Resumo:A recente decisão proferida pelo STF em sede de repercussão geral no RE 593.849-MG marcou uma mudança na interpretação jurisprudencial até então prevalecente a respeito da irrealização do fato gerador na substituição tributária progressiva do ICMS: agora, quando a base de cálculo efetiva resultar em montante inferior à base de cálculo presumida, terá o contribuinte direito à restituição da diferença. O presente estudo visa oferecer um contraponto no tocante à hipótese inversa, ou seja, quando se verifica que a base estimada ficou aquém da realizada, descabendo, desta vez, a exigência da complementação do tributo. Com base na doutrina especializada no assunto, ficou consubstanciado que, nesta última situação, não podem coexistir dois regimes jurídicos aplicáveis a um único fato gerador, inexiste enriquecimento sem causa, haverá conflito de normas caso lei infraconstitucional preveja o recolhimento complementar e, mesmo que isto fosse possível, a sua operacionalização resultará impossível, ao arrepio do princípio da praticidade.
Palavras-chave: ICMS; Substituição Tributária; RE 593.849-MG; Fato Gerador Irrealizado; Complementação
Abstract: The recent decision handed down by the STF in a general repercussion in RE 593.849-MG marked a change in the prevailing jurisprudential interpretation regarding the irreparability of the taxable event in the progressive tax substitution of ICMS: now, when the effective calculation base results in amount less than the presumed basis of calculation, the taxpayer shall be entitled to the refund of the difference. The present study aims at offering a counterpoint in relation to the inverse hypothesis, that is, when it is verified that the estimated base was below the one realized, this time, the requirement of the complementation of the tax falls. Based on the doctrine specialized in the subject, it was established that, in the latter situation, there can not coexist two legal regimes applicable to a single generating fact, there is no enrichment without cause, there will be conflict of rules if infraconstitutional law provides for the supplementary collection and, even if this if it were possible, its operationalization would be impossible, contrary to the principle of practicality
Keywords: ICMS; Tax Replacement; RE 593,849-MG; Generator fact not performed; Complementation
Sumário: Introdução. 1- Contextualização do tema – Incompatibilidade de coexistência de dois regimes jurídicos de tributação para o mesmo fato gerador. 2- Enriquecimento sem causa. 3- Conflito de normas. 4- Operacionalização da cobrança do pagamento suplementar. Conclusões.
Introdução.
Numa reviravolta jurisprudencial que marcou recentemente o cotidiano tributário, a composição atual do E. STF, em sede de repercussão geral reconhecida no RE 593.849-MG, modificou o entendimento até então sedimentado no sentido de, em se tratando de operações mercantis sujeitas ao regime da substituição tributária progressiva, caso a base de cálculo presumida do ICMS resultar maior do que aquela efetivamente praticada, passa a ser cabível a devolução do imposto, na melhor exegese do §7º do art. 150 da CF/88.
Tal posicionamento, entretanto, suscitou algumas considerações laterais, como a que enseja o direito da unidade federativa exigir a complementação do tributo se ocorrer o inverso, vale dizer, constatar-se que a base efetiva foi superior à estimada.
Importante frisar que não estava ali em jogo examinar se cabível ou incabível o pagamento suplementar. O foco era outro, vale dizer, o de mensurar a dimensão do fato gerador presumido, se apenas material ou quantitativo também para efeito de devolução.
Não obstante ser este tema secundário ao exame da constitucionalidade, a ideia ganhou repercussão, a ponto de vários Estados já estarem ultimando providências no sentido de inserirem em suas respectivas leis a possibilidade de cobrar o recolhimento suplementar.
Isto porque, à guisa de reforço para a tese acolhedora do indébito, muitos dos eminentes Ministros afirmaram beneficiar-se indevidamente o contribuinte quando o preço vai além da estimação da base imponível.
Transcrevam-se os posicionamentos, a começar pela provocação do Ministro Teori Zavaschi:
“Se nós dissermos que o valor fixado na substituição tributária progressiva é provisório, ele iria permitir qualquer dessas duas alternativas: seja o contribuinte pedir a restituição, seja o fisco cobrar a diferença – é o que está na lei. (…) De modo que, até pela posição dos votos antecedentes, seria importante que se esclarecesse como ficaria a posição do Fisco nessa história: se o Fisco também poderia, eventualmente, cobrar a diferença” (aspas originais, destaques da reprodução).
Ministro Luis Roberto Barroso:
“Portanto, a lógica do meu voto é: se é possível apurar – e tanto é possível que os estados instituíram leis permitindo a restituição da diferença -, então, se é possível apurar o que é real, eu acho que não se deve trabalhar com uma presunção definitiva. (…) Portanto, se é operação real, se a operação subsequente for em dimensão econômica superior à da presunção, o fisco pode cobrar a diferença também” (destaques da reprodução).
Ministro Edson Fachin: “Aqui há uma razão simétrica, não há enriquecimento ilícito a ser preservado nem aqui, nem acolá; nem da parte do fisco, nem da parte do contribuinte” (destacamos).
Ministra Rosa Weber: “… se a base de cálculo presumida não se concretizar, só nessa hipótese é que haveria sim a restituição ou, no caso, a cobrança pela Fazenda do valor recolhido a menor”(destacamos).
Ministro Luis Fux: “Eu também concordo que o vento que venta lá venta cá, se tiver o Estado de receber aquilo que lhe é devido, porque o fato presumido foi prejudicial à realidade imaginada pelo estado, o estado também pode cobrar” (destaques da reprodução).
Ministro Marco Aurélio Mello:
“Mas há, para mim, outra premissa, princípio, inafastável: a Carta da República não encerra o enriquecimento ilícito, quer por parte do contribuinte, quer, muito menos, por parte do Estado. […]
O que sustento a respeito do § 7º em comento revela uma estrada de mão dupla. Tanto admito que o contribuinte, verificado o negócio, possa reclamar diferença – valor recolhido a maior – como também o fato de o estado vir a pretender a satisfação do tributo, considerado o valor real do negócio jurídico, no que haja se mostrado superior àquele por ele próprio estimado” (destaques da reprodução).
Pois bem.
É de se elevar os pronunciamentos incidentais proferidos pelos eminentes Ministros do STF, convergindo indutivamente para a possibilidade de complementação do ICMS caso a base efetiva supere a estimada.
Entretanto, à luz destas respeitáveis declarações reverberadas anteriormente, tem o presente trabalho o objetivo de oferecer um singelo contraponto a tais impressões – com as humildes venias que se fazem pertinentes -, no intuito de demonstrar que, apesar da definição de caber o indébito na irrealização do fato gerador na sua dimensão quantitativa, permanece inexigível a complementação de tributo.
Tem-se a consciência de que este questionamento ainda pode encontrar uma resposta imediata e objetiva da Corte Suprema, na medida em que o Estado de Minas Gerais embargou de declaração exatamente buscando uma declaração positiva do C. Tribunal de ser possível a suplementação, apesar da parte contrária ter rebatido que tal provocação traduz inovação argumentativa, óbice processual insuperável. E, acrescente-se, este assunto assume apenas índole infraconstitucional, por se situar fora do conteúdo do §7º do art. 150, da CF/88, embora resvale em princípios consagrados na Lei Maior.
Como se esperava, a Corte Maior manifestou-se nesse sentido, entendendo fora de propósito discutr-se complementação nesta altura processual, muito embora tenha acenado para esta possibilidade, caso o ente tributante resolva contemplá-la em lei infraconstitucional. Tal posicionamento, ainda perfunctório, não compromete o ponto de vista abraçado no presente trabalho, até porque em momento adequado terá o Judiciário a oportunidade de aprofundar o estudo de ser cabível ou não a suplementação, do qual se pretende dar esta pequena contribuição.
1. Contextualização do tema – Incompatibilidade de coexistência de dois regimes jurídicos de tributação para o mesmo fato gerador.
Entende-se por regime jurídico um sistema de preceitos legais diferenciados que regulam o funcionamento de determinado aspecto da vida, debaixo dos quais o beneficiário dele poderá usufrui-lo ou a pessoa obrigada deverá atende-lo, sem possibilidade de interconexão com outros regimes autônomos e mutuamente excludentes.
Cite-se um exemplo do campo dos direitos sociais: o regime jurídico aplicável a quem presta serviços sob os auspícios da CLT não se confunde nem se comunica com o regime jurídico dedicado ao servidor público regido por normas figuradas num determinado Estatuto.
Nesta esteira, regime jurídico de tributação pode ser definido como aquele conjunto sistematizado de regras que fazem funcionar o adimplemento do tributo em face de uma relação jurídica determinada e vinculada à realização de um fato gerador individualmente considerado.
No campo do ICMS, pode-se exigir a tributação se valendo de vários regimes jurídicos, a serem adotados de acordo com as características do sujeito passivo, da mercadoria envolvida ou da própria natureza da operação mercantil.
O mais comum é o que prestigia a não cumulatividade, também com previsão constitucional (art. 155, §2º, I), valendo-se da técnica de debitamentos e creditamentos apropriados em cada etapa da cadeia produtiva, com vistas à exigência do imposto sobre o valor agregado.
Há ainda o regime aplicável para os contribuintes de reduzida capacidade contributiva – microempresas e pessoas jurídicas de pequeno porte, de forma a incidência recair sobre o valor de faturamento.
Outros regimes jurídicos são identificados para a cobrança do ICMS, a exemplo da tributação com base no princípio do destino (conf. art. 155, §4º, I, da CF/88) e da tributação monofásica para combustíveis e lubrificantes (conf. art. 155, §2º, XII, “h”, da CF/88).
Em qualquer um deles, causará insegurança jurídica se a lei, ao estipular um regime jurídico a ser adotado para determinado fato gerador, resolver mudá-lo ao sabor de circunstâncias ulteriores que não tenham tratamento constitucional.
Ilustrativamente, se um varejista compra um produto já taxado em etapa anterior com base na Substituição Tributária progressiva, o fato dele praticar um preço superior à base de cálculo estimada tem apenas relevância econômica[1] e não jurídica.
O fato gerador presumido, quantificado com base em induvidosos critérios estabelecidos na lei, já põe fim à relação jurídico-tributária quando do seu pagamento antecipado pelo substituto, na hipótese do valor da operação superar a base calculada estimada. A parte excedente é circunstância puramente econômica[2].
Tal pensamento adere à lição doutrinária (CARVALHO, 2009, pp. 144/145):
“Cabe impugnar, também, aqueloutra expressão muito difundida, segundo a qual o fato jurídico tributário viria a ser um fato econômico de relevância jurídica.
O Direito não toma por empréstimo entidades de outro campo, para os fins que necessita. Sua grande virtude é construir as próprias realidades. Por isso mesmo, as construções jurídicas não deformam as leis econômicas ou politicas, como amiúde se afirma. (…) O que acontece é que o Direito não está condicionado senão às suas finalidades, sendo-lhe facultado escolher os caminhos que lhe aprouverem” (destaques da transcrição).
Em complemento (CARVALHO, 2009, p. 195): “… O Direito não toma emprestado eventos de planos outros, que não o jurídico, para fazer desencadear seus efeitos específicos” (destaques da transcrição).
O conteúdo econômico coincide com o jurídico quando a base efetiva é inferior porque o E. STF, nunca é demais repetir, ao adotar a técnica da interpretação conforme, entendeu que a extraordinariedade constitucional do indébito também alcança estas situações, além daquela em que o fato gerador materialmente inocorre.
Idênticas situações ocorrem com outros impostos, a exemplo da tributação do imposto sobre a renda com base no lucro presumido. Não obstante configurar uma escolha do contribuinte, salvo as proibições legais, a exigência desse tributo federal poderia ensejar pagamento suplementar caso o fisco verificasse, ao conseguir acesso à sua contabilidade informal (muito comum na prática), ter havido lucro maior do que o estimado. Neste diapasão, apesar de economicamente ter ocorrido base imponível maior, a suplementação seria indevida, pois o regime jurídico a que estava jungido a empresa era do lucro presumido.
No sistema da substituição progressiva para taxação do ICMS, ganha o sujeito ativo alguns bônus, quais sejam, arrecada antecipadamente a agregação presumida para toda a cadeia produtiva, realizando uma receita que só se materializaria posteriormente, além de focar a responsabilização em poucos agentes econômicos dotados de maior lastro patrimonial para responder pela dívida. Mas ao optar por este regime jurídico, deverá também suportar os seus ônus, como não intentar recolhimentos complementares caso a base de cálculo constatada supere a base de cálculo estimada.
Não se pode olvidar que, em regra, dentro da antecipação com substituição, a LC 87/96 prevê que o cômputo da agregação será calcado na média ponderada de preços (MVA) verificada em cada subsegmento econômico, através do qual certa mercadoria seja comercializada. E como se trata de média ponderada, forçosamente alguns subsegmentos acusarão preços superiores àqueles sopesados. Se é média, ainda mais ponderada, dificilmente o preço praticado irá coincidir na cifra exata com o valor projetado, de modo que frequentemente ou poder-se-á cogitar em restituir os excessos (com o aval do STF) ou poder-se-á cogitar na complementação (sem previsão constitucional).
Repise-se que, dada a interpretação assumida pelo STF, considerando que o modo de restituir (estendido na dimensão quantitativa do fato gerador) foi alçado ao status constitucional, o operador do direito depara-se com uma extraordinariedade máxima do ordenamento jurídico, e deve se portar como tal, vale dizer, admitir a devolução do tributo. Entretanto, isto não sucede com a suplementação.
Toa irrazoável escolher uma forma de tributação, até para desfrutar das suas benesses, e, abandoná-la em seguida acaso constatada uma situação desfavorável, para seguir um outro sistema de tributação.
Apesar de vencedor no que respeita ao ponto central da discussão, o eminente Relator Edson Fachin (pp. 20/21) traz à baila a posição contrária esposada pelo ex-Ministro Moreira Alves, a saber:
“De plano, convém analisar com o devido vagar a afirmação de que garantir o direito à restituição ao contribuinte nas hipóteses em a operação ou prestação subsequente à cobrança do imposto se realiza em valor inferior ou superior àquele presumido seria o mesmo que inviabilizar o próprio instituto da substituição tributária ‘para frente’, dado que, em última medida, representaria o retorno ao regime da apuração mensal do tributo”.(…)
“Por que o Poder Constituinte Derivado, que estabeleceu que o fato gerador, seria presumido mas admitiu que a presunção cederia diante da realidade, na hipótese de o fato presumido não se realizar, e, nesse caso, determinou que houvesse a restituição da quantia paga, não foi além e não declarou também, se o valor recolhido com base na presunção, fosse, na realidade, maior ou menor, que deveria haver ou a complementação dele ou a restituição do pago a maior? Essa distinção se explica, a meu ver, porque, ou o sistema é assim, ou, se ele deixar de ser dessa maneira, o texto constitucional será inócuo, e isso em razão de que se essa questão fica a depender da fiscalização, não haveria explicação para fazer-se, a respeito, uma Emenda Constitucional, pela falta de finalidade de um instituto dessa natureza” (aspas originais; destaques da transcrição).
Segue mesma trilha o ex-Ministro Ilmar Galvão, também citado no acórdão (pp. 28 e 49):
“O fato gerador presumido, por isso mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo à restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não-realização final.
Admitir o contrário valeria por despojar-se o instituto das vantagens que determinaram a sua concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e celeridade às atividades de tributação e arrecadação” (…)
“Não seria, realmente, de admitir que, diante desses efeitos práticos, decisivos para a adoção da substituição tributária, viesse o legislador a criar mecanismo capaz de inviabilizar a utilização do valioso instituto, como a compensação de eventuais excessos ou faltas, em face do valor real da última operação, determinando o retorno da apuração mensal do tributo, prática que justamente teve por escopo obviar” (destaques nossos).
Também o Ministro Teori Zavaschi (pp. 47/48 e 50):
“A base de cálculo, nessa forma de substituição tributária, já não será ‘o valor da operação ou prestação’ (art. 8º, I, da LC 87/1996), como ocorre em operações ou prestações concomitantes ou antecedentes. Será, sim, o valor a ser fixado segundo os critérios estabelecidos no inciso II do art. 8º da LC 87/1996. E o será, portanto, definitivamente, como decidiu o STF na ADI 1851. Se provisório fosse, ele exigiria a indispensabilidade da verificação de todas as operações individualmente, seja para retribuir o que fosse pago a mais, seja para permitir ao fisco exigir diferenças por recolhimento a menor. Em outras palavras: seria voltar ao sistema tradicional, negando qualquer consequência prática ao instituto da substituição tributária progressiva, que tem assento constitucional” (…)
“É claro que nem sempre haverá perfeita coincidência entre o valor presumido e o valor efetivamente realizado. Mas – ressalvadas as obvias situações de excessos injustificáveis e desarrazoados – é condição inerente ao sistema da substituição tributária progressiva (art. 150, §7º, da CF)” (aspas, parêntesis e itálicos originais; destaques da transcrição).
E o Ministro Sydney Sanches:
“Se se entender que, tanto a complementação quanto a restituição, decorrente do valor da operação subsequente, devem ser contempladas, então estará esvaziado o próprio instituto da substituição, em seus razoáveis objetivos” (destacamos)
Apesar do STF ter entendido agora que a irrealização do fato presumido se exprime também no tocante à base efetiva menor do que a estimada, em face da técnica da interpretação conforme, conferida ao §7º do art. 150 da CF/88, in fine, as declarações dos quatro Ministros atrás mencionados continuam prevalecendo em face da complementação, até porque esta não teve qualquer referência constitucional, ao contrário do que ocorre com o indébito.
Não seria exagero afirmar que, quando o ente tributante opta pelo regime jurídico da substituição para frente e o implanta no seu ordenamento legal, quis ele declarar que seu objetivo era tributar antecipadamente fatos jurídicos e de quem tenha estrutura econômico-patrimonial para arcar com a obrigação tributária. E, ao mesmo tempo, não tributar eventuais excessos verificados posteriormente contra quem tenha reduzida capacidade contributiva.
Na suposição do sujeito ativo implantar em lei a substituição tributária para determinado fato gerador e, simultaneamente, para regrá-lo, implantar a complementação caso a base presumida fique aquém da realizada, o legislador desafiará um evidente conflito de normas, a ser explorado linhas a seguir.
Destarte, considerando a segurança jurídica, a razoabilidade e a coerência dos sistemas jurídicos, o dispositivo que prevê a suplementação não resistirá a uma confrontação mais acurada com a Carta Constitucional e certos princípios jurídicos ali estatuídos. Aliás, sob este ângulo, apesar da matéria em si ser infraconstitucional, a discussão pode chegar a ser apreciada pelo STF.
De outra banda, ao proferirem seus votos, alguns Ministros enunciaram que não poderia haver enriquecimento sem causa quando a base imponível presumida fosse diferente da verificada, tanto da parte do Estado como da parte do contribuinte. Daí comportar-se o indébito e a complementação, respectivamente.
Reitere-se que tais declarações, na parte alusiva ao direito de se exigir a complementação, emergiram secundariamente, apenas como um argumento coadjuvante ao que se discutia naquele processo, até porque o ponto fulcral era saber de que forma a devolução se concretizaria quando o fato gerador futuro não se realizasse, se na sua dimensão material ou se também na sua dimensão econômico-quantitativa.
Por fim, ficará sobejamente demonstrado que, ao contrário do imaginado pelos eminentes julgadores, a admissibilidade da complementação suscitará entraves operacionais intransponíveis, a deixarem os gestores fazendários vulneráveis diante de eventuais condutas omissivas, a se ocuparem largamente de situações já encerradas com a tributação antecipada.
2. Enriquecimento sem causa.
Quando o STF firmou o exato alcance a ser dado à parte final do §7º do art. 150, in fine, vale dizer, de caber também a restituição quando a base presumida for maior do que a real, um dos principais fundamentos foi repelir-se o enriquecimento sem causa.
Sem embargo de opinarem incidentalmente a favor da complementação quando a situação se invertesse, tal debate naquela oportunidade não encontrou o aprofundamento necessário, notadamente sob o prisma deste fenômeno jurídico.
Num primeiro momento a lógica é sedutora: se, de um lado, quando a base efetiva é menor do que a estimada, deve o sujeito ativo devolver o excesso para não enriquecer-se ilicitamente, do lado oposto, o sujeito passivo, sob o mesmo fundamento, deverá recolher a diferença.
Entretanto, não há como se comparar as duas situações.
Por força de lei, como obrigado tributário, o sujeito passivo foi compelido a integrar-se a um regime jurídico dentro do qual a tributação se dava adiantadamente, antes da materialização do fato gerador.
Não houve, para ele, a alternativa de recolher o imposto de modo diferente. Sem ter escolhas, pagou o contribuinte um tributo consoante critérios econômicos prospectivos, ou seja, numa projeção quantitativa de que a base imponível iria se realizar num determinado montante. Se, todavia, esta se realiza aquém daquela estimada, injusta e antecipadamente apropriou-se o sujeito ativo de parcela a qual não lhe pertence.
Cenário completamente diferente se vivencia quando, submetida determinada operação mercantil ao regime jurídico da substituição progressiva, verifica-se depois que a base efetiva superou a esperada.
Neste caso, a adoção pelo sistema da substituição tributária foi uma decisão do Estado, na qualidade de ente federativo detentor da competência constitucional de instituir e cobrar o imposto. E ao tomar a decisão, implementou-a através de lei. Poderia o ente tributante implantar o regime da apuração normal do ICMS, regido pelo mecanismo da não cumulatividade, mas não foi assim que ele deliberou.
Ainda que houvesse a alternativa do contribuinte ingressar neste ou naquele regime jurídico, tal qual se identifica em algumas leis estaduais, quanto ao ICMS, ou no lucro presumido, quanto ao IR, tal faculdade estaria na lei, de sorte que, ao aderir a um deles, não poderia o contribuinte ser forçado a efetuar recolhimentos com base em outro regime jurídico, pois isso ameaçaria a estabilidade dos vínculos obrigacionais.
Assim, incabível falar-se em enriquecimento sem causa por parte do contribuinte.
Tal instituto (ou princípio) jurídico se caracteriza pelo fato de alguém afortunar-se à custa de outrem ou de fato da natureza sem base jurídica ou fundamento legal, desprovido de justo motivo.
Veja-se como a disciplina se encerra no Código Civil em vigor:
“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.
Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido” (destaques da transcrição).
É sabido que os institutos do direito privado não podem ser desvirtuados para a obtenção de determinados efeitos tributários, consoante inteligência do art. 110 do CTN.
Assim, à luz do julgamento do STF, está correto afirmar que, do lado do contribuinte, prostrado na condição passiva de uma relação jurídica regida por um regime contra o qual não pode resistir, ficaria este prejudicado se não recebesse de volta o tributo pago em excesso.
Na ótica daquela casa, fica claro o enriquecimento sem justo motivo, pois se não houvesse a devolução o ente tributante se apropriaria de recursos sem fundamento legal, posto irrealizado o fato gerador presumido na sua dimensão quantitativa. O valor pago a maior correspondeu a um fato que transbordou a relação obrigacional estabelecida entre o sujeito ativo e o passivo, visto que o excedente jamais significou tributo.
Algo distinto ocorre quando a base presumida resulta menor da verificada. Em troca do recebimento antecipado da receita e da prerrogativa de responsabilizar um agente econômico detentor de grande envergadura patrimonial – o substituto, o ente federativo competente subordinou certos fatos tributáveis a este regime jurídico e assumiu o risco de ver efetivamente uma base imponível de maior expressão econômica.
Mas aí o recurso público já ingressou no erário e, se ainda não entrou, terá o sujeito ativo grande probabilidade de realizá-lo pela coerção judicial do responsável tributário.
Não quisesse o ente federativo incorrer em dessintonias na base imponível, escolhesse um outro regime de tributação, o de apuração regular do ICMS com uso de débitos e créditos fiscais, por exemplo. Neste caminho, deveria ele aguardar a realização de cada operação mercantil, absorver o imposto em cada etapa da cadeia produção/consumo, até se chegar ao último estágio, o da venda ao consumidor final, onde estão situados inúmeros varejistas dotados de inexpressiva capacidade contributiva.
Não pode é o sujeito ativo aproveitar-se simultaneamente dos bônus de dois sistemas jurídicos – Substituição Tributária e não cumulatividade – e ignorar os seus ônus, a pretexto de maximizar despropositadamente a arrecadação.
Nestas circunstâncias, não há que se cogitar de enriquecimento sem causa do lado do contribuinte, pois o sujeito ativo, ao instaurar na lei a tributação antecipada, aquiesceu em ver satisfeita a obrigação tributária naquele volume estimado, até porque o seu cômputo foi pautado numa metodologia confiável prevista em lei.
Imagine-se o seguinte cenário: uma pessoa, credora de outra em virtude de um contrato de compra e venda, para ver a obrigação solvida, concorda em celebrar uma dação em pagamento recebendo bens em montante inferior à dívida originária. Não seria permitido ao credor, após a quitação, invocar o enriquecimento sem causa para cobrar do devedor a suposta parte remanescente, isto é, a diferença entre a dívida original e a adimplida.
Com as devidas adaptações, algo semelhante acontece no caso em tela, porquanto o credor tributário, valendo-se do regime jurídico da tributação antecipada, garantiu logo o tributo de quem tem lastro para assumi-lo, não importa se posteriormente se constate base imponível superior à projetada.
Em reforço, admita-se que por lei o ente tributante instituísse uma redução parcial de base de cálculo, até para amenizar a carga tributária de certo segmento econômico estratégico para a economia estadual. Obviamente, a expressão econômica constatada na operação irá superar o resultante da exigência tributária, mas nem por isso pode se falar em enriquecimento sem causa por parte do devedor tributário.
Através de lei o ente tributante autorizou que a arrecadação se efetivasse à luz de uma base imponível reduzida.
Através de lei o ente tributante autorizou que a tributação antecipada recaísse sobre bases econômicas estimadas para desfrutar da arrecadação antecipada e da segurança de vê-la realizada por uma pessoa jurídica com arcabouço patrimonial para suportar a cobrança, abrindo mão de eventuais resíduos quando o fato gerador futuro se concretizasse.
Oportuno o pensamento do Ministro Teori Zavaschi, dentro do RE em comento (p. 60):
“…Isso, o Supremo decidiu, no Recurso Extraordinário 213.396, afirmando que é constitucional essa forma de calcular o fato gerador, por um valor presumido, que não significa – isso é importante – um valor arbitrário. Isso não é novidade no nosso sistema. Há muitas hipóteses em que o valor, a base de cálculo do tributo não corresponde ao valor da operação efetivamente realizada…” (destaques da reprodução).
Nas três figurações – benefício redutor de base, celebração de dação em pagamento e imposição legal da Substituição Tributária – inexistiu enriquecimento sem justa razão porque todos os signos econômicos nelas verificados, ainda que tivessem trazido um benefício para o devedor, tiveram fundamento legal, pois reciprocamente o credor auferiu vantagens como contrapartida, seja para si, seja para a sociedade.
Inquestionavelmente, pagar o tributo decorre de uma relação jurídica de índole obrigacional, de sorte que as partes envolvidas neste vínculo, credor e devedor tributários, enriquecem ou empobrecem seu patrimônio quando há o adimplemento.
Voltemos os olhos outra vez para o direito privado. Se na execução da obrigação de dar, percebe-se ter havido um enriquecimento injustificado por parte do credor (cabendo a restituição), ou um enriquecimento injustificado por parte do devedor (cabendo a complementação), dá-se o enriquecimento sem causa.
Antes, porém, relembre-se que, de acordo com o art. 110 do CTN, a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, usados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, para definir ou limitar competências tributárias.
Nesta linha de raciocínio, caber ou não a complementação tendo em mira o enriquecimento sem causa implica em definir ou limitar competências atribuídas ao ente tributante que cria a substituição progressiva.
Logo, a matéria encontra regência nos estritos termos do art. 110 do CTN.
De outra sorte, há consenso na doutrina de que, seja como princípio, seja como instituto jurídico, está o enriquecimento sem causa prestigiado na Lei Maior, ainda que implicitamente, na medida em que dá suporte ao valor propriedade, pois é com base na teoria do enriquecimento que se recobra o patrimônio afetado negativamente por um motivo injusto.
Fazer a transposição do enriquecimento sem causa para o direito tributário implica em incursionar sobre as teorias explicativas deste fenômeno jurídico e subsumi-las à presente temática. Dentre elas, três correntes hoje se destacam como vetores científicos aceitos.
A primeira delas, chamada de teoria unitária da deslocação patrimonial, objetivada no Código Civil alemão e inspirada no pensamento de Savigny, expressa a ideia de ser o enriquecimento imotivado uma cláusula geral de aplicação direta na qual se verifica ter havido a detenção injustificada de um enriquecimento à custa de outrem, diretamente entre o empobrecido e o enriquecido, independente da forma que se sucedeu.
Apregoa que o enriquecimento é gestado a partir de algo que anteriormente pertencia a outra pessoa, de sorte a proporcionar a restituição de tudo que saiu indevidamente do seu patrimônio. Dado este caráter geral, não necessita de definição de tipos legais, tendo apenas como fundamento comum a coexistência da aquisição de uma vantagem e a ilegitimidade de sua manutenção.
Ainda que necessariamente não se possa falar em restituição de algo que anteriormente pertencia a outra pessoa, inexiste, no caso em foco, sob o ponto de vista desta teoria, enriquecimento sem causa aproveitado pelo contribuinte ao não fazer a complementação.
Note-se que a teoria pressupõe, para a parcela patrimonial apropriada (a diferença de tributo quando da efetiva ocorrência do fato gerador), ter havido detenção injustificada à custa do ente tributante. Apesar do valor maior verificado, isto não decorreu em detrimento do credor tributário. Ao contrário, este se beneficiou do regime jurídico por ele próprio adotado (ou disponibilizado para o devedor), ao receber uma contrapartida financeira e garantística, pois experimentou a realização de uma receita que só iria ingressar no erário ulteriormente; e se não ingressasse, a ser buscada com grande probabilidade de êxito.
A segunda corrente de pensamento, denominada de teoria da ilicitude, concebida por Fritz Schulz, funda-se em considerar o enriquecimento na violação de um direito alheio, portanto num cometimento de ilicitude, cabendo ao seu autor, como sanção a ele imposta, providenciar a restituição. Destarte, dá ao enriquecimento o traçado de responsabilidade civil.
Tais ilicitudes estariam no enriquecimento por prestação, traduzida na ilegítima aceitação ou detenção da coisa por parte de quem a aproveitasse, ou no enriquecimento derivado de fato da natureza, traduzido numa intromissão equiparada a comportamento ilegítimo.
Também nesta seara improcede o enriquecimento sem causa se o contribuinte não complementar o imposto. Isto porque não há o cometimento de qualquer ilícito. A sua relação obrigacional tributária, ainda que inicialmente esteja a cargo de outrem – o substituto, exauriu-se quando do recolhimento antecipado, posto fundar-se em regime previsto em lei. Logo, inexiste a ilicitude se o recolhimento se deu de acordo com os ditames da lei, criada pelo próprio titular do direito ao recebimento do tributo.
A terceira linha de pensamento, criada por Walter Wilburg e Ernst Von Caemmerer, tem o nome de doutrina da divisão do instituto e parte da ideia de que a dogmática unitarista é por demais abstrata para abrigar as hipóteses de enriquecimento imotivado, de modo que se faz necessário criar tipos legais. Entretanto, cria duas grandes categorias de enriquecimento autônomas e distintas entre si, isto é, o decorrente de uma prestação do empobrecido, previsto numa espécie de anexo ao direito dos contratos, particularmente à transmissão de bens, e o proveniente de uma não prestação, previsto como anexo a um prolongamento da eficácia do direito de propriedade, como corolário da proteção jurídica dos bens.
Como subdivisão tipológica preconizada pelos mentores da teoria, o enriquecimento estaria desdobrado em por prestação, por intervenção, por liberação de uma dívida paga por terceiro e por despesas efetuadas em coisa alheia.
Esta teoria, a rigor, não teria cabimento para o deslinde da questão, pois reclamaria uma hipótese específica na lei tributária, preferencialmente na lei de normas gerais do tributo.
Sem embargo, ainda que viesse uma lei geral ou específica prevendo como enriquecimento imotivado o fato do contribuinte deixar de complementar o imposto se a base efetiva ultrapassar a presumida, haveria descompasso entre a natureza jurídica do instituto e a disposição legal criada, em clara violação ao art. 110 do CTN. Isto porque não se pode falar em enriquecimento imotivado se o credor tributário, ele mesmo responsável pela criação da Substituição Tributária progressiva, desfruta das vantagens deste regime – antecipação de receita e garantia de recebimento – compensando-se desde já de eventuais perdas quando da realização do fato gerador.
Em síntese, esta terceira teoria, como sói acontecer, pressupõe a existência de uma causa injusta, que não se coaduna com o caso sob discussão, pois o fato da obrigação tributária ter sido satisfeita dentro dos moldes da Substituição Tributária para frente já justifica a apropriação patrimonial.
Importante registrar que Agostinho Alvim, jurista brasileiro autor do Anteprojeto do Código das Obrigações, predecessor nesta parte do CC de 2002, afiançara que a causa justificadora do enriquecimento pressupunha uma contrapartida para o empobrecido. Por conseguinte, inexistindo uma contrapartida, o enriquecimento será sem causa.
Nesta toada, com a implantação em lei da Substituição Tributária progressiva pelo próprio ente federativo, regime jurídico que lhe proporcionou vantagens e desvantagens, e verificada base superior à estimada, teve ele, com o ingresso de receita em montante menor, muitas contrapartidas e compensações, quais sejam, o adiantamento de receita (e respectivos ganhos financeiros) que só se realizaria tempos depois e, mesmo se num primeiro momento fosse insatisfeita, a forte garantia de sucesso na sua recuperação, nunca é demasia repetir, dada a responsabilidade atribuída a pessoa dotada de posses patrimoniais.
Enfim, de forma alguma será crível alegar-se para tais hipóteses enriquecimento sem causa.
3. Conflito de normas.
Demonstrado não haver enriquecimento sem causa na hipótese da base efetiva ser superior à presumida, seja qual for a teoria explicativa da natureza jurídica do instituto, resta saber se pode o legislador de normas gerais ou o sujeito competente para instituir o tributo criar um comando legal prevendo a complementação.
Inicie-se a análise pela primeira alternativa.
Com apoio no art. 146 da CF/88, o legislador complementar do ICMS abriu a possibilidade de adoção do regime jurídico da substituição progressiva (art. 6º a 10º da LC 87/96). Imagine-se, agora, surgir paralelamente uma norma de complementação caso a base realizada seja superior à estimada, reforçando, inclusive, que a sua falta acarretará enriquecimento sem causa por parte do sujeito passivo.
Quanto ao trecho da norma que pretende qualificar tal situação como enriquecimento imotivado, há claro erro legislativo, pois, não obstante ter havido apropriação por parte do contribuinte, inexiste, conforme explicado no item anterior, uma causa injustificada que a caracterizasse. O instituto, portanto, estaria deturpado, ao arrepio do art. 110 do CTN.
Sem embargo desta distorção, ainda assim pode-se alegar que há dispositivo expresso estatuindo a suplementação, de sorte que, com base na legalidade tributária, esta passaria a ser exigida.
Aparentemente, conquanto exista o comando do art. 110 do CTN, o argumento induz à admissibilidade da cobrança. Todavia, percebe-se claramente na suposição uma antinomia normativa, além de violência a princípios jurídicos de relevo.
Ensina a doutrina (BOBBIO, 2014, p.93):
“Como ‘antinomia’ significa o encontro de duas proposições incompatíveis, que não podem ser ambas verdadeiras, e, com referência a um sistema normativo, o encontro de duas normas que não podem ser ambas aplicadas, a eliminação do inconveniente não poderá consistir em outra coisa senão na eliminação de uma das duas normas” (aspas originais; destaques da transcrição).
Em primeiro lugar, é de se referir que a norma da complementação só seria criada porque se instaurou na Constituição em vigor um regime jurídico específico, o da Substituição Tributária para frente, e o legislador complementar vislumbrou compatibilidade entre os dois arquétipos.
Não haveria o recolhimento complementar se outro regime jurídico fosse adotado. Portanto, a norma da suplementação é dependente da norma da antecipação com substituição.
Para investigar se existe antinomia cronológica, esclareça-se que, em se tratando de ICMS, a norma de complementação seria uma novidade na LC 87/96[3], porquanto o novel dispositivo não poderia retroceder os seus efeitos para atingir fatos geradores pretéritos, sob o argumento de ser uma disposição acessória do sistema da Substituição Tributária, evidente o lanho à irretroatividade tributária[4].
Com efeito, inexiste antinomia cronológica entre a norma de complementação e a norma que prevê a Substituição Tributária, pois a primeira é corolário desta última. Não se trata de usar lei posterior que revogou a lei anterior. Ao contrário, a lei ulterior avivou a lei antecedente, ainda que tal reiteração faleça de eficácia jurídica, conforme será adiante explanado.
De igual, não se detecta antinomia pela especialidade, pelo fato da lei especial revogar a lei geral, pois a hipótese de complementação veio apenas admitir uma possibilidade dentro de um regime jurídico geral preexistente. Em outras palavras, não se aplica aqui a ideia de surgir norma especial acrescendo elemento próprio à descrição legal do tipo previsto na norma geral, segundo ensinamento da doutrina (DINIZ, 2009, p.40):
“Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetivaou subjetiva, denominados especializantes. A norma especial acresce um elemento próprio à descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando-se assim o bis in idem, pois o comportamento só se enquadrará na norma especial, embora também seja previsto na geral”.
O certo mesmo é ter sucedido uma antinomia hierárquica, a despeito das duas disposições se hospedarem numa lei complementar. Isto porque a norma de complementação, ao surgir, violou a Substituição Tributária para frente com raízes na própria CF/88, nomeadamente no art. 150, §7º, tantas vezes aqui lembrado.
Ao implantar o regime jurídico da Substituição Tributária progressiva, o constituinte derivado previu a possibilidade de devolução do tributo, acaso o fato gerador presumido não se concretize, tanto na dimensão material como na quantitativa, esta última certificada agora pelo STF.
Mas não previu a possibilidade de suplementação se a presunção ficasse aquém da realidade.
Portanto, os contornos da Substituição Tributária progressiva já foram bem delineados na Constituição, fora das quais está a possibilidade de complementação. Assim, a lei infraconstitucional só poderá instituir o regime dentro daquele espeque.
Atribuir ao ente tributante direito à complementação significaria migrar para além das bordas do citado regime jurídico constitucional, aproveitando-se de outras cidadelas jurídicas aqui inaplicáveis. Não fará sentido subordinar determinada operação ao regime da Substituição Tributária, cujo delineamento ganhou status constitucional, e depois fazer uso de um outro sistema jurídico, montado no encontro de débitos e créditos fiscais, mesmo que este segundo sistema também tenha previsão na Lei Maior.
Em resumo, soará incongruente o legislador infraconstitucional optar pela tributação antecipada para certos fatos jurídicos e, simultaneamente, empregar para eles procedimentos típicos de um outro regime tributário, qual seja, o da não cumulatividade.
Note-se que a restituição no caso do fato imponível exprimir base econômica menor do que a estimada, calcada na lógica do sistema de débitos e créditos apurados operação a operação, constitui uma excepcionalidade imposta pelo próprio legislador constitucional, segundo a dimensão sufragada no STF.
Sendo assim, vindo a lei de normas gerais do ICMS inserir dispositivo prevendo a exigência de recolhimento suplementar, haverá claramente uma antinomia hierárquica, por violência ao §7º do art. 150 da CF/88, estando, destarte, fadado à inconstitucionalidade.
Válido o ensinamento doutrinário (BOBBIO, 2014, p. 95):
“Uma das consequências da hierarquia normativa é justamente esta: as normas superiores podem revogar as inferiores, mas as inferiores não podem revogar as superiores. A inferioridade de uma norma em relação a outra consiste na menor força de seu poder normativo ; essa menor força se manifesta justamente na incapacidade de estabelecer uma regulamentação que esteja em oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior” (destaques da transcrição).
Evidentemente, o comando constitucional que instituiu o regime jurídico da Substituição Tributária progressiva surgiu com o fito de fazer exaurir a obrigação tributária com o pagamento antecipado. E estabeleceu uma extraordinariedade apenas com relação a satisfazer o indébito porventura a base estimada fique além da realizada. Esta é a disciplina da norma superior, jamais podendo ser contrariada por norma inferior.
Quisesse o constituinte derivado – e, portanto, já com a ordem constitucional produzindo efeitos – incluir também a hipótese de complementação, tê-lo-ia feito na EC 03/93, tal qual o fez com relação à restituição.
Somente uma outra emenda teria a força jurídica suficiente de alterar as quadraturas constitucionais forjadas para a Substituição Tributária progressiva.
É neste patamar normativo – Constituição Federal – que o legislador terá permissão para agir, sob pena de vilipendiar o postulado da hierarquia das leis.
Não bastasse isso, a inserção da norma de complementação na lei complementar desrespeitaria princípios jurídicos de estatura constitucional e infraconstitucional.
A começar pela segurança jurídica, tendo em mira os contribuintes. A fixação da base presumida é de iniciativa do ente tributante. Com o pagamento antecipado do tributo, dar-se-ia aí a pacificação da relação jurídico-tributária a cargo do substituto, com a consecução da desejada estabilidade social.
Exigir tempos depois de outro contribuinte o pagamento complementar abalaria uma relação jurídica harmonizada anteriormente. Equivaleria a alguém pagar o crédito tributário lastreado numa alíquota e em seguida reclamar-se dele a suplementação só porque adveio uma lei fixando uma alíquota maior.
E não se diga que o exemplo anterior se hospeda num ambiente diferente. Ao fixar a base presumida dentro dos critérios legais e receber o tributo do substituto, o ente tributante viu atendido o seu desígnio, cumpriu sua função político-social e colaborou para a harmonia das relações jurídicas.
A supremacia dos princípios jurídicos – constitucionais e infraconstitucionais – continua prevalecendo na interpretação do direito objetivo brasileiro, conforme melhor doutrina (NUNES, 2002, p. 171):
“… o princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos horizontes do sistema jurídico e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam”
E tem na segurança jurídica a ideia de que a tipificação do tributo, longe de corresponder cartesianamente à porção de riqueza afetada, deve, antes de tudo, proporcionar lindes confiáveis para que a sociedade a aprove, chancele as suas bases quantitativo-jurídicas e a acolha como elemento de equilíbrio na convivência entre o Estado e o cidadão.
Assim expressa a doutrina (CAYMMI, 2007, p. 189):
“Pode-se ainda perceber que a variação da concepção de segurança jurídica implica, do mesmo modo, na variação dos requisitos necessários para o atendimento do princípio da tipicidade tributária, ou seja, dos mecanismos necessários à delimitação ‘segura’ dos fatos geradores dos tributos e das obrigações tributárias impostas em função da verificação da ocorrência destes” (aspas originais; destaques da reprodução).
Raciocínio semelhante poderia ser empregado para impedir a restituição quando a base presumida fosse maior do que a presenciada. Mas aí não se pode falar em abalo à segurança jurídica porque é a própria Constituição que estabelece esta excepcionalidade, conforme novo entendimento abraçado pela Suprema Corte, e como tal deve ser assimilada pela sociedade[5].
O mesmo não se pode dizer da complementação, porquanto desprovida de respaldo constitucional, de modo que admiti-la tornará volúveis as relações jurídicas pacificadas com o pagamento antecipado.
Daí continuar atual a mensagem do Ministro José Antonio Dias Toffoli, proferida no RE em evidência, ao detectar desmesura ao princípio da segurança jurídica no recolhimento suplementar: (p. 67):
“O que eu fico a pensar e a imaginar? Qual é a solução que nós daríamos para o caso que traria maior segurança jurídica do ponto de vista de menos litigiosidade, de diminuir o grau de litigiosidade? Eu penso que trouxe essa solução o Ministro Teori, no momento em que disse: ‘Vamos manter a jurisprudência e vamos pacificar essa situação, de acordo com a jurisprudência já consolidada pela Corte’, de tal sorte que isso evitará inúmeros conflitos, embates e debates judiciais, seja em relação ao passado, seja em relação ao futuro, porque continuarão a existir operações presumidas cujos valores finais depois serão ou a maior ou a menor” (aspas originais, destaque da reprodução).
Conforme será explicado em item a seguir, graves perplexidades aparecerão para saber qual o montante do imposto a cobrar caso a base realizada seja superior à presumida. E, efeito colateral indesejado, ações judiciais povoarão os Tribunais superiores, derredor da quantificação do valor a complementar, revolvendo questionamentos já obstados pela definitividade da base presumida.
Neste compasso, a advertência do Ministro Gilmar Mendes:
“Eu temo – e aí voltando ao argumento da praticidade – que, ao abrirmos para essa verificação, estejamos perdendo de vista que estamos falando, não de milhares, mas de milhões de relações que se realizam diuturnamente e que cumprem esse determinado modelo, claro, dentro de uma dada racionalidade. Se voltarmos a espiolhar isso um a um, vamos, de fato, abrir a caixa de Pandora desse sistema, e, talvez, torna-lo inútil. Na questão da interpretação desse dispositivo, a mim, me parece que o elemento-chave é este: será que, depois de ter de fazer a avaliação de cada operação, vai fazer sentido aí a substituição tributária?” (destaques da reprodução).
Conformada a possibilidade de restituição pelo viés quantitativo do fato presumido, na exegese adotada pelo STF, tolerando-se, concomitantemente, a complementação no sentido inverso, o resultado extraído daí será a inocuidade do comando constitucional que aprovou a Substituição Tributária progressiva. Seria mitigar de tal forma o funcionamento deste regime jurídico que praticamente perderia aplicabilidade. E, voz uníssona, a Constituição e seus prescritivos foram concebidos para frutificarem na plenitude, não se submeter a refreios criados por lei de hierarquia menor.
Relembre-se o ensinamento da doutrina (SILVA, 1998, p. 225):
“Toda constituição (e emendas supervenientes) é feita para ser aplicada. Nasce com o destino de reger a vida de uma nação, construir uma nova ordem jurídica, informar e inspirar um determinado regime político-social” (destaques e parêntesis da transcrição)
Outro princípio de relevo mitigado por um provável comando infraconstitucional de suplementação é o da praticidade. A despeito desta ter sido atenuada na hipótese de restituição, a partir da técnica da interpretação conforme conferida pelo STF ao §7º do art. 150 da CF/88, deve prevalecer diante da exigência de complementação.
A praticidade tributária necessitou ser adequada à possibilidade de restituição, face o regramento constitucional e a sobreposição de princípios de magnitude superior. Nestas circunstâncias, deve o aparelho fiscal municiar-se de meios para examinar a legitimidade do indébito, ante o cabedal de provas a ser apresentado pelo sujeito passivo quando formular seu pleito.
No âmbito do ICMS, dar azo à restituição (que tem licença constitucional) e à suplementação (sem licença constitucional) atingirá em tal intensidade a praticidade que será melhor – sob esse ponto de vista – abandonar o regime da Substituição Tributária para frente e deixar que todas as operações sejam regidas vez por todas pela não cumulatividade.
Todavia, é objetivo a ser perseguido pelo ente tributante a simplificação das obrigações tributárias tanto para o contribuinte como para o aparelho fiscalizador. Relegar a Substituição Tributária progressiva ensejaria um retrocesso prejudicial para todos, sobretudo nos segmentos de mercado cujo varejo seja fragmentado, obrigando o exame individual de milhares de contribuintes de ínfima capacidade econômica.
Por conseguinte, respeitante à complementação, deve ainda sobrepujar a praticabilidade, dada a relevância do princípio, na voz abalizada da doutrina (COSTA, 2007, p. 93):
“… as leis tributárias devem ser exequíveis, propiciando o atingimento dos fins de interesse público por elas objetivado, quais sejam, o adequado cumprimento de seus comandos pelos administrados, de maneira simples e eficiente, bem como a devida arrecadação dos tributos” (destaques da transcrição).
Cuja conclusão é a seguinte (COSTA, 2007, p. 389):
“A noção de praticabilidade é relevante para a viabilização da vontade estatal, manifestando-se, precipuamente, por meio da lei, na medida em que seus comandos devem ser executados em massa. No campo tributário tal circunstância é sentida em grande dimensão, haja vista a rápida e automática multiplicação das relações jurídico-tributárias, que, por sua natureza ex lege, constituem campo fértil para a praticabilidade disseminar amplamente seus efeitos” (itálicos originais; destaques da transcrição).
Não em menor escala a norma de suplementação afetaria o princípio da razoabilidade. Isto porque a tributação deve exprimir um exercício de poder equilibrado, coerente e justo. A parcela a ser retirada da esfera privada deve corresponder a níveis aceitáveis de exigibilidade, sem sobressaltos, sem exageros focados simplesmente na arrecadação. Ainda que remanesçam resíduos entre a base efetiva e a estimada, soa plausível não investir na sua cobrança, máxime quando o recurso já ingressou no erário com antecedência.
Bem verdade que não se descarta a hipótese de eventualmente surgirem vultosas diferenças entre o projetado e o realizado. Nestes casos, haverá dois diagnósticos a identificar: ou o perfil do mercado sujeito a Substituição Tributária progressiva não comporta a utilização deste regime jurídico ou há necessidade de revisar o cálculo dos critérios de estimação e recalibrar a base imponível presumida.
Enfim, constatada a antinomia hierárquica, seja por violação a preceito constitucional, seja por desatenção a princípios jurídicos, pelos mesmos motivos a anormalidade aconteceria se a norma de complementação estivesse na lei estadual institutiva do tributo.
De modo que, quer seja na lei complementar de normas gerais, quer seja na lei institutiva do tributo, a norma de complementação, face a antinomia hierárquica com o §7º do art. 150 da CF/88, deverá ser considerada inconstitucional e, portanto, afastada liminarmente da ordem jurídica vigente.
4. Operacionalização da cobrança do pagamento suplementar.
Dúvidas não há de que a tecnologia da informação ajudou muito na auditoria das operações mercantis para efeito de apuração do ICMS, algo que ainda era embrionário à época em que a Suprema Corte fixou o entendimento de descaber a devolução do imposto quando a base imponível concretizada era menor do que a presumida.
De lá para cá as estruturas fiscalizadoras criaram o Sistema Integrado de Informações sobre Operações Interestaduais com Mercadorias e Serviços (SINTEGRA), plataforma a partir da qual os contribuintes digitavam os dados das operações comerciais que realizavam e os transmitiam para os bancos de dados dos fiscos estaduais. Era um expediente que ainda exigia uma ação humana de boa-fé por parte do sujeito passivo, pois se o sujeito passivo não alimentasse corretamente o sistema informatizado, ficava o ente tributante “às cegas”, sem acesso às informações da movimentação econômica[6].
O procedimento evoluiu para a nota fiscal eletrônica (NFe), de performance automática, de modo a disponibilizar as informações instantaneamente para os fiscos interessados, a partir da sua própria expedição.
Ao vender o produto, por exemplo, a empresa emite a nota fiscal eletrônica e os Estados envolvidos tomam conhecimento disto, intervindo, quando necessário, até mesmo antes dele chegar ao seu destino, através de suas equipes de fiscalização de trânsito das mercadorias.
Além disso, criou-se o sistema de escrituração fiscal digital (EFD), a partir do qual a movimentação comercial de uma empresa (entradas, saídas, apuração do imposto, estoques etc.) encontra-se informatizada, em linguagem adequada para que os dados sejam devidamente tratados e analisados pelos sistemas de auditoria existentes.
Por conseguinte, numa primeira impressão, não haveria dificuldades para que os entes tributantes cobrassem as diferenças de tributos nos descompassos quantitativos verificados nas duas bases de cálculo, tal qual alguns eminentes Ministros afiançaram no julgamento do RE 593.849 – MG.
Entretanto, no tocante à pragmatização dos procedimentos, surgem percalços operacionais importantes, alguns deles chegando a ser insuperáveis.
A começar por descobrir o universo de sujeitos passivos alvejado pela Substituição Tributária para frente. Em regra, tal regime jurídico tem como um dos seus objetivos englobar nichos de mercado cuja venda a varejo esteja altamente pulverizada, repleta de pequenos agentes econômicos.
Com a instauração do poder-dever de cobrar a complementação, prepostos fiscais seriam mobilizados para atuarem nestes fatos tributários. Vislumbre-se o mercado de cervejas e refrigerantes de um Estado inteiro: participam dele contingente expressivo de bares, restaurantes, depósito de bebidas e estabelecimentos similares. Até mesmo ambulantes seriam potencialmente obrigados a efetuarem a suplementação.
Bem verdade que há setores onde a Substituição Tributária progressiva é utilizada distorcida e desnecessariamente (sendo a melhor solução retirá-los do regime), como no caso da produção e comercialização de veículos automotores, sem tantas concessionárias de automóveis, onde seria factível investigar-se a complementação[7]. Ou implantar isenção para o suplemento em se tratando de micro e pequenas empresas.
Mesmo assim, restariam ainda milhares de agentes econômicos a terem sua escrita pendente de verificação.
Nesta toada, o Ministro Edson Fachin, relator do RE sob discussão, lembrou o voto do então Ministro Nelson Jobim, prolatado na ADI 2777, cujo trecho bem resume os objetivos traçados pela ST progressiva:
“Convergem-se, ainda, acerca das vantagens pragmáticas hauridas da sistemática da substituição tributaria progressiva, as quais foram precisamente sumarizadas pelo eminente Ministro Nelson Jobim, em seu arguto voto proferido na ADI 2777: (i) a maior segurança na arrecadação; (ii) o melhor desempenho da Administração Tributária; (iii) e eficiência da máquina estatal, evitando respectiva expansão; e (iv) a promoção da justiça fiscal na medida em que se combate efetivamente a sonegação” (destacamos).
Diante de tais complicadores, por si só insuperáveis, mas que apenas ilustram um quadro muito mais vasto, parece não ter sido bem avaliada a repercussão prática da admissibilidade incidental da complementação, maxima permissa venia, por parte de alguns membros da Corte Máxima, a exemplo das declarações do eminente Ministro Luis Roberto Barroso no RE sob foco, ao se referir ao posicionamento anteriormente firmado naquele Tribunal (p. 40):
“… a lógica subjacente àquela decisão é de que o estágio em que a fiscalização se encontrava dificultava, sobremaneira, a fiscalização do valor da dimensão econômica da efetiva operação. Portanto, foi uma medida pragmática para se evitar tanto a sonegação quanto um ônus excessivo nessa fiscalização. Agora, os recursos de fiscalização, técnica de fiscalização evolui muito nos últimos doze, quinze anos, de lá para cá. Portanto, já não é mais tão árduo assim verificar a operação real” (destaques da transcrição).
E da Presidente Carmen Lúcia Rocha:
“… levei em consideração, para acompanhar o Ministro-Relator, a circunstância de que, 14 anos após aquele voto, a Receita Federal e as Receitas estaduais, de uma forma geral, já têm estrutura e possibilidade de verificação efetiva do que se dá, até mesmo de uma maneira bem objetiva e bem facilitada pelos mecanismos que hoje nós temos, para que então se possa assegurar que aquilo que foi pago foi, inicialmente, presumido, mas depois demonstrado que não se tinha realizado em detrimento de alguém” (destaques da reprodução).
Por conseguinte, voltariam tais contribuintes a serem fonte de preocupação por parte da máquina fiscal. Melhor seria, portanto, que atento a esta anomalia tributária, o ente tributante calibrasse bem a base de cálculo presumida e se contentasse com o recolhimento feito pelo substituto.
O panorama se agrava consideravelmente quando a análise desce a outros detalhes. Suponha-se uma indústria A, substituta tributária, efetuando para o mesmo cliente atacadista quatro vendas do produto x submetidas à MVA de 30%, praticando dentro do mês preços unitários diferentes, de acordo com a quantidade negociada, a saber, R$10, R$15, R$16 e R$20, redundando em preços projetados na ponta de R$13, R$19,50, R$20,80 e R$26, respectivamente. Imagine-se, agora, que o fisco detecte ter o varejista vendido o citado produto por R$12, R$14, R$17 e R$19. Algumas indagações se revelam impactantes, quais sejam:
– Como sustentar o direito à complementação? A mercadoria vendida ao consumidor final por um preço foi qual mercadoria tributada antecipadamente pela fábrica? E por qual base presumida?
– Mesmo se a mercadoria fosse comprada para consumo ao preço superior a todas as bases estimadas, quanto montaria a diferença?
– E se o varejista comprasse de fornecedores diferentes, a preços diferentes, que por sua vez adquiriram os produtos de indústrias diferentes, qual base estimada seria adotada para comparação e cobrança da diferença?
– E se tais industriais estivessem situados em Estados diversos, como operacionalizar a verificação da base estimada?
– E se tais eventos se repetissem indefinidamente por meses e meses, como viabilizar a checagem das informações?
Reconheça-se que este esforço seria deveras complicado e não encontraria uma resolução. Mesmo se fosse possível para certas situações encontrar a diferença com o estabelecimento de novas médias ou de técnicas de aproximação, a alternativa cometeria o mesmo “pecado” de fixar uma nova base presumida, frágil o suficiente para ensejar questionamentos judiciais antes inexistentes.
Se a grande crítica que se faz à Substituição Tributária para frente recai no fato dela partir de bases presumidas, a base para a complementação continuaria no máximo – quando quantificável – sendo também presumida. Haveria, no pagamento antecipado, um montante presumido, e na complementação, um segundo montante presumido.
Multipliquem-se tais situações produto a produto, preço a preço, mês a mês, fornecedor a fornecedor, varejista a varejista, e ter-se-á uma infindável rede de eventos posteriores pendentes, numa desgastante tarefa a ser empreendida pelos agentes de fiscalização. A relação custo/benefício, tão prestigiada pela praticidade, ficaria irremediavelmente comprometida[8].
Evidentemente, tais situações colidiriam com o princípio da praticidade tributária, inoponível quando se constata necessidade de restituição, por violentar prerrogativas fundamentais do contribuinte, mas perfeitamente invocável e digno de prestígio quando se perceba valor a cobrar suplementarmente.
Neste sentido, o opinativo do Ministério Público, exarado no RE em comento e citado no julgamento (p. 22):
“A praticidade constitui a ratio essendi da norma inscrita no §7º do art. 150 da CF. Não se pode por mecanismo de simplificação de arrecadação tributária deixar em segundo plano os direitos e garantias dos contribuintes. A ordem é diametralmente oposta: a praticidade somente se sustenta quando não viola os direitos e garantias dos contribuintes” (grifos originais; negritos da reprodução).
Um outro agravante surgiria se o fisco fosse examinar a escrita de varejistas para saber se cabem eventuais complementações. Não raro, as dificuldades seriam grandes porque alguns agentes econômicos, sobretudo aqueles pertencentes a segmentos com vocação sonegadora, poderiam subfaturar as transações e dissimular as bases efetivamente praticadas. Ou até mesmo esconder a própria operação mercantil.
Verdade que algo semelhante aconteceria no sentido inverso, vale dizer, quando a base efetiva fosse menor do que a presumida. Mas neste caso já há a chancela do E.STF, incontornável, por enquanto, além do fato do contribuinte ser compelido a demonstrar prova cabal de que efetivamente é cabível a restituição, ainda que a favor dele corra o prazo de aproveitar o crédito fiscal correspondente se decisão não advier em noventa dias, ex vi do § 1º do art. 10 da LC 87/96. Porém, não se descarta a hipótese de milhares de pedidos de indébito aparecerem no país, a consumirem tempo e pessoal especializado em apreciá-los.
No tocante à produção de prova robusta, mister reproduzir o pensamento da doutrina (GRECO, 2016, p. 441):
“Assim, ao legitimado cabe, além da prova mencionada, também a demonstração de ter havido uma cobrança maior de imposto em relação àquela mercadoria cuja operação dá ensejo ao pleito de restituição. (…)
De fato, será preciso comprovar a evolução do estoque atrelada às datas e aos valores de cada operação sujeita à antecipação e de cada última que ensejou o pleito de restituição. Prova inegavelmente complexa a ser realizada” (destaques originais; itálicos da transcrição).
Aliás, sem embargo do Ministro Luiz Fux pender para a possibilidade de complementação, ainda que somente como reforço à argumentação pelo indébito, não deixou o eminente julgador de reconhecer a praticidade para o fisco, plasmada na substituição tributária progressiva (p. 64):
“O primeiro destaque que eu faria é que, efetivamente – e isso é inegável, todos abordaram o mesmo aspecto -, a Substituição Tributária é uma medida de caráter prático sob o ângulo tributário; ela visa a praticidade da cobrança antecipada para otimizar a fiscalização” (destaques da reprodução).
Portanto, apesar de alguns membros do E. STF terem visualizado possibilidade de averiguação da base efetiva, o modus operandi não se mostra tão fluido assim, em vista das complicações práticas atrás delatadas, de sorte que o expediente acaba trazendo um retrocesso para a praticidade tributária, sendo obrigado o sujeito ativo a se debruçar sobre situações que já estavam resolvidas com a tributação antecipada, e das quais gestores e operadores voltarão desnecessariamente a enfrentar, demandando mais custos para a máquina pública.
Por outro lado, usar de atecnias para se fazer recolhimentos aproximativos da complementação seria não alcançar a base efetiva e estabelecer bases de cálculo presumidas para a suplementação, numa espécie de subproduto jurídico indesejado que só teria o objetivo de satisfazer propósitos arrecadacionais. É como se a ciência do direito ficasse, por assim dizer, no meio do caminho para a solução, onde, fatalmente, terá espaço aberto para condutas arbitrárias e procedimentos meramente especulativos.
E aí o operador se depararia com o sistema de Substituição Tributária progressiva em que se trabalha com fatos geradores presumidos, no viés quantitativo, e caso a base efetive supere a estimada – vale repetir -, ser forçado a adotar, para encontrar a complementação, nova base presumida.
Não bastassem todos estes empecilhos, remanesce ainda uma última discussão a respeito de quem deve responder pelo tributo a ser complementado, se o substituto ou o substituído, tema aparentemente resolvido na área do ICMS, por força do caput do art. 10 da LC 87/96, mas que perdura em relação aos demais tributos.
Isto porque uma parcela da doutrina questiona se o contribuinte de fato estaria no polo passivo da relação jurídico-tributária e, portanto, alcançável pela cobrança suplementar. Neste sentido, a melhor doutrina (FERRAGUT/NEDER, 2007, pp. 10 e 11):
“Contribuinte é a pessoa que realizou o fato jurídico tributário e que, cumulativamente, se encontra no polo passivo da relação obrigacional. Se uma das duas condições estiver ausente, ou o sujeito será o responsável, ou será o realizador do fato jurídico, mas não o contribuinte. Praticar o evento, portanto, é condição necessária para essa qualificação, mas insuficiente. (…)
A responsabilidade é proposição que tem o condão de alterar a norma individual e concreta que constituiu o crédito tributário, sempre que esta norma (a de constituição) tiver inicialmente previsto um outro sujeito passivo da relação (responsabilidade por sucessão).
Por outo lado, é proposição que não altera a norma individual e concreta de constituição do crédito, se, desde o início, o responsável tributário for o sujeito passivo da relação (responsabilidade por substituição, por solidariedade, de terceiros e por infrações)” (parêntesis originais; destaques da reprodução).
Portanto, também poderá por esta senda haver intenso tensionamento judicial.
Enfim, tanto para o contribuinte como para o fisco, a hipótese de complementação não traduzirá uma boa alternativa para por fim à discussão do quantum tributário.
6. Conclusões.
Assim, do estudo ora empreendido, pode-se chegar às seguintes conclusões:
Na esteira do julgamento proferido no RE 593.849-MG, no qual se admitiu a restituição de tributo quando a base presumida supere a praticada, muitos Estados tenderão a incluir nas suas legislações a possibilidade de se fazer a cobrança complementar caso se dê o inverso, isto é, a base presumida fique aquém da praticada.
Dentro da nova visão do STF, a restituição face o excedente antecipado no cálculo da base presumida constitui uma extraordinariedade constitucional, a ser respeitada pelos entes tributantes, não obstante ser este evento assimilado da lógica de outro regime jurídico, qual seja, o da não cumulatividade.
Não percorre o mesmo caminho a exigência de complementação, posto inexistir previsão constitucional para tanto, e, por conseguinte, ser incompatível com a Substituição Tributária Progressiva, de sorte que não pode o mesmo fato gerador – seja na sua forma estimada, seja na sua forma efetiva, – submeter-se concomitantemente a dois regimes jurídicos.
Depõe contra o postulado da justiça fiscal o ente tributante aproveitar-se ao mesmo tempo das vantagens de dois regimes jurídicos em relação à dimensão quantitativa de um único fato gerador, ignorando as suas desvantagens tão-somente a pretexto de incrementar a sua arrecadação.
A circunstância da base imponível verificada superar a projetada revela um evento meramente econômico, irrelevante, no caso, para dele se extrair efeitos tributários.
Inexiste enriquecimento sem causa do lado do contribuinte se o preço praticado ultrapassa o preço estimado porque não houve prejuízos suportados pelo ente tributante, na medida em que este experimentou contrapartidas suficientes – ingresso antecipado de receita com garantia de recebimento – que desautorizam a suplementação do imposto.
Caracteriza antinomia normativa hierárquica se o legislador complementar ou o sujeito ativo competente resolver inserir no direito objetivo disposição estatuindo a cobrança complementar, seja porque a iniciativa agride o art. 150, §7º, da CF/88, seja porque se choca com princípios jurídicos de relevo, a exemplo da praticidade, razoabilidade e segurança jurídica, salvo se o comando vier através de emenda constitucional.
Ainda que a norma de complementação conseguisse ter sobrevida no ordenamento jurídico, os entraves operacionais dela decorrentes causariam perplexidades jurídicas intransponíveis, além de atulhar o Judiciário de contendas desnecessárias, a ponto de inviabilizar a adoção da Substituição Tributária para frente e tornar inaplicável um dispositivo constitucional que hoje se manifesta com todo o seu vigor.
Tanto na restituição como na eventualidade de se admitir o recolhimento complementar, haverá da parte do seu titular necessidade de se produzir prova contundente para demonstrar a existência e a dimensão quantitativa deste direito.
À luz da recente decisão do STF, a admissibilidade do indébito, de um lado, e os impasses sentidos nos procedimentos para exigir a suplementação, do outro, farão com que as entidades federativas competentes passem a utilizar racionalmente o regime da Substituição Progressiva, vocacionado apenas naqueles setores com varejo pulverizado, e passem a se preocupar mais com a calibração da base imponível presumida.
Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa. Especialista em Direito Tributário e Gestão Tributária. Professor Universitário de Graduação e Pós-Graduação Uneb UCSal e Unifacs
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