Súmula vinculante: análise crítica na visão do professor Lenio Luiz Streck

O stare decisis, forma abreviada da expressão latina stare decisis et non quieta movere (ficar com o que foi decidido e não mover o que está em repouso), constitui-se na pedra angular do sistema do Common Law, por força do qual “a decision by the highest court in any jurisdiction is binding on all lower courts in the same jurisdiction[1]. Assim, a decisão judicial nos países que seguem a tradição do direito anglo-saxão assume a função não só de dirimir uma controvérsia, mas também a de estabelecer um precedente, com força vinculante, de modo a assegurar que, no futuro, um caso análogo venha a ser decidido da mesma forma.

Nesse contexto, a doutrina do stare decisis assume papel fundamental nos países que adotam o Common Law. Devido à raiz essencialmente jurisprudencial desse direito, o precedente serve para dar estabilidade e segurança ao sistema e garantir igualdade de tratamento a quem busca a Justiça. É, portanto o mecanismo que garante a coerência e a continuidade do sistema.

Contudo, a força vinculante do precedente não é absoluta e nem poderia sê-lo, sob pena de engessar o direito, impedindo o seu desenvolvimento. Com efeito, o precedente só terá força vinculante se houver identidade com base nos fatos ou nas questões de direito suscitadas, caso contrário servirá apenas de elemento persuasivo. É preciso também ter em conta que a eficácia do stare decisis não cobre o inteiro teor do julgado, senão a parte nuclear da motivação, onde vem exposto o fundamento jurídico que embasa a conclusão, ou seja, a ratio decidendi. Além disso, o precedente poderá ser sempre revisto se ficar demonstrada a sua desarrazoabilidade ou erronia, ou em outras palavras, desde que haja novas e persuasivas razões para se adotar outra decisão.

O direito brasileiro, de tradição romano-germânica, sempre teve na lei sua fonte primordial. É indiscutível, no entanto, a importância crescente da jurisprudência na aplicação do nosso direito, como, aliás, também ocorre nos demais ordenamentos que adotam o Civil Law. Sabe-se que os tribunais, quando aplicam o direito ao caso concreto, interpretam as leis, criando jurisprudência sobre a matéria. Quando uniformizada a jurisprudência, o conjunto das decisões passa a ser indicado como orientação, para o julgamento das causas que abordam a mesma tese jurídica. Nos idos de 1963, o Ministro Victor Nunes Leal utilizou-se da expressão “súmula” para definir, em pequenos enunciados, o que o Supremo Tribunal Federal vinha decidindo de modo reiterado acerca de temas que se repetiam em seus julgamentos.

É preciso frisar, no entanto, que a edição da súmula, como decorrência da sua própria natureza, depende de uma uniformidade nos julgamentos acerca de determinada matéria, capaz de sedimentar certa orientação jurisprudencial. Em outras palavras, é preciso que exista um número significativo de demandas sobre a mesma questão jurídica, de modo a ensejar uma discussão dentro do próprio tribunal e posteriormente a um consenso, tornando-se pacífica. Sob esse aspecto, a função da súmula assemelha-se à do precedente no direito anglo-saxão, na medida em que ambos têm como objetivo servir de orientação para futuras decisões, facilitando com isso a compreensão do direito e dando maior segurança e estabilidade ao sistema.

Entretanto, existe, como frisado pelo professor Lenio Streck, uma diferença essencial. No Common Law, o precedente judicial sempre teve força preponderante na aplicação do direito, sendo por isso fundamental a doutrina do stare decisis para se ter asseguradas à estabilidade, a coerência e a continuidade do sistema. O efeito vinculante do precedente decorre assim do funcionamento do sistema, encontrando-se arraigado na própria compreensão da atividade jurisdicional. Em outras palavras, o efeito vinculante do precedente no Common Law é uma decorrência natural do próprio sistema. Já no Civil Law, esse papel preponderante é assumido pela lei. É ela que se configura como ponto de partida para a compreensão do direito. A jurisprudência tem uma função apenas subsidiária na aplicação do direito, sendo invocada tradicionalmente para auxiliar na interpretação da lei ou em casos de lacuna. Conseqüentemente, não se tem aqui como natural o efeito vinculante das decisões judiciais. Ao contrário, o seu efeito é tido como meramente persuasivo. Somente a lei tem caráter vinculante para o aplicador do direito nos sistemas de Civil Law.

A súmula vinculante – em qualquer das configurações até o momento imaginadas pelo legislador – apresenta-se como um instrumento destinado à uniformização da jurisprudência. E como tal já existem inúmeros outros instrumentos ou técnicas em nosso ordenamento que, mesmo não possuindo essa finalidade específica, na prática se prestam também a esse papel, v.g., os recursos especial e extraordinário a utilização da jurisdição coletiva e os mecanismos de controle da constitucionalidade das leis, sem mencionar o incidente de uniformização de jurisprudência, específico para esse fim.

Aliás, como frisado pelo professor Lenio Streck, o art. 479 do Código de Processo Civil há muito prevê a edição de súmula como resultado da decisão proferida no incidente de uniformização de jurisprudência, atribuindo-lhe expressamente a qualidade de “precedente”. Assim, o efeito vinculante não representa uma inovação absoluta para o nosso sistema, pois já existem mecanismos de uniformização de jurisprudência que, se não chegam a ter a mesma eficácia, já o aproximam em certos aspectos do instituto recentemente inserto no nosso ordenamento jurídico.

O que resta por trás de toda essa discussão envolvendo a adoção da súmula vinculante, sendo o objeto do presente trabalho, é, na verdade, uma tensão entre o desejo de uma Justiça de boa qualidade – estável, célere e econômica – e o receio de uma rigidez que impossibilite o desenvolvimento do próprio direito.

Como é cediço, “o sistema jurídico brasileiro é anacrônico, caro, elitista, e sobremodo demorado, de fazer justiça. Essa situação seria apenas cômica se ela não fosse trágica diante de duas conseqüências diretas: a) o inchaço do Judiciário, que deveria ter o seu tempo preservado para apreciar os verdadeiros conflitos, assuntos sobre os quais ainda reina divergência na jurisprudência; b) a demora no reconhecimento do direito do cidadão, o que fomenta o aparecimento de uma imagem fantasmagórica do judiciário[2].

Com o ingresso do instituto da súmula vinculante a nível constitucional, em uma visão esclarecida, terá como escopo resolver esses dois problemas mais emergentes, germinados, como afirmam alguns operadores do Direito, da ausência de força obrigatória quanto ao cumprimento das decisões uniformizadas pelo STF e pelo STJ.

Muito se discute sobre a súmula vinculante, sobre a sua conveniência, uns são contra, outros a favor; no entanto, há ainda questões que foram muito pouco abordadas. O referido instituto é apresentado para a sociedade como um santo remédio para o problema do emperramento da máquina judiciária brasileira. O que não é na realidade…

Na esteira do entendimento do professor Lenio Streck, Luiz Flávio Gomes afirma que “a inconstitucionalidade da súmula vinculante é evidente[3]. Toda interpretação, dada por um Tribunal a uma lei ordinária, por mais sábia que seja, jamais pode vincular os juízes das instâncias inferiores, que devem julgar com absoluta e total independência. A súmula vinculante viola a independência jurídica do juiz, isto é, sua independência interna (dentro da e frente à própria instituição a que pertence).

Outra questão a ser observada, é a seguinte: no conflito entre a lei e a súmula, o que prevalece? Dizer que há a prevalência da lei é o mesmo que dizer que o novo instituto é totalmente ineficaz, podendo o julgador descartar qualquer súmula que entenda ser contrária à lei. Evidentemente, esta não é a intenção do instituto. Assim, podemos verificar como verdade que, uma vez que se entenda válido o instituto da súmula vinculante, os enunciados terão força de lei. Ou seja, o judiciário passa a assumir uma função atípica, qual seja, de legislador ordinário e até constitucional.

Com efeito, se a sociedade e, sobretudo, os “operadores do direito” aceitarem esta novidade como algo válido, estaremos submetendo-nos a um conjunto de normas legais emanadas de um poder não sujeito ao controle popular. E é, então, neste momento que percebemos a gravidade do problema e também a verdadeira questão que está por trás do debate.

Ninguém pode impor ao juiz qualquer orientação sobre qual deve ser a interpretação mais correta. Aliás, é muito comum que um texto legal, pela sua literalidade confusa, permita mais de uma interpretação. De todas, deve prevalecer a que mais se coaduna com os princípios constitucionais (sobretudo o da razoabilidade). Mas o juiz sempre tem a liberdade de escolha, dentre todas as interpretações possíveis.

Em primeiro lugar, há uma impossibilidade ontológica de uma pessoa impor a outra um modo de interpretação. Isto se dá, pois a interpretação (determinação do sentido e alcance de uma norma) é uma atividade que não se pode separar da subsunção da norma (aplicação ao caso concreto). A primeira é instrumental em relação à segunda.

No mesmo sentido, encontra-se a lição do eminente professor Estevão Mallet, que assim conclui seu posicionamento:

Ademais, como prevalece o entendimento de que a sentença não cria direito novo, apenas interpreta direito já existente, acabará a jurisprudência obrigatória, forçosamente, por ser invocada mesmo de modo retroativo, para situações ocorridas antes até de sua consolidação, o que – não é difícil perceber – compromete consideravelmente a estabilidade das relações sociais e mesmo a segurança dos cidadãos. De outra parte, parece inegável que decisões judiciais obrigatórias enrijecem, ainda mais, o sistema legal, por natureza pouco flexível, tornando mais complexas as inevitáveis e necessárias adaptações da lei às novas realidades. Como escreveu certa feita importante jurista francês, ‘ce que était le droit hier peut être l‘injustice demain(Paul Roubier). Em tempos de rápidas transformações econômicas, sociais e mesmo políticas, isso talvez seja um fardo bastante pesado para se carregar”.[4]

Assim, como adverte Rodolfo Camargo Mancuso (Mancuso, Rodolfo de Camargo, Divergência jurisprudencial e súmula vinculante, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999), citado por Leonardo Moreira Lima, a hora:

é de reflexão serena e desapaixonada sobre a melhor técnica para se alcançar, na experiência judiciária brasileira, o ideal de uma uniformidade contemporânea, que, todavia, não exclua a eventualidade, justificada, de uma alteração sucessiva. Para tal, não basta o simples transplante da experiência anglo-americana do stare decisis, tomado esse regime à outrance, como se fora uma panacéia para resolver, em bloco, todas as demandas cujas pretensões sejam assemelhadas. É preciso bem apreender as tipicidades e as nuances do sistema vigente na common law, para dele extrair o seu princípio ativo, o qual, com os cuidados devidos, poderá ter válida aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive respeitando-se o dado sociológico, revelado por uma cultura que há séculos vem centrada no primado do Direito escrito. Caso contrário – como por vezes acontece nas cirurgias, poderá ocorrer a rejeição do implante…”.[5]

Finalizando com as palavras do professor Luiz Flávio Gomes, as quais se coadunam com o posicionamento do mestre Lenio Luiz Streck e que sintetiza o nosso posicionamento acerca da súmula vinculante, in verbis:

 “A súmula vinculante é instrumento do Direito do segundo milênio. Não serve para guiar a Justiça do terceiro milênio. Institutos da era analógica não são úteis para a Justiça da era digital. É um atraso e grave retrocesso. Faz parte de uma ética tendencialmente autoritária, de uma sociedade militarizada, hierarquizada. A justiça de cada caso concreto não se obtém com métodos de cima para baixo. O contrário é que é o verdadeiro. O saber sistemático (generalizador) está dando lugar para o saber problemático (cada caso é um caso). Por isso é que devemos nos posicionar contra ela[6]

 

Referências
CARVALHO, Ivan Lira de. Decisões vinculantes, in: www.jfrn.gov.br, acesso em 20/01/2005.
Cappelletti, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1984, pág. 80.
FLEMING, Gil Messias. Decisões vinculantes: avanço ou retrocesso?. Revista Consulex Revista nº 38, p. 43
GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no Estado de Direito, São Paulo, RT, 1997, p. 202 e ss.
__________________. Súmula vinculante. Retirado do site www.mundojuridico.com.br; acesso em 20/01/2005.
LIMA, Leonardo D. Moreira. Stare decisis e súmula vinculante: um estudo comparado. In: www. puc-rio.br, acesso em 20/01/2005.
MALLET, Estevão. Algumas linhas sobre o tema das súmulas vinculantes. Revista Consulex, nº 11, 1997.
SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Uma palavra sobre a súmula vinculante, in: www.jfrn.gov.br; acesso em 21/01/2005.
STRECK, Lenio Luiz. As Súmulas Vinculantes e o Controle Panóptico da Justiça Brasileira, in: www.leniostreck.com.br; acesso em 20/01/2005.
 
Notas:
[1] Cappelletti, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1984, pág. 80.

[2] SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Uma palavra sobre a súmula vinculante, in: www.jfrn.gov.br; acesso em 21/01/2005.

[3] GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no Estado de Direito, São Paulo, RT, 1997, p. 202 e ss.

[4] MALLET, Estevão. Algumas linhas sobre o tema das súmulas vinculantes. Revista Consulex, nº 11, 1997.

[5] LIMA, Leonardo D. Moreira. Stare decisis e súmula vinculante: um estudo comparado. In: www. puc-rio.br, acesso em 20/01/2005.

[6] GOMES, Luiz Flávio. Súmula vinculante. Retirado do site www.mundojuridico.com.br; acesso em 20/01/2005.


Informações Sobre o Autor

Dijonilson Paulo Amaral Veríssimo

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, advogado, especialista em Direito Público pela mesma Universidade. Procurador Federal de 2ª Categoria. Chefe da Procuradoria Regional do INSS em Brasília


logo Âmbito Jurídico