Súmula nº 735 do STF. Descabimento de recurso extraordinário contra Acórdão que defere ou indefere a medida liminar

Neste artigo cuidaremos de uma questão processual convencido de que o direito processual não pode servir de instrumento para fazer perecer o direito substantivo. Ambos caminham  na busca da justiça, por meio do exercício da jurisdição confiada ao Poder Judiciário em caráter de exclusividade.

A cada dia que passa aumentam os casos submetidos à apreciação do Poder Judiciário que são resolvidos pelo prisma processual, sem enfrentamento do mérito, representando verdadeira denegação da justiça perseguida pelo interessado. Isso é freqüente na lides de natureza tributária devido a demanda excessiva nesse ramo especializado do Direito. Uma das formas de contornar o exame do mérito de cada caso é a aplicação automática de Súmulas que, às vezes, nada tem a ver com a hipótese versada nos autos.

Infelizmente, à sombra da Súmula 735 do STF construiu-se toda uma doutrina e jurisprudência contra a admissibilidade de recurso extraordinário contra qualquer decisão do Tribunal que defere ou indefere a liminar em mandado de segurança ou em  outra ação que comporte medida liminar.

A Súmula 735 do STF assim prescreve:

“NÃO CABE RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONTRA ACÓRDÃO QUE DEFERE MEDIDA LIMINAR.”

Esse enunciado, interpretado de forma ampliativa, vem sendo aplicado pelos Tribunais de forma automática aos casos de deferimento, de indeferimento, de cassação ou de revogação da medida liminar, sem a menor preocupação com a situação fático-jurídica de cada caso concreto.

O que nos fez meditar sobre essa matéria foi um caso que se acha aos nossos cuidados, consistente em matéria relacionada à desapropriação, onde a referida Súmula foi automaticamente aplicada, para denegar o seguimento do recurso extraordinário interposto contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que referendou a revogação da medida liminar pelo Desembargador Relator.

Com isso, abriu-se as portas para a desapropriação de centenas de imóveis, enquanto se discute a inconstitucionalidade da lei que autorizou a desapropriação em massa por um ente privado e com a faculdade de revenda dos imóveis não destinados a fins públicos. Não há nem como enquadrar esse tipo de desapropriação em um dos incisos do art. 5º, do Decreto-lei nº 3.365/41, pois se o imóvel não tiver destinação pública não poderia estar sendo desapropriado.

A aplicação automática dessa Súmula, sem prévio confronto de sua finalidade com a situação retratada nos autos, conduz à simples realização da “justiça formal,” com a denegação da Justiça em seu sentido material, a ser perseguida pelo exercício da jurisdição de que é o Judiciário seu detentor em regime de monopólio estatal.

Em fração de segundos fulminou-se o judicioso trabalho do advogado que elaborou o recurso extraordinário, demonstrando que o ordenamento jurídico global vigente não contempla a possibilidade de o Município delegar ao particular a desapropriação em massa  de imóveis para revenda, pois o próprio poder público não detém essa faculdade. Não se confunde desapropriação por utilidade pública, ou por interesse social com a especulação imobiliária, cabente ao setor privado, sob o regime da livre concorrência.

Ora, se examinarmos os precedentes que ensejaram a elaboração da Súmula n° 735 do STF descobriremos, sem grande esforço, que ela foi editada sob o fundamento de que o ato decisório que indefere ou defere a medida liminar não se reveste do caráter de definitividade.

Realmente, indeferida a liminar em mandado de segurança, por exemplo,  o pedido do impetrante pode ser acolhido em decisão definitiva a ser prolatada em breve espaço de tempo, em face do rito privilegiado do writ. O fundamento da Súmula de que o Acórdão que defere ou indefere a liminar não se reveste do caráter de definitividade há de ser entendido em consonância com a brevidade de tempo que medeia a apreciação da liminar e a prolação da sentença definitiva. A intenção dos Ministros, que redigiram a Súmula nº 735 não foi a de suprimir o direito subjetivo de natureza constitucional sem prévia manifestação da Corte Suprema. A Súmula pressupõe uma situação de provisoriedade.

Só que no caso concreto a que aludimos, a situação é exatamente oposta. A desapropriação reveste-se de caráter irreversível e definitiva. Assim sendo, o Acórdão que referendou a revogação da medida liminar que impedia a desapropriação revestiu-se de caráter de definitividade no mundo da realidade. Revogada a liminar em ação aonde foi impugnada a validade de lei autorizava a desapropriação em massa por um particular, eventual decisão pela inconstitucionalidade dessa lei, depois de decorridos anos, como é previsível,  não surtirá efeito jurídico algum.

Estaremos diante de um fato consumado: a perda definitiva da propriedade em benefício de um particular, só restando ao expropriado prejudicado o direito à percepção da indenização respectiva. O benefício público, na hipótese, é indireto, derivado que é  da especulação imobiliária que motivou o empresário a assumir o ônus da desapropriação. A mola propulsória da desapropriação pelo empresário do setor de imóvel é o lucro, não o interesse público.

Consagra-se, dessa forma, o princípio da inconstitucionalidade eficaz, quando o contrário deveria prevalecer.

A declaração tardia da inconstitucionalidade da lei só servirá para confirmar e reafirmar que uma injustiça fora cometida, pois nada mais pode-se fazer ante os fatos irreversivelmente consumados. Assemelha-se às hipóteses de declaração de inconstitucionalidade de um tributo depois de pago por longos anos, levando a Corte a modular os efeitos da decisão.

Enfim, embora cômoda a aplicação automática de uma Súmula para encerrar o processo com rapidez, como  ela é genérica e abstrata cabe a cada julgador sopesar as motivações que levaram à sua edição com as situações concretas de cada caso, para flexibilizar, se for o caso, a sua aplicação, de sorte a preservar sempre o direito subjetivo material invocado.


Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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