Socioambientalismo e agroecologia: caminhos para pensar o campesinato no caso brasileiro

Resumo: O presente trabalho constitui-se enquanto resultado parcial de pesquisa, desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Pelotas. Tendo como propósito central a discussão em torno da questão da agricultura baseada na agroecologia, enquanto um mecanismo de reprodução de uma tradição camponesa, está focado na gênese do ambientalismo brasileiro, na intersecção entre o ambientalismo e a ruralidade e nas interfaces entre o socioambientalismo e a reprodução de uma tradição camponesa a partir da agroecologia. Como guisa de conclusão, trabalha-se com a ideia que a agroecologia configura-se como um espaço de reprodução dos modos de vida camponeses em um sentido positivo.

Palavras-Chave: Agroecologia; Campesinato; Socioambientalismo.


Sumário: 1. Introdução. 2. O ambientalismo no caso brasileiro: do conservacionismo, passando pela bipolarização conservacionismo/socioambientalismo à multissetorialidade. 3. Sobre a questão ambiental no mundo rural. 4. Uma agricultura sob as bases da agroecologia enquanto um espaço de possibilidade para um campesinato em processo. 5. Conclusão. 6. Referências.


1. Introdução


O presente trabalho está inserido em processo de pesquisa[1] que se desenvolve dentro do contexto de vivência da agroecologia por camponeses na zona sul do estado do Rio Grande do Sul. Tomando alguns elementos que compõe o escopo do estudo, constituímos o ensaio, em que se partindo de uma breve revisão sobre o ambientalismo no caso brasileiro e sua interface com sua introdução no rural contemporâneo, buscou-se discutir como a agricultura baseada na agroecologia, pode se constituir num caminho possível à reprodução de uma tradição camponesa.


Partindo-se da constatação da presença da questão ambiental dentro de uma agenda de pesquisa acerca do campesinato na contemporaneidade brasileira, de maneira que, elementos pertencentes à pauta ambientalista, passam a compor os contextos de vivência estabelecidos pelos agricultores contemporâneos, buscou-se a elucidação acerca do processo sociopolítico que marca tal fenômeno, de forma que, sejamos capazes de compreender socialmente tais intersecções.


O trabalho encontra-se estruturado de maneira que o desenvolvimento e discussão se dão em três momentos distintos e complementares. Em um primeiro momento, tratamos de nos situar acerca da questão do ambientalismo brasileiro; num segundo momento, adentramos na dimensão de intersecção entre o ambientalismo e a ruralidade, enquanto um movimento histórico de introdução da questão ambiental no mundo rural pela via crítica ao modelo de modernização conservadora da agricultura; num terceiro momento discutimos algumas das interfaces que até este momento, podemos identificar entre o socioambientalismo e a reprodução de uma tradição camponesa a partir de uma agricultura baseada na agroecologia.


2. O ambientalismo no caso brasileiro: do conservacionismo, passando pela bipolarização conservacionismo/socioambientalismo à multissetorialidade


No Brasil, o que se constata é que a gênese das preocupações ambientais, segundo Santilli (2005), remete ao final do século XVIII e início do XIX, principalmente entre 1786 e 1888, principalmente centrados numa perspectiva preservacionista de espécies e/ou determinados nichos ecológicos, não se podendo ainda identificar traços sociopolíticos de um movimento ambientalista.


Essa visão adentrará o século XX, tendo sua maior expressão entre os anos 1920 e 1970, sendo desta época, a edição de uma série de normatizações e o surgimento de associações, que corroboram essa tendência. Como é o caso do tratado de proteção às aves úteis para a agricultura em 1921; a criação de dezenas de parques – cujos projetos são de inspiração norte americana – como o primeiro parque nacional brasileiro, de Itatiaia, na fronteira entre Minas Gerais e Rio de Janeiro no ano de 1937; seguido da criação do Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, do Parque Nacional da Serra dos Órgãos em 1939 e de uma dezena de outros parques nacionais, tendo o seu apogeu entre 1959 e 1961, em que são criados, por exemplo, o Parque Nacional de Aparados da Serra (RS), Parque Nacional do Araguaia (TO), Parque Nacional de Brasília (DF), Parque Nacional de Monte Pascoal (BA) e o Parque Nacional de Sete Cidades (PI).


A década de 1930 é marcada pelo surgimento, daquilo que Santilli (2005) denomina de antecessoras do que se chama organização ambientalista, tratando-se da Sociedade Amigos de Alberto Torres e da Sociedade Amigos de Árvores. Nesta época é que ocorre o surgimento de marcos regulatórios emblemáticos, já concebidos com um intuito protetivo mais amplo, como é o caso do Código de Águas, o primeiro Código Florestal, ambos de 1934 e o decreto que previa o tombamento de bens culturais e de monumentos naturais, sítios e paisagens em 1937.


A década de cinquenta é marcada pela criação da Fundação Brasileira para Conservação da Natureza (FBCN) em 1958 no Rio de Janeiro,congregando engenheiros agrônomos e cientistas naturais, na maioria funcionários públicos.


E, finalmente, na década de setenta, ocorrem grandes construções de alto impacto ao meio ambiente, como complexos industriais, hidroelétricas, estradas, sistemas portuários, empresas petrolíferas, bem como, a adoção de políticas nucleares, o que suscita os grupos ambientalistas a reagirem.


Mesmo que no período ditatorial, tenha se experimentado uma repressão generalizada, as iniciativas de organização política advindas da sociedade civil, correspondem ao final da década de setenta. Os primórdios daquilo que podemos denominar de configuração de um movimento ambientalista brasileiro, marcado pela formação de organizações, com uma pauta política ambientalista constituída, como são os casos da criação da Associação Gaúcha de Proteção do Ambiente Natural (AGAPAN), liderada por José Lutzenberger em Porto Alegre no ano de 1971; do Movimento Arte e Pensamento Ecológico (MAPE) e da Associação Paulista de Proteção Natural (APPN), em São Paulo, em 1973 e 1976, respectivamente. A orientação destas organizações se diferenciava das anteriores, porque de acordo com Alonso, Maciel e Costa (2007) começaram a dar conotações mais políticas à questão ambiental.


Alonso, Maciel e Costa (2007), ancorados numa perspectiva da Teoria do processo político[2], vão identificar o período de abertura política, como um novo momento, em que emerge uma nova estrutura de oportunidades políticas, que na visão dos autores, comportam quatro dimensões, a saber:


“primeiro, a abertura significou um amainamento da repressão aos protestos sociais em geral. Segundo, os ativistas ambientalistas podiam contar com aliados dentre outros movimentos sociais, bem como na Igreja Católica e na OAB, apoiadores potenciais dos protestos contra o regime em fins dos anos 70. Terceiro, as instituições políticas e administrativas se tornaram mais permeáveis às demandas da sociedade civil. Desde 1973, com a criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente, o aparato burocrático-legal ambiental foi sendo incrementado com a criação de órgãoslegislação específica, fornecendo aos ativistas novos espaços políticos e novas estruturas de mobilização para veicular suas reivindicações. Por fim, durante a Redemocratização, estava em constituição uma agenda ambientalista internacional. A Conferência de Estocolmo, reunião da ONU sobre meio ambiente e desenvolvimento em 1972, abriu a discussão pública nacional sobre a questão ambiental no Brasil” (ALONSO, MACIEL E COSTA, 2007, p. 124).


Sendo dentro desta conjunção, entre a manutenção de certa tradição conservacionista e o surgimento de novos grupos atrelados à contestação mais ampla da sociedade. Sob um quadro de condições precárias de canais de expressão política e, influenciado por uma agenda ambientalista internacional, é que se institui na nossa sociedade o movimento ambientalista em sua forma contemporânea, que na visão de Alonso, Maciel e Costa (2007), têm uma configuração dualista, por um lado conservacionista, por outro, socioambientalista. Fundamentalmente, essas duas visões, vão atuar na construção de identidades políticas diferenciadas.


Por um lado:


“A FBCN havia difundido no Brasil o conservacionismo clássico. No conteúdo, adotou uma visão biocêntrica da relação sociedade-natureza. O meio ambiente seria a natureza selvagem, a ser preservada da ação deletéria dos grupos sociais por meio de parques nacionais e reservas ambientais. Na forma, o discurso é cientificista: os especialistas das ciências naturais seriam autoridades incontestáveis na definição de problemas e de políticas ambientais. Dos dois ângulos, o conservacionismo segrega a questão ambiental de qualquer dimensão social e a apresenta como apolítica. Embora a EOP da Redemocratização e mudanças de conjuntura internacional tenham constrangido a FBCN a incorporar em seu discurso o “manejo” de recursos naturais para áreas florestais já habitadas por populações tradicionais, o cerne de seu conservacionismo pouco se alterou, mantendo seu epicentro na preservação da fauna e da flora” (ALONSO, MACIEL E COSTA, 2007, p. 124).


Por outro lado, o socioambientalismo, conforme enfatiza Santilli (2005, p. 12) “tal como o reconhecemos e identificamos nasceu neste período: a segunda metade dos anos 1980, a partir de articulações políticas entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista”. A esse respeito, Alonso, Maciel e Costa (2007, p. 12) afirmam que “a própria ideia de meio ambiente é redefinida como relação entre grupos sociais e recursos naturais. Estas dimensões sociais foram incorporadas de diferentes maneiras pelos ativistas brasileiros”.


Assim, Santilli (2005), afirma que o socioambientalismo


“foi construído a partir da ideia de que as políticas públicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais, detentoras de conhecimentos e de práticas de manejo ambiental. Mais do que isso, desenvolveu-se a partir da concepção de que, em um país pobre e com tantas desigualdades sociais, um novo paradigma de desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade estritamente ambiental – ou seja, a sustentabilidade de espécies, ecossistemas e processos ecológicos – como também a sustentabilidade social – ou seja, deve contribuir também para a redução da pobreza e das desigualdades sociais e promover valores como justiça social e equidade. Além disso, o novo paradigma de desenvolvimento preconizado pelo socioambientalismo deve promover e valorizar a diversidade cultural e a consolidação do processo democrático no país, com ampla participação social na gestão ambiental” (SANTILLI, 2005, p. 14).


Constituindo-se num processo sociopolítico particular, emergente de uma perspectiva de convergência entre atores políticos que se organizam em torno das principais questões relacionadas a uma crítica ao modelo de desenvolvimento adotado no país.


Em 1995, Leis e Viola, constroem uma espécie de mapeamento acerca da estruturação do ambientalismo brasileiro, a partir dos setores e respectivos atores existentes no caso brasileiro. Seguindo a mesma lógica de Santilli eles trabalham com a ideia de que até 1985 o ambientalismo brasileiro tem um caráter bissetorial, formado por grupos de base e agências estatais ambientais, sendo sua formação condicionada à abertura política. Passando no final dos anos oitenta e início dos noventa, a se configurar multissetorialmente, congregando juntamente com os anteriormente existentes, outros setores e atores sociais.


3. Sobre a questão ambiental no mundo rural


O tema da introdução da dita questão ambiental nos termos de um questionamento centrado no âmbito das atividades relacionadas ao mundo rural, mais precisamente, nas consequências do processo produtivo da agricultura, constitui-se enquanto um fenômeno social recente, que para Zanoni (2004) configura-se como uma das principais interrogações sociopolíticas das sociedades contemporâneas, visto que, se observa um deslocamento das preocupações ambientais, outrora, centradas nas atividades urbano-industriais, para aquelas próprias do campo. como é possível perceber na transcrição abaixo:


“De um modo geral, a sensibilização de ordem ecológica e as preocupações ambientais eram direcionadas, em um primeiro momento, às atividades industriais, o que pode ser explicado pelo sucesso do desenvolvimento industrial na Europa dos “trinta gloriosos anos” de crescimento, após a segunda Guerra Mundial. Os impactos ambientais desse período se concentraram no meio urbano, onde adquiria maior visibilidade. As poluições e contaminações tornaram-se presentes no quotidiano das pessoas. A agricultura, até então apreciada por sua nobre função de produtora de alimentos, foi à última atividade produtiva a ser vista e criticada pela sociedade sob a ótica ambiental. As poluições que lhe foram atribuídas, inicialmente mais difusas e menos perceptíveis, tornaram-se evidentes no momento em que o aporte da indústria, sob forma de máquinas, equipamentos, adubos, biocidas, tornou-se indispensável à intensificação da produção agrícola. Os efeitos da “industrialização” da agricultura sobre a degradação dos recursos naturais e a saúde humana impregnaram o mundo rural da problemática ambiental” (ZANONI, 2004, P. 103)


O que implica pensarmos no conjunto de transformações de ordem econômica, ambiental, política e sociocultural que estão envolvidas na relação do mundo rural e a sociedade como um todo. Trata-se de pensarmos, a denominada questão ambiental como algo que sob condições históricas determinadas, encontra-se relacionada às atividades próprias do mundo camponês, alterando aquilo que concerne à visão que o conjunto da sociedade tem do mundo rural. Tratando-se daquilo que de acordo com o pensamento de Zanoni (2004) é denominado de um contrato social, no sentido das relações sócio-políticas que estão em jogo na relação do mundo urbano e o campo. Neste sentido, a autora sinaliza que há um gradativo deslocamento dos termos deste contrato social, num movimento migratório via a uma consolidação de uma visão ambientalista direcionada ao papel da agricultura.


No período pós 2ª guerra, o que se buscava na agricultura, fundamentalmente, era o suprimento alimentar e o equilíbrio econômico das nações. A partir de 1970, adentrando os anos 80, diante do amadurecimento político acerca das consequências da implantação do modelo denominado de revolução verde, é convertido num processo, em que “a sociedade espera que a questão da agricultura, não se limite somente à gestão dos espaços rurais, mas possa ter influência sobre o equilíbrio do conjunto da sociedade (ZANONI, 2004, p. 103)”.


Essa intersecção entre as questões de natureza ambiental e o mundo rural, está diretamente relacionada à dimensão sociopolítica do processo de modernização conservadora da agricultura, que se convencionou chamar de revolução verde. Que fundamentalmente, conforme assinalou Porto Gonçalves (2004, p. 07), configura-se como “transformações nas relações de poder por meio da tecnologia”. Isto, em última análise, em função de seus efeitos perniciosos ao meio ambiente em sua totalidade, vai compor o conjunto daquilo que podemos denominar de pensamento ambientalista internacional, o que inclui, alterações quanto ao papel do mundo rural na garantia das condições de reprodução social como um todo.


Esse modelo, que aparentemente, trata-se de uma reconfiguração técnica e produtiva, contém intrínsecos elementos relacionados à reconfiguração sociopolítica, conservando elementos próprios de relações de poder, que ao longo da história, permitiram a reprodução do modo de produção capitalista, sendo a agricultura um dos seus pilares. Conforme aponta Gonçalves:


“Esse modelo agrário-agrícola analisado, que se apresenta como o que há de mais moderno sobretudo por sua capacidade produtiva, na verdade, atualiza o que há de mais antigo e colonial em termos de padrão de poder ao estabelecer uma forte aliança oligárquica entre (1) as grandes corporações financeiras internacionais, (2) as grandes indústrias-laboratórios de adubos e de fertilizantes, de herbicidas e de sementes, (3) as grandes cadeias de comercialização ligadas aos supermercados e farmácias e (4) os grandes latifundiários exportadores de grãos. Esses latifúndios produtivos são, mutatis mutantis, tão modernos como o foram as grandes fazendas e seus engenhos de produção da principal commodity dos séculos XVI e XVII – a cana de açúcar  – no Brasil e nas Antilhas” (GONÇALVES, 2004, p. 25).


Desta maneira, é como consequência desta modernização conservadora da agricultura atrelada ao ideário instituído pela revolução verde, que emerge a temática ambientalista como uma questão relacionada à agricultura e consequentemente aos modos de vida camponeses como um todo, eclodindo a partir dos anos setenta, o conjunto sociopolítico centrado no questionamento de tal modelo. Como nos demonstra Brandenburg,


“não há, em período anterior a década de 70, manifestações de cunho ecológico que coloque em questão, o padrão industrial de desenvolvimento, a relação sociedade-ambiente, ou mesmo os instrumentos que intermediam essa relação. É somente após a chamada modernização conservadora da agricultura que ocorrem manifestações de contestação ao padrão técnico e econômico implementado pelas políticas agrícolas, fortemente subsidiadas pelo Estado. Isto porque, jamais se presenciou na história da sociedade brasileira um processo de exclusão social de tamanha expressão; de trabalhadores, pequenos agricultores e camponeses de modo geral. Assim, é a partir da intensa modernização agrária que grupos organizados, representantes e líderes de associações e sindicatos, questionam o padrão de desenvolvimento fundamentado na primazia da razão instrumental” (BRANDENBURG, 2005. p. 01).


Neste contexto, é que são estabelecidos processos políticos de manifestação populares, protagonizados por diversos atores, que num primeiro momento, com base em Brandenburg (2005), não se encontram atrelados a uma preocupação eminentemente ambiental relacionados à preservação ou destruição dos recursos naturais. Para Scherer-Warren (1990) nesta época somente três movimentos, contém em seus programas a centralidade a questão ambiental, trata-se do movimento de pequenos agricultores familiares atingidos por barragens, o movimento de indígenas que lutam pelo direito de posse de suas terras e o movimento de seringueiros que lutam pela preservação de suas atividades extrativistas na floresta amazônica. Brandenburg (2005), ainda afirma que, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), liderada por José Lutzenberger, é uma das poucas organizações originárias no campo que se manifestam questionando o uso indiscriminado de agroquímicos.


O cerne da penetração da questão ambiental na agricultura no caso brasileiro, se dá em função das contradições relacionadas ao modelo de modernização conservadora da agricultura, aqui implementadas via o desenvolvimentismo dependente, que tem seu auge, durante a ditadura civil-militar. Segundo demonstra-nos Brandenburg


“as políticas governamentais implementadas pelos órgãos públicos no primeiro período da modernização agrícola acenavam em seu discurso com a perspectiva de um progresso social e econômico das categorias produtoras, o que de fato resultou num processo de exclusão sem precedentes. Já na década seguinte à “primeira modernização agrícola”, o pequeno agricultor em processo de exclusão e trabalhadores já excluídos vinculados às associações, organizações sindicais combativas e pastorais religiosas, viriam a questionar tanto as políticas agrícolas como as técnicas por elas implementadas. Surge daí um movimento de construção de uma agricultura tida como “alternativa” ao modelo hegemônico e que irá resgatar práticas tradicionais de produção, condenadas pelo modelo vigente” (BRANDENBURG, 2005, p. 02).


De forma que, nesta conjuntura é que emerge a pauta relacionada à contestação ao modelo produtivo baseado na revolução verde.


Nesse contexto, se edificaram os primeiros movimentos, que se pautavam pela instituição de um modelo alternativo de produção, baseado na agroecologia, contando com um programa de assessoria as organizações emergentes, realizado pela Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educação (FASE), que em 1983, atua em rede, por meio de um projeto intitulado tecnologias alternativas, abrangendo dez Estados brasileiros, dentre estes, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Essa preocupação, paulatinamente vai ocupar a agenda de entidades representativas dos trabalhadores rurais e pequenos agricultores, como é o caso da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), que no seu 4º congresso em 1985, traz em suas pautas a referência à proposição de que fossem consideradas e aprimoradas pela Pesquisa e difundidas pela Extensão Rural, as experiências dos agricultores e resgatadas as suas técnicas tradicionais.


Na década de noventa, vamos experimentar aquilo que Brandenburg (2005) denomina como novos contornos para questão ambiental na agricultura que se dá por conta da realização da ECO-92, realizada no Rio de Janeiro. Para ele,


“A ECO não constitui apenas um fórum organizado sob a liderança das Nações Unidas, mas representa um momento histórico onde as várias matizes do movimento ambientalista brasileiro se expressam paralelamente ao evento oficial. A ideia de um desenvolvimento sustentável concebida a partir do conceito de ecodesenvolvimento, fundamenta novas premissas de uma agenda norteadora de políticas públicas. Na ECO, entre os vários grupos da sociedade civil, os pequenos agricultores, os sem terra e os trabalhadores de modo geral firmam sua posição em torno de outro modelo de desenvolvimento agrícola” (BRANDENBURG, 2005, p. 03).


O que se relaciona com a consolidação da visão socioambiental de Santilli (2005), o que fundamentalmente, marca a relação da questão ambiental e a questão agrária, se constituindo num movimento definidor de caminhos, tanto no âmbito do Estado, bem como, da sociedade civil. Demonstra-nos que sob influência da noção de sustentabilidade, definem-se rumos em relação ao movimento de contestação a agricultura convencional, o que envolve um conjunto bastante diversificado de atores. Como explica Brandenburg,


“nasce como alternativo à modernização conservadora, passa a orientar-se pela noção de sustentabilidade por influencia da ECO-92 no início dos anos noventa e recentemente se identifica como de agricultura ecológica. No início do novo milênio, assiste-se uma expansão de associações e organizações de agricultores ecológicos por conta de uma demanda crescente de alimentos isentos de  agrotóxicos, por parte dos consumidores” (2005, p.04)


Constituindo-se desta maneira, aquilo que para o autor vai demarcar como sendo os dois tipos de ações ecológicas dos grupos organizados no ambiente rural. Por um lado, congrega ações de proteção, preservação e gestão do ambiente natural, e por outro, contempla ações relacionadas com a mudança de padrão técnico de produção, através da adoção de práticas agrícolas e formas de organização da produção ancoradas numa visão agroecológica.


4. Uma agricultura sob as bases da agroecologia enquanto um espaço de possibilidade para um campesinato em processo


Sem dúvida nenhuma, o pacto que se anuncia frente à dimensão ambiental intrínseca a atividade agrícola, constitui-se num elemento fundamental para pensarmos a questão camponesa. Segundo Wanderley,


“na maioria dos países de agricultura moderna, a crítica desse modelo vem sendo feita em grande parte, por agricultores que se definem como camponeses e que, dessa forma, colocam-se como portadores de outra concepção de agricultura moderna. Questionando uma visão que considera a agricultura como um simples campo de investimento de capital e, em consequência, privilegia a quantidade produzida e a produtividade dos fatores produtivos, esses agricultores defendem um modelo fundado na qualidade dos produtos e propõe um pacto social entre produtores e consumidores, isto é, entre os agricultores e as populações urbanas” (2003. p. 53)


Neste momento, não adentraremos na discussão acerca do campesinato, principalmente, no que diz respeito à elucidação a cerca dos liames epistemológicos que permitem a opção por uma ou outra conceituação. Tomaremos como referência, o ponto de vista de Wanderley (1996, p. 03), em que “a agricultura camponesa tradicional vem a ser uma das formas sociais de agricultura familiar”, estando esta concepção fundada na relação estruturadora desta tradição sociocultural, que se dá a partir da relação terra, trabalho e família. Segundo a autora:


“a história do campesinato no Brasil pode ser definida como o registro das lutas para conseguir um espaço próprio na economia e na sociedade. Interessa, portanto, saber, que condições ele encontra – estímulos ou obstáculos – e de que maneira os absorve ou os supera em sua trajetória. Privilegiarei, nesta análise, apenas três objetivos, dentre muitos outros, que parecem permanecer ao longo da história do campesinato brasileiro e que se constituem como núcleos centrais, em torno dos quais se estrutura, até o presente, o amplo leque das estratégias adotadas: refiro-me às lutas por um espaço produtivo, pela constituição do patrimônio familiar e pela estruturação do estabelecimento como um espaço de trabalho da família” (WANDERLEY, 1996, p. 08).


Tendo-se como resultado deste processo histórico uma pluralidade de experiências em que se encontram envolvidos os sujeitos camponeses. O que por um lado, leva a negação de toda e qualquer leitura, que pretenda transpor modelos teóricos, oriundos de outras realidades históricas, por outro lado, abre um leque de possibilidades à compreensão acerca de sua persistência. 


Neste sentido, uma agricultura de base agroecológica, apresenta-se, enquanto uma estratégia de reprodução desta condição camponesa, frente a uma história de luta pela persistência de uma tradição sociocultural.


Para Moreira (2003), o termo agroecologia é utilizado amplamente associado à noção de agricultura sustentável ou referindo-se a determinadas práticas agrícolas relacionadas a modelos tecnológicos que se baseiam na diminuição de impactos ao meio ambiente, constatando-se uma polissemia em relação ao termo. Sobre isso, Caporal adverte que:


“é cada vez mais comum ouvirmos frases equivocadas do tipo: “existe mercado para a Agroecologia”; “a Agroecologia produz tanto quanto a agricultura convencional”; “a Agroecologia é menos rentável que a agricultura convencional”; “a Agroecologia é um novo modelo tecnológico”. Em algumas situações, chega-se a ouvir que “agora, a Agroecologia é uma política pública”, “a Agroecologia é um movimento social” ou “vamos fazer uma feira de Agroecologia”. Como já escrevemos em outro lugar, “apesar da provável boa intenção do seu emprego, todas essas frases estão equivocadas, se entendermos a Agroecologia como um enfoque científico, como uma matriz disciplinar” (2003, p. 38).


De maneira que, esse tratamento, na visão do autor, não dá conta do potencial da agroecologia, enquanto matriz disciplinar, que em última análise, configura-se como uma vulgarização.


Em relação às correntes teóricas que vem se dedicando ao desenvolvimento da agroecologia, de acordo com Moreira (2003) nos últimos 40 anos é possível mapear, duas matrizes teóricas: a norte americana, concentrada no estado da Califórnia e a europeia, na Espanha.


O que fundamentalmente, diferencia a escola europeia da americana, é o que Moreira (2003) denomina “veia sociológica” (grifo do autor), encontrada na primeira. Conforme explica Guzmán,


“a Agroecologia se propõe não só a modificar a parcelização disciplinar, senão também a epistemologia da ciência, ao trabalhar mediante a orquestração de distintas disciplinas e “formas de conhecimento” que compõem seu pluralismo dual: metodológico e epistemológico, onde a perspectiva sociológica tem um papel central” (2002, p. 18).


Assim, o processo produtivo é visto como um processo social, portanto, múltiplo em suas dimensões econômica social, cultural e política, neste sentido, a agroecologia assume uma potencialidade de ruptura paradigmática.


Dentro desta perspectiva a noção de agroecologia está associada a processos sociopolíticos, relacionados à instituição de mecanismos de ação coletiva, que são capazes de criar alternativas, a partir de suas potencialidades intrínsecas, estando à questão da geração de impactos ambientais, colocadas numa escala horizontal no processo de produção, circulação e consumo da produção de alimentos, sendo que a agroecologia pode ser definida como


“o manejo ecológico dos recursos naturais através de formas de ação social coletiva, que representem alternativas ao atual modelo de manejo industrial dos recursos naturais, mediante propostas surgidas de seu potencial endógeno. Tais propostas pretendem um desenvolvimento participativo desde a produção até a circulação alternativa de seus produtos agrícolas, estabelecendo formas de produção e consumo que contribuam para encarar a atual crise ecológica e social” (GUZMÁN, 2002, p. 11).


Nesta perspectiva, uma agricultura baseada na agroecologia, enquanto uma proposição de ruptura paradigmática, no caso brasileiro, encontra-se associada à visão socioambiental, no sentido dado por Santilli (2005). Constituindo-se do ponto de vista da questão camponesa no caso brasileiro, como um caminho possível para a edificação de respostas positivas frente aquilo que marcou a formação de nossa sociedade, que em relação aos modos de vida camponeses, conforme Wanderley (2003, p. 56) relegou “um lugar subalterno e subordinado que submete o campesinato a um enorme esforço social para alcançar as condições mínimas de sua reprodução”.


5. Conclusão


A propósito de nosso objetivo central neste trabalho, onde se buscou discutir como a agricultura baseada na agroecologia pode se constituir num caminho possível à reprodução de uma tradição camponesa. Neste momento da pesquisa, é possível concluir que a agroecologia, pelas suas características intrínsecas, relacionadas ao potencial de ruptura sociopolítica, sociotécnica e sociocultural configura-se como um espaço de reprodução dos modos de vida camponeses, condicionando-se a superação da condição de subalternidade, historicamente constituída.


 


Referências

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Notas:

[1] A presente pesquisa é desenvolvida dentro da linha de pesquisa Desenvolvimento Rural, Território e meio Ambiente.

[2] Os autores, estão referenciados principalmente naquilo que denominam como síntese conceitual produzida pela Teoria do Processo Político de Rootes (2003) e Diani (1995).


Informações Sobre o Autor

Neilo Márcio da Silva Vaz

Sociólogo. Especializando em Direito Ambiental (interdisciplinar) na Universidade Federal de Pelotas. Atua desde 2005 em consultoria e assessoria social, tendo atuado em projetos relacionados às áreas de Extensão Rural, Educação Ambiental, Habitação de Interesse Social e Monitoramento Social de Políticas Públicas. Colaborador do Instituto Pluris – Pesquisas, Consultoria e Assessoria – Ltda. em Assessoria Social em geral. Membro (discente) do Grupo de Pesquisa “A Efetividade dos Direitos Humanos”,


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