A expressão “Assédio por Intrusão” e o termo em inglês “Stalking” designam a ação de perseguição deliberada e reiterada perpetrada por uma pessoa contra a vítima, utilizando-se das mais diversas abordagens tais como agressões, ameaças ou ofensas morais reiteradas, assédio por telefone, e – mail, cartas ou a simples presença afrontante em determinados lugares freqüentados pela vítima (escola, trabalho, clubes, residência etc.).
Segundo Damásio “Stalking é uma forma de violência na qual o sujeito ativo invade a esfera de privacidade da vítima, repetindo incessantemente a mesma ação por maneiras e atos variados, empregando táticas e meios diversos: ligações nos telefones celular, residencial ou comercial, mensagens amorosas, telegramas, ramalhetes de flores, presentes não solicitados, assinaturas de revistas indesejáveis, recados em faixas afixadas nas proximidades da residência da vítima, permanência na saída da escola ou trabalho, espera de sua passagem por determinado lugar, frequência no mesmo local de lazer, em supermercados etc. O stalker, às vezes, espalha boatos sobre a conduta profissional ou moral da vítima, divulga que é portadora de um mal grave, que foi demitida do emprego, que fugiu, que está vendendo sua residência, que perdeu dinheiro no jogo, que é procurada pela polícia etc. Vai ganhando, com isso, poder psicológico sobre o sujeito passivo, como se fosse o controlador geral dos seus movimentos” (JESUS, 2008).
Conforme se vê a conduta de “Stalking” é bastante variada, abrangendo uma série praticamente indeterminada de ações e podendo ter por sujeitos ativo e passivo qualquer pessoa.
A conduta varia desde agressões físicas, ofensas morais, ameaças, violações sexuais até práticas aparentemente menos graves ou mesmo de cunho afetivo, tais como mensagens amorosas e abordagens com propostas de relacionamento. Ocorre que mesmo nestes últimos casos a conduta do “stalker” é incomodativa, desagradável e insistente para além do tolerável, ocasionando inconveniências e constrangimentos.
Embora as condutas variem mantém em comum certos traços como a reiteração dos atos, a violação da intimidade e da privacidade da vítima e o constrangimento com consequente dano psicológico e emocional ao ofendido. Nesse quadro será também comum a ofensa à reputação da vítima, mudanças forçadas de seu modo de vida e restrições à sua liberdade de ação e locomoção (JESUS, 2008).
O “Stalking”, dada a já mencionada variedade de condutas que abrange, pode ensejar responsabilizações civis (danos materiais e/ou morais) e penais (crimes ou contravenções). Na seara criminal os casos mais simples podem configurar a contravenção penal de “Perturbação da Tranquilidade” (artigo 65, LCP). Mas, nem sempre, conforme já foi exemplificado, o “stalker” se limita a perturbar a vítima (lotando caixas de mensagens, fazendo ligações telefônicas inoportunas etc.). Muitas vezes extrapola para práticas mais graves que podem configurar crimes de ameaça (artigo 147, CP), constrangimento ilegal (artigo 146, CP), crimes contra a honra (artigos 138 a 140, CP), estupro (artigo 213, CP), lesões corporais (artigo 129, CP) ou até mesmo homicídio (artigo 121, CP). Note-se ainda que em alguns casos, dadas as circunstâncias de tempo, lugar, forma de execução e espécie delitiva, poderá configurar-se crime continuado nos termos do artigo 71, CP. Também não é incomum constatar-se a ocorrência nesses casos da chamada “progressão criminosa” em que o agente inicia com uma conduta de “Stalking” que configura infração penal menos gravosa, mas vai aos poucos ou mesmo abruptamente tomando atitudes cada vez mais agressivas e invasivas e atingindo bens jurídicos mais e mais relevantes. Em sua obra sobre a violência entre casais, Hirigoyen expõe o fato de que normalmente as violências de gênero são progressivas, iniciando pela coação psicológica até atingir a agressão física que pode chegar não tão raramente na prática de homicídio (HIRIGOYEN, 2006, “passim”).
Outras contravenções, além da já mencionada “Perturbação da Tranquilidade”, podem também ocorrer. São exemplos: Vias de Fato (artigo 21, LCP), Importunação Ofensiva ao Pudor (artigo61, LCP) e Perturbação do Trabalho ou do Sossego Alheios (artigo 42, LCP).
Como se percebe nem sempre a reação penal disponibilizada pela legislação é proporcional aos danos físicos, psicológicos e emocionais ocasionados à vítima de “Stalking”, tendo em vista as especiais características dessa conduta dotada de diferenciada variação e, principalmente, em virtude de sua reiteração de atos que, mesmo aparentemente de pequena monta ou até inofensivos isoladamente, podem tornar-se altamente danosos em seu conjunto e persistência.
Assiste, portanto razão a Damásio quando aduz que o “Stalking” em sua “ação global de perseguição” assume maior gravidade do que “os próprios delitos parcelares”, estando a merecer “mais atenção e consideração do legislador brasileiro” quiçá “transformando-se em figura criminal autônoma e mais bem definida” (JESUS, 2008).
Não obstante, tal qual já enfatizado, a conduta do “Stalking” possa ser perpetrada e sofrida por qualquer pessoa (homem ou mulher), é estatisticamente mais comum a presença dos homens no polo ativo e das mulheres no polo passivo, especialmente no que se refere a relacionamentos amorosos pretensos ou findos em que o “stalker” passa a perseguir a vítima dos mais variados modos.
Hirigoyen comenta a questão do “Assédio por Intrusão” ou “Stalking”, chamando a atenção para o fato de que “a maioria dos homicídios de mulheres ocorre durante a fase de separação”. Aduz que “a violência e a opressão se acentuam nesse momento e podem perdurar por muito tempo, depois de separados. O homem se recusa a deixar livre sua ex – companheira, como se ela fosse propriedade sua. Não consegue aceitar sua ausência, e a vigia, segue-a na rua, assedia-a por telefone, espera-a à saída do trabalho. Muitas vezes acontece de a mulher ter de mudar de local de moradia. É como se a agressividade e a violência que haviam se mantido contidas durante a relação agora tivessem livre curso”. A autora destaca que em países como os Estados Unidos “foram tomadas medidas de proteção (protective orders) para as mulheres vítimas desse tipo de assédio, extremamente perigoso, porque pode terminar em homicídio” (HIRIGOYEN, 2006, p. 56 – 57). Também em Espanha criou-se a “Lei de Proteção Integral contra a Violência de Gênero” com medidas de proteção que determinam o afastamento do agressor e sua prisão em caso de desobediência (“quebrantamiento de condena”) (MARTÍNEZ, 2010). A partir do ano de 2004 em Madri são disponibilizadas às mulheres vitimizadas “pulseiras de proteção contra maus – tratos”, ligadas telematicamente a “uma manga especial de que deverão ser portadoras as pessoas condenadas por agressão”, de maneira que sinais são emitidos se o agressor se aproximar da vítima a uma distância inferior a cinco metros ou se ele tentar retirar o aparelho. Também a vítima pode acionar um dispositivo da pulseira se sentir-se em perigo, comunicando imediatamente os serviços de urgência (HIRIGOYEN, 2006, p. 252).
Ainda sem dispor de toda essa tecnologia o Brasil ao menos já se adiantou na criação das chamadas “Medidas Protetivas de Urgência” que podem ser aplicadas em casos de “Stalking” envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, nos estritos termos dos artigos 5º., I a III; 7º, I a V; 11; 12, III e 22 I a V; 23, I a IV e 24, I a IV, todos da Lei 11.340/06.
Assim sendo, a legislação brasileira é dotada de medidas capazes de conter o “stalker” em sua sanha persecutória, inclusive tendo à disposição o importante instrumento da Prisão Preventiva para os casos de contumácia ou persistência, mesmo após a ordem judicial protetiva (artigos 20 c/c 42, da Lei 11.340/06 e artigo 313, IV c/c 311 e 312, CPP).
Estes exemplos nacionais e estrangeiros são louváveis iniciativas de tratamentos especiais para a contenção dos “stalkers”, eis que essas condutas não se amoldam à costumeira lentidão das medidas penais definitivas, exigindo providências cautelares informadas pelo “fumus boni juris” e, principalmente, pelo “periculum in mora”.
Destaque-se que a Prisão Preventiva como instrumento para efetivar o cumprimento de medidas protetivas de urgência na legislação brasileira, nos termos do artigo 313, IV, CPP, deve ser encarada não só como um novo caso de aplicabilidade da prisão provisória (crimes que envolvem violência doméstica contra a mulher, independentemente da pena), mas também como um novo fundamento desta, objetivando garantir o cumprimento efetivo das medidas protetivas de urgência e somente então reclamando do artigo 312, CPP os requisitos da prova do crime e dos indícios suficientes de autoria. Para além disso, é de se ver que a conduta do “Stalking” também normalmente se amoldaria ao fundamento da preventiva previsto no artigo 312, CPP, da “garantia da ordem pública”, certamente abalada com a atuação reiterada do infrator.
Resta ainda, portanto, uma lacuna para o tratamento especializado e mais rigoroso do “Stalking”. São os casos que envolvem condutas configuradoras de meras contravenções penais para as quais, como se sabe, não cabe a decretação de prisão preventiva e nem todas as regras mais rigorosas da Lei 11.340/06, conforme dispõe seu artigo 41 que só faz referência a “crimes”. Neste passo vale corroborar a sugestão de Damásio (JESUS, 2008) quanto a eventual criação de figura específica, possivelmente na qualidade de crime subsidiário para a conduta do “Stalking”. Essa infração penal, de subsidiariedade expressa, poderia afastar as contravenções penais em caso de “Stalking” e até mesmo alguns crimes de pequena gravidade, cuja pena venha a ser menor do que aquela a ser atribuída ao “Stalking” ou “Assédio por Intrusão”. A pena a ser prevista poderia ter um patamar superior a 2 anos em seu máximo abstratamente cominado, ensejando o afastamento de contravenções penais e crimes de menor potencial ofensivo em casos de conflito aparente de normas (Princípio da Subsidiariedade). Isso sem qualquer lesão à proporcionalidade, dadas as especiais características do “Stalking”, capazes de amplificar o potencial lesivo das condutas mais simples isoladamente consideradas, as quais ganham dimensões altamente lesivas em face da acumulação de atos e da persistência do agente. Note-se ainda que não se trata de previsão de mais uma forma dos chamados “crimes de acumulação” tão criticados pela doutrina (BECHARA, 2010, p. 3 – 5). Nesses a conduta do agente é ínfima e muitas vezes não lesiona o bem jurídico, sendo criminalizada na perspectiva de que se fosse repetida por um sem número de outras pessoas poderia tornar-se terrivelmente destrutiva. No “Stalking” não se trata de criminalizar um mero perigo de disseminação da conduta por terceiros. Refere-se, na verdade, à conduta do próprio agente que a perpetra de forma reiterada e insistente e efetivamente ocasiona uma sensível lesão aos bens jurídicos envolvidos com maior intensidade devido justamente à repetição dos atos, cuja acumulação produz lesão diferenciada da conduta isolada, merecendo proporcionalmente uma reação penal mais rigorosa. Não se trata, portanto, de qualquer espécie de prognóstico de disseminação da conduta por terceiros ou de uma lesão potencial ou suposta ao bem jurídico e sim da responsabilização adequada e proporcional do agente por sua conduta própria e pelos danos reais que ocasiona aos bens jurídicos de que é titular a vítima.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.