Teoria da integridade: Uma abordagem da sistematização de Ronald Dworkin

Resumo: Aborda a sistematização de Ronald Dworkin construtiva da teoria da integridade, mormente a respeito das ancoras hermenêuticas utilizadas pelo filósofo. Busca equacionar a teoria da decisão, investigando as respostas de Dworkin para os questionamentos políticos, para conflitos entre argumentos e, em última análise, para o que, de fato, considera como império do direito.

Palavras-Chave: Integridade. Teoria do Direito. Dworkin.

Abstract: Discusses the systematization of Ronald Dworkin's constructive theory of integrity, especially regarding hermeneuticals anchors used by philosopher. Search equate decision theory, investigating the answers to the questions Dworkin to politicians conflicts between arguments and, ultimately, for what, in fact, considered as rule of law.

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Keywords: Integrity. Theory of Law. Dworkin.

Sumário: Introdução. 1. Teoria da integridade. 1.1. Conceito de Integridade. 1.2. Integridade no Direito. 2. Algumas Questões. 2.1. Diante da teoria da integridade é cabível aos juízes a decisão política? 2.2. Em que consistem argumentos de política e argumentos de princípio? Qual a colocação de tais argumentos na teoria de Dworkin? Como se resolve uma situação conflituosa com argumentos de naturezas distintas? 2.3. Existe realmente uma resposta correta? 2.4. O que, de fato, é o império do direito? Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Dispensadas maiores apresentações, Ronald Dworkin é um dos grandes filósofos e teóricos do direito da atualidade. Norte-americano de Massachussets, nasceu em 11 de dezembro de 1931 e aos 80 anos continuava a se dedicar a vida acadêmica, titularizando as cadeiras de Teoria do Direito da University College London e da New York University School of Law, faleceu recentemente deixando uma expressiva herança ao conhecimento teórico e jurídico.

Ao longo de sua obra é notório o foco hermenêutico e na teoria da decisão (superlativa no juiz Hércules), destacando-se entre suas ideias a que corresponde à definição de princípios jurídicos, à forma de resolução de casos difíceis, o alcance e o conteúdo do direito e, mormente, a teoria da integridade e do direito como integridade.

Nessa esteira, os fundamentos de integridade circundam toda a produção de Dworkin, na medida em que ao assimilar tal conceito há a predisposição para aceitação de determinados aspectos e direções interpretativas, por outro lado, as quais serão cruciais para fins de convencimento e real compreensão dos questionamentos que estão em primeiro plano para Dworkin.

Assim sendo, é de extrema relevância, quiçá imprescindível, aos que objetivam interiorização na obra de Dworkin dar os primeiros passos na teoria da integridade, o que, no entanto, não quer dizer que seja tarefa com menor densidade do que se imiscuir em outros temas. Muito pelo contrário: é relevante assentar que a obra de Ronald Dworkin, no aspecto de condução e desenvolvimento de texto, apresenta como grande característica justamente a integridade, pois desde “Levando os Direitos à Sério”, publicado em 1977, passando por “Uma questão de Princípio” de 1985, até em “O Império do Direito” (1986) e no “Domínio da Vida” (1993) a narrativa é conduzida de uma só forma e os temas são retomados, o que torna imperiosa a leitura de mais de um de seus livros para o acompanhamento do pensamento de Dworkin na direção correta.

Sob tal enfoque, apesar de inverter a cronologia de sua produção, a base da teoria da integridade é plasmada em “O Império do Direito”. Todavia, alguns pontos somente propiciam o ápice de entendimento quando se retorna a “Uma questão de Princípio”, de forma que ambas as obras são essenciais para a redação mais elementar sobre a integridade em seus principais aspectos.

No que tange à metodologia expositiva, a abordagem preliminar do conceito de integridade, como já o fez Dworkin no capítulo VI de “O Império do Direito”, para depois se passar a discorrer a respeito da integridade no direito, mostra-se interessante para apreensão do conteúdo. A partir daí, urgem algumas questões, as quais desafiam explicações conectadas.

Tais questões residem no plano da teoria judicial concebida por Dworkin e envolvem o conceito e posicionamento do magistrado diante da política, a alocação de argumentos de princípio e argumentos de política, bem como versam sobre a real existência de uma resposta correta.

Destarte, a partir dessas linhas, pretende-se delimitar a explanação para o que, de fato, é o império do direito para Dworkin e no que se baseia uma das mais importantes facetas de sua teoria do direito e da decisão judicial.

1. TEORIA DA INTEGRIDADE

A teoria da integridade, ab initio, pressupõe dois aspectos distintos: um legislativo e outro jurisdicional, residindo o primeiro na tarefa imposta ao parlamento de, com a produção legislativa, tornar o conjunto de leis do Estado moralmente coerentes, já o segundo aspecto impõe aos magistrados que, por oportunidade da atuação judicante, considerem como pilar hermenêutico a coerência moral que deve envolver o ordenamento jurídico (2007, p. 213). Tal aspecto inicial é essencial para a correta alocação da teoria da integridade, haja vista empreender, dessa maneira, não somente um conceito jurisdicional e filosófico, mas sim uma premissa de direção do Estado.

Com essa carga, Dworkin abrevia a integridade em ter e respeitar o conjunto de leis como moralmente coerentes, fato que se torna imprescindível em um Estado comum e desnecessário em Estados utópicos, onde a virtude está sempre presente, já que nestes Estados as autoridades fariam somente o que é perfeitamente justo e imparcial, a contrário senso do que ocorre com os Estados ordinários, nos quais não é incomum que instituições imparciais tomem, por vezes, decisões injustas e instituições parciais, às vezes, tomem decisões justas (2007, p. 215). Ou seja, a coerência moral do arcabouço legal e normativo do Estado, portanto, a integridade é a garantia e pilar da existência do verdadeiro Direito, como também aspecto democrático, pelo que, por óbvio, não clama os cidadãos residentes em utopias, no conceito de Estado natural de Rousseau, onde somente a virtude impera, pois a coerência moral nesses abençoados locais é a característica mais elementar de qualquer do povo e de todas as instituições, a contrário senso dos Estados ordinários.

Considerado também o direcionamento e envolvimento do povo, do jurisdicionado, tem-se a seguinte tríade na planificação da teoria da integridade: plano 1 – legislativo; plano 2 – judiciário; plano 3 – sociedade. Cada uma dessas esferas exerce protagonismo na integridade, a falta da observância dos seus fundamentos por qualquer dos atores impede o fechamento triangular da teoria, o que acarreta a não incidência da integridade em determinado Estado. Prova disso é que se o parlamento de determinado país não considera como missão a realização de conjunto moralmente coerente de leis, necessariamente não será possível a plena realização de uma interpretação nesse sentido pelo judiciário, o que também implicará em comprometimento do conceito pela sociedade e assim também ocorrerá quando houver inversão do ator descomprometido, demonstrada, portanto, a corrente, os elos na tríade da teoria da integridade para Dworkin.

Por tais considerações, reconhece-se na teoria em questão facetas distintas, porém complementares, as quais, como se verá adiante, são essenciais para encontrar respostas a determinadas perguntas.

1.1 Conceito de Integridade

A integridade é uma terceira virtude política, ao lado da justiça e do devido processo legal, a qual se refere ao compromisso de que o governo aja de modo coerente e fundamentado em princípios com todos os seus cidadãos, a fim de estender a cada um os padrões fundamentais de justiça e equidade (2007, p. 202).

Nas palavras do autor (2007, p. 222):

“Nossos instintos sobre a conciliação interna sugerem outro ideal político ao lado da justiça e da equidade. A integridade é o nosso Netuno. A explicação mais natural de porque nos opomos às leis conciliatórias apela a esse ideal”.

Para Dworkin (2007, p. 224) por mais que não consideremos a integridade como um ideal político, faz parte da nossa moral política coletiva que a comunidade como um todo, e não apenas as autoridades, individualmente consideradas, deva atuar de acordo com princípios.

Ao questionar se a integridade é atraente, Dworkin responde da seguinte forma (2007, p. 228):

“Mostrarei que uma sociedade política que aceita a integridade como virtude política se transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade, especial num sentido de que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva. Este não é o único argumento em favor da integridade, ou a única consequência de reconhecê-la que poderia ser valorizada pelos cidadãos. A integridade protege contra a parcialidade, a fraude ou outras formas de corrupção oficial, por exemplo.”

Como consequências práticas da integridade, Dworkin assevera o fato de que a integridade contribui para a eficiência do direito, uma vez que quando as pessoas são governadas por princípios há menos necessidade de regras explícitas, e o Direito pode expandir-se e contrair-se, organicamente, na medida em que se entenda o que eles exigem em novas circunstâncias (2007 p. 229).

São vislumbradas também consequências morais, tais como, a possibilidade de que cada cidadão aceitar as exigências que lhe são feitas e fazer exigências aos outros, que compartilham e ampliam a dimensão moral de quaisquer decisões políticas explícitas (2007 p. 230).

“A integridade, portanto, promove a união da vida moral e política dos cidadãos: pede ao bom cidadão, ao decidir como tratar seu vizinho quando os interesses de ambos entram em conflito, que interprete a organização comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da cidadania”.

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Outro aspecto conceitual da integridade se vincula à legitimidade política, a partir do modelo de princípio para fins de práticas associativas, no qual a comunidade e os membros aceitam que são governados por princípios comuns e não apenas por regras criadas por um acordo político. Admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares constantes nas regras, mas dependem, de maneira mais ampla, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem (2007, p. 252-255). E assim, qualquer interpretação construtiva bem sucedida das práticas políticas deve reconhecer a integridade como um ideal político distinto.

Fato que muitas vezes gera confusão conceitual, pois, apesar de parecer o contrário, a integridade não se reduz a coerência do ordenamento jurídico, ela vai além, ao exigir que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade, na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca da fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo (2007, p. 264).

1.2 Integridade no Direito

Segundo o próprio Dworkin (2007, p. 271):

“O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Assim, o direito como integridade rejeita, por considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas.”

O princípio da integridade, na órbita jurisdicional, conduz à ficção jurídica de que os direitos e deveres legais possuem um único autor, qual seja a comunidade personificada, fiel guardiã da justiça e da equidade.

Partindo da premissa de autoria única, o cânone interpretativo do direito como integridade é exatamente o pilar de equidade e justiça, baseado no sistema de princípios que foram justificadores da determinada decisão no tempo de propagação.

Sendo assim, a história é importante porque esse sistema de princípios deve justificar tanto o status quanto o conteúdo das decisões anteriores.

O direito como integridade, portanto, começa no presente e só volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine (2007, p. 274).

Na esteira da integridade, Dworkin percebe a construção da prática jurídica como a elaboração de um romance em cadeia, na qual o juiz figura, igualmente, como autor e como crítico. A tarefa do romance em cadeia pressupõe que cada romancista pretenda criar apenas um romance a partir do material que recebeu, ele deve tentar criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, isso exige uma avaliação geral de sua parte, ou uma série de avaliações gerais à medida que ele escreve e reescreve (2007, p. 277).

Talvez o maior problema que encontrará o romancista em cadeia diga respeito às suas pré-concepções e ao ajustamento com os capítulos anteriores, pois não será possível perder de vista o respeito ao texto e não lhe é facultado se afastar dele.

Para ilustrar o romance em cadeia como atividade jurisdicional, Dworkin apresenta um caso de direito consuetudinário, especificamente a análise de um caso como o McLoughlin[1], o qual, à luz do direito como integridade, roga ao juiz que se comporte como um romancista, já que ele sabe que outros juízes decidiram casos análogos que devem ser levados em conta para a decisão do presente (2007, p. 286).

“O veredito do juiz – suas conclusões pós-interpretativas – deve ser extraído de uma interpretação que ao mesmo tempo se adapte aos fatos anteriores e os justifique, até onde isso seja possível. No direito, porém, a exemplo do que ocorre com a literatura, a interação entre adequação e justificação é complexa.”

Encarando a complexa tarefa, é apresentado[2] o juiz Hércules, o qual possui capacidade e paciência sobre-humanas e aceita o direito como integridade (2007, p. 287). Hércules é um juiz criterioso e metódico, portanto, começa por selecionar diversas hipóteses para corresponderem à melhor interpretação dos casos precedentes, mesmo antes de tê-los lido.

Em seguida, Hércules começa a verificar cada hipótese da sua lista perguntando-se se uma pessoa poderia ter dado os vereditos dos casos precedentes se estivesse, coerente e conscientemente, aplicando princípios subjacentes a cada interpretação (2007, p. 290).

Hércules verifica se há amparo em um princípio de justiça em cada questão, dessa feita, rechaçando prévia e justificadamente cada hipótese que não se coaduna com essa premissa. Pois, o direito como integridade pede que os juízes admitam, na medida do possível, que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo, e pede-lhes que os apliquem nos novos casos que lhes apresentem, de tal modo que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo as mesmas normas (2007, p. 291).

O direito como integridade pressupõe que os juízes se encontrem em situação diversa dos legisladores, os quais podem utilizar de argumentos de política para definir determinada regra, ou seja, podem justificar a criação de uma norma em virtude do bem estar coletivo que gerará. Como dito, os juízes se encontram em situação diversa, eles devem se valer de princípios para tomarem as suas decisões e não em política: eles devem apresentar argumentos que digam por que as partes realmente teriam direitos e deveres legais “novos” que eles aplicaram na época em que essas partes agiram, ou em algum outro momento pertinente ao passado[3].

Assim passados os primeiros passos da tarefa hercúlea, chega a hora de separar as hipóteses que se ajustam com as decisões pretéritas e que guardem o senso de equidade, justiça e devido processo legal adjetivo, eliminando toda aquela que seja incompatível com a prática jurídica de um ponto de vista geral.

Por fim, ele deve colocar a sua interpretação à prova, perguntar-se se essa interpretação é coerente o bastante para justificar as estruturas e decisões políticas anteriores de sua comunidade (2007, p. 294). Nesse momento, Dworkin justifica o nome de Hércules:

“Nenhum juiz real poderia impor nada que, de uma só vez, se aproxime de uma interpretação plena de todo o direito que rege sua comunidade. É por isso que imaginamos um juiz hercúleo, dotado de talentos sobre-humanos e com um tempo infinito a seu dispor. Um juiz verdadeiro, porém, só pode imitar Hércules até certo ponto.” (2007, p. 294)

Ademais, adiantando-se a um dos maiores questionamentos que iria surgir, no tocante à discricionariedade jurisdicional para eleição de critérios de equidade e justiça, o filósofo elucida que os juízes terão ideias diferentes sobre a equidade, sobre o papel que, em termos ideais, as opiniões de cada cidadão deveriam desempenhar nas decisões do Estado sobre quais princípios de justiça aplicar por meio de seu poder central. (2007, p. 299)

De outro lado, mais uma característica de Hércules pode apresentar soluções lógicas para o problema do subjetivismo fundamentado na escolha de critérios de equidade e de justiça: Hércules avalia e decide a situação a partir de uma série de círculos concêntricos, elaborando sua doutrina de prioridade local, a qual é plenamente provada quando se tem em vista princípios morais corriqueiramente aceitos que diferenciam ramos jurídicos, como é o caso da responsabilidade no direito civil e do direito penal.

Assim, a análise principiológica e as escolhas devem passar também pelo crivo da prioridade local.

Por outro lado, quando as divisões dos ramos jurídicos se tornem arbitrárias e isoladas das convicções populares, Hércules não aplicará a prioridade local, mas sim os princípios de justiça que se enquadrem, de fato, no caso em análise (2007, p. 300 – 304).

Compilando os fundamentos do direito como integridade, o pressuposto básico é o enquadramento da integridade como uma terceira virtude política, ao lado da equidade, da justiça e também do devido processo legal adjetivo, o que configurará os fundamentos para a teoria da decisão judicial de Dworkin, cujas expressões superlativas estão em Hércules.

Veja-se que a integridade não se confunde com a justiça e com a equidade, apesar de umbilicalmente ligada a elas:

“Aceitamos a integridade como um ideal político porque queremos tratar nossa comunidade política como uma comunidade de princípios, e os cidadãos de uma comunidade de princípios não têm por único objetivo princípios comuns, como se a uniformidade fosse tudo que desejassem, mas os melhores princípios comuns que a política seja capaz de encontrar. A integridade é diferente da justiça e da equidade, mas está ligada a elas da seguinte maneira: a integridade só faz sentido entre pessoas que querem também justiça e equidade.” (2007, p.314)

Nessa senda, a justificativa para aceitação da integridade como um ideal político distinto, para a aceitação do princípio da integridade na prestação jurisdicional como soberano em todo o direito, reside no fato de querermos tratar a nós mesmos como uma associação de princípios, como uma comunidade governada por uma visão simples e coerente de justiça, equidade e devido processo legal adjetivo na proporção adequada, ainda que estes eventualmente entrem em conflito.

Vale reforçar o que de fato significa em Dworkin justiça, equidade e devido processo legal adjetivo:

“A justiça diz respeito ao resultado correto do sistema político: a distribuição correta de bens, oportunidades e outros recursos. A equidade é uma questão da estrutura correta para esse sistema, a estrutura que distribui a influência sobre as decisões políticas da maneira adequada. O devido processo legal adjetivo é uma questão dos procedimentos corretos para a aplicação de regras e regulamentos que o sistema produziu. A supremacia legislativa que obriga Hércules a aplicar as leis, mesmo quando produz uma incoerência substantiva, é uma questão de equidade porque protege o poder da maioria de fazer o direito que quer. As doutrinas rigorosas do precedente, as práticas da história legislativa e a prioridade local são em grande parte, embora de maneira distintas, questões de processo legal adjetivo, porque estimulam os cidadãos a confiar em suposições e pronunciamentos doutrinários que seria errado trair ao julgá-los depois do fato” (2007, p. 483).

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Finalmente, concluída a consubstanciação da integridade, a fim de ser deglutida a sua correlação com o direito, não se pode deixar de assinalar que, para Dworkin o direito é um conceito interpretativo, que os juízes devem decidir o que é o direito interpretando o modo usual como os outros juízes decidiram o que é o direito, que teorias gerais do direito são interpretações gerais da nossa própria prática judicial (2007, p. 488).

E, assim, como faceta da integridade, o julgamento interpretativo, ou seja, o direito deve observar e considerar as dimensões de equidade, justiça e devido processo legal adjetivo; se não o fizer, é incompetente ou de má-fé, simples política disfarçada. (2007, p. 489).

“O que é o direito? Ofereço, agora, um tipo diferente de resposta. O direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, pelo poder ou o processo. Estudamos essa atitude principalmente em tribunais de apelação, onde ela está disposta para a inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e auto-reflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que, ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter” (2007, p. 492).

2. ALGUMAS QUESTÕES

2.1 Diante da teoria da integridade é cabível aos juízes a decisão política?

Dworkin dedica a parte um de “Uma questão de princípio” para avaliar essa questão, a qual possui versões extremadas não condizentes com a realidade. Pois, se de um lado dizer que o Direito e a política pertencem a mundos inteiramente diferentes e independentes soa como falácia, igualmente é falacioso dizer que o Direito e a política são exatamente a mesma coisa, que os juízes que decidem os hard cases estão simplesmente votando suas convicções políticas pessoais (2005, p. IX).

Assim elucida Dworkin a questão proposta:

“Os juízes devem impor apenas convicções políticas que acreditam, de boa fé, poder figurar numa interpretação geral da cultura jurídica e política da comunidade. Naturalmente, os juristas podem, razoavelmente, discordar sobre quando essa condição é satisfeita, e convicções muito diferentes, até mesmo contraditórias podem passar pelo teste. Mas algumas não. Um juiz que aceita esse limite e cujas convicções são marxistas ou anarquistas, ou tiradas de alguma convicção religiosa excêntrica, não pode impor essas convicções à comunidade com o título de Direito, por mais nobres ou iluminadas que acredite que sejam, pois elas não se podem prestar à interpretação geral coerente de que ele necessita.”

Seguindo em frente, ao abordar o fundamento político do direito, o filósofo esmiúça um pouco o questionamento e o seu raciocínio, com o perdão da superficial síntese, segue a linha da interpretação judicial, do questionamento natural que o magistrado realiza quando se depara com a aplicação da lei no caso concreto, fato que gera a inquietação perante o cenário legislativo e o anseio de respostas que decorrem do próprio diploma em análise.

Nessa esteira, para Dworkin (2005, p. 25) é perfeitamente natural que o magistrado decida de acordo com a sua própria moralidade política, desde que a questão seja compatível com mais de um conjunto de princípios, assim caberá ao magistrado, mediante o livre convencimento motivado, a escolha por um dos sistemas aptos e, por óbvio, ele o fará de acordo com a sua própria carga política. Por outro lado, “se apenas um conjunto de princípios é compatível com uma lei, então um juiz que siga a concepção centrada nos direitos deve aplicar esses princípios”.

2.2 Em que consistem argumentos de política e argumentos de princípio? Qual a colocação de tais argumentos na teoria de Dworkin? Como se resolve uma situação conflituosa com argumentos de naturezas distintas?

Quando é posta em relevo a discussão acerca da decisão política do juiz diante da teoria da integridade, é corolário natural distinguir e entender o conceito de argumentos de política e argumentos de princípio em Dworkin.

Considerada para o filósofo como uma distinção de importância capital para a teoria jurídica, a questão possibilita, a grosso modo, dois enquadramentos: um público e outro na individualidade.

“Os argumentos de política tentam demonstrar que a comunidade estaria melhor, como um todo, se um programa particular fosse seguido. São, nesse sentido especial, argumentos baseados no objetivo. Os argumentos de princípio afirmam, pelo contrário, que programas particulares devem ser levados a cabo ou abandonados por causa de seu impacto sobre pessoas específicas, mesmo que a comunidade como todo fique consequentemente pior. Os argumentos de princípio são baseados em direitos” (2005, p. IX).

Existem, portanto, duas facetas da decisão, de forma que quando houver o enquadramento em políticas públicas (policy) estar-se-á perante argumentos de política e, por outro lado, quando a questão envolver a esfera individual, esbarrar em direitos fundamentais do indivíduo e, portanto, merecer contenção, ter-se-á argumentos de princípio.

Agora surge outra pergunta: onde pode se situar a decisão judicial?

Claramente, para Dworkin (2005, p. X) em argumentos de princípio, já que os juízes devem servir e realmente se servem de suas próprias convicções para decidir o que é o Direito, no entanto, mesmo em casos controversos, embora os juízes imponham suas próprias convicções sobre questões de princípio, por outro lado, caracteristicamente, não são impostas suas próprias opiniões a respeito de qual política é a mais sensata.

Outro ponto interessante, no que tange aos argumentos de princípio e argumentos de política, é o sopesamento na situação de conflitos e também o uso inadequado da roupagem (política ou princípio) em alguns argumentos.

Dworkin, na introdução de “Uma questão de princípio” (2005, p. XIV), exemplifica, de forma cristalina, essas situações com o dilema do sigilo das fontes (para preservação da liberdade de imprensa) no caso de necessidade de conhecimento para o pleno exercício da defesa de um acusado. Em um primeiro momento tal conflito é posto no plano do direito, ou seja, de argumentos de princípio, litigando o direito à informação da sociedade com o mesmo direito (de informação) do acusado, o que, com esse enfoque, na situação de prevalecer o segundo direito (do acusado), faria “as fontes da imprensa secarem”, gerando perda para a coletividade.

Como Dworkin bem demonstra, o que se tem na verdade é conflito de naturezas distintas, de um lado há argumentos de política, pois se declara que mediante a liberdade de imprensa a comunidade será beneficiada de várias maneiras por ser bem informada; por outro lado, na ponta oposta, há realmente um argumento de princípio, consubstanciado no direito do acusado de ter um julgamento justo. E, arremata Dworkin, que “ambos são importantes, mas exceto em circunstâncias extraordinárias, a disputa deve ser resolvida a favor do princípio”, o que resta evidente no caso em análise, quando se arrepia a noção de julgamento justo.

2.3 Existe realmente uma resposta correta?

A teoria da resposta certa de Dworkin desafia o ceticismo nos casos enquadrados como genuinamente difíceis. Será que, de fato, para Dworkin, na esteira da integridade, há uma resposta correta?

Sim, há uma resposta correta pela seguinte equação:

– A integridade deve ser vista no plano legislativo e judiciário;

– O plano legislativo impõe o dever de propor um ordenamento jurídico moralmente coerente;

– O plano judicial, à vista do dever do parlamento, impõe ao magistrado a interpretação no direito para fazer valer a coerência moral;

– A integridade é uma virtude política ao lado da justiça, equidade e devido processo legal adjetivo;

– O direito, considerado como verdade hermenêutica, deve aplicar a coerência moral proposta pela integridade, ou seja, basear-se na justiça, equidade e devido processo legal adjetivo;

Dessa feita, se o magistrado decide considerando tais preceitos, considerando a integridade, haverá sim de ser apresentada uma resposta como correta, isso não quer dizer que exista verdade objetiva para afirmações jurídicas, pelo contrário, conforme leciona Dworkin (2005, p. XI), quando o Direito é visto em seu caráter interpretativo, mas voltado para determinados princípios, há pouco sentido em ser afirmada ou negada uma verdade objetiva, no entanto não deixa de existir a resposta correta, sob pena da inflexão (baseada no historicismo) ou de uma espécie de licença de pressupostos.

2.4 O que, de fato, é o império do direito?

Para determinar o que, de fato, é o império do direito na perspectiva da teoria de Dworkin não há outro caminho a não ser recorrer à própria fonte, em uma de suas citações mais envolventes:

“A doutrina jurídica figura em boa parte do debate, não como um exercício de história ou doutrina jurídicas, mas antes porque o Direito confere uma forma especial e esclarecedora à controvérsia política. Quando questões políticas vão ao tribunal – como sempre acontece, mais cedo ou mais tarde, nos Estados Unidos, pelo menos – exigem uma decisão que seja, ao mesmo tempo, específica e calcada em princípios. Devem ser decididas pormenorizadamente, na sua plena complexidade social, mas a decisão deve ser fundamentada como a emanação de uma visão coerente e imparcial de equidade e justiça porque, em última análise, é isso que o império da lei realmente significa” (2005, p. VIII).

O império do direito, dessa maneira, em sua visão mais singular impõe a atividade jurisdicional independente, mas ancorada em preceitos da integridade, ou seja, que interiorize conceitos de equidade, justiça e devido processo legal adjetivo para últimos fins de, com a sua hermenêutica qualificada, realizar os objetivos de coerência moral no ordenamento, o qual refletirá em virtudes na comunidade envolvida.

CONCLUSÃO

Em sede conclusiva, não se pode deixar de destacar os aspectos centrais deste abreviado estudo acerca da teoria da integridade de Ronald Dworkin. Sendo assim, revelam-se como imperiosos os seguintes cânones interpretativos:

a) A integridade é uma virtude política;

b) A integridade deve ser ladeada pelos conceitos de justiça, equidade e devido processo legal adjetivo, no entanto sem se confundir com eles;

c) O direito como integridade nada mais é do que a prática jurídica que aceite a integridade como teoria política;

d) A realização da integridade pelo operador do direito funda-se também na apreensão e dedicação para decisões calcadas em argumentos de princípio, ou seja, atuando para fins de oferecimento da resposta correta nos preceitos de direitos fundamentais;

Ademais, não se pode deixar de considerar, na esteira das bases teóricas, que os direitos à liberdade e à igualdade são os substratos essenciais de Dworkin, mas com especial realce ao segundo, que deve permear toda a noção libertária na perspectiva de “igual respeito e consideração”.

Destarte, o panorama acima representa as principais facetas de uma das primeiras teorias de Dworkin e, como advertido nos parágrafos introdutórios, guarda também a chave para apreensão de outros diversos importantes conceitos e para o acompanhamento da direção do pensamento desse ímpar filósofo e teórico do direito, com realce para a teoria da decisão protagonizada por Hércules.

 

Referências
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. (Trad. de Nelson Boeira). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
__________. O império do Direito. (Trad. de Jefferson Ruiz Camargo). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
__________. Uma questão de principio. (Trad. de Luís Carlos Borges). 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
 
Notas:
 
[1] O caso McLoughlin, narrado no capítulo 1 de “O Império do Direito”, trata do pedido de indenização por danos morais movido pela Sra. McLoughlin em face do motorista que provocou o acidente de carro que matou uma de suas filhas e deixou o seu marido e os seus outros três filhos gravemente feridos. A questão controvertida do pedido reside no fato da Sra. McLoughlin não estar no local do acidente, mas sim ter se dirigido até lá, ocasião em que teve um colapso nervoso. Em dois graus de jurisdição o pedido da Sra. McLoughlin não foi acolhido perante a justiça inglesa, somente revisto na Câmara dos Lordes. A questão seria se o choque que a Sra. McLoughlin tomou seria ou não considerado dano moral e se estaria ela ou não legitimada a pleitear a sua indenização, trata-se da implicação e dos limites do que a doutrina moderna conceitua como dano moral ricochete. 

[2] Ou melhor, reapresentado, pois Hércules surge com as mesmas características em “Levando os Direitos a Sério”

[3] A exposição sobre a vedação aos juízes de criarem novos direitos a seu exclusivo arbítrio e bem definida no capítulo 4 de “Levando os Direitos a Sério”.


Informações Sobre o Autor

Caroline Feliz Sarraf Ferri

Tabeliã de Notas e Registradora Civil em Curitiba – PR, mestranda em Direito pela UFPR (2012), especialista em direito registral imobiliário, notarial, civil, direito público, processual civil e em outras áreas do direito, bacharel em direito pela UFGO (Goiânia, 2006)


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