais, quer de parentes e amigos. Não é, pois, um direito do pai em relação ao filho, de acordo com o formalizado entendimento, mas um direito do filho em relação ao pai que não tem a guarda, ou em relação a toda e qualquer pessoa cuja convivência lhe interessa. Não pode assim ser entendido como uma extensão do poder parental” (grifo nosso).

Boschi (2006, p. 51) complementa: “O ‘direito de visita’ é um direito dos filhos e não dos pais. A tal direito dos filhos corresponde o dever dos pais de tê-los em sua companhia. Em outras palavras, o verdadeiro direito é o ‘direito dos filhos à companhia dos pais’. Este é um direito consagrado em lei, tem vida própria e forma definida. O que se denomina, desavisadamente, de ‘direito de visita’ não passa de um apêndice do direito que todo filho tem de estar na companhia dos pais, numa escala mais limitada, ou na companhia da família, numa escala mais abrangente” (grifo nosso).

Conforme já fora exaustivamente explanado, a Constituição Federal e, posteriormente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, conferiram um vasto rol de direitos aos menores, os quais figuram como direitos inerentes à própria personalidade daqueles. 

No sentir de Boschi (2006, p. 78), tais direitos da personalidade, que visam o pleno desenvolvimento do menor, envolvem também, o direito de visitar e ser visitado. Em outras palavras, envolve o direito de manter uma “convivência estreita com pessoas a quem se vincula afetivamente, na medida em que tal convivência é fundamental para o processo de personificação e socialização da criança e do adolescente” (BOSCHI, 2006, p. 78).

De forma a concluir a sua postura perante o tema proposto, Boschi (2006, p. 79) finaliza: “Assim, considerando que o menor tem um direito fundamental prioritário, em face da família, da sociedade e do Estado, è convivência familiar e comunitária, podendo, portanto, manter vínculos de afeto dentro e fora da família, e que deve receber especial proteção aos seus interesses, visando seu integral desenvolvimento (físico, psíquico, moral, espiritual e educacional), evitando-se qualquer forma de negligência aos seus interesses fundamentais, o direito de visita visto da perspectiva da criança é um direito da personalidade”.

Todavia, indispensável pontuar que é possível que, se “o interesse superior do visitado indicar a necessidade de sua convivência com alguém” (BOSCHI, 2006, p. 79) – e aqui incluímos não só os genitores, mas também parentes e terceiros – o menor estará autorizado a requerer judicialmente o deferimento do seu pedido de visita. Deste modo, se houver laços recíprocos de afeto, aquelas pessoas deverão realizar as visitas, uma vez que o visitado tem “o sagrado direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade” (BOSCHI, 2006, p. 79).

Sobre a possibilidade de o menor figurar no pólo ativo de uma ação de regulamentação de visitas, Boschi (2006, p. 126) pontua: “Se pode figurar como sujeito passivo da relação de visita pretendida por alguém em face de sua pessoa, não se vê por que não possa assumir o pólo ativo, pleiteando […] o direito de visita de pessoas cujo seu interesse reclame, com vistas ao desenvolvimento global de sua personalidade”.

Concluímos, portanto, que sob a perspectiva do visitado, é este o detentor do direito de visita e que, uma vez comprovado que o trato diário e o vínculo de afeto com determinada pessoa atende aos interesses do menor, deverá ser o seu direito de convivência defendido.

4.2.3 Fundamento do direito de visita

“A nota característica existente quando se fala em direito de visita dos pais, parentes e terceiros não reside nos vínculos jurídicos de paternidade, do parentesco ou da família” (BOSCHI, 2006, p. 45). Podemos dizer sem medo de errar que o que paira subjacente ao direito de visita são os vínculos afetivos existentes entre visitante e visitado. Nesta senda, percebemos que tal direito não deve ser exclusividade de genitores ou avós, pois o afeto do menor pode se estender a outras pessoas.

Sobre a finalidade precípua do direito de visita, Boschi (2006, p. 47) tece o seguinte comentário: “O que se busca no direito de visita é a permanência dos fortes vínculos de afeto existente entre visitante e visitado, através da manutenção da convivência entre eles, visando fortalecer a relação como meio de garantir as necessidades emocionais das partes, evitando, por outro lado, as nefastas consequências oriundas da ruptura das relações de ordem sentimental”.

E prossegue: “É indiferente que essa convivência seja fruto ou não da paternidade ou da maternidade, do parentesco ou de qualquer outra relação jurídica, pois o importante é que exista entre visitante e visitado forte vínculo de afeto qualificado, ou seja, profundo, constante, saudável e necessário para o desenvolvimento integral de ambos” (BOSCHI, 2006, p. 47) (grifo nosso).

Sabedores que o direito de visita “é o meio de manter intacta o mais possível a convivência entre visitante e visitado, a fim de que possam continuar desfrutando do afeto positivo existente entre eles” (BOSCHI, 2006, 47), chega-se à conclusão que aquilo que, de fato, fundamenta tal direito “são os fortes laços de afetividade existentes entre visitante e visitado” (BOSHI, 2006, p. 48).

Boschi (2006, p. 47) explana que este afeto é de fundamental importância para que o menor possa viver e “desenvolver-se em todos os aspectos, principalmente no que diz respeito á capacidade de lidar com os próprios sentimentos e emoções”. Daí resulta a necessidade de o Estado zelar por sua proteção.

No tocante à importância do compartilhamento do afeto recíproco, Boschi (2006, p. 46) destaca: “O que faz com que o homem crie laços com uns e não com outros é a simpatia, ou seja, a primeira inclinação que reúne duas ou mais pessoas, e que nasce do sentimento de amor, imanente ao homem, o qual ele dirige às pessoas e às coisas que estão à sua volta conforme critérios subjetivos. Nesse sentido, podemos dizer que o amor de uma pessoa por outra não é um dado da natureza. O amor e a necessidade de agregar-se são imanentes ao ser, mas o amor por outrem, ou seja, a simpatia que se estabelece entre uma pessoa e outra é um construído oriundo de uma vontade espontânea que deve ser compartilhada”.

Logo, se é no âmbito das relações entre pessoas envolvidas por laços profundos de afeto que nasce o direito recíproco de visita, direito este que tem por fim proteger as partes das desagradáveis consequências de uma ruptura traumática da convivência, constatamos que, uma vez havida tal ruptura, a parte interessada deverá recorrer ao Poder Judiciário, a fim de que seja regulamentado o direito de manter incólume aquela convivência, baseada nos laços de afeto preexistentes entre visitante e visitado (BOSCHI, 2006, p. 49).

Delineadas as linhas gerais do direito de visita e, notadamente, a importância que o afeto revela ter em tal instituto, passemos ao estudo da possibilidade do direito de visita do pai socioafetivo sem vínculo jurídico.

4.2.4 O direito de visita de terceiro: o pai socioafetivo sem vínculo jurídico

Relatamos no capítulo anterior as formas de manifestação da socioafetividade no âmbito familiar e buscamos demonstrar sua superioridade frente ao vínculo meramente biológico.

Ocorre que, como também fora explanado oportunamente, este tipo de relacionamento interfamiliar carece de regulamentação formal no ordenamento jurídico pátrio, de modo que ao pai socioafetivo sem vínculo jurídico algum, não são concedidos direitos precisos. O que temos até então, são acórdãos que, por vezes, delimitam direitos a estes pais afetivos em relação àqueles que criaram como se filhos fossem.

No entanto, parece-nos indevido o fato de a legislação civil ainda manter lacunas frente a um fato social tão corriqueiro e desmerecedor de tamanho desamparo. Isto porque, os princípios de direito estudados anteriormente indicam que essa relação baseada unicamente no afeto deve ser protegida a fim de se evitar as consequências advindas da ruptura inesperada do trato pai/filho afetivo.

Como o que buscamos com a feitura deste trabalho, é demonstrar a possibilidade do deferimento do pedido de visita do pai socioafetivo sem vinculação jurídica, passemos ao estudo desta hipótese em especial.

De início, trazemos à baila exemplo formulado por Boschi (2006, p. 67), o qual ilustra perfeitamente aquilo que pretendemos demonstrar: “Vamos imaginar que um homem venha a unir-se estavelmente com uma mulher que tem um filho recém-nascido. Essa união perdura por mais de dez anos consecutivos, nos quais o companheiro assume todos os cuidados com a criança, colaborando efetivamente para seu sustento, criação e educação, dando-lhe toda assistência material e imaterial, estabelecendo com ela forte ligação afetiva, profunda e positiva. Na constância da união estável, o infante acaba por substituir a figura do pai biológico pela do pai afetivo, o companheiro de sua mãe, ainda que este não o tenha gerado; aliás, a questão genética, sob o ponto de vista da criança, é o que menos importa, pois para ela é melhor ter quem satisfaça suas necessidades materiais e imateriais do que alguém que simplesmente lhe dê um nome, desacompanhado de amor e carinho. Sobrevindo a dissolução da união estável desses companheiros, com a consequente ruptura da convivência do pai afetivo com o filho de sua ex-companheira, como devem ser regradas essas relações, a fim de que o menor não venha a ser prejudicado? Como garantir ao companheiro, que não é genitor, a manutenção da convivência perdida e, principalmente, dos vínculos de afeto preestabelecidos?” (grifo nosso).

Conforme já estudado em tópicos anteriores, o direito de visita tem seu fundamento jurídico no vínculo de afeto, puro e simples. Neste diapasão, parece-nos descabida a possibilidade de deferimento de tal pedido somente aos genitores e aos avós, de modo que, uma vez evidenciada que determinada relação com determinado sujeito se mostra de profundo valor para a saúde psicológica do menor, o direito de manter essa convivência também deve ser resguardado pelo Estado. E no tocante ao pai socioafetivo, por certo, a ruptura brusca do trato diário entre pai e filho seguramente enseja um profundo abalo emocional a este.

Neste norte, compartilhamos do entendimento de Xavier (2008, p. 71): “Certo é que o rompimento do convívio com pessoas com as quais a criança e o adolescente mantêm forte vínculo afetivo pode provocar conseqüências de ordem psicológica, comprometendo o seu desenvolvimento saudável, em face do sentimento de abandono que, por certo, irá comprometer o seu desenvolvimento”.

Sobre a mesma questão, Boschi (2006, p. 32-33) leciona: “O direito de visita não decorre única e exclusivamente do poder familiar, assim como não está adstrito somente às relações de parentesco, pois existem situações específicas em que um terceiro não parente, como, por exemplo, uma pessoa que tenha exercido por longo período a guarda de fato de uma criança na ausência dos pais tem o direito de manter os laços afetivos que criou e desenvolveu; e, na hipótese de essa guarda de fato pelo terceiro não mais se verificar, cremos que ele terá o direito de visitar aquele com quem mantinha vínculos sentimentais”.

O Direito não pode ficar alheio a situações como estas e deve sempre buscar a melhor solução para os conflitos. Neste sentido, ainda que não haja norma expressa do ordenamento brasileiro assegurando a manutenção da convivência entre pai e filho socioafetivos através do direito de visita, o aplicador do Direito deve preencher tal lacuna e promover o melhor interesse do menor.

Boschi (2006, p. 70) ensina: “A hipótese revela a existência de um fato social, que é o inter-relacionamento, a convivência entre as pessoas. Tal fato social, por sua vez, une-se a um valor, a affectio, que permeia essa relação e deve ser mantida no interesse das partes, especialmente do visitado. Contudo, esse fato e esse valor não encontram correspondência nas normas do ordenamento jurídico”.

E prossegue: “Ainda que o ordenamento jurídico positivo não tenha uma lei que preveja tal fato, o sistema jurídico, que não se reduz apenas às normas, mas é composto também de fatos e valores, pode dar solução ao problema, buscando-a dentro do conjunto dos princípios axiológicos que informam o direito” (BOSCHI, 2006, p. 68).

É sabido que quando estamos diante de uma lacuna normativa, o aplicador do direito está autorizado a preencher este vazio, recorrendo à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. É o que estabelece o artigo 126 do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973): “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”.

No mesmo norte, temos os artigos 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (BRASIL, 1942), respectivamente: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”; “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Nesta seara, Boschi (2006, p. 76) defende: “Na total ausência de norma jurídica expressa que preveja a manutenção da convivência de pessoas que não estão vinculadas pelo poder familiar, mas que compartilham sentimentos, emoções, amor e carinho, acreditamos que a lacuna normativa ocorrente pode ser preenchida, no caso concreto, recorrendo-se aos princípios gerais do direito. Ao agir dessa forma o aplicador do direito estará reconhecendo, explicitamente, um direito subjetivo, essencial, inato ou próprio da natureza humana, portanto, um direito da personalidade ainda não positivado nas leis, mas que pode ser assegurado pelo Poder Judiciário através de norma individual (sentença)” (grifo nosso).

Os princípios estudados no início deste capítulo são suficientes para ensejar o preenchimento desta lacuna e promover a posterior extensão do direito de visita ao pai socioafetivo. Isto porque o interesse do menor deve sempre ser protegido e se é da sua vontade ser visitado por aquele que durante longo período preencheu a figura paterna no seu cotidiano, nada mais justo do que conceder judicialmente a possibilidade de este vínculo afetivo ser mantido por meio da regulamentação de visitas.

Xavier (2008, p. 72) defende: “Nada mais natural que a extensão do direito de visita a todos os indivíduos que se vinculem uns aos outros por laços de afetividade, naturais, por afinidade ou por vontade expressa, em um espaço de convívio permanente, com ou sem vínculo familiar, desde que, no caso das crianças e adolescentes, nos limites do seu melhor interesse e de sua proteção integral”.

O Egrégio Tribunal de Justiça do estado de Minas Gerais já decidiu neste sentido. Vejamos: “AÇÃO ANULATÓRIA DE REGISTRO DE NASCIMENTO – ANSEIO DO PAI GENÉTICO EM VER REVISTA A QUALIFICAÇÃO PATERNA NO REGISTRO DA CRIANÇA – ESTUDO SOCIAL – DEMONSTRAÇÃO DE EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO PATERNO-FILIAL ENTRE O PAI SÓCIO-AFETIVO E A CRIANÇA – PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DA MENOR – PROVIMENTO NEGADO. A filiação sócio-afetiva é aquela em que se desenvolvem durante o tempo do convívio, laços de afeição e identidade pessoal, familiares e morais. À luz do princípio da dignidade humana, bem como do direito fundamental da criança e do adolescente à convivência familiar, traduz-se ser mais relevante a ideia de paternidade responsável, afetiva e solidária, do que a ligação exclusivamente sanguínea. O interesse da criança deve estar em primeiro lugar, uma vez que é inegável que em casos de convivência habitual e duradoura com pessoas estranhas ao parentesco, o menor adquire vínculos de confiança, amor e afetividade em relação a estas pessoas. Esse vínculo não pode ser destruído por terceiro, mesmo que com base em laços sanguíneos, se afronta os interesses da criança, colocando-a em situação de instabilidade e insegurança jurídica e emocional” (MINAS GERAIS, 2011) (grifo nosso).

Ademais, o direito de visita é também considerado um direito da personalidade, tendo em vista estar relacionado ao direito fundamental que toda pessoa tem de estabelecer relações familiares e por meio delas promover seu crescimento espiritual e psicológico, bem como usufruir de todas as benesses que a convivência familiar pode acarretar.

Boschi (2006, p. 75) corrobora tal entendimento: “Amar o semelhante e receber amor do próximo é questão imanente ao homem, é da sua própria essência, independe de uma norma autorizante (sic) expressa. Se há amor entre duas pessoas, se elas compartilham carinho e afeto, parece-nos que têm o direito de manter essa troca de emoções sempre que a convivência entre elas for coarcta, independente de estarem ou não ligadas por laços de parentesco ou vinculadas pelo poder familiar”.

O reconhecimento do direito de visita ao pai socioafetivo ainda vem sendo deferido timidamente pelos tribunais. No entanto, decisão favorável já fora prolatada. É o que se colhe da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do estado de Minas Gerais: “AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO – PEDIDO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITA – PATERNIDADE SOCIOAFETIVA – POSSIBILIDADE.- Com base no princípio do melhor interesse da criança e no novo conceito eudemonista socioafetivo de família consagrado pela Constituição Federal de 1988, o direito de visita, que anteriormente era concebido apenas a quem detinha a guarda ou o poder familiar da criança, deve ser estendido a outras pessoas que com ela possuam relação de amor, carinho e afeto. Assim, considerando que o requerente conviveu com o requerido, menor de idade, durante cinco preciosos anos de sua vida, como se seu pai fosse, não se pode negar o vínculo sócioafetivo que os une, advindo daí a fundamentação para o pedido de visita” (MINAS GERAIS, 2008).

Neste acórdão, o relator motivou a manutenção do pedido de regulamentação de visita de terceiro – e negou provimento ao recurso interposto pelos pais biológicos da criança -, justamente na afetividade e no princípio do melhor interesse do menor, de modo que ao pai socioafetivo fora conferido o direito de visitá-lo em domingos alternados das 09h00min às 18h00min.

4.2.5 Considerações finais

Ante a tudo o que foi exposto, concluímos que quando estivermos diante de um caso concreto no qual se encontrem presentes os pressupostos necessários para o reconhecimento da paternidade socioafetiva, ainda que sem vínculo jurídico, como “a convivência por longo período, a existência de fortes laços afetivos decorrentes desse convívio e interesse do visitado na manutenção dos vínculos emotivos e das relações pessoais” (BOSCHI, 2006, p. 124), o direito de visita deve ser assegurado, conforme o melhor interesse da criança.

Isto porque, ainda que haja uma lacuna normativa acerca deste tema, o magistrado deve observar as peculiaridades de cada caso e promover, se for do interesse do menor, a manutenção daquele vínculo de afeto criado ao longo dos anos entre pai e filho afetivos, abeberando-se nos princípios gerais de direito oportunamente elencados.

Conclusão: O conceito de família sofreu profundas transformações a partir da promulgação da Constituição de 1988, de modo que aquela família retratada no revogado Código Civil de 1916 não compreendia mais o que a realidade expunha.

Isto porque a família, que até então era patriarcal, hierarquizada e exclusivamente fundada no casamento, cedeu espaço àquela que busca a realização pessoal de seus membros, bem como mantém um profundo envolvimento afetivo.

Podemos dizer então, que a nova ordem constitucional superou o antigo modelo e ocasionou uma profunda revolução no direito de família brasileiro, pois ampliou a proteção estatal à entidade familiar e estendeu o seu conceito. A Constituição Cidadã de 1988 abarcou a nova realidade social ao reconhecer a união estável como entidade familiar, igualar os direito e deveres dos cônjuges, dispensar especial proteção às pessoas dos filhos vedando qualquer espécie de discriminação, bem como reconhecer a família monoparental.

Inegável que essa resposta social às necessidades dos indivíduos apresentou-se convergente com o Estado Democrático de Direito e foi embasada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Neste diapasão, temos o surgimento da família eudemonista, a qual indica que a entidade familiar deve ser reconhecida muito mais pelo envolvimento afetivo de seus membros do que por qualquer vínculo biológico. Representação deste novo modelo de família é a socioafetividade.

A socioafetividade, presente na adoção – judicial ou à brasileira -, na inseminação artificial heteróloga e na posse de estado de filho, é um indicativo que toda paternidade deve ser acima de tudo, afetiva. Isto porque, nestes casos não há liame biológico entre os seus integrantes, mas ainda assim, todos são pais, mães e filhos. Ocorre que tal modalidade de filiação, quando baseada unicamente na posse de estado de filho, ainda não é contemplada pelo ordenamento jurídico pátrio, tendo suas peculiaridades se ajustado a entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, de modo que ainda não foram elencados os direitos e deveres que envolvem pai e filho afetivos. Nesta senda temos o direito de visita.

Como explanado oportunamente, a legislação brasileira confere expressamente o direito de visita apenas a genitores e, mais recentemente, aos avós. O que buscamos destacar é que se mostra devida a concessão do direito de visita também ao pai afetivo.  Isto porque, o estudo detido de tal instituto demonstrou que este se fundamenta puramente no vínculo afetivo existente entre visitante e visitado. Neste norte, sabedores daquilo que a nova ordem constitucional buscou introduzir no direito de família brasileiro, não nos parece plausível que aquele que durante longo período firmou com o infante laços recíprocos de carinho, seja impedido de continuar a conviver com o menor.

É sabido que diversos princípios respaldam tal entendimento, entre eles, o princípio da dignidade humana, da afetividade, da convivência familiar, do melhor interesse da criança, da solidariedade etc. Deste modo, o aplicador do Direito deve preencher esta lacuna normativa, abeberando-se em tais princípios para que encontre a melhor solução para o caso concreto.

Ademais, também é sabido que a brusca ruptura de convivência entre uma criança e aquele que durante longo período preencheu a figura de seu pai, pode acarretar consequências de ordem psicológica ao menor. Por tal motivo, o Estado deve sempre promover a efetividade do princípio do melhor interesse da criança e se for da vontade desta ser visitada por aquele que exerceu as funções de pai, ainda que não biológico, o magistrado deve transpor a omissão da lei e deferir o pedido de regulamentação de visitas em favor do pai socioafetivo.

 

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Nota:
 
[1] Trabalho orientado pela Prof. Esp. Keila Comelli Alberton, Especialista


Informações Sobre o Autor

Sabrina Lapa Duarte

Acadêmica de Direito na universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL


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