Resumo: A proposta nuclear do presente trabalho reside na análise da inserção da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro, como forma de valorização do Poder Judiciário baseado no julgamento por precedentes. O presente estudo analisa os problemas dessa inserção de um modelo favorável à dinâmica dos países anglo-saxônicos, na realidade do sistema da civil law, como é o caso do ordenamento jurídico brasileiro. Verifica-se também, a natureza jurídica da súmula, enfrentando-se os questionamentos acerca da sua definição enquanto norma jurídica emitida pelo Poder Judiciário e com atributo cogente frente aos demais órgãos do Poder Judiciário, submetidos à Corte Suprema brasileira. Registre-se ainda, a observação acerca dos efeitos ocasionados por uma verticalização de precedentes na realidade jurídica do Estado brasileiro, no que tange à interpretação padronizada, que importa, como consequência, numa padronização decisória.
Palavras chave: Súmula Vinculante. Atividade judicante. Padronização decisória.
Abstract: The proposed core of this work lies in the analysis of the insertion of binding precedent in Brazilian law as a way of appreciation of the judiciary based on the previous trial. The present study analyzes the problems of integration in favor of a model of the dynamics of Anglo-Saxon countries, the reality of civil law, as is the case of Brazilian law. There is also the legal nature of the scoresheet, facing questions about whether its legal definition as a standard issued by the Judiciary and cogent attribute compared to other organs of the Judiciary, submitted to the Brazilian Supreme Court. Register for further observation about the effects caused by a verticalization of precedent in legal reality of the Brazilian state, with respect to the standard interpretation, which should, as a consequence, a standardization decisions.
Keywords: Binding Precedent. Judicial activity. Standardization decisions.
Sumário: Introdução. 1. Normas jurídicas e o sistema jurídico. 2. Súmula vinculante: norma jurídica legislativa ou metanorma judiciária? 2.1. Conceito de súmula vinculante. 3. A súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro. 4. Os efeitos da súmula vinculante na atividade jurisdicional. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Em linhas introdutórias, impende ressaltar que o termo súmula deriva do latim summula, que tem o significado de sumário ou índice de alguma coisa. É o que de modo abreviado explica o teor, ou o conteúdo integral de alguma coisa.
Nesse viés, sinaliza-se que o marco teórico de fundamentação das linhas que se seguem, possui respaldo na análise do enquadramento da súmula enquanto norma jurídica emitida pelo Poder Judiciário, capaz de modificar a vivência social, o que caracteriza tal atividade em notória invasão desse Poder na atribuição referendada pelo povo ao Poder Legislativo, como fruto do respeito ao princípio da separação dos poderes, bem como à própria noção de contrato social presenciada nas sociedades ocidentais.
Nesta senda, a abordagem inicial do presente estudo, mergulha pela conceituação e inserção da norma jurídica em um determinado ordenamento ou em um sistema normativo formalizado em um Estado Democrático de Direito, que, “supostamente”, é a realidade do Estado brasileiro.
Ademais, as discussões proporcionadas pelo tema “súmula vinculante” ainda encontram lacunas a serem fechadas, haja vista que a doutrina ainda não sedimentou um entendimento definitivo acerca da natureza jurídica do enunciado da súmula vinculante, tratando-se, portanto, de tema ainda controverso.
Sendo assim, dessa problemática suscitada pela existência no ordenamento jurídico brasileiro dos enunciados de súmula vinculante, as linhas esboçam uma análise crítica quanto à formação dos referidos enunciados, bem como a verticalização da atividade judicante e na consequente padronização da atividade interpretativa dos magistrados brasileiros.
1. NORMAS JURÍDICAS E O SISTEMA JURÍDICO
O Direito, em sua essência, deve ser compreendido enquanto ordem normativa institucional. A ordem jurídica é um recorte do que é a ordem normativa, enquadrando-se no ideal de construção de um sistema jurídico capaz de coordenar a coexistência de normas jurídicas, formalizando o conjunto genérico de regras e princípios.
A segurança buscada pelos indivíduos que vivem sob o regimento de normas de conduta pode ser entendida como o reconhecimento de um sistema jurídico, enquanto construção ideal-real, de uma ordem jurídica que satisfaça e regulamente a ordem social.
Desta forma, entende-se que a conformação dos atores sociais aos padrões estabelecidos enquanto normas do sistema implicaria, substancialmente, no reconhecimento da unidade e controle dos comportamentos aceitáveis em um determinado grupo social. Portanto, os indivíduos que integram uma determinada sociedade, compartilham a ordem comum, elegendo os interesses e valores de grande importância dentro da ordem institucional.
Esta ordem institucional, construída pela ordem social, manifesta-se a partir das disposições das normas jurídicas. Estas exercem um papel de grande relevância, por serem os instrumentos de definições da conduta exigida pelo Estado. O Direito Estatal positivado possui o caráter prático, revelando-se mediante normas orientadoras das condutas interindividuais.
Nos sistemas jurídicos, o Direito Positivo, acaba revelando-se como uma moldura de normas jurídicas, caracterizadas como padrões de conduta social, impostos pelo Estado, criando, portanto, condições essenciais para a convivência dos homens em sociedade (NADER, 2007, p.83).
A norma jurídica, portanto, limita-se a apresentar uma conduta como condicionalmente reta, servindo como meio para fins que talvez sejam perseguidos ou detestados pelos integrantes de uma sociedade.
Neste diapasão, impende ressaltar os ensinamentos de Ricardo Maurício Freire Soares (2011, p.27), reconhecendo que as normas jurídicas são normas sociais que correspondem ao chamado ‘mínimo ético’, visto que, ao disciplinar a interação do comportamento humano em sociedade, estabelecem os padrões de conduta e os valores indispensáveis para a sobrevivência de um dado grupo social. Isso ocorre porque o Direito está situado na última fronteira de controle social, configurando o núcleo duro das instâncias de normatividade ética, atuando a sanção jurídica quando o espírito trangressor ingressa na zona mais restrita do juridicamente proibido, pois, sendo a vida humana a expressão de uma liberdade essencial, tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido.
A ideia de sistema enquanto regulamentador da ordem jurídica, deve ter como análise prévia, a generalidade das relações sociais, considerando-se a criação de um sistema normativo, como um fenômeno integrador das normas jurídicas, havendo por consequência, a criação dos elementos justificantes para a delimitação de um dever jurídico. O ordenamento jurídico seria um conceito operacional, permitindo assim, a integração das normas num conjunto transparente, em que possam ser visualizadas como normas jurídicas válidas. (FERRAZ JÚNIOR, 2007, p.178).
Ademais, verifica-se que a formalização de um sistema normativo jamais pode ser delimitado como um sistema de regras, sob pena de ser configurado como um conjunto normas soltas, desprovidas de homogeneidade, o que certamente, dificultaria a própria construção de um Direito justo e voltado para a promoção da estabilidade social.
O Direito estará envolvido pela busca dos resultados sociais, empreendidos pelas atividades de criação e utilização equilibrada das normas jurídicas. Apresentará um ideal a ser alcançado, qual seja, uma fórmula capaz de solucionar os problemas de convivência e de organização de uma sociedade, coordenada por um sistema normativo.
Deve-se analisar o direito como o produto dos fatos e da vontade do homem, um fenômeno material e um conjunto de valores morais e sociais, bem como um ideal e uma realidade, um fenômeno histórico e uma ordem normativa, um conjunto de atos de vontade e de atos de autoridade de liberdade. As suas diversas expressões expressam mais ou menos, conforme os sistemas jurídicos e conforme as matérias, ora a ordem social ou os valores morais elencados pela mesma (BERGEL, 2006, p.06).
A idealização de coordenação dos anseios sociais, em busca do ideal de justiça, pode ser visualizada nos dizeres de John Ralws (2008, p.05), que discorreu que uma sociedade é bem-ordenada não apenas quando está planejada para promover o bem de seus membros mas quando é também efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça. Isto é, trata-se de uma sociedade na qual (1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e (2) as instituições sociais básicas geralmente satisfazem, e geralmente se sabe que satisfazem, esses princípios. Neste caso, embora os homens possam fazer excessivas exigências mútuas, eles contudo reconhecem um ponto de vista comum a partir do qual suas reivindicações podem ser julgadas. Se a inclinação dos homens ao interesse próprio torna necessária a vigilância de uns sobre os outros, seu sentido público de justiça torna possível a sua associação segura. Entre indivíduos com objetivos e propósitos díspares uma concepção partilhada de justiça estabelece os vínculos da convivência cívica; o desejo geral de justiça limita a persecução de outros fins. Pode-se imaginar uma concepção da justiça como constituindo a carta fundamental de uma associação humana bem-ordenada.
Portanto, a determinação do Direito enquanto elemento estruturante de um ordenamento jurídico deve ser enquadrado como uma ordem contrária à coação, ainda que toda a norma jurídica prescreva ou ordene um ato coercitivo. A efetividade da norma jurídica será determinada pelos pilares de sustentação do sistema, que surge a partir da ânsia por equidade manifestada pela ordem social, sinalizando a coerência e disposição lógica das normas jurídicas.
2. SÚMULA VINCULANTE: NORMA JURÍDICA LEGISLATIVA OU METANORMA JUDICIÁRIA?
2.1. CONCEITO DE SÚMULA VINCULANTE
Na realidade jurídica, súmula é um resumo extraído a partir das uniformizações jurisprudenciais do tribunais, cujo objetivo é impedir que hajam divergências quanto a um determinado assunto já discutido em decisões posteriores (TEIXEIRA, 2008, p.70).
Logo, em uma sessão de um determinado tribunal, ao se analisar, por exemplo, um recurso que trata de matéria já debatida e pacificada, a mera alusão à existência de uma súmula, anteriormente emitida, dispensa a referência de outros julgados, da própria corte ou de corte diversa.
O efeito vinculante pode ser analisado como uma via oposta à independência judicial, elemento de extrema importância em um Estado de Direito. Nesse contexto, o magistrado dependeria somente da lei ou da Constituição, para a formação do seu convencimento.
Antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, a súmula vinculante não era institucionalizada pelo ordenamento jurídico brasileiro, haja vista ser matéria discutida principalmente pela doutrina pátria.
A sua promulgação estava inserida em um dos recortes lançados pela Reforma do Poder Judiciário, proporcionada pela Proposta de Emenda Constitucional nº 96/1992, que culminou na referida Emenda.
Destaca-se que, a Reforma do Judiciário teve como elementos norteadores, a celeridade processual e a plena eficiência na prestação jurisdicional, numa perspectiva de se emitir uma resposta imediata aos críticos que estigmatizavam o respectivo Poder enquanto templo da morosidade processual.
E dentro da conjectura principiológica do Estado Democrático de Direito, a morosidade do Judiciário estaria em contraposição aos ideais de acesso à justiça, à segurança jurídica, e até mesmo, ao princípio constitucional da igualdade.
Nesse diapasão, Willis Santiago Guerra Filho (2001, p. 146) define que a demanda do paradigma democrático implicaria na construção do direito sob a luz da compreensão comum e moral do que é “justo”, sem abrir mão do ideal de segurança das relações entrelaçadas.
A partir dessa análise, verifica-se que a teoria que mais se coaduna com o Estado Democrático de Direito, é aquela que resulta da aproximação da prática interpretativa de textos constitucionais exercida pela jurisdição constitucional, com a inserção de princípios constitucionais também democráticos, convertendo-os em pautas valorativas, norteadoras e legitimantes, com hegemonia sobre as demais fontes normativas (TEIXEIRA, 2008, p.51).
Pois bem. A expressão utilizada pelo artigo 103-A da Constituição designa ato do Supremo Tribunal Federal, é dizer, sua manifestação de vontade ou tomada de posição sobre controvérsia a respeito de validade, interpretação e eficácia de normas determinadas (ROCHA, 2009, p.11). Esses seriam os requisitos formadores do objeto da súmula vinculante.
Impende ressaltar que uma norma é considerada como norma válida a partir do momento em que é produzida em consonância com os requisitos depositados na norma superior, havendo compatibilização do seu conteúdo com a Constituição.
Esse, talvez, seria o grande mérito da discussão existente na doutrina acerca do enquadramento da norma emendada no corpo constitucional. Isso porque, o poder de editar enunciados de súmula de caráter prescritivo, direciona a outro atributo existente no presente instituto, qual seja, a obrigatoriedade.
A Súmula Vinculante caracteriza-se como a possibilidade de construção de enunciados por parte da Corte que sintetizam o entendimento já por demais debatido em sede constitucional iluminando operações judiciais a posteriori. Seria a concretização do Poder Judiciário, por meio de suas decisões, do ideal das partes de ter reconhecido ou não direito, em igualdade de condições, o que valoriza e respeita o princípio da igualdade, bem como a duração razoável do processo (TAVARES, 2007, p. 20).
Um dos problemas da sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro diz respeito à essência deste, que, oriundo do sistema romano-germânico, não tem nos precedentes judiciais a fonte precípua do direito, mas a lei. Desta forma, a emissão de enunciados de súmula com efeito vinculante camufla o desequilíbrio na teoria da separação dos três poderes, por não mostrar nitidamente a atividade legiferante do Poder Judiciário, que deve se restringir materialmente, não emissão dos seus regimentos internos.
Ademais, não há como deixar de reconhecer que a possibilidade de emissão dos presentes enunciados está totalmente distante da prática de uma função atípica do Poder Judiciário, no quesito legislar, haja vista que a súmula vinculante padroniza os julgados, vinculando os magistrados dos demais tribunais e os magistrados de piso, com caráter, como antes analisado, de obrigatoriedade. O que seria isso a não ser uma “lei” dentro da própria realidade judiciária?
Contudo, de acordo com o enunciado do novo art. 103-A da Constituição Federal, essa vinculação atravessa o âmbito do Poder Judiciário, quando emite a vinculação também para a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Desta forma, críticas não cessam ao afirmar que a concretização destas súmulas perpassa pelo âmbito de atuação do Poder Judiciário e ao invés de qualificar e majorar a atribuição do Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião da Constituição Federal, denota o abuso no que diz respeito à invasão na atividade legislativa, a saber, por emitir enunciado de caráter prescritivo e obrigatório.
Segundo Eneida Gonçalves de Macedo Haddad (2007, p.99), o argumento que prevalece entre aqueles que discordam da imposição da súmula vinculante é que o Direito se esclerosará, ficando estancado nas determinações da cúpula do Judiciário. A função jurisdicional inferior se restringirá à leitura e à transcrição da decisão do STF sobre qualquer matéria, sem possibilidade de modificá-la.
Para José de Albuquerque Rocha (2009, p.137), a súmula vinculante é uma metanorma em relação às normas legislativas porque dita o sentido em que as últimas devem ser entendidas. Essa circunstância dá ao sujeito normativo que emite a súmula vinculante, no caso, o Supremo Tribunal Federal, uma posição de superioridade hierárquica em relação ao legislador democrático, verdadeiro possuidor do poder absoluto de atribuir sentido aos textos.
Nesse diapasão, acerca da natureza da súmula vinculante, verifica-se que se trata de norma derivada de uma atividade estatal, especificamente, jurisdicional, obrigando de maneira geral, dotado de valor normativo para todos os juízes, tendo em vista a sua natureza geral e abstrata, na condição equiparada à lei. A sua força normativa submete todos os órgãos do Poder Judiciário, da Administração Pública, além do Poder Legislativo.
3. A SÚMULA VINCULANTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Como visto anteriormente, a súmula é o resumo dos casos semelhantes decididos naquele mesmo sentido, explicitado de uma forma clara e objetiva, sem possuir força cogente, servindo de orientação para decisões futuras, é dizer, os juízes estão livres para decidir de acordo com a sua convicção, ainda que implique em contradizer a corrente dominante (TEIXEIRA, 2008, p. 126).
O legislador brasileiro, ao atribuir efeito vinculante às súmulas, passou a considerar que as súmulas de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal terão força cogente (obrigatória), sobre as demais decisões de juízes e tribunais, proibindo ao julgador de piso, a interpretação e decisão de questões do mesmo teor de maneira contrária ao realizado, regido e normatizado pela súmula (TEIXEIRA, 2008, p.51).
A decisão legislativa em adotar ou não a súmula vinculante foi prorrogada por anos, em decorrência dos variados argumentos contrários à sua edição, a exemplo da alegação de violação ao princípio da separação dos poderes, suprarelatado, insculpido nos artigos 2º e 60, III, da Constituição Federal (DAIDONE, 2006, p. 78).
A inserção do artigo 103-A na Constituição Federal de 1988 caracteriza-se como o enquadramento definitivo e sem restar mais dúvidas, da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro, in verbis:
“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso” (BRASIL, 1988).
A norma constitucional inserida é auto-explicativa, sem deixar margem às interpretações variadas acerca da sua aplicação ou eficácia. Contudo, há quem argumente que a presente norma viola nitidamente o princípio da livre convicção do juiz, ao estar restrito na sua atividade judicante.
Ocorre que o legislador derivado ao emendar a Constituição, ampliou ainda mais os poderes já concentrados, data máxima vênia, no âmbito do Supremo Tribunal Federal. É notória a lembrança de que um dos elementos de justificativa para a Reforma do Judiciário Brasileiro era justamente distribuir parte do poder concentrado pela Corte Suprema, no que diz respeito à atividade judicante, para o Superior Tribunal de Justiça
A distinta Corte, além de guardiã da Constituição, do diploma emitido pelo constituinte, passou a deter, ainda que pela via indireta, a possibilidade de legislar a partir dos precedentes judiciais. O interessante é que, como ocorre comumente na legislação brasileira, a regulamentação da súmula em sede legal, ou seja, emitida pelos “legisladores em sentido estrito”, só ocorreu dois anos após a promulgação da E.C. nº 45/ 2004, através da Lei nº 11.417.
Na lei supracitada, no seu art. 3º, ficaram estabelecidos os legitimados para propor a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante, o que denota uma certa restrição a tais hipóteses, in verbis:
“Art. 3o São legitimados a propor a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante:
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV – o Procurador-Geral da República;
V – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VI – o Defensor Público-Geral da União;
VII – partido político com representação no Congresso Nacional;
VIII – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional;
IX – a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
X – o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
XI – os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares” (BRASIL, 2006).
Outra norma da referida lei que gerou grande discussão é art. 7º, in verbis:
“Art. 7o Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação”. (BRASIL, 2006).
Frise-se a expressão “caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação”. É nítida a contradição com a defesa do princípio da celeridade processual. A súmula não surgiu como uma solução para a os problemas dos recursos que inundam o Supremo Tribunal Federal? Desta forma, outro pensamento não vem, a não ser imaginar que se toda decisão judicial ou ato administrativo contrariar súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal terá que fechar as suas portas para decidir as respectivas reclamações. Ou seria criada a “súmula vinculante da súmula vinculante”?
Impende ressaltar as palavras de José Rodrigo Rodrigues (2002, p. 282), no sentido de reconhecer que os juízes não são legisladores: não detém um mandato eletivo que os legitimem como representantes da vontade popular. Por definição, sua atividade, por mais criativa e inovadora que possa ser, deve se enquadrar nos limites ditados pelo direito positivo e pelas estruturas de organização do poder do Estado.
Ademais, como bem ilustrou José de Albuquerque Rocha (2009, p. 140), as razões determinantes da criação da súmula vinculante estão relacionadas a exigências do sistema de mercado que, reclamando a previsibilidade, se acomoda muito mal às liberdades em geral, no caso, ao pluralismo jurisprudencial. Deve-se a isso, a concentração de poderes no Supremo Tribunal Federal com o consequente esvaziamento das competências dos juízos de primeira instância.
É preciso saber se realmente a vontade dos “legisladores”, sejam eles representantes do Legislativo ou do Judiciário, está em consonância com os anseios da sociedade e compatível com o ideal de respeito ao chamado Estado Democrático de Direito, sob pena de se configurar um Estado de Exceção “camuflado”.
4. OS EFEITOS DA SÚMULA VINCULANTE NA ATIVIDADE JURISDICIONAL
A tarefa de interpretação da norma jurídica e coisa que não se da em abstrato. Tem sempre em vista a situação real ou caso concreto que provocou o ato reflexivo por parte do intérprete mediador, naquele momento, entre a norma e o fato. Se, por um lado a hermenêutica jurídica permite uma atitude especulativa que busca compreender o ordenamento jurídico a partir dc seus valores e princípios, mesmo que abstratamente, por outro lado, a interpretação jurídica implica necessária concreção e volta-se para o momento de aplicação do direito no dialético processo da decidibilidade. Por isso e tão importante compreender aquele dinamismo que abre a ordem jurídica para uma constante variabilidade semântica de suas proposições, num devir responsável pela atualização desta mesma ordem (CUNHA, 2002, p. 338).
E como ficaria essa tarefa interpretativa de maneira padronizada? A interpretação da norma estaria adstrita ao enquadramento mecânico feito pelo juiz, enquanto mero operador de um microcomputador?
Com relação à atividade de fundamentação judicante, não é demais destacar o entendimento de Paulo Roberto Soares Mendonça (2003, p.289-290), que a fundamentação das decisões, originariamente concebida como instrumento de limitação da atividade criadora dos juízes, findou por representar o espaço por excelência da manifestação da atividade construtiva da norma pelo magistrado. Ao fundamentar uma determinada decisão, o juiz utiliza-se de inúmeros recursos argumentativos, a fim de articular a matéria de fato e a de direito e superar as lacunas e ambiguidades do direito positivo. Por meio desses recursos retóricos tornou-se possível, também, a extensão ou restrição do sentido literal da lei, quando necessário, a aplicação analógica do direito e a busca de sua finalidade social, dentre outras coisas.
Entende ainda, o autor supracitado (MENDONÇA, 2003, p.238), que o discurso processual é inicialmente dirigido aos integrantes da comunidade jurídica. Sendo assim, deve ele preencher os requisitos formais do discurso jurídico, para não enfrentar uma resistência em relação a aspectos técnicos, uma vez que existe uma expectativa desse auditório específico em relação ao adimplemento de certas exigências de natureza técnica. Se a questão técnico-jurídica não for enfrentada de maneira adequada, ficará enfraquecida a própria tese adotada pelo juiz.
Para Décio Sebastião Daidone (2006, p. 86), o juiz de primeiro grau de jurisdição é quem tem a função importante na efetivação dos juízos, uma vez que é o primeiro que conhece da matéria e em incessante trabalho de interpretação e aplicação do direito, com os elementos oferecidos pelas partes e outros que acrescenta, enquadra o caso concreto no abstrato da lei.
Há quem afirme, como Celso de Albuquerque Silva (2005, p. 83), que o efeito vinculante, ao invés de tirar autoridade do juiz inferior, em verdade reforça-a, na medida em que não tendo poder de coerção direta, a obediência ao qual ficou decidido deve repousar sobre a ideia de que essas decisões são resultado de um procedimento racional levado ao cabo por pessoas imparciais, racionais.
O juiz, na definição de Ana Paula Oriola de Raeffray (2006, p.128), na verdade, é um agente do Poder Público, investido de jurisdição, para poder em nome do Estado julgar conflitos sociais dentro dos limites estabelecidos pelas normas vigentes. O propósito do poder atribuído ao juiz para dirimir conflitos sociais é o de distribuir a justiça de modo equânime, para que a paz social e a ordem jurídica possam ser asseguradas.
Ademais, o juiz não é apenas um intérprete e aplicador da lei, mas um integrador entre o ordenamento jurídico e a Justiça. O juiz deve respeitar os limites estipulados pela norma, mas antes de tudo, deverá buscar a Justiça para atender aos fins sociais e às exigências do bem comum e não somente fazer atuar a lei (RAEFFRAY, 2006, p.129).
O juiz da causa vive, presencia a realidade vivenciada em que os fatos dos autos processuais ocorreram. Como conceber uma interpretação verticalizada, em que a atividade judicante fica condenada por uma vinculação prévia? A atividade judicante monocrática perde o sentido para a formação dos provimentos judiciais.
A interpretação padronizada e aplicação de enunciados de súmulas com efeito vinculante, derivada da formação de precedentes judiciais de um determinado órgão de poder, pode ocasionar em uma nítida estagnação da atividade judicial, em função do fato de ficarem os magistrados vinculados aos limites das decisões anteriores, principalmente no sistema brasileiro, enquadrado na dinâmica romano-germânica, ou seja, no civil law. Neste caso, verifica-se que as decisões judiciais passam a ser modelos de produção judicial, deixando a produção jurídica rasteira e submetendo a sociedade aos ditames fechados dos julgados anteriores.
E assim, verifica-se que esse, certamente, não é o papel do Direito, que perde neses casos, substancialmente em produção e em produção de novos argumentos e teses a serem discutidas, prática essencial para a busca da solução justa, diante dos processos judiciais distintos.
A imprecisão visualizada para a interpretação padronizada, que culmina na padronização judicial, seria a dificuldade de se manter a mesma ratio decidendi em mais de um conflito existente. A decisão judicial é específica para cada caso que é posto em julgamento, seja pela diferença dos juízos, das competências, dos sujeitos processuais.
Importa destacar que cada ser humano é específico. Cada conflito suscitado pelos atores sociais é específico. Desta forma, a conclusão não seria divergente dessas construções, a saber, cada decisão judicial guarda uma nítida particularidade, que só será disposta naquela determinada construção realizada pelo magistrado a quo.
Ainda que se fale na utilização das mesmas linhas argumentativas, das mesmas estratégias discursivas e no mesmo resultado prático, não se pode construir uma idealização de manutenção da ordem judicial através de padrões ou molduras judiciais, como fórmulas a serem ajustadas a cada lide que ingressa no Poder Judiciário.
É valiosa a menção de uma sintetização feita por um magistrado de primeiro grau, trazida com louvor por Eneida Gonçalves de Macedo Haddad (2007, p. 108), que assim dispôs: “Na verdade, a súmula vinculante foi uma tentativa de fortalecimento político do STF, em prejuízo ao pluralismo de nosso sistema judicial e, sobretudo, em franco ataque ao Legislativo e ao Poder Constituinte que, infelizmente, não percebeu a tempo essas dimensões da inovação. As experiências semelhantes normalmente invocadas – no direito europeu ou norte-americano – nasceram em processos históricos absolutamente diversos dos nossos, em que o Poder Judiciário conquistara, às vezes por séculos, um estágio razoável de independência judicial, ao longo de toda uma sorte de conflitos com os demais Poderes constitucionais[…]”.
O Direito seja ele codificado ou jurisprudencial, não pode estar vinculado à determinações fixas e vinculantes, sem a sujeição às efetivas revisões e construções adequadas à realidade social. A atitude flexível é de grande importância para a elaboração dos juízos de adequação da norma à ordem social vivenciada. É dizer: a ordem jurídica não existiria sem a ordem social, que o precede.
CONCLUSÃO
A iniciativa desse estudo enquadra-se como mais uma crítica ao poder que fora institucionalizado ao Supremo Tribunal Federal, a partir da possibilidade de emitir enunciados de súmula vinculante.
É notório, ao se perceber a realidade jurídica brasileira, que nenhum argumento até o presente momento, lançado em contraposição à referida súmula, teve a força suficiente para impedir a emissão dos enunciados, haja vista que atualmente, já foram emitidas 32 súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal.
A Reforma do Judiciário ocorrente em 2004 modificou significativamente a realidade jurídica brasileira. Tal reforma deve ter a sua importância reconhecida, mas um dos fins para o seu lançamento, especificamente tratou da questão da celeridade processual versus morosidade do Poder Judiciário, que estava à época abarrotado de recursos em seus tribunais.
Nos dias atuais, 8 anos se passaram e as reclamações são as mesmas: morosidade do Poder Judiciário e acúmulo de processos e respectivos recursos nos tribunais. Tal situação se deve à uma questão lógica: reformar a competência, não é reformar a essência, a realidade.
De um lado, tem-se a formalização de um Conselho Nacional de Justiça, órgão fiscalizador de todo o Poder Judiciário, mas que não-controlador da sociedade e da sua dinâmica célere.
O legislador derivado, supostamente influenciado por questões, e por lógica, de natureza política, por vezes, deixa de analisar a realidade da sociedade à qual a norma jurídica será lançada. É dizer: na realidade legislativa brasileira, emite-se a norma para depois verificar as consequências práticas advindas pela emissão da mesma.
E assim, o Legislativo lançou às escuras, de forma indireta, o seu poder legiferante ao Poder Judiciário, que agora legisla ao emitir normas no âmbito abstrato e genérico, capaz de vincular toda a sua estrutura, além da estrutura administrativa, órgãos que representam o Poder Executivo da Federação brasileira.
A possibilidade de concentração dos poderes nos tribunais, especificamente, no Supremo Tribunal Federal, no que tange à criação de normas que de forma direta ou indireta orientam a convivência em sociedade, implica em nítido perigo dessas cortes em controlarem o próprio meio social pelas suas emissões, acarretando assim, em prejuízos significativos para a defesa das liberdades já conquistadas pelo povo brasileiro.
De mais a mais, o Estado de Direito com essas premissas, passa a ser nitidamente um Estado de Direito Judicial, com dois poderes dotados da função típica legislativa. E o contradição, diante do princípio da separação dos poderes, é que a sociedade não investe os membros do judiciário em mandato a partir do pleito democrático. A democracia seria pela via mais que indireta, haja vista que são os representantes eleitos em mandato eletivo que escolhem os representantes da cúpula judiciária, logo, não se poderia dizer que houve vontade do povo nessa escolha.
Contudo, o legislador deveria ter se preocupado, primeiramente, com a estrutura do processo no ordenamento jurídico brasileiro, seja ele o processo administrativo, cível ou penal.
A modificação substancial das legislações processuais no Brasil é de extrema relevância para a solidificação do princípio da celeridade processual, adequando-as à realidade presente. Talvez, se a Reforma do Judiciário tivesse como norte as legislações defasadas, que culminam na morosidade do respectivo Poder, não se estaria aqui discutindo sobre a emissão de enunciados de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal.
E assim, os anos continuarão a passar, porque essa é a dinâmica da vida, mas os problemas permanecerão, uma vez que controlar a atividade judicante, verticalizando a justiça, não acarretará na diminuição dos processos e dos recursos nos tribunais. Essa é uma realidade que dificilmente restará resolvida a médio e curto prazos, quiçá a longo prazo.
Informações Sobre o Autor
Igor Lúcio Dantas Araújo Caldas
Bacharel em Direito formado pela Universidade Federal da Bahia – UFBA – Mestrando em Direito Público – UFBA – Servidor Público do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.- Professor de Direito Constitucional, Administrativo, Eleitoral e Direitos Humanos