Introdução
O século de Molière não conheceu o fenômeno do superendividamento, ao menos não como se o concebe na contemporaneidade. A tônica anedótica do escritor não deixa, todavia, de acenar para as dificuldades decorrentes do endividamento pessoal, ressentidas desde a sua época.
Quem diz “superendividamento”[3] não se refere a simples endividamento, a semelhança vocabular não dissimula o risco de se pecar, mediante tal assertiva, pela evidência. A gravidade do problema enfrentado na atual sociedade de consumo é bem digna dos fenômenos que nos surpreendem, num mundo globalizado, desde o final do século XX.
Na Europa e na América do Norte, já há décadas o problema recebe inclusive tratamento legislativo. Discursar sobre o superendividamento no Brasil já não é novidade. Vários são os apelos da doutrina[4] que aponta não só a emergência do problema no País, mas igualmente a necessidade de estudá-lo para dar-lhe tratamento específico e lhe evitar as conseqüências nefastas observadas alhures.
Entremeiam-se no estudo do superendividamento inevitavelmente conhecimentos de natureza sociológica, ética, política, psicológica, econômica e jurídica. A compreensão de suas causas nos remete, aliás, à reflexão quanto ao modo de vida na atual sociedade de consumo, quanto às conseqüências do consumo exacerbado e às perdas que implica em termos humanos e ambientais[5].
Sem olvidarmos estes aspectos de singular importância, mas igualmente escapando à sua análise mais aprofundada, interessam-nos no presente estudo os últimos aspectos referidos, quais sejam, as implicações de ordem sócio-econômica e o tratamento em direito positivo do superendividamento, sob uma perspectiva de direito comparado.
A delimitação do tema, todavia, exigirá que façamos ao leitor um alerta: as causas sócio-econômicas geradoras de situações jurídicas que compõem o domínio de aplicação das normas sobre o superendividamento são demasiado vastas; os critérios de sua definição legal utilizados em determinados ordenamentos, caso generalizados, poderiam, por exemplo no Brasil, levar à provável constatação – não tão surpreendente – de que elevadíssima proporção da população encontra-se em situação de superendividamento.
Escolhemos, assim, combinar o estudo do problema com a análise do “crédito ao consumidor”, cuja delimitação metodológica se deve menos por uma diferenciação do tratamento de direito positivo que por razões de interesse prático, das quais nos atemos a duas principais: primeiro, porque dentre as causas constatadas do superendividamento, o crédito surge como a mais importante, senão na realidade atual transmutada dos ordenamentos jurídicos que pioneiramente o conceberam, ao menos na aurora de sua descoberta[6]. Segundo, porque, no ordenamento pátrio, o problema da liberalização desmesurada do crédito ao consumidor está na ordem do dia.
Deve-se notar que, sob seu aspecto econômico, o problema do endividamento individual já figurou entre as preocupações do legislador brasileiro, não são deveras novos os conceitos de insolvência civil e de falência comercial.
Entretanto, a ausência de tratamento legislativo específico de que padece a realidade brasileira atual faz apelo ao estudo de direito comparado. Conforme salientam René David[7] e Rodolfo Sacco[8], numa perspectiva de comparação jurídica importa analisarem-se não somente regras, instituições e sistemas, mas também a funcionalidade das normas, o caráter histórico e sociológico do contexto em que se desenvolveram.
Não fosse por necessidade de explicitar o método comparado[9] no que se refere ao tema proposto, a advertência ao leitor de que a realidade econômico-social e a cultura jurídica brasileiras não se identificam àquelas da Europa e dos Estados Unidos revelaria ingenuidade intelectual.
Outrossim, o atendimento a tais preocupações é que confere pertinência ao estudo e enriquece a possibilidade de se adotarem normas similares em contextos jurídicos divergentes.
“Para melhor comparar uma noção, nada melhor que descontextualizá-la”, afirmava Nicole Chardin ao estudar os contratos de crédito ao consumidor na França[10]. Seguindo tal orientação, elegimos os contextos comunitário europeu e francês como modelos comparativos, além de breves referências ao ordenamento jurídico norte-americano, cujos contrastes político-legislativos entre si e em relação ao contexto brasileiro no tratamento do mesmo fenômeno enriquecerão a demonstração[11].
Enquanto fenômeno da sociedade de massas, a “superexpansão” do crédito ao consumidor e o conseqüente problema do superendividamento exigiram, num momento relativamente recente, a edição de medidas de direito positivo de proteção dos consumidores (I).
No entanto, arriscando-nos a surpreender o leitor que ainda se acostuma à idéia e à compreensão do tratamento dos mencionados fenômenos em direito positivo, forçoso será constatar a necessidade de novas adaptações aos problemas (II) que surgem da evolução acelerada das práticas econômicas relativas ao crédito e de suas conseqüências num contexto comunitário, senão globalizado.
Não nos parece errôneo afirmar que a necessidade de dar respostas a tais mundanças são conseqüência natural dos próprios mecanismos de reprodução operantes na referida sociedade de consumo e – por que não dizer – da “obsolescência programada” que caracteriza atualmente a generalidade dos bens de consumo[12]. Ao jurista cabe, enfim, despertar-se e buscar o socorro do Direito.
I – Soluções de direito positivo
A ideologia neoliberal que predominou no final do século XX no ocidente trouxe como conseqüência a liberalização do crédito. Alguns legisladores sentiram logo, outros com certo atraso… a necessidade de regulação do “direito do crédito ao consumidor”, de modo a evitar o agravamento da condição econômica e social dos consumidores.
O tratamento específico do crédito ao consumidor e das situações de superendividamento se insere na política mais ampla de proteção jurídica do consumidor, e como tal adota igualmente seus métodos e sua lógica[13]: trata-se de fenômenos da sociedade de massas, que afetam não só o interesse individual, mas igualmente o interesse coletivo dos consumidores, e enquanto tal exigem ao mesmo tempo medidas de caráter preventivo (A) e medidas de caráter curativo (B).
A) Medidas preventivas contra o superendividamento
As medidas de prevenção contra o fenômeno social do superendividamento passam, inicialmente, por uma mudança de paradigma econômico e, em seguida, pela tomada de consciência da necessidade de regulação do crédito ao consumidor.
Danielle Khayat relata que até então na França, se poucos detinham conta em banco, obter crédito era a fortiori um privilégio. As instituições concessoras testemunhavam de grande desconfiança e o inadimplemento era em larga medida identificado à culpa, no sentido jurídico e moral, do devedor. Desde 1879, nos departamentos da Alsace-Moselle o tratamento jurídico dispensado aos devedores insolventes continha medidas humilhantes, tais como a imposição do uso em público de um boné verde[14].
A mudança verificada pela liberalização do crédito se deu inicialmente nos Estados Unidos e na Europa dos anos 70 e 80, tanto na consideração do seu papel econômico quanto na sua concessão: a vasta difusão do crédito ao consumidor passaria a ser vista como excelente fomentador do crescimento econômico e do aumento da produção.
Resumidamente, com o surgimento da sociedade de consumo e sua ideologia de desregulamentação, operou-se uma brusca baixa da taxa de inflação e, ao mesmo tempo, dos salários, o que gerou desemprego. O novo “mode de vie” passou a ser o recurso ao crédito.
O legislador europeu, motivado por duas ordens de idéias intrinsecamente ligadas procedeu, a partir de 1974, à elaboração de uma diretiva comunitária que harmonizasse a concessão de crédito ao consumidor no âmbito dos Estados membros, a qual, todavia, somente veio a ser promulgada em 1986 em virtude de divergências políticas no seio da Comunidade[15].
Por um lado, era necessário garantir a livre circulação de bens e serviços no mercado comum e corrigir as imperfeições decorrentes da falta de transparência das transações[16]; por outro lado, igualmente importante era a promoção dos interesses econômicos dos consumidores.
Note-se que a Diretiva tem caráter minimal, o que permitiu aos Estados membros a adoção de medidas mais protetoras dos interesses dos consumidores. O legislador francês, por sua vez, atento aos riscos sociais do endividamento exacerbado de considerável camada da população, adotou importantes medidas desde 1978 sobre o crédito ao consumo.
Quanto à proteção do consumidor[17], os principais objetivos da legislação eram, por um lado, garantir um consentimento racional[18] e refletido (a) sobre sobre a dimensão global do endividamento em que aquele se engajava[19]; ao mesmo tempo, visava a garantir a lealdade nas transações (b) confortando a confiança dos consumidores. Para tanto, adotaram-se as seguintes medidas:
(a) – Forma escrita: a imposição de um formalismo contratual, mediante fornecimento de instrumento obrigatoriamente escrito (oferta preliminar) contendo as informações essenciais sobre a modalidade contratual, notadamente a TAEG (taxa efetiva anual global), vale dizer, uma cifra percentual indicando o valor global do custo da operação – que deve incluir os juros remuneratórios e todos os demais engargos – além das cláusulas gerais contratuais, entre outras; na França, a transgressão a tais normas implica perda do direito à cobrança dos juros convencionais[20];
– Oferta: mais protetora que a Diretiva, a legislação francesa prevê a obrigatoriedade de manutenção da oferta durante pelo menos quinze dias (trinta dias para o crédito da habitação) após envio do instrumento de oferta preliminar, para conferir um prazo suficiente de reflexão acerca do endividamento iminente[21];
– Reflexão: a Diretiva faculta aos Estados membros a estipulação de um prazo de arrependimento (desdito), durante o qual o consumidor pode “retirar-se” do contrato sem justificativa nem indenizações; a França adotou prazo mínimo de 7 dias para o seu exercício, após a aceitação da oferta; nos contratos de crédito da habitação esse prazo, denominado “prazo de reflexão” é de 10 dias, devendo obrigatoriamente preceder a aceitação do contrato[22];
– Interdependência contratual: a Diretiva, embora sob numerosas condições, estabelece expressamente a interdependência entre o contrato de crédito e o contrato que este visa a financiar; além do mais, determina aos Estados membros que disciplinem, nos contratos de “crédito afetado”, a forma de “recuperação” do bem, por exemplo em caso de resolução do contrato principal por inadimplemento, de modo a evitar enriquecimento sem causa; por sua vez, o legislador francês estabeleceu a interdependência, não só nos contratos de crédito ao consumidor, mas igualmente nos de crédito da habitação, e a jurisprudência se encarregou de que a sorte de um siga a mesma a sorte do outro[23];
(b) – Publicidade: afim de evitar um endividamento excessivo e garantir a lealdade nos contratos de crédito, procedeu o legislador à regulamentação específica da publicidade, mediante imposição, nos instrumentos publicitários contendo um mínimo de informações atrativas ao crédito, de apresentação do seu custo global representado pela TAEG; na França restringiu-se, ademais, mensagens publicitárias alusivas a “crédito gratuito”, sendo que a transgressão a tais normas implica sanções penais de multa e, conforme o caso, de prisão[24];
– Juros: além da já mencionada obrigação de informação por escrito e anterior à conclusão contratual dos juros, a Diretiva determina especialmente que, nos contratos de abertura de crédito em conta (limite em cheque-especial), ou em casos de saque a descoberto, sejam informados por escrito o limite de crédito permitido e a taxa anual de juros sempre que houver alteração; homenageando a boa-fé, o legislador francês foi além das previsões comunitárias e impôs um teto percentual para os juros, sancionando civil e penalmente a prática de usura[25].
– Reembolso antecipado: enfim, entre outras medidas, o direito de reembolso antecipado do montante do crédito, sem indenizações ou sob reduzido percentual regulamentar, caso o consumidor tenha interesse em extinguir suas dívidas antes do termo previsto, sobretudo em épocas de variação acentuada dos juros de mercado.
No Brasil, embora com algumas décadas de atraso, assiste-se nos últimos anos, semelhantemente ao que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos nas décadas de 70 e 80, a uma liberalização nunca antes vista do crédito[26], com forte apelo publicitário dirigido em larga escala sobretudo a segmentos mais vulneráveis da população, notadamente os aposentados. As investidas de tais práticas, deve-se reconhecer, deleitam-se no limiar da abusividade, implicando graves riscos de endividamento excessivo e irrefletido[27].
O legislador brasileiro ainda não interveio mediante elaboração de legislação específica de regulação global do crédito ao consumidor que dê resposta à chamada “onda do crédito”. O Código de Defesa do Consumidor, no entanto, introduziu a partir de 1990 várias inovações, semelhantes em sua finalidade àquelas adotadas pelo legislador europeu, cujas normas indubitavelmente se aplicam ao fornecimento de crédito[28]. Definiu-se ali a Política nacional das relações de consumo, visando a proteger os interesses econômicos dos consumidores, a promover a almejada transparência das transações, mediante a boa-fé e o equilíbrio nas relações entre fornecedores e consumidores[29].
Assim, no que toca à proteção do consentimento, impôs o legislador brasileiro uma obrigação geral de informação completa e adequada sobre as características essenciais da modalidade contratual[30], a qual evidentemente complementa as informações específicas nos contratos que envolvam outorga de crédito (artigo 52, CDC), entre as quais devem figurar a taxa anual efetiva de juros e a soma total a pagar, com ou sem financiamento.
Um direito de arrependimento exercível em sete dias após a conclusão do contrato é concedido aos consumidores, embora se restrinja aos contratos realizados fora do estabelecimento comercial do fornecedor[31].
São, enfim, consideradas nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas nos contratos de compra e venda de bens móveis e imóveis e de alienação fiduciária, caso pleiteada a resolução contratual e a retomada do bem por inadimplemento.
Quanto à promoção da lealdade e boa-fé contratuais, procedeu o legislador consumerista à regulamentação da publicidade, proibindo de forma geral práticas enganosas e abusivas[32], sendo assim consideradas, notadamente, as que tendam a prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, conhecimento ou condição social. Ademais, impôs-se a vinculação das menções publicitárias ao contrato que vier a ser celebrado[33].
Enfim, nos contratos de crédito é assegurada ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos (artigo 52, § 2º).
Todas as medidas legislativas adotadas nos diversos ordenamentos jurídicos mencionados, umas editadas especificamente visando os contratos de crédito, outras aplicáveis a tais contratos em virtude de legislação especial protetora dos consumidores, deveriam ser aptas a prevenir o endividamento irrefletido de consumidores e evitar que sucumbam ao intenso apelo do fornecimento de crédito.
A prevenção do superendividamento dos consumidores dependia, no entanto, do respeito e da efetiva implementação de tais normas por parte dos agentes econômicos aos quais elas se destinavam.
Contudo, a ausência de controle do seu efetivo cumprimento, associada à agressividade das estratégias de marketing num mercado globalizado e altamente competitivo e, entre outros, decisivamente a adoção de política econômica que vê na difusão acentuada do crédito ao consumidor a panacéia de impulsão do crescimento econômico global permitem pressentir que as medidas de prevenção adotadas, sozinhas, “não fizeram verão”.
O legislador não restou inerte ao apelo social por socorro exigindo novas medidas reparatórias das situações de agravamento da condição econômica dos consumidores endividados, o que culminou com a juridicização do superendividamento.
B) Medidas curativas contra o superendividamento
A mudança de paradigma econômico que deu lugar à liberalização do crédito como motor de propulsão da economia não ocorreu sem certa mudança simultânea da ideologia dominante até então. De modo geral, operou-se uma objetivação do aspecto econômico do consumo, mediante a mitigação do aspecto moral[34] que envolvia o auto-endividamento, e uma intenção de certa forma difusa de “responsabilização da economia”[35] no afrouxamento do crédito, vale dizer, de internalização dos custos sociais e econômicos resultantes do intenso endividamento de consumidores que se seguiu a tal política econômica[36].
Na França, à ocasião de um projeto de lei oriundo do governo denunciava-se em 1989 que aproximadamente duzentas mil famílias se encontravam em situação de desespero financeiro, “à beira da completa exclusão social”.
Nessa primeira fase de denúncia do problema, detectou-se que a causa mais importante do que se denominou “superendividamento ativo” era o recurso sistemático ao crédito, o que submetia os consumidores a uma espiral de aquisição de novos créditos diante da incapacidade financeira de reembolsar os adquiridos anteriormente[37].
Não desejando aguardar providências do legislador comunitário, a França viu promulgar-se finalmente a lei com o objetivo de assistir os consumidores que se encontrassem em situação de superendividamento, cuja definição legal era “a impossibilidade manifesta para o devedor de boa-fé de honrar o conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas”. Comissões administrativas especiais, presentes em cada departamento do país, foram criadas para analisar e julgar os diversos casos.
Após várias modificações legislativas, o tratamento do superendividamento prevê duas fases, cuja implementação dependerá do nível de agravamento da situação do devedor. Para tal verificação analisa-se o passivo contábil global do consumidor em contraste com o ativo existente.
Em uma primeira fase, que podemos denominar administrativa por predominar a atuação da comissão de superendividamento[38], verifica-se a situação do devedor: caso classificada como superendividamento clássico, busca-se, inicialmente, a elaboração de um plano amistoso, com ampla liberdade de negociação com os credores.
Frustrado tal plano, a comissão recomenda ao juízo da execução medidas ordinárias, que compreendem o reparcelamento das dívidas, a redução ou imputação dos juros vincendos sobre o capital devido, ou a redução das quantias ainda devidas após a venda forçada do imóvel de habitação principal do devedor em virtude de privilégio em favor do estabelecimento financiador[39].
Se, diversamente, a situação indicar caso de insolvência por inexistência de patrimônio suficiente, de modo a frustrar as recomendações ordinárias, a comissão pode recomendar medidas extraordinárias, as quais inclem suspensão judicial das execuções em curso, moratória de até dois anos, a cujo termo, persistindo a insolvência, pode-se proclamar a eliminação parcial do conjunto das dívidas[40].
Finalmente, se a situação do devedor indicar situação irremediavelmente comprometida, caracterizada pela impossibilidade manifesta de cumprimento das medidas acima referidas, inicia-se a fase judicial mediante o procedimento denominado restabelecimento pessoal.
Trata-se de espécie de concurso universal de credores, que inclui, resumidamente, a publicação de edital de chamamento a credores, a liquidação do ativo apurado – não sem se considerar um mínimo vital, o “reste à vivre” destinado à subsistência do devedor – e, finalmente, a eliminação da totalidade das dívidas. Após o procedimento, o consumidor sai pronto para um “nouveau départ”…[41]
Nos Estados Unidos, sociedade em que a apologia do consumo vai de par com a ideologia extremamente difundida de que constitui poderoso elemento de aquecimento da economia[42], dificilmente se conseguiria relançar a capacidade financeira de consumo dos indivíduos sem um procedimento reparatório que garantisse aos já superendividados um “fresh start”.
Nesse sentido, a legislação (“Bankruptcy Code”[43]) prevê, para o tratamento do superendividamento, dois procedimentos: a liquidação do capítulo 7º (“straight bankruptcy”) e o ajustamento de dívidas do capítulo 13 (“reorganization”).
Pelo procedimento do capítulo 13, o devedor de boa-fé pode apresentar perante o Tribunal de Falências e obter-lhe a confirmação de um plano geral de pagamento de suas dívidas, caso seja aceito pelos credores e não sofra objeção do “trustee”, um oficial encarregado, em cada tribunal, de velar pela efetiva aplicação das normas relativas ao procedimento e de acompanhar o cumprimento dos planos. Ao final do prazo previsto para o cumprimento do plano, o devedor obterá liberação definitiva de todas as dívidas ali previstas. Em caso de inexecução do plano pode ainda o devedor obter do tribunal a eliminação de suas dívidas não cobertas por garantia pessoal ou real, salvo sua negligência ou fraude, entre outras condições.
Pode também o consumidor superendividado recorrer diretamente ao procedimento previsto no capítulo 7º, mediante o qual se obtém, após a liquidação do ativo apurado, a eliminação total (“discharge of debts”) das dívidas não cobertas por garantia pessoal ou real, excetuadas algumas dívidas de natureza especial.
Vale notar que, sob pretexto do caráter alegadamente relapso do procedimento e de abusos reiteradamente cometidos na eliminação das dívidas dos consumidores supostamente superendividados, a administração Bush aprovou modificações que resultaram no “Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection Act”[44]. Tal norma restringe consideravelmente o acesso de consumidores aos procedimentos, sobretudo à liquidação do capítulo 7º e inaugura, entre outros, uma investigação aprofundada (“means test”) dos bens componentes do patrimônio ativo do devedor, preliminarmente à demanda de liquidação, visando a reconduzir as demandas ao procedimento do capítulo 13[45].
No Brasil, como afirmado, a noção de insolvência civil não constitui novidade, o Código de Processo Civil prevê o procedimento específico da “execução de devedor insolvente por quantia certa”[46]. Tal mecanismo de direito comum não se destina, entretanto, exclusivamente aos consumidores, senão que a todo indivíduo insolvente, cujas dívidas superem em valor o seu patrimônio. Nesse sentido, a lógica e a ideologia que o permeiam inscrevem-se na ideologia individualista do direito civil tradicional.
Em resumo, uma espécie simplificada de concurso de credores se inicia com a análise e conseguinte declaração de insolvência do devedor, cujo efeito mais imediato é o vencimento antecipado da totalidade das dívidas[47].
Em seguida, exige-se que o devedor exponha à apreciação do Juízo as “causas” de sua insolvência[48]. Tal exigência remarcável está bem a demonstrar o acentuado subjetivismo que caracteriza tal procedimento, ainda bastante ligado à idéia de culpa, em sentido moral, do devedor pela situação em que se encontra.
Uma vez dado publicidade do procedimento aos credores, procede-se à liquidação dos bens do devedor e, caso não sejam suficientes à apuração total do passivo, conclui-se o procedimento, mas aquele continua obrigado às suas dívidas pelo prazo prescricional de cinco anos[49].
É, enfim, conferida ao magistrado a faculdade de conceder, após consulta aos credores, uma pensão ao devedor, caso não haja sido constatado culpa deste[50]. Nota-se, o procedimento é realizado no exclusivo interesse do credor e o devedor insolvente se encontra em situação de verdadeira sujeição.
A maioria das medidas mencionadas, umas visando à prevenção, outras à reparação da situação de agravamento financeiro em que se encontra o consumidor superendividado, são normas de direito positivo resultantes de intervenções pontuais do legislador em momentos de apelo social por socorro à coletividade de consumidores. Nota-se, contudo, em quase todos os modelos mencionados, seja uma anacronia normativa, seja a ausência pura e simples de disposições específicas que produzam efeitos satisfatórios de tratamento do fenômeno do superendividamento.
Atentos a tais deficiências, doutrina, legislador e inclusive a jurisprudência se inclinam em busca de novas soluções para as mudanças verificadas na realidade sócio-econômica dos diferentes ordenamentos.
II – Em busca de soluções para os novos problemas
Remediar juridicamente uma situação de fato quando se reconhece o direito do sujeito que a alega é não mais que um efeito do princípio constitucional da inafastabilidade. Em princípio, remediar ou reparar supõem, no entanto, o dano, ou no que nos concerne no presente estudo, o agravamento da situação financeira de consumidores superendividados.
Em vista da insuficiência das medidas de direito positivo adotadas, busca-se, seguindo a lógica consumerista, soluções para novos problemas surgidos no seio social, com o objetivo não só de reparar (B), mas antes de prevenir o superendividamento (A).
A) Propostas de renovação das medidas preventivas
A doutrina esclarece que a realidade que motivou a adoção de normas reguladoras do crédito com o objetivo de prevenir o endividamento excessivo de consumidores se modificou substancialmente desde a sua elaboração[51]. Tendo por modelo inicial as vendas a prazo e os crediários, as modalidades contratuais de oferta do crédito se diversificaram e se tornaram mais complexas.
Na Comunidade Européia, além da necessidade de adaptação legislativa às novas formas de crédito, constatou-se que a divergência entre as várias legislações dos Estados membros passaram a constituir entrave ao princípio da livre circulação dos bens e serviços e falseava a concorrência entre os agentes econômicos, com prejuízo inclusive para os consumidores.
Visando a um novo enquadramento jurídico harmonizado do crédito ao consumidor, novas proposições foram formuladas, das quais é notável a Proposta de Diretiva do Parlamento e do Conselho europeu relativa ao crédito aos consumidores – COM2002/0222[52].
Diga-se de passagem, é remarcável a vontade política que fundamenta o objetivo de proteger o consumidor de crédito quando, sabe-se bem, as inovações introduzidas serão impostas, de uma só vez, a vinte e sete países membros[53] por obra de legislador comunitário!
Dentre as inovações, constitui elemento sobranceiro da proteção a expressa consideração na Proposta de Diretiva de que “a regulamentação do crédito ao consumo respeita os direitos fundamentais assim como os princípios reconhecidos notadamente pela carta dos direitos fundamentais da União Européia[54]. Como reforço da proteção do consentimento e da promoção da lealdade e boa-fé, há que destacar:
– Informações de base: doravante toda e qualquer publicidade veiculada com referência ao crédito deve conter determinadas “informações de base”, mediante apresentação de um exemplo representativo, a saber: o seu montante total, a taxa anual global, a duração da operação, o número e a periodicidade das mensalidades, assim como todos os tipos de encargos ligados ao crédito. O fim comercial deve aparecer de forma inequívoca[55].
– Oferta: a oferta de crédito, apresentada obrigatoriamente por escrito e em suporte durável, deve conter, além das informações acima descritas, minucioso detalhamento sobre a modalidade contratual em questão. A Diretiva reserva disposições especiais para as aberturas de crédito em conta-corrente (os conhecidos “limites em cheque-especial”) as quais impõem, anteriormente a qualquer disponibilização de crédito, o fornecimento de informações sobre o seu montante ou limite, sobre a taxa de juros aplicada e sobre a taxa anual global da operação, entre outras[56];
– Empréstimo responsável e obrigação de aconselhamento: a Proposta inaugura em âmbito comunitário a noção de “empréstimo responsável”[57], impondo ao fornecedor de crédito uma obrigação de aconselhamento. Para tanto, deve o fornecedor solicitar todas as informações necessárias – conforme o caso consultando os registros de dados apropriados[58] – para avaliar a solvabilidade do consumidor e se assegurar de que este terá condições de reembolsar o montante pretendido. Ademais, tal obrigação de aconselhamento impõe ao fornecedor alertar o consumidor com informações precisas sobre as vantagens e, conforme o caso, os inconvenientes da aquisição de crédito, além de avaliar qual a forma contratual mais adequada às suas necessidades[59]. Tal obrigação se aplica igualmente nos casos de aumento do montante de crédito anteriormente concedido.
O artigo 10º da Proposta discrimina as informações que devem constar do contrato escrito, dentre elas todos os custos que não se incluem na taxa efetiva anual global, tais como comissões, multas por ultrapassar o limite concedido e multas por inadimplemento; a faculdade de reembolso antecipado e o procedimento para realizá-lo; o direito de retratação e o procedimento para exercê-lo.
– Retratação: seguindo o exemplo de vários Estados membros, estabelece-se em nível comunitário um direito de arrependimento, cujo prazo se eleva a quatorze dias, contados a partir do dia de recepção pelo consumidor de uma cópia do contrato concluído.
– Cláusulas e práticas abusivas: a Proposta estipula seis cláusulas consideradas abusivas caso inseridas em contratos de crédito[60], sem prejuízo da aplicação da Diretiva 93/13/CE sobre cláusulas abusivas, entre as quais: as vendas casadas; e um sistema de variabilidade da taxa de juros remuneratórios que não se atenha à base da taxa inicialmente estipulada, ou que faça abstração da possibilidade de redução ou outras vantagens. Constata-se, no entanto, que não há previsão de abusividade da taxa em si, a configurar eventual onerosidade excessiva.
Outra inovação da Proposta é a proibição de práticas que exigem do consumidor a emissão de títulos de crédito, letras de câmbio ou cheque como garantia de pagamento do empréstimo tomado[61].
– Interdependência contratual: o artigo 19 estabelece a responsabilidade solidária entre o fornecedor de bens e serviços, quando intervier na relação como intermediário de crédito, e o fornecedor de crédito, quanto à indenização ao consumidor por falta de entrega do bem ou serviço, ou por vício de conformidade entre o bem e o contrato respectivo.
– Inadimplemento: a Proposta determina aos Estados membros que estipulem medidas necessárias para garantir que o ajustamento final de contas e a liquidação do débito sejam realizados eqüitativamente, e não resultem em enriquecimento sem causa[62].
– Sanções: enfim, impõe-se aos Estados membros o estabelecimento de todas as medidas necessárias para garantir a eficácia de suas disposições, as quais devem ser efetivas, proporcionais e dissuasivas: exemplificativamente, a estipulação de perda do direito aos juros, além da manutenção do benefício do pagamento parcelado da dívida, em caso de desrespeito pelo fornecedor do crédito às disposições relativas ao “empréstimo responsável”.
Na França, embora a doutrina indique a necessidade de adaptações pontuais da legislação sobre o crédito[63] e a jurisprudência dê testemunho de vontade de se implementar a lealdade e boa-fé nas transações[64], não há por ora propostas de modificação legislativa substancial. Certo é, contudo, que o legislador nacional deverá se conformar às inovações impostas quando da aprovação das novas propostas comunitárias. Aliás, sobre tal ponto, já há alguns anos a doutrina denuncia que a evolução do Direito do Consumidor na França se opera primordialmente sob o influxo das iniciativas do legislador comunitário[65].
No Brasil, há quase uma década a doutrina aponta a necessidade de se adotarem normas específicas de regulação da matéria[66]. O impacto monetário e financeiro da difusão desmesurada do crédito, tais o risco de inflação, a repercução sobre o nível salarial e a taxa de desemprego, além dos custos sociais que representam, são provas da necessidade de intervenção normativa em tal questão.
Nesse sentido, são apontadas algumas medidas preventivas que, de resto, assemelham-se àquelas preconizadas no contexto europeu, das quais citaremos três por considerá-las mais importantes, no intuito de prevenir o superendividamento.
Notadamente, importa reforçar a proteção do consentimento do consumidor, mediante informação adequada sobre os riscos das operações[67]. A idéia provavelmente mais urgente a ser posta em prática é a de “empréstimo responsável”, devendo-se impôr aos fornecedores de crédito, como imperativo de boa-fé, a avaliação da capacidade de reembolso dos consumidores, a evitar o seu superendividamento[68].
Outra medida de elevada importância, especialmente diante da agressiva solicitação publicitária a que vêm sendo submetidos constantemente os consumidores no País – sobretudo os mais vulneráveis – é a extensão do direito de arrependimento (artigo 49, CDC) a todos os contratos de crédito e não somente aos concluídos “fora do estabelecimento comercial”, de forma a garantir um consentimento refletido.
Enfim, levando ainda em consideração as práticas comerciais correntes no País, a habitualidade das vendas a prazo e dos “crediários”, igualmente importante seria a previsão expressa de interdependência entre o contrato de crédito e o contrato de fornecimento de bens ou serviços. Dessa forma, o consumidor que aceita pagar em várias prestações (por exemplo, as não raras ofertas “pague em 12 vezes” sem juros![69]), uma vez confrontado à inexecução do contrato ou aos vícios do produto ou serviço não se veria, a contragosto, vinculado ao pagamento das prestações.
Embora propugnemos pelo reconhecimento da necessidade de intervenção normativa de regulação do crédito, como acima exposto, a doutrina especializada em Direito do Consumidor parece uníssona em concordar que o maior entrave à prevenção do problema reside, em realidade, no flagrante desrespeito às normas em vigor no CDC. Para tais autores, após quinze anos de existência, o grande desafio consumerista é implementar de forma eficaz as normas protetoras já existentes[70].
Diante de tal desrespeito à lei, válido é nos indagarmos sobre a suficiência de novas soluções normativas destinadas precipuamente a prevenir o endividamento excessivo dos consumidores. Ressurge pertinente, diante da realidade atual, a proposta de medidas curativas do superendividamento.
B) Propostas de renovação das medidas curativas
Deve-se atentar para o fato de que o fenômeno aqui analisado constitui uma situação de agravamento global da condição financeira do consumidor. Trata-se de depreciação considerável e duradoura de seu patrimônio e de sua capacidade de participar ativamente da vida econômica em sociedade, traduzindo-se em sua verdadeira exclusão social.
Na Europa, o legislador comunitário não desconhece tal realidade. Em 13.7.1992 era dado o primeiro alerta sobre o problema do superendividamento, incorporado pela Resolução do Conselho da Comunidade Européia. A partir daí, vários estudos de indicadores econômico-sociais foram realizados visando a oportunidade de implementação harmonizada de normas de tratamento do superendividamento no âmbito de todos os Estados membros.
Tais estudos resultaram em Resoluções e Comunicações do Conselho[71], em que se reafirma a importância do tema para a proteção dos consumidores e sua relação com a realização do mercado comum.
Um documento recente que apresenta sugestões de medidas mais concretas de combate ao superendividamento no âmbito comunitário é o Parecer do Comitê Econômico e Social sobre o sobre-endividamento familiar na União Européia[72].
Dentre elas, as mais importantes são:
a) promover medidas de prevenção e tratamento do superendividamento, tanto de direito material quanto processual, conforme aos princípios de subsidiariedade e da proporcionalidade;
b) realizar estudos do impacto, em termos de agravamento das situações de superendividamento familiar, de medidas políticas adotadas e que se refiram a crédito ao consumo, crédito hipotecário, comunicações comerciais, marketing, publicidade e práticas de comércio;
c) Devem os Estados Membros: – considerar a possibilidade de adotar códigos de conduta para o tratamento de situações de superendividamento; – promover, desde a idade de ensino fundamental e médio, atividades de informação e de educação visando a prevenir o problema[73].
Finalmente, a doutrina sugere outras medidas que poderiam ser úteis, senão necessárias, tais como a disciplina dos créditos imobiliários e a fixação de um teto para as taxas de juros, acima do qual haveria prática de usura[74].
Resta-nos abordar quais propostas se adaptariam melhor à realidade brasileira, considerando a possibilidade de se tratar o problema. O Código de Defesa do Consumidor não prevê normas de tratamento específico do superendividamento, enquanto fenômeno de agravamento global da situação financeira do consumidor.
No entanto, por ser fruto da vontade do legislador constituinte de proteger o consumidor e de velar pela integridade da sua dignidade humana, ali se consagraram normas que visam não só, como já visto, à prevenção do endividamento excessivo e irrefletido, mas que visam a remediar as situações de desequilíbrio contratual.
Cabe notar que na realidade sócio-econômica brasileira, bastante diversa daquelas em que se inserem os referidos procedimentos específicos de tratamento do superendividamento, as mazelas de um consumidor acentuadamente endividado têm, não raramente, como fonte um contrato desequilibrado em sua economia interna[75].
Nessa linha de raciocínio, embora não expressamente com o mesmo objetivo, em determinados casos pode-se obter, mediante aplicação das normas do CDC que visam a restabelecer o equilíbrio contratual, o mesmo efeito de saneamento financeiro do consumidor que proporcionam os tratamentos específicos de superendividamento estudados. Por exemplo, as que concedem direito ao consumidor a que sejam modificadas cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais, além de sua revisão por fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas [76].
Geradoras de efeitos semelhantes são as normas inovadoras do Código Civil em vigor que sancionam a lesão e a imprevisão[77], embora imponham ao consumidor que delas desejar fazer aplicação o regime de direito comum que lhes é inerente.
A considerar, contudo, a insuficiência de tais soluções paliativas e a necessidade de se adotarem normas específicas de tratamento do superendividamento, de grande oportunidade torna-se, inicialmente, a análise de pesquisas que visem à identificação do problema no contexto brasileiro. Louvamos, assim, as iniciativas realizadas com tal fim[78].
Se a amplitude social e econômica dos impactos causados pela inserção de normas de tratamento do superendividamento no contexto brasileiro exigirá certamente grande cautela do legislador[79], a urgência de socorrer a coletividade de consumidores superendividados no País, principalmente em decorrência do crédito, não exige menos firmeza de expressão.
Em busca de modelos jurídicos aplicáveis no ordenamento pátrio, poderíamos nos perguntar se a nova Lei de Falências, com seus inovadores conceitos de “recuperação”, não nos oferece subsídios oportunos para a formulação de estruturas ou princípios específicos ao tratamento de consumidores superendividados.
Se ali os há, parecem-nos dignos de alguma consideração os que visam, mediante a “superação da situação de crise econômico-financeira do devedor”, em primeiro lugar à conservação da unidade econômica da empresa, da sua função social e da manutenção de sua capacidade de participação ativa do ambiente econômico em que se insere[80]; em seguida, as facilidades concedidas ao devedor tais como a livre elaboração de um plano de escalonamento de dívidas em concerto com os credores, e a concessão de prazos de recuperação podem ser eficazes instrumentos de tratamento do superendividamento.
Ao contrário, a necessidade de se imprimir ampla publicidade ao procedimento e a manutenção das dívidas, em caso de decretação da falência e liquidação do ativo[81], durante longo prazo prescricional após sua conclusão parecem-nos, segundo os objetivos próprios ao superendividamento, menos adequadas.
Limitando, finalmente, o espectro da investigação de eventuais medidas de tratamento às situações cuja causa de endividamento excessivo seja o crédito, parece-nos adequada a estipulação de um direito ao rescalonamento da dívida cumulativamente à redução eqüitativa dos juros cobrados, até o limite de sua eliminação total, sobretudo nos casos em que se constatar descumprimento da obrigação de verificação da capacidade do consumidor de cumprir razoavelmente sua obrigação de reembolso – a qual não é mais que um efeito do dever de boa-fé e da noção de “empréstimo responsável” que esta implica.
Conclusão
As vantagens da comparação jurídica merecem ser exaltadas; o exemplo das soluções encontradas em outros ordenamentos servem a inspirar a formulação de idéias adequadas ao sistema sócio-jurídico pátrio, sem necessariamente retirar a originalidade da adaptação das novas soluções ao nosso próprio ambiente cultural[82].
O superendividamento é fenômeno que exige, constatadamente no Brasil, tratamento adequado, em homenagem a princípios de justiça social e de boa-fé nas relações de consumo. A cautela do legislador na elaboração de normas adequadas deve se alinhar, talvez mais que a outros imperativos, à necessidade de velar por que tal normatização não se transmute em benefício de uma classe privilegiada de consumidores.
Mediante esta contribuição, que singelamente fornecemos ao estudo da matéria, cremos haver fundamentado nosso propósito de aderir àqueles que pioneiramente manifestaram a necessidade de remediar, pelo Direito, uma situação de grave desajuste econômico e social no Brasil.
Informações Sobre o Autor
Wellerson Miranda Pereira
Mestre em Direito das relações de consumo pela Universidade de Lausanne, Suíça
Doutorando em Direito Privado na Université de Savoie, França em co-tutela com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS