Teoria brasileira do habeas corpus

A
interpretação responsável, quanto a que o habeas
corpus
de 1891 abrigava todos os direitos fundamentais que tivessem na
liberdade individual o seu suporte, passou a ser universalmente conhecida como
“teoria brasileira do habeas corpus
e, indefinida no começo do século, estava plenamente amadurecida em sua segunda
década. Tornara-se induvidoso que, na sistemática pátria, o remédio tutelava
qualquer direito violado, desde que tivesse como pressuposto a liberdade de
locomoção.

Como
questiona e afirma Othon SIDOU:

“Que garante o habeas
corpus
? A resposta universal é: a liberdade de locomoção. Qual o
pressuposto objetivo, letra constitucional à vista, do remédio heróico? A
violência ou coação ilegal. E qual o seu pressuposto subjetivo? A ilegalidade
ou o abuso de poder, ou seja, a afronta a qualquer princípio
constitucionalmente consagrado. Desde pois que essa afronta se cometa em forma
de privação da liberdade de locomoção, caso é de habeas corpus”.[1]

Isto
posto, ver-se-á que direta ou indiretamente todos os princípios
constitucionalmente consagrados só podem estar presente tendo como pressuposto
a liberdade individual de ir, vir e permanecer em casa ou em lugares públicos,
sem qualquer vedação além das expressamente assentadas no próprio estatuto.

Observe-se
em simples exame, que para o exercício de qualquer direito coletivo, ainda
mesmo os que são mais ostensivamente civis, como os garantidores da
propriedade, ou os que são estritamente institucionais, como o direito ao
trabalho e à educação – para o exercício de qualquer desses direitos, a
condição básica é a liberdade pessoal, ou corporal do indivíduo.

Como
acentua o referido autor:

“O ponto culminante da teoria brasileira podemos
situá-lo na autodefesa de Pedro Lessa, nomeadamente tachado de contraditório
pelo Marechal Presidente da República, ao negar-se a cumprir o habeas corpus. A autodefesa do egrégio
Ministro, lida no Supremo Tribunal a 1º de abril de 1911, merece ser
vulgarizada, primeiramente porque mais que nos julgados é onde se elucida seu
ponto de vista, e em segundo lugar porque é mister esclarecer que Pedro Lessa e
Enéas Galvão, os juizes, ambos da Suprema Corte, forma sempre, ao lado de Ruy
Barbosa, o advogado, os artífices da teoria brasileira do habeas corpus, não havendo reticências nem sinafelas nem
modificações em seu pensar”.[2]

A primeira Constituição Republicana e a Reforma Constitucional de 1926

Quando
foi editada a Constituição de 1891, já o habeas
corpus
se encontrava incorporado ao ordenamento jurídico do País, cabendo à
Carta Republicana o papel de elevá-lo à natureza de norma constitucional,
imune, assim, à derrogação por via da lei ordinária. Eis como ficou redigido o
disposto: Art. 72, § 22. Dar-se-á habeas
corpus
sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer
violência, ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder.

Pelo que
se vê, ampla e indeterminada era a redação do parágrafo, ensejando o
entendimento – e o próprio Supremo chegou a adotá-lo – de que aí estava a
garantia de todos os direitos, a ponto de substituir a ação. E Ruy BARBOSA era
o grande defensor dessa doutrina, sustentando que na norma constitucional não
se cuidava especificamente de prisão ou constrangimento ilegal. “Fala-se –
dizia o patrono dos advogados brasileiros – amplamente, indeterminadamente,
absolutamente em coação e violência; de modo que, onde quer que surja, onde
quer que se manifeste a violência ou coação, por um desses meios, aí está
estabelecido o caso constitucional do habeas
corpus
”.[3]

Houve
opositores à tese de Ruy Barbosa, isto é, não se pretenderia com a regra da
Constituição amparar o gozo e o exercício de qualquer direito civil ou
político, ainda que líquido e certo, mas somente a garantia da liberdade
individual. Outros iam ainda mais longe, aceitando apenas a proteção da
liberdade de locomoção, o direito de ir e vir. Entre as duas posições estava a
do Ministro Pedro Lessa. Segundo ele, ante o pedido de habeas corpus, deveria o juiz indagar se a liberdade física era ou
não pressuposto indispensável para o exercício do direito invocado.

Diante
dessa situação o presidente à época, Artur BERNARDES, tomou a iniciativa de
propor ao Congresso, em mensagem datada de maio de 1924, que se adotasse “na
íntegra, o sistema norte-americano: restringir o habeas corpus ao seu papel de garantia da liberdade e instituir
outros remédios judiciários, para os outros casos a que o mesmo se aplica”.

A reforma
constitucional de 1926, cautela do Governo contra a aplicação da “teoria
brasileira do habeas corpus” fez
retornar ao padrão clássico assim enunciando: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar em iminente
perigo de sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua
liberdade de locomoção”.

O grande
desejo dos redatores do novo preceito manifestou-se sem rodeios: habeas corpus somente para retirar
alguém da prisão ilegal ou para evitar ameaça ilegal de prisão.

Diante da
nova norma constitucional a corrente liderada por Ruy Barbosa, tida como
amplamente liberal, culminou em ser derrotada, pelo menos diante dos dizeres do
texto constitucional, prevalecendo aquela encampada por Pedro Lessa. Logo a
partir dessa reforma constitucional o writ
of habeas corpus
não mais poderia ser instrumento tutelador de todos os
direitos líquidos, certos e incontestáveis, mas passou a ficar restrito às
hipóteses de liberdade de locomoção. Era essa, pelo menos, a vontade concreta
do legislador constituinte.

Porém, ao
que se vislumbra pelos dados históricos que devem ser aglutinados como um todo,
não obstante o legislador constituinte ter usado no texto constitucional
reformado a expressão liberdade de
locomoção
, para, dessa forma, não permitir que o habeas corpus fosse usado para a tutela de outras liberdades, a
verdade inconcussa é que a posição liberal continuou prevalecendo. Aliás, esse
comportamento até certo ponto era perfeitamente justificável, porquanto não
existia outro remédio outro remédio para a tutela das liberdades individuais,
exceto quando o conflito intersubjetivo de interesses tivesse como socorro as
vias ordinárias.

Outrossim,
como exposto por Florêncio de ABREU, a reforma constitucional ora em apreço
impossibilitou a concessão da ordem de habeas
corpus
aos casos políticos:

“Nenhum recurso judiciário é permitido para a
justiça federal ou local, contra a intervenção nos Estados, a decretação do
estado de sítio e a verificação dos poderes, o reconhecimento, a posse, a
legitimidade e a perda de mandato aos membros do Poder Legislativo ou
Executivo, federal ou estadual, assim como na vigência do estado de sítio, não
poderão os tribunais conhecer atos praticados em virtude dele pelo Poder
Legislativo ou Executivo”.[4]

Revolução de 1930

Sobreveio
a Revolução de 1930, e seu diploma legitimador, o Decreto n.º 19.398, editado
em conseqüência da recém violência constitucional, reconheceu o writ nos termos a seguir: “É mantido o habeas corpus em favor dos réus ou
acusados em processos de crimes comuns, salvo os funcionais e os de competência
dos tribunais especiais”.

As
restrições ficaram claras: não se admitia o recurso em favor dos encarcerados
por motivo político, da qual conheceriam tribunais especiais, e não se dava
também para neutralizar a “prisão funcional”, a qual se pode entender como uma
ampliação do conceito de prisão disciplinar, ou administrativa.

Regimes constitucionais

Regime constitucional
de 1934

Firmado o país, na ordem
jurídica, que só o tranqüilizaria por apenas três anos, a Constituição de 1934
consagrou a garantia nos seguintes termos: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de
sofrer violência ou coação em sua liberdade, por ilegalidade ou abuso de poder.
Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas
corpus
”.

Era, como
adverte Espínola FILHO, “a consagração constitucional da tendência liberal que
inspirara a fórmula de 1891, sendo de notar-se que, a essa altura, já contava o
direito brasileiro com o intuito do mandato de segurança para assegurar direito
líquido e certo, regulado pela Lei n.º 191, de 16 de janeiro de 1936”.[5]

Regime constitucional
do Estado Novo – 1937

Mais uma
vez, os fatos políticos não permitiram que fosse suficientemente questionado ou
apreciado o texto constitucional. Em novembro de 1937, Getúlio Vargas instituía
o Estado Novo e outorgava à nação uma nova Carta: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer
ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal, na sua liberdade
de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.”

Mais
tarde, em 1941, o Código de Processo Penal repetiria integralmente a norma. Ao
ver de muitos – e a matéria não era pacífica – houve aí a grande restrição
consistente em abandonar-se a idéia da proteção à liberdade pura para garantir
apenas a liberdade de locomoção.

Regime constitucional
de 1946

Passado o
regime ditatorial de 37, a Carta de 1946 consagrou o instituto nos seguintes
termos: ”Dar-se-á habeas corpus
sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em
sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Mantida a
exceção quanto às transgressões disciplinares.

Embora se
tratasse de uma Constituição discutida e votada livremente por uma Assembléia
Constituinte, a norma garantidora do instituto repetia praticamente os termos
da norma da Constituição estado-novista, limitando o habeas corpus à liberdade de locomoção e ressalvando também as
punições disciplinares. O mais ficaria sob a proteção do mandado de segurança.

Regime constitucional
de 1967 e emenda de 1969

A
Constituição Federal de 1967, em seu art. 150, § 20, conservou a redação dada
ao habeas corpus pela de 1946,
enquanto que a Emenda Constitucional n.º 1, de 17 de outubro de 1969, repetiu o
regramento dado por aquela constituição mais moderna (art. 153, § 20). A
novidade nesta última consistia na eliminação da possibilidade, já tradicional
em nosso direito, de impetrar-se habeas
corpus
diretamente ao Supremo Tribunal Federal, desde que houvesse perigo
eminente de consumar-se a violência.

Embora o habeas corpus, sempre por disposição
constitucional, tenha sido o instituto democrático tutelador do direito de
locomoção, sempre que a mesma fosse esquecida ou ameaçada de sê-lo por
ilegalidade ou abuso, enfim por ausência de justa causa, a verdade inconteste é
que em se tratando de crime político ou contra a segurança nacional o emprego
desse writ sempre foi ameaçado: isso
se constata pelo AI-5, de 13 de dezembro de 1968, em cujo art. 10 declarava:
“Fica suspensa a garantia do habeas
corpus
nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem
econômica e social e a economia popular.” Ademais, a Emenda Constitucional n.º
1, de 17 de outubro de 1969, manteve em seu art. 182 o AI-5, cuja revogação
somente se deu em 31 de dezembro de 1978.


Notas:

[1] SIDOU, J.M.
Othon. Do Mandado de Segurança. São
Paulo: RT, 1969. p. 96.

[2] SIDOU, J.M.
Othon. Do Mandado de Segurança. São
Paulo: RT, 1969. p. 97.

[3] CUNHA, Mauro
e SILVA, Roberto Geraldo Coelho. Habeas
corpus no direito brasileiro
. Rio de Janeiro: Aide, 1990. p. 43.

[4] ABREU,
Florêncio de. Comentários ao código de
processo penal
. Rio de Janeiro: Forense, 1945. v. IV, p. 557.

[5] FILHO,
Espínola. Código de Processo Penal.
São Paulo: Nacional, 1955. p. 211.


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Caio Fortes de Matheus


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