Tentativa inidônea em decorrência de aparatos de vigilância

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Resumo: Tendo-se em vista a crescente utilização de aparatos e técnicas de vigilância para impedir a ocorrência de infrações, é evidente a necessidade de avaliar se a presença de mecanismos de segurança interfere de maneira absoluta na idoneidade da conduta, impossibilitando categoricamente a consumação do delito. Tal estudo é realizado no presente artigo, por meio de uma análise crítica da doutrina, da legislação pertinente e de julgados significativos, com foco nos crimes de furto, contrabando ou descaminho e tráfico de drogas.[1]

Palavras-chave: Vigilância. Crime impossível. Tentativa inidônea. Segurança.

Sumário: Introdução. 1. Fundamentos da tentativa. 2. Crime impossível. 3. Tentativa em face de mecanismos de vigilância. 3.1. Defeito intrínseco do meio. 3.2. Impossibilidade objetiva de lesão no bem jurídico. 3.3. Extensão, qualidade e eficácia dos dispositivos de segurança. 3.4. Vigilância, crime impossível e sentimento de impunidade. 4. Casos práticos. 4.1. Furto. 4.2. Contrabando ou descaminho. 4.3. Tráfico ilícito de entorpecentes. Conclusão.

Introdução

Em razão da crescente modernização tecnológica observada nos dias atuais, é cada vez mais comum o uso de técnicas e aparatos de vigilância tais como câmeras, gravadores de áudio e alarmes com o objetivo de inibir condutas delituosas. Como consequência, os julgadores brasileiros têm se deparado com um número significativo de casos nos quais a consumação do delito foi impedida pela presença de dispositivos de segurança no local dos fatos. Tendo-se em vista que não há, na doutrina ou na jurisprudência, posicionamento pacífico a respeito do tema, faz-se necessário examinar a idoneidade da tentativa praticada em tais circunstâncias, observando-se a extensão da influência exercida pelos mecanismos e técnicas de vigilância sobre a ação criminosa.

Este artigo tem o objetivo de dirimir as dúvidas acerca do assunto por meio de um estudo teórico aliado à análise de casos práticos. Dessa forma, será possível demonstrar que a presença de dispositivos de segurança eficientes no local dos fatos torna absolutamente impossível a consumação de determinadas infrações, uma vez que interfere na idoneidade do objeto da ação, assim como na do meio empregado pelo agente na realização da conduta.

1. Fundamentos da tentativa

Há situações nas quais, por circunstâncias não relacionadas à vontade do agente, o delito não se consuma, embora tenha sido iniciada a sua execução. Em outras palavras, a conduta delituosa permanece incompleta, uma vez que foi interrompida ao longo de seu desenvolvimento, ou simplesmente porque não produziu o efeito almejado pelo sujeito ativo do crime. Em tais situações, configura-se a tentativa, prevista no artigo 14, inciso II, do Código Penal brasileiro.

No ordenamento jurídico pátrio, a tentativa é punida com a pena correspondente ao crime consumado, porém reduzida de um a dois terços (art. 14, parágrafo único, do Código Penal). Isso significa que, em primeiro lugar, o magistrado deverá calcular, com base no sistema trifásico, a sanção que seria aplicada ao delito caso houvesse ocorrido a sua consumação. Apenas após tal cálculo é que deverá ser aplicada a causa de diminuição de pena referente à tentativa.

Deve-se ter em vista que o índice de redução da reprimenda é inversamente proporcional à proximidade da consumação do crime. Em outras palavras, quanto mais o autor tiver progredido na execução do delito, menor será a fração aplicada para diminuir sua pena. Ressalte-se que o juiz deverá apresentar, em sua decisão, os motivos que o levaram a reduzir a reprimenda em maior ou menor grau em razão da tentativa. Além disso, no caso de concurso de pessoas (art. 29 do Código Penal), a diminuição referente ao crime tentado deve beneficiar a todos os agentes da mesma forma, haja vista o caráter incindível do delito.

Ressalte-se que, no que concerne à punibilidade da tentativa, o Código Penal brasileiro adotou a teoria objetiva, segundo a qual o fundamento da punição da conduta reside na exposição do bem jurídico tutelado a uma situação de risco, provocada por ato executivo idôneo à realização do fim almejado pelo agente do delito. Contudo, tendo-se em vista a inocorrência de lesão efetiva ao bem jurídico protegido, a tentativa deve ser punida com reprimenda inferior àquela aplicada ao delito consumado, uma vez que se trata de fato menos grave do que a plena concretização do objetivo desejado pelo sujeito ativo do crime.

A configuração do crime tentado requer, além do início da execução da figura típica e da ausência de consumação por motivos não relacionados à vontade do agente, a presença de resolução para o fato. Trata-se de elemento subjetivo do injusto que envolve o dolo, direcionado à totalidade dos elementos que constituem o tipo objetivo, e também outros aspectos subjetivos da figura típica, como é o caso das intenções especiais que compõem determinados crimes. Ademais, exige-se, por óbvio, que a vontade do agente seja a de provocar um resultado mais grave do que aquele que efetivamente vem a ocorrer.

Cumpre observar que a doutrina e a jurisprudência são pacíficas quanto ao entendimento de que a tentativa se configura quando o agente inicia o ataque direto ao bem jurídico protegido pela norma penal, isto é, quando começam os atos executivos. Faltam, entretanto, critérios claros para distinguir a etapa preparatória, em regra considerada atípica, do início da execução, momento a partir do qual a conduta é punível.

Diante de tal dificuldade, diversas concepções teóricas foram desenvolvidas com o objetivo de indicar, como maior segurança, o momento no qual começa a execução do delito. A lei penal brasileira houve por bem adotar a teoria formal-objetiva, a qual defende que os atos de execução se iniciam com o começo da realização formal da ação típica em sentido estrito. Tal entendimento, embora respeite o princípio da legalidade e propicie considerável segurança jurídica, possui um enunciado excessivamente estreito, de modo que nem sempre permite uma distinção clara entre os atos preparatórios e as atividades de execução.

2. Crime impossível

Deve-se levar em conta que, em determinados casos, o agente tenta praticar o delito de maneira completamente inócua, ou seja, incapaz de efetivamente atingir o bem jurídico protegido pela norma penal. Em tais hipóteses, configura-se o crime impossível, também conhecido como tentativa inidônea ou inútil, que consiste em toda conduta que, embora esteja dirigida à realização de uma figura típica, não apresente qualquer ofensividade em relação ao bem jurídico tutelado.

Tendo-se em vista que um comportamento apenas é considerado típico quando efetivamente capaz de ofender um interesse protegido pela norma penal, observa-se que o delito inviável consiste em uma hipótese de atipicidade. Diferentemente do que ocorre na tentativa idônea, a consumação é irrealizável no crime impossível, ainda que o resultado seja praticável na imaginação do agente. A impossibilidade de concretização da figura típica pode ocorrer pela completa impropriedade do objeto da ação, pela ineficácia absoluta dos meios empregados pelo autor, ou por ambos os motivos.

De acordo com a teoria objetiva temperada, a qual é adotada pelo Código Penal brasileiro em seu artigo 17, a tentativa só é atípica quando considerada absolutamente inidônea. Nos casos em que é apenas relativamente incapaz de atingir a consumação, a conduta deve ser punida. Contudo, embora a diferenciação doutrinária seja bastante clara, no plano concreto costumam surgir situações limítrofes nas quais indicar se a ação foi completamente incapaz de alcançar o resultado almejado, ou apenas de modo relativo, torna-se uma tarefa complexa.

Segundo a doutrina, meio absolutamente ineficaz é aquele inapto à concretização do resultado típico por sua própria natureza. Em outras palavras, o meio é completamente inidôneo quando incapaz de criar um nexo causal efetivo entre a conduta e o fim desejado pelo autor. Por outro lado, fala-se em ineficácia relativa quando o meio utilizado é normalmente apto à consumação do delito, a qual não ocorre somente devido às circunstâncias concretas em que a conduta é praticada, ou então porque o meio foi empregado de maneira inadequada.

Cumpre registrar que a expressão “meio” não pode ser entendida apenas como o instrumento utilizado pelo agente. Trata-se de termo muito mais amplo, que envolve o próprio comportamento do autor, isto é, a maneira por ele escolhida para alcançar o resultado típico. Deve-se ter em vista que os meios selecionados para a execução, embora considerados idôneos pelo agente, nem sempre são efetivamente aptos à concretização do delito, caracterizando o crime impossível.

Ressalte-se que a inidoneidade, tanto na forma absoluta quanto na relativa, não decorre exclusivamente de aspectos intrínsecos dos meios empregados, podendo advir de causas alheias ao comportamento do autor. Dessa maneira, a eficácia causal deve ser sempre aferida por intermédio do confronto das características dos meios utilizados em relação às peculiaridades da situação concreta na qual a conduta se desenvolveu.

Além da hipótese de completa ineficácia dos meios empregados, o crime impossível também se configura em caso de absoluta impropriedade do objeto, ou seja, quando este não é passível de sofrer o resultado desejado pelo autor da conduta. Em tais situações, a consumação do delito é inviável em razão de circunstâncias desconhecidas pelo agente, as quais tornam o objeto da ação incapaz de ser ofendido.

Assim como a ineficácia dos meios empregados pelo agente, a impropriedade do objeto da conduta pode ser absoluta ou apenas relativa. A primeira hipótese ocorre quando aquele é inexistente desde o início da execução ou desprovido de alguma característica essencial à concretização do delito. Em tais casos, constata-se a ocorrência do crime impossível, restando imperativo o reconhecimento da atipicidade da conduta. Isso porque o bem jurídico protegido não foi colocado em perigo, requisito essencial à punição do comportamento. A impropriedade relativa, por outro lado, configura-se quando circunstâncias eventuais impedem que o objeto da ação seja ofendido, inviabilizando a produção do resultado típico. Em tais situações, não se verifica a atipicidade do comportamento, devendo ser repreendido o delito tentado.

Ainda no que concerne à tentativa inidônea, merece destaque a figura do agente provocador, hipótese na qual alguém estimula outra pessoa a cometer um crime, ao mesmo tempo em que se prepara para surpreendê-la na execução do delito, impossibilitando a sua consumação. Embora parte da doutrina defenda tratar-se de crime putativo, ao argumento de que a prática da conduta delituosa ocorreria apenas no imaginário do autor, é mais correto inserir a figura do agente provocador na esfera do crime impossível. Isso porque, em tal situação, o bem jurídico é protegido de maneira intensa, possibilitando apenas que o agente seja surpreendido em flagrante. De qualquer forma, não se pode olvidar que as circunstâncias do caso concreto devem ser sempre levadas em consideração. Dessa maneira, se o delito se consumar mesmo com toda a proteção dedicada ao bem jurídico, obviamente não se estará diante de hipótese de crime impossível. Nesse sentido ensina MARCELO SEMER:

“No âmbito do crime impossível, onde nos parece mais acertado localizar a hipótese do agente provocador, a ineficácia do meio ou a impropriedade do objeto tornam sempre atípica a tentativa, seja oriunda de um flagrante preparado ou meramente esperado. Tanto a provocação do crime quanto a preparação do flagrante podem tornar – e em regra tornam – inviável a consumação e, por conseguinte, inidônea a ação, ainda que os impeditivos sejam causados pelo excessivo acautelamento do bem pela vítima ou agentes policiais” (2002, p. 92).

3. Tentativa em face de mecanismos de vigilância

Como já mencionado, a tentativa inidônea se configura quando o meio empregado no comportamento é absolutamente ineficaz, assim como nas hipóteses em que o objeto da ação é totalmente impróprio, inviabilizando a produção do resultado típico almejado pelo autor. Em tais situações, resta imperativo o reconhecimento da atipicidade da conduta, uma vez que a intervenção penal, no contexto do Estado Democrático de Direito, somente se justifica quando um bem jurídico relevante tiver sido lesado ou efetivamente exposto a perigo. Dessa forma, deve-se reconhecer que a presença de dispositivos de segurança eficientes no local da prática da conduta interfere tanto na idoneidade do meio utilizado pelo agente quanto na do objeto da ação, como será evidenciado pelos argumentos tecidos a seguir.

3.1. Defeito intrínseco do meio

Ao escolher a maneira como praticará a conduta delituosa, o agente seleciona meios que acredita serem aptos a alcançar o resultado típico desejado. Por exemplo: para furtar roupas de uma loja de departamentos, é possível que o sujeito ativo decida esconder as mercadorias em uma bolsa que carrega consigo. Evidentemente, a retirada dos itens das araras e seu depósito no interior da sacola ocorrerão quando ninguém estiver por perto, de modo que o autor da ação sinta-se seguro de que não é observado.

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No entanto, o que parece ser um meio capaz de produzir o resultado típico torna-se completamente inútil diante de um sistema de vigilância plenamente eficaz. Caso a loja do exemplo acima possua câmeras de vídeo estrategicamente posicionadas, cujas imagens sejam transmitidas em uma sala ocupada por um funcionário encarregado de vigiar a movimentação dos clientes, a conduta criminosa será facilmente observada. Dessa maneira, os seguranças do estabelecimento serão prontamente acionados para que interceptem o autor do delito.

Pode ocorrer, ainda, que algum dos empregados da loja considere suspeitas as atitudes do agente, prestando atenção na conduta delituosa desde o começo. Com isso, a ação será rapidamente interrompida no momento em que for constatada a intenção do autor de subtrair as roupas. Dessa forma, a consumação do furto é inviável, uma vez que o comportamento do sujeito ativo foi vigiado desde o seu início, com o exato propósito de impedir a concretização do resultado típico.

Também é possível que a loja em questão atrele, às peças de roupa expostas à venda, etiquetas magnéticas retiradas somente após a efetuação do pagamento. A utilização de tais dispositivos permite que, caso alguém decida sair do estabelecimento sem pagar pelas mercadorias, os sensores posicionados junto às saídas acionem um alarme, chamando a atenção dos seguranças. Dessa maneira, se por algum motivo não tiver levantado a suspeita de nenhum dos funcionários do local, e também não tenha sido flagrado pelas câmeras de vídeo instaladas, o agente será surpreendido ao sair da loja pelo alarme acionado graças às etiquetas magnéticas. A pronta ação da equipe de segurança interromperá a conduta delituosa, cuja consumação já era impossível desde o seu início, em razão da vigilância constante e eficaz.

O exemplo mencionado acima envolve um estabelecimento comercial equipado com diversos mecanismos de segurança, em perfeito funcionamento e capazes de proporcionar uma vigilância plena e eficiente. Em tais hipóteses, os dispositivos de monitoramento tornam o meio empregado pelo autor da conduta completamente inidôneo, incapaz de atingir a consumação do delito. O sujeito ativo não tem como concretizar o resultado típico diante de vigilância tão eficaz, não havendo qualquer dano ou mesmo risco de lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal.

Não se pode ignorar a possibilidade de que, ciente da presença de mecanismos de segurança no local, o agente utilize, na prática delitiva, um meio cujo objetivo seja burlar o sistema de vigilância. Ainda em relação ao exemplo do furto de roupas na loja de departamentos, pode ser que o indivíduo que deseja levar as peças sem pagar por elas utilize um estilete para arrancar as etiquetas magnéticas antes de esconder as mercadorias em sua bolsa. No entanto, tal atitude não necessariamente viabiliza a consumação do delito, uma vez que é necessário analisar em conjunto todas as circunstâncias pertinentes ao caso. Daí a importância de que o magistrado analise o caso concreto ao julgar a ação penal, de modo a evitar decisões arbitrárias.

Cumpre ainda observar que, embora o exemplo acima faça referência apenas ao crime de furto (art. 155 do Código Penal), a presença de aparatos de vigilância plenamente eficazes interfere na idoneidade dos meios empregados na prática de diversos outros delitos, inviabilizando a produção do resultado típico. É o caso, por exemplo, do contrabando ou descaminho (art. 334 do Código Penal) e do tráfico ilícito de entorpecentes (art. 33 da Lei 11.343/06), como será demonstrado no item 4 deste artigo.

3.2. Impossibilidade objetiva de lesão no bem jurídico

Os mecanismos de segurança, quando eficazes, protegem o bem jurídico tutelado de maneira tão eficiente que se torna impossível ofendê-lo ou mesmo colocá-lo em perigo efetivo. Dessa forma, tendo-se em vista que a vigilância torna o bem jurídico intangível, deve-se reconhecer a atipicidade da conduta, uma vez que comportamentos absolutamente desprovidos de lesividade devem ser excluídos do âmbito de punição do Direito Penal.

Cumpre observar que o bem jurídico resguardado e o objeto material da conduta não são sinônimos. Com efeito, o primeiro consiste em um valor considerado pelo Direito Penal como digno de proteção, enquanto o objeto material refere-se ao indivíduo ou à coisa sobre a qual incide o comportamento do sujeito ativo. Quanto à importante distinção entre os dois conceitos, assim assevera JUAREZ TAVARES:

“O bem jurídico, por seu turno, não se confunde com o objeto da ação, pois não pode ser entendido no sentido puramente material, como se fosse uma pessoa ou uma coisa, mas no sentido da característica dessa pessoa e de suas relações, isto é, como valor decorrente da vida individual e social, indispensável à sua manutenção e ao seu desenvolvimento” (2003, p. 202).

No entanto, embora não se confundam, o objeto da ação e o bem jurídico protegido pela norma penal estão intimamente relacionados. Especialmente nos crimes materiais, o objeto da conduta faz uma referência direta ao bem jurídico tutelado. Quando aquele é atingido de alguma forma pelo comportamento do agente, o bem jurídico que se busca resguardar também é alcançado, sendo efetivamente lesado ou apenas exposto a perigo. Nesse sentido ensina MARCELO SEMER:

“Ressalte-se que nem toda vulneração do objeto será necessariamente uma lesão ao bem – o princípio da insignificância é um exemplo –, ao passo que nem toda lesão ao bem depende de uma vulneração a objeto da ação – caso dos crimes de mera conduta. Ainda que não se confundam, curial se observar que em certos crimes – como os materiais, o objeto da ação vem a ser a referência concreta do bem jurídico idealizado. Sem a afetação do objeto que o representa não se perfaz a lesão ao bem jurídico” (2002, p. 107).

Dessa maneira, resta bem demonstrada a relação direta existente entre o objeto da ação e o bem jurídico tutelado pela norma penal. Com isso, torna-se evidente que, ao proteger de maneira plena o objeto material da conduta, tornando-o absolutamente impróprio à produção do resultado típico, o sistema de vigilância eficiente acaba por acautelar também o bem jurídico resguardado pela figura típica. Em outros termos, os dispositivos de segurança totalmente eficazes acabam por impedir que o bem jurídico protegido seja ofendido ou mesmo submetido a situação de risco. Conclui-se, portanto, que os aparatos de vigilância, além de tornarem inútil o meio empregado pelo agente, também interferem na idoneidade do objeto da ação, restando plenamente configurado o crime impossível.

3.3. Extensão, qualidade e eficácia dos dispositivos de segurança

É fundamental ter em vista que a configuração da tentativa absolutamente inidônea em decorrência de aparatos de vigilância exige que estes sejam extensos, plenos e eficazes. É evidente que, caso os mecanismos de segurança possuam falhas, pouca amplitude, ou possam ser facilmente burlados, a consumação do delito será viável, apenas não ocorrendo por circunstâncias alheias à vontade do agente, não havendo que se falar na hipótese do artigo 17 do Código Penal brasileiro, mas sim em tentativa punível.

Isso ocorre porque, quando os dispositivos de segurança não são suficientemente aptos a obstaculizar a consumação do delito, o meio empregado pelo agente pode ser eficaz mesmo diante da vigilância. Também é possível que, embora interfiram na idoneidade do meio adotado pelo agente, os aparatos de segurança o tornem apenas relativamente ineficaz à produção do resultado, sem inviabilizar a consumação do crime de maneira absoluta. Em tais casos, a tentativa é idônea e deve haver a punição do autor.

A falta de qualidade dos aparatos de segurança também torna o objeto da conduta passível de ofensa ou exposição a perigo pela ação do agente do delito. Em outras palavras, a vigilância ineficiente não acautela o objeto da ação de maneira plena, sendo impossível afirmar sua total impropriedade. Em tais situações, o comportamento do autor pode atingir o bem jurídico tutelado, ainda que somente por meio da exposição deste a situação de risco. Assim, tendo-se em vista que o crime tentado cometido sob a vigilância de mecanismos ineficientes de segurança é capaz de colocar em perigo o objeto da ação, atingindo o bem jurídico ao qual faz referência, constata-se que não ocorre crime inviável, mas sim tentativa punível, ainda que haja inidoneidade relativa.

Ressalte-se a importância de que os julgadores levem em conta que a vigilância plena, extensa e eficaz não corresponde a um sistema ideal de monitoramento. Com efeito, como qualquer outro produto da ação humana, os aparatos de vigilância não estão imunes a falhas. No entanto, é totalmente possível que os mecanismos de segurança adotados estejam em perfeita função no momento de um determinado fato, ou que a ação simultânea de diversos dispositivos e técnicas de vigilância inviabilize de maneira absoluta a consumação de um delito.

Ante o exposto, percebe-se a importância de que cada caso seja cuidadosamente analisado, de modo que o exame das circunstâncias fáticas possa demonstrar a extensão, a qualidade e a eficácia dos aparatos de vigilância presentes no local onde ocorreu a conduta delituosa. Em outras palavras, faz-se necessário reunir, ao longo da instrução criminal, provas acerca da eficiência dos dispositivos de segurança no dia e momento dos fatos. Embora aumente o trabalho do magistrado, a análise das circunstâncias fáticas é essencial, uma vez que reduz a arbitrariedade e possibilita decisões bem fundamentadas.

3.4. Vigilância, crime impossível e sentimento de impunidade

Determinados operadores do Direito entendem que o reconhecimento do crime impossível em decorrência de aparatos de vigilância pode incentivar a prática de delitos em locais equipados com mecanismos de monitoramento, levando o agente a crer que, caso seja surpreendido no curso da ação, não sofrerá consequências, uma vez que seu comportamento será considerado atípico. Confira-se, a título de exemplo, trecho do acórdão da Apelação Criminal nº 70027494194, julgada em 18/02/2009 pela Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

“Os sistemas de proteção existentes em lojas de departamentos, ainda que capazes de acompanhar desde o início a atividade criminosa, não são suficientes para impedir, na totalidade dos casos, a subtração de bens, e no caso, a acusada já havia retirado a etiqueta eletrônica dos produtos a serem subtraídos, não conseguindo sair do estabelecimento comercial por ser flagrada em atitude suspeita por um dos funcionários.[…]

Acrescenta-se, ainda, que no caso de se acolher a tese esposada na decisão apelada, estar-se-á abrindo sérios precedentes, inclusive no sentido de estar descriminalizando-se a tentativa de furto em supermercados e lojas que possuem vigilância pessoal, de modo a incentivar práticas deste tipo, incutindo maior sensação de impunidade, porquanto, cada vez que alguém for surpreendido praticando delitos desta natureza, imediatamente, levantará a bandeira do chamado crime impossível” (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 04-05).

A noção de que o agente deve ser repreendido por uma conduta cuja consumação é impossível, como é o caso da tentativa inútil em decorrência de mecanismos de segurança eficazes, possui inegável relação com a ideia de que qualquer manifestação contrária à ordem jurídica deve ser punida. No entanto, não se pode olvidar que, no Estado Democrático de Direito, a lei penal não deve preocupar-se com condutas incapazes de lesar um bem jurídico ou mesmo de colocá-lo em perigo. Com efeito, a intervenção penal é um instrumento subsidiário que só deve ser utilizado quando outras formas de coerção não se mostrarem eficientes, e cujo objetivo é proteger bens jurídicos relevantes de ataques significativos.

Além disso, deve-se levar em conta que uma expansão exagerada do ordenamento jurídico-criminal não é benéfica para a sociedade, uma vez que a repressão penal não ataca o problema da criminalidade em suas raízes, sendo insuficiente para conferir maior segurança à coletividade. Logo, inexistem justificativas para que seja aceita a punição de uma conduta cuja consumação seria inviável, como é o caso da tentativa inidônea em decorrência de aparatos de vigilância eficazes, não havendo que se falar em combate ao sentimento de impunidade.

4. Casos práticos

Os efeitos da influência de mecanismos de segurança eficientes sobre a idoneidade de determinadas condutas tornam-se mais claros por meio da análise de casos concretos. Como já demonstrado no presente artigo, a apreciação das circunstâncias fáticas é imprescindível, uma vez que permite a verificação da qualidade, extensão e eficácia dos dispositivos de vigilância presentes no local dos fatos. Dessa forma, torna-se possível avaliar a idoneidade do meio empregado, bem como do objeto da ação.

Diante disso, foram selecionados três julgados significativos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), os quais envolvem crimes comumente praticados na presença de mecanismos de vigilância: furto (art. 155 do Código Penal), contrabando ou descaminho (art. 334 do mesmo diploma legal) e tráfico ilícito de entorpecentes (art. 33 da Lei 11.343/06). A análise cuidadosa de cada um dos precedentes escolhidos possibilitará uma demonstração mais clara da influência dos dispositivos de segurança sobre a idoneidade da conduta.

4.1. Furto

O crime de furto (art. 155 do Código Penal) busca proteger a posse, a propriedade e mesmo a detenção de coisas móveis, isto é, de objetos capazes de serem deslocados de um local para outro. É essencial que a coisa subtraída seja alheia, ainda que seu proprietário, possuidor ou detentor não possa ser identificado. Os objetos que não pertencem a nenhuma pessoa, por outro lado, não constituem objeto de furto. É o caso, por exemplo, da res derelicta (coisa abandonada por seu dono), da res nullius (que nunca pertenceu a alguém) e, em regra, da res commune omnium (utilizada por todos, como a luz do sol e o ar).

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O furto é crime comum, o que significa que pode ser praticado por qualquer indivíduo, à exceção do proprietário da coisa. O sujeito passivo do delito, por sua vez, pode ser o dono do objeto, seu mero possuidor ou “[…] mesmo o detentor da coisa alheia móvel, desde que tenha algum interesse legítimo sobre a coisa subtraída” (BITENCOURT, 2011a, p. 33, grifo do autor). Trata-se, ainda, de crime material, comissivo, de forma livre e que pode se desenvolver em diversas etapas. É também delito de dano, consumando-se apenas quando o bem jurídico protegido, consubstanciado no patrimônio da vítima, for efetivamente lesado.

A conduta deve ser dolosa, não havendo a tipificação do furto culposo. Em outras palavras, exige-se que o agente tenha a intenção consciente de subtrair objeto móvel que saiba pertencer a outrem. Vale lembrar que o dolo deve abranger todas as elementares da figura típica, de modo a afastar a hipótese do artigo 20, caput, do Código Penal. O tipo subjetivo do furto também é composto por um especial fim de agir, o qual consiste na finalidade de se apropriar do objeto subtraído, para si mesmo ou para outra pessoa. Caso o agente não aja com o fim específico de apossamento definitivo, isto é, com animus apropriativo, o crime não se configura.

Cumpre observar que a forma tentada do delito de furto é plenamente possível, ocorrendo sempre que o iter criminis for interrompido, por razões alheias à vontade do agente, antes que a coisa móvel subtraída seja retirada do âmbito de disponibilidade do ofendido, passando à posse pacífica do autor do crime. Vale lembrar, contudo, que a tentativa não é punida nas hipóteses de ineficácia absoluta do meio empregado e de completa impropriedade do objeto da ação, como ocorre quando o furto tentado ocorre em local equipado com aparatos de vigilância plenamente eficazes. Tal questão foi abordada no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.132.592/MG, de relatoria do Ministro Jorge Mussi, julgado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça em 20/09/2011. Segue, abaixo, transcrição da ementa do referido precedente judicial:

“TENTATIVA DE FURTO. ESTABELECIMENTO COMERCIAL. SISTEMA DE VIGILÂNCIA. CRIME IMPOSSÍVEL. INOCORRÊNCIA. PRECEDENTES DO STJ. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.

1. Conforme jurisprudência desta Corte, o fato da acusada estar sendo vigiada, por sistema de segurança do estabelecimento comercial, não impede, por inteiro, a consumação do delito patrimonial, afastando-se, portanto, a figura do crime impossível.

2. Agravo regimental a que se nega provimento” (AgRg no REsp 1132592/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 20/09/2011, DJe 29/09/2011).

Na situação em análise, a agravante tentou furtar roupas expostas à venda em um hipermercado, arrancando as etiquetas magnéticas atreladas às peças com as mãos e os dentes, para logo em seguida esconder as mercadorias em sua bolsa. No entanto, a acusada foi flagrada pelo sistema de câmeras de vídeo instalado no local, cujas imagens eram continuamente observadas por um dos funcionários do estabelecimento. Assim que a intenção criminosa da agente foi constatada, suas ações passaram a ser cuidadosamente monitoradas, possibilitando que os seguranças do hipermercado a abordassem no estacionamento do local.

Condenada pelo juízo singular, a acusada apelou da sentença e foi absolvida pela Corte estadual. Contra o acórdão que assim decidiu, a acusação interpôs recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça. Por meio de decisão monocrática, o relator deu provimento à irresignação. Inconformada, a defesa interpôs agravo regimental, pugnando pelo reconhecimento do crime impossível. No entanto, negou-se provimento ao referido recurso.

Ao contrário do que entendeu a Quinta Turma do STJ, o caso em exame não apresenta hipótese de tentativa relativamente inidônea, mas sim de crime impossível. Extrai-se do inteiro teor do acórdão que os aparatos de vigilância instalados no hipermercado, consistentes em sistema eficiente de câmeras de vídeo, cujas imagens eram acompanhadas de modo contínuo por funcionário do local, bem como em seguranças estrategicamente posicionados, tornaram categoricamente inviável a consumação do delito.

Com efeito, os dispositivos de vigilância presentes no estabelecimento comercial interferiram de maneira absoluta na idoneidade da conduta. O meio utilizado pela agente na prática delitiva tornou-se absolutamente ineficaz em face do monitoramento constante exercido pelas câmeras de vídeo instaladas no local, as quais produziram imagens de qualidade, atentamente observadas por um dos funcionários da loja. Além disso, o sistema de segurança resguardou os produtos expostos à venda de maneira plena, fazendo com que se tornassem objetos completamente impróprios à concretização do resultado típico. Dessa forma, verifica-se que o bem jurídico tutelado esteve completamente protegido, não tendo sofrido qualquer ofensa ou mesmo exposição a perigo. Logo, a absolvição da acusada deveria ter sido mantida pela Corte Superior, em razão da atipicidade de sua conduta.

Cabe ressaltar, ainda, que o fato de os seguranças do hipermercado terem interceptado a agente apenas no estacionamento do local não afasta a inidoneidade da tentativa praticada. Isso porque os funcionários de estabelecimentos comerciais costumam ser treinados para abordar os suspeitos de furto somente nas saídas das lojas, de modo a evitar tumultos no interior destas, haja vista que qualquer agitação pode assustar os demais clientes e prejudicar as vendas.

Ante o exposto, resta evidente que a tentativa de furto pode tornar-se completamente inidônea em face da presença de aparatos e técnicas de vigilância eficientes no local dos fatos. É necessário, contudo, avaliar as particularidades do caso concreto de maneira meticulosa, a fim de que se possa constatar com certeza suficiente que os mecanismos de vigilância interferiram de maneira absoluta na idoneidade do meio empregado e do objeto da ação, tornando impossível a consumação do delito.

4.2. Contrabando ou descaminho

O artigo 334 do Código Penal brasileiro apresenta duas figuras típicas distintas, mas que produzem efeitos jurídico-penais equivalentes por opção político-criminal. O contrabando consiste na importação ou exportação de produto proibido, enquanto o descaminho ocorre quando o autor do delito deixa de pagar direito ou imposto decorrente da entrada ou saída de mercadorias permitidas do território nacional. Ambas as figuras típicas buscam proteger a Administração Pública. Com efeito, deve-se reconhecer que a importação e a exportação de artigos proibidos prejudicam interesses nacionais, especialmente de cunho econômico. Além disso, o delito previsto no artigo 334 do Código Penal também resguarda o erário público, o qual é lesado pelo não pagamento de direitos e tributos devidos em razão da entrada ou saída de mercadorias permitidas do país.

O crime de contrabando se consuma quando os produtos proibidos entram no território nacional, no caso de importação, ou quando saem dos limites alfandegários, na hipótese de exportação. Já o descaminho, quando ocorre por meio da aduana, tem seu momento consumativo com a liberação dos objetos sem o pagamento dos direitos e tributos devidos. No entanto, se a entrada ou saída das mercadorias ocorrer em outro lugar que não a alfândega, a infração se consuma assim que os produtos entrarem no território nacional ou saírem dele. De qualquer forma, caso a prática do contrabando ou descaminho aconteça por meio da aduana, a conduta apenas se consuma com a liberação dos produtos e sua entrega ao destinatário.

Ressalte-se que a forma tentada é admitida no delito previsto no artigo 334 do Código Penal, uma vez que se trata de crime cuja execução pode ser fracionada em duas ou mais etapas e interrompida antes da consumação. Com efeito, é plenamente possível que o agente tente importar ou exportar artigos proibidos, ou mesmo que busque entrar ou sair do território nacional com produtos permitidos sem pagar os direitos e impostos devidos, sendo impedido por circunstâncias inesperadas. Assim assevera Cezar Roberto Bitencourt:

“A tentativa é teoricamente admissível, pois é perfeitamente possível fracionar o iter criminis tanto do contrabando quanto do descaminho. Em termos bem esquemáticos, é perfeitamente possível tentar importar ou exportar mercadoria proibida, ou tentar liberar mercadorias permitidas sem pagar as correspondentes obrigações alfandegárias, sendo inviabilizada por circunstâncias alheias à vontade do agente.

No entanto, não nos parece possível reconhecer a tentativa de contrabando ou descaminho quando a mercadoria é apreendida na aduana, mesmo antes de transpor as barreiras alfandegárias. Poder-se-á estar, inclusive, diante de um crime impossível, dependendo das circunstâncias, ou, ainda, de meros atos preparatórios. Acreditamos que confisco e multa, no plano administrativo, resolvem satisfatoriamente a infração fiscal” (2011b, p. 266, grifos do autor).

A tentativa de contrabando ou descaminho pode ser completamente inidônea. Isso ocorre, por exemplo, quando a aduana é equipada com aparatos e técnicas eficientes de vigilância, com a fiscalização de todas as mercadorias importadas ou exportadas e de seus comprovantes de pagamento de tributos. É imprescindível analisar cuidadosamente todas as peculiaridades do caso concreto, de modo a verificar de que maneira ocorria a fiscalização alfandegária. Caso a vigilância seja constante, eficaz e tenha incidência sobre todas as importações e exportações, a configuração do crime impossível resta evidente. Dito isso, passa-se ao exame do Habeas Corpus nº 120.586/SP, de relatoria do Ministro Nilson Naves, julgado pela Sexta Turma do STJ em 05/11/2009, cuja ementa foi redigida da seguinte maneira:

“Contrabando (condenação). Bolsas e porta-maquiagens (marca contrafeita). Território nacional (ingresso). Crime (consumação/tentativa). Pena-base (cálculo). Habeas corpus (correção da pena).

1. Há vozes, e de bom tempo, por exemplo, a de Fragoso nas "Lições", segundo as quais, ‘se a importação ou exportação se faz através da alfândega, o crime somente estará consumado depois de ter sido a mercadoria liberada pelas autoridades ou transposta a zona fiscal’.

2. Assim, também não há falar em crime consumado se as mercadorias destinadas aos pacientes foram, no caso, apreendidas no centro de triagem e remessas postais internacionais dos correios.[…]

7. Ordem concedida para se reduzir a pena e para se substituir a privativa de liberdade por restritiva de direitos” (HC 120586/SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 05/11/2009, DJe 17/05/2010 RT vol. 898, p. 562).

No caso em tela, os produtos falsificados que os pacientes buscavam introduzir no país foram apreendidos pela fiscalização aduaneira. Após observarem a elevada quantidade de bolsas e porta-maquiagens importados por meio de apenas duas remessas postais vindas da China, os fiscais desconfiaram da autenticidade das mercadorias e entraram em contato com a representante brasileira da grife internacional que supostamente fabricaria os produtos. Constatada a falsificação dos objetos, os pacientes foram denunciados pelo crime consumado de contrabando.

Superadas as devidas etapas processuais, ambos os acusados foram condenados a dois anos de reclusão em regime semiaberto. A sentença foi posteriormente confirmada pela Corte estadual em sede de apelação. Em seguida, foi impetrada ordem de habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, por meio da qual a defesa alegou que os acusados eram submetidos a constrangimento ilegal, uma vez que o delito a eles imputado não teria atingido a sua consumação. Tal entendimento foi acolhido pela maioria da Sexta Turma do STJ, que reconheceu a ocorrência do crime em sua forma tentada.

No caso em análise, a vigilância constante e eficaz não restou evidenciada. Com efeito, não foi demonstrado que a fiscalização aduaneira incidia sobre a totalidade das importações, de modo a tornar inviável a consumação do delito. Extrai-se do inteiro teor do acórdão que os fiscais apenas verificaram a procedência das mercadorias proibidas em razão da alta quantidade de produtos enviados da China por meio de somente duas remessas postais. Dessa forma, constata-se que o Superior Tribunal de Justiça decidiu corretamente ao reconhecer a tentativa idônea de contrabando.

Para que se configure o crime impossível, é necessário que a vigilância incidente sobre a conduta seja plena, abrangente, constante e eficaz. Isso não ocorre, por exemplo, quando a regularidade das importações e exportações é fiscalizada por amostragem. Em tais hipóteses, os fiscais da aduana verificam apenas alguns dos produtos que entram ou saem do país, e não a sua totalidade. Assim, o meio empregado pelo agente não se torna absolutamente ineficaz, também não havendo que se falar em objeto totalmente impróprio. Com isso, resta demonstrada, novamente, a importância da análise das circunstâncias fáticas nas quais a conduta se desenvolveu.

4.3. Tráfico ilícito de entorpecentes

O crime de tráfico de drogas, atualmente disciplinado no artigo 33 da Lei 11.343/06, é um delito de ação múltipla, haja vista que contém dezoito núcleos verbais. Isso significa que, caso o sujeito ativo pratique, nas mesmas circunstâncias concretas e de maneira sucessiva, mais de uma das ações contempladas no tipo objetivo, será responsabilizado por crime único. Assim, se o agente trouxer a droga consigo e logo em seguida a alienar para outro indivíduo, será processado apenas pelo delito simples de tráfico de drogas. No entanto, se faltar proximidade entre as condutas praticadas, restará configurado o concurso material ou continuado de crimes, a depender da situação concreta.

Apenas há punição pelo delito quando seu autor age de maneira dolosa, ou seja, com a intenção consciente de praticar uma ou mais das ações contempladas pelo tipo objetivo. Cumpre observar que o crime de tráfico de drogas se consuma com a realização de qualquer um de seus verbos nucleares, sendo que alguns deles são permanentes, hipóteses nas quais o momento consumativo do delito se prolonga no tempo. Assim assevera Luiz Flávio Gomes:

“Consuma-se o crime com a prática de qualquer um dos núcleos trazidos pelo tipo, não se exigindo efetivo ato de tráfico. Deve ser lembrado que algumas modalidades são permanentes, protraindo o seu momento consumativo no tempo e no espaço (por exemplo, expor à venda, trazer consigo, manter em depósito, guardar etc.). A multiplicidade de condutas incriminadas parece inviabilizar a tentativa.[…]

Há, no entanto, corrente minoritária em sentido contrário” (2011, p. 199, grifo do autor).

Embora a multiplicidade de condutas descritas no artigo 33 da Lei de Drogas, assim como o caráter permanente de algumas delas, pareça inviabilizar a tentativa, deve prevalecer o entendimento de que a forma tentada do crime é viável, desde que (i) seja possível interromper o iter criminis antes da consumação e (ii) o agente esteja praticando apenas um dos núcleos verbais abarcados pelo tipo objetivo. Isso ocorre, por exemplo, quando o agente busca realizar a exportação de droga adquirida por outro indivíduo, sem trazê-la consigo ou mantê-la em depósito. Mais uma vez, faz-se necessário avaliar a situação concreta, sendo impraticável afirmar que a forma tentada do delito é inadmissível em qualquer hipótese.

A configuração da tentativa inidônea também pode ocorrer no tráfico ilícito de entorpecentes. O crime impossível se caracteriza, por exemplo, quando a ação do agente é submetida à influência de aparatos e técnicas eficientes de segurança, tais como a vigilância exercida por um policial disfarçado que atua em ponto de venda de drogas. Com efeito, a Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal determina que “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. Assim, se a conduta delituosa tiver sido provocada pelo agente infiltrado, cujo único objetivo era flagrar o autor do delito em sua execução, resta configurado o crime impossível.

A possível ocorrência de flagrante preparado em razão da simulação de compra de drogas por policiais disfarçados foi uma das principais questões abordadas no julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 1.956/SP, de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 21/06/2011 pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Segue, abaixo, transcrição da ementa:

“PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AFRONTA AO ART. 17 DO CP. FLAGRANTE PREPARADO. CRIME IMPOSSÍVEL. INOCORRÊNCIA. ACÓRDÃO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. SÚMULA 83/STJ. NEGATIVA DE VIGÊNCIA AOS ARTS. 33, 35 E 40, I, TODOS DA LEI Nº 11.343/06. TRANSNACIONALIDADE DO DELITO. OFENSA AO ART. 59 DO CP. DOSIMETRIA. REEXAME FÁTICO E PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. REQUISITOS DA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E OFENSA À AMPLA DEFESA. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE DISPOSITIVO LEGAL VIOLADO. RECURSO ESPECIAL COM FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. Não há falar em flagrante preparado, pois o crime tipificado no art. 33 da Lei 11.343/06 se consuma com a prática de qualquer uma das diversas condutas previstas no dispositivo, no caso, 'ter em depósito' e 'transportar', de caráter permanente, preexistentes à atuação policial.

2. A análise acerca da transnacionalidade do delito, bem como da dosimetria, demandaria aprofundado exame do acervo probatório dos autos, inviável na presente via recursal.

3. Mostra-se deficiente a fundamentação quando o recorrente, a despeito de trazer sua insurgência, não aponta qual norma teria sido violada. Inteligência do enunciado 284 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.

4. Agravo regimental a que se nega provimento” (AgRg no AREsp 1956/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 01/07/2011).

No caso em questão, o agravante alegou que as decisões das instâncias de origem ofenderam o artigo 17 do Código Penal, uma vez que não foi reconhecido o crime impossível em decorrência do flagrante preparado. Extrai-se do inteiro teor do acórdão que o acusado teria sido abordado por policiais disfarçados que simularam negociações para a compra de drogas. Antes que o agravante efetivasse a venda dos entorpecentes, no entanto, os agentes infiltrados o prenderam em flagrante. Em seu voto, assim consignou a Ministra relatora:

“Deste modo, conforme salientado pela Corte recorrida, observa-se que o delito descrito no artigo 33 da Lei de Drogas já havia se consumado com a subsunção da conduta ao tipo previsto naquele dispositivo legal, tendo em vista a realização dos verbos nucleares “ter em depósito”, “guardar” ou “transportar” entorpecentes. Assim, conforme entendimento já sedimentado nesta Corte, não há que se falar em flagrante preparado, se o comportamento do policial não induziu à prática do delito narrado, porquanto já teria ocorrido em momento anterior à autuação do acusado” (BRASIL, 2011, p. 05-06).

Depreende-se do excerto acima transcrito que a Turma julgadora fundamentou sua decisão no fato de que o crime de tráfico já havia se consumado antes da ação dos agentes infiltrados. Com efeito, no caso em análise, o acusado e sua corré já haviam praticado algumas das condutas vedadas pelo artigo 33 da Lei 11.343/06 antes da investida dos policiais disfarçados. No entanto, como já mencionado, é possível que o autor realize apenas um dos núcleos verbais elencados no referido dispositivo legal. Caso o indivíduo abordado pelos agentes infiltrados concordasse em vender droga adquirida e mantida em depósito por outra pessoa, estaria realizando apenas uma das ações proibidas pelo delito de tráfico ilícito de entorpecentes. Dessa forma, a concretização do crime não seria anterior à influência dos policiais disfarçados, os quais teriam exercido vigilância eficiente sobre a conduta, interferindo em sua idoneidade e impossibilitando a sua consumação.

Conclusão

Ante o exposto, constata-se que os aparatos e técnicas de vigilância podem interferir de maneira absoluta na idoneidade da tentativa praticada em sua presença. De fato, quando eficientes, os mecanismos de segurança tornam o meio empregado pelo agente completamente incapaz de produzir o resultado típico. Isso ocorre porque os meios utilizados pelo agente não conseguem burlar um sistema de vigilância intenso, amplo, eficaz e em pleno funcionamento.

Conclui-se também que a presença de dispositivos eficientes de vigilância torna o objeto da conduta totalmente impróprio à concretização do delito, uma vez que a proteção intensa e contínua à qual é submetido o torna intangível. Dessa forma, observa-se que, na tentativa praticada em face de aparatos de segurança eficazes, inexiste qualquer lesão ou mesmo risco de ofensa ao bem jurídico tutelado. Com efeito, a consumação do delito é impossível desde o início de sua execução. Assim, resta imperativo o reconhecimento da atipicidade do comportamento, não havendo que se falar em sensação de impunidade, uma vez que o Direito Penal não deve se ocupar de condutas inócuas.

Ressalte-se, contudo, a importância da análise do caso concreto. Isso porque, para que interfiram de maneira absoluta na idoneidade da ação perpetrada pelo agente, os equipamentos e técnicas de monitoramento devem possuir grande extensão, além de estarem funcionando adequadamente. Em outras palavras, devem ser plenamente eficazes. O exame da situação fática é indispensável para que o julgador possa aferir se os aparatos de vigilância presentes no local dos fatos eram mesmo eficientes, ou se possuíam falhas aptas a tornar o comportamento do autor apenas relativamente inidôneo. Vale destacar que um sistema de segurança pleno não equivale a um monitoramento ideal, perfeito, o qual jamais existirá. Para tornar impossível a concretização do delito, basta que os aparatos de vigilância funcionem corretamente e acautelem o bem jurídico de maneira constante, ampla e contínua.

Por fim, demonstrou-se que mecanismos de segurança eficientes podem inviabilizar de maneira absoluta a consumação de delitos como o furto (art. 155 do Código Penal), o contrabando e o descaminho (art. 334 do mesmo diploma legal) e o tráfico ilícito de entorpecentes (art. 33 da Lei 11.343/06). No entanto, reitera-se a importância de que as circunstâncias fáticas sejam cuidadosamente examinadas, de modo que se tenha certeza acerca da configuração do crime impossível e para que o magistrado possa decidir com segurança.

 

Referências
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Nota:
 
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Juarez Tavares, Pós-doutor em Direito Penal pela Universidade de Frankfurt am Main, Subprocurador-Geral da República. 


Informações Sobre o Autor

Fernanda Souza Carmo Nogueira

Acadêmica de Direito na Universidade de Brasília UnB


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