1. Introdução[1]
O Direito Administrativo vive atualmente interessante fenômeno, caracterizado por uma tendência natural de aproximação entre sua singular faceta afeta ao exercício do Poder Disciplinar e o Direito Penal.
Curioso observar que na doutrina, particularmente nesse propósito, há aqueles para quem esse processo passa despercebido, ignorando, por exemplo, que o exercício do jus puniendi em matéria administrativa, particularmente sobre o servidor público, exige reflexão própria, fazendo jus à elaboração de uma vertente específica, caracterizada por postulados e princípios direcionados, de forma concatenada, à legitimação desse exercício.
Por outro lado, felizmente, há aqueles que, desde há algum tempo, verificaram no “ato de punir” particularidades tais que justificariam até mesmo a subdivisão em ramo próprio, condensando, pois, um sistema enunciativo e, por conseqüência, interpretativo do Direito Disciplinar.
No caminho dos mais perspicazes, por conseqüência mais arrojados, citem-se as lições de Egberto Maia Luz que, a começar pelo título de uma de suas obras[2], nitidamente postula a diferenciação entre “Direito Disciplinar” e Direito Administrativo[3]. Na construção do ilustre doutrinador, encontrar-se-á, por exemplo, a exaltação da proximidade do direito de punir da Administração com o Direito Penal e, conseqüentemente, do Direito Processual Administrativo com o Direito Processual Penal, sem no entanto fugir o Direito Administrativo Disciplinar do espectro da Administração Pública, o que por si só, ressalte-se, dá singularidade ao objeto estudado.[4]
Registre-se ainda notória vertente, fulcrada principalmente no Direito Espanhol, a condensar em título próprio os postulados e fundamentos de um “Direito Administrativo Sancionador”, do qual o Direito Disciplinar seria uma espécie. Nesse sentido, tome-se valorosa obra de Fábio Medina Osório[5], que arrebanha fundamental gama de princípios a serem observados quando da efetivação de uma punição administrativa (genericamente falando), além de, com precisão invejável, explorar os fundamentos e características das sanções administrativas.
Por fim, há que se registrar que alguns elementos integrantes da infração disciplinar já foram e são explorados doutrinariamente por outros não menos ilustres, como Edmir Netto que se preocupou, in exemplis, com a culpabilidade, ao discorrer sobre as excludentes de responsabilidade no ilícito administrativo, demonstrando particularmente que a incidência em erro de direito impossibilita a responsabilização do servidor público[6].
Em que pesem as valorosas contribuições, todavia, sente-se falta de uma sistematização mais didática, a propiciar a elaboração, conforme ocorre com o Direito Penal, de uma “teoria geral do ilícito administrativo”, inserida na qual estaria o conceito analítico de transgressão disciplinar.
Note-se que a formulação de uma teoria dessa ordem seria de fundamental importância não só para a atual e necessária persecução da transgressão disciplinar, mas também para subsidiar a formulação de novos regulamentos e estatutos disciplinares, possibilitando, ao menos, a unicidade de fundamentos acerca dos ilícitos dessa natureza.
É, pois, com o propósito de fomentar tal elaboração que se seguirá o raciocínio exposto, concentrando-se em aspectos fundamentais dessa pretensa teoria, buscando adaptá-la ao “imberbe” Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, bem como buscando, en passant, similitudes aplicáveis a outros diplomas disciplinares.
2. Poder disciplinar e limitação do estudo
Ensina Di Pietro que o poder disciplinar “é o que cabe à Administração Pública para apurar infrações e aplicar penalidades aos servidores públicos e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa”, citando, como exemplo destas, as pessoas que com a Administração contratam, ficando, pois, sujeitas à interferência ou ao exercício do poder disciplinar. Prossegue a cara Professora, indicando que as demais sanções impostas pela Administração, não resultantes de uma sujeição à disciplina interna da Administração, fundam-se no poder de polícia e não no poder disciplinar[7].
Dessa forma, a Administração Pública sanciona os cidadãos calcada em dois poderes fundamentais e necessários à sua existência: o poder de polícia e o poder disciplinar. Este, por sua vez, se subdivide alcançando os servidores públicos ou os particulares que se sujeitam à disciplina imposta pela Administração Pública.
São exemplos da primeira espécie de sanção administrativa imposta pela Administração[8], as sanções decorrentes de infrações de trânsito.
Na segunda espécie tem-se, em primeiro lugar, aquelas punições disciplinares possíveis de aplicação ao servidor público, particularmente no caso dos militares do Estado de São Paulo, a advertência, a repreensão, a permanência disciplinar, a detenção, a reforma administrativa disciplinar, a demissão, a expulsão e, finalmente, a proibição do uso de uniforme para inativos[9]. Pode-se citar como exemplo da segunda modalidade, a sanção decorrente da infringência contratual de uma empresa que pactue o fornecimento de gêneros com a Administração, conforme preceitua a Lei de Licitações e Contratos Administrativos[10], ou ainda, como primorosamente aponta Odete Medauar, as sanções impostas a alunos de escolas públicas.[11]
Uma vez brevemente explanado o poder disciplinar, cumpre identificar o campo específico de incidência do presente raciocínio, com o escopo primeiro de impedir a alçada de vôos muito pretensiosos, que importariam em uma obscuridade irresponsável e prejudicial. Ater-se-á especificamente ao estudo do ilícito disciplinar decorrente de infração funcional, restrita apenas ao militar do Estado, o que, por óbvio não impedirá breves comparações a outros diplomas disciplinares, porém sempre restritas ao servidor público.
3. Teoria geral do delito: conceito analítico de crime
Longe de querer abordar em minúcias o assunto, apenas relembrar-se-ão alguns aspectos interessantes ao desenvolvimento do tema, pois, tomando-se por premissa que a proximidade do Direito Administrativo Disciplinar com o Direito Penal é inequívoca, será a estrutura do delito o ponto de partida para um estudo estrutural criterioso da infração disciplinar.
Afora os debates doutrinários e para que não haja demasiada construção histórica, pode-se postular que na atualidade debruçam-se os doutrinadores sobre duas correntes acerca da estrutura do crime, a saber, a teoria bipartida e a teoria tripartida.
Para os adeptos da primeira, crime constitui-se em fato típico e antijurídico, sendo a culpabilidade pressuposto de aplicação de pena. Já para os opositores, a culpabilidade integra o conceito de crime, valendo dizer que sem ela não haverá ilícito penal.
De se notar que não se mencionou “causalismo” ou “finalismo”, o que pode causar estranheza ao desavisado, vez que ainda hoje é comum a confusão em que se entende finalismo como sinônimo de teoria bipartida, o que de fato não se verifica. Para ilustrar, convém citar preciosa construção de Cezar Roberto Bitencourt, que ao discorrer sobre o conceito de delito no Finalismo, assim aduz:
“…Essa nova estrutura sustentada pelo finalismo trouxe inúmeras conseqüências, dentre as quais pode-se destacar: a distinção entre tipos dolosos e culposos, dolo e culpa não mais como elementos ou formas de culpabilidade, mas como integrantes da ação do injusto pessoal, além da criação de uma culpabilidade puramente normativa.
Welzel deixou claro que, para ele, o crime só estará completo com a presença da culpabilidade. Dessa forma, para o finalismo, crime continua sendo a ação típica, antijurídica e culpável…” [12]
Pondo de lado a acadêmica discussão sob qual conceito mais se afeiçoa ao delito, exige-se, para atender ao objetivo aqui proposto, que sejam os elementos, ou requisitos genéricos[13], conceituados.
3.1. O fato típico
Diz-se ser um fato típico (ação típica) aquele que encontra perfeita adaptação a uma vontade criminalizadora abstrata do legislador, que somente pode surgir por um instrumento normativo originário (primário) específico, em obediência ao princípio da reserva legal.
Ao escolher a conduta a ser criminalizada, o legislador, imbuído de uma política criminal em maior ou em menor grau intervencionista, materializa sua escolha pela lei, dispondo abstratamente a conduta a ser reprimida, parindo, dessa forma, o tipo penal.
O tipo penal, por sua vez, deve seguir critérios específicos – além daqueles impostos por política criminal, cujos extremos são o abolicionismo e os movimentos de lei e ordem – os quais devem conduzir a redação para um enunciado claro e objetivo. Seria ideal, portanto, que todo tipo penal fosse dotado de elementos objetivos (descritivos), ou seja, itens criminalizadores perceptíveis aos sentidos, sem que houvesse necessidade de exploração maior (tipos normais).
Em realidade, entretanto, o tipo penal é bem mais prolixo, congregando muitas vezes elementos de ordem psíquica, que revelam o ânimo do agente – denominados subjetivos, que podem estar ou não explícitos no tipo escrito – e elementos de extrema complexidade, dos quais somente haverá compreensão após detida análise, um juízo de valor. São os denominados tipos anormais.
Dessa forma, é possível sustentar que há um tipo penal objetivo (elementos descritivos e normativos) e um tipo penal subjetivo (elementos subjetivos, mormente o dolo – elemento subjetivo genérico do injusto – e o dolo específico – elemento subjetivo específico do injusto).
Pois bem, havendo perfeita subsunção do fato material ao tipo objetivo e ao tipo subjetivo, teremos um fato típico nas mãos, fato típico este que, nas lições do saudoso Mirabete, pode ser subdividido, para uma melhor análise, em conduta (ação ou omissão – dotada de dolo ou culpa por imposição da teoria finalista da ação), resultado (principalmente nos crimes materiais), relação de causalidade e tipicidade – entendida como previsão da conduta na lei penal criminalizadora.[14]
Em resumo, para não atingir a exaustão, diz-se haver um fato típico quando o fato humano sub examine preenche os elementos previstos no tipo penal, elementos esses de ordem descritiva, normativa e subjetiva. A essa adequação dá-se o nome de tipicidade, porém não aquela prevista como elemento do fato típico, mas como adjetivo de um fato humano que preencheu todos os elementos da descrição legal – uma qualidade do fato criminoso.
Pode-se sustentar, destarte, que o termo tipicidade tem duas conotações. Uma em sentido estrito – a simples previsão da norma abstrata, proibindo sob o risco de sanção penal uma conduta indesejada – e outra em sentido amplo – característica de um ato humano que encontrou subsunção plena na norma (o fato típico com todos os seus elementos constitutivos).
3.2. A antijuridicidade ou ilicitude
Em linhas gerais a antijuridicidade resume-se na contrariedade ao ordenamento jurídico como um todo, ou seja, a tipicidade – entendida aqui como adjetivo do fato criminoso, e não como um dos elementos do fato típico – é apenas um prenúncio de antijuridicidade (ratio cognoscendi), o que permite entender que um fato pode ser típico e, ao mesmo tempo, jurídico, não sendo, portanto, crime.
Lapidar a lição de Juarez Cirino, ao discorrer sobre a antijuridicidade, que aduz:
“O conceito de antijuridicidade é o oposto ao de juridicidade: assim como juridicidade indica conformidade ao direito, antijuridicidade indica contradição ao direito. A antijuridicidade é uma contradição entre a ação humana e o ordenamento jurídico no conjunto de suas proibições e permissões: as proibições são os tipos penais, como descrições de ações proibidas; as permissões são as causas de justificação, como situações especiais que excluem a proibição.”[15]
Nota-se, então, que o indício de antijuridicidade trazido pela tipicidade pode ser aniquilado por uma conformidade da conduta com o ordenamento jurídico como um todo, donde surgem as causas que excluem a antijuridicidade, sejam elas legais – como a legítima defesa, o exercício regular de um direito, o aborto terapêutico, etc – ou até mesmo supralegais – como o consentimento do ofendido, em se tratando de bens jurídico-penais disponíveis (e.g. lesão corporal causada por cirurgião plástico com fins estéticos).
Cumpre esclarecer que a abordagem acima é a que melhor tem aceitação, existindo outras vertentes, no entanto, sustentadas por insignes doutrinadores, que entendem o binômio tipicidade-antijuridicidade de forma diversa, como no caso da teoria dos elementos negativos – segundo a qual as excludentes de antijuridicidade integram o tipo penal[16] – e da tipicidade penal de Zaffaroni e Pierangeli[17], que é integrada pela tipicidade legal, entendida como individualização da conduta feita pela lei mediante o conjunto de elementos descritivos e valorativos, e pela tipicidade conglobante, traduzida pela comprovação de que a conduta legalmente típica está também proibida pelo ordenamento jurídico como um todo.
3.3. A culpabilidade
Ponto intrigante da exposição diz respeito à culpabilidade.
Ab initio, temos a divergência sobre sua inclusão ou não no conceito analítico de delito. Transcende a esse aspecto, porém, sua natureza de acalorar discussões acadêmicas, o que é muito bem representado pelas abordagens da maioridade penal (afeta à imputabilidade), a absorção da doutrina pátria da teoria actio libera in causa (discussão afeta à consciência da ilicitude) etc.
Pede-se vênia, no entanto, para ficar à margem de polêmicas e buscar apenas os aspectos interessantes ao objetivo do presente raciocínio.
Francisco de Assis Toledo – nitidamente posicionando-se em favor da teoria tripartite, ressalte-se – sustenta que a palavra culpa (em sentido amplo) é de uso muito corrente e apresentando-se, freqüentemente, como sinônimo de culpabilidade, um dos elementos estruturais do crime.[18]
Acrescenta Bitencourt que é possível, em Direito Penal, enumerar três acepções (conotações, compreensões etc) para o vocábulo culpabilidade. Assim, sobejamente, esclarece:
“Em primeiro lugar, a culpabilidade – como fundamento da pena – refere-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal. Para isso, exige-se a presença de uma série de requisitos – capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade da conduta – que constituem os elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A ausência de qualquer desses elementos é suficiente para impedir a aplicação de uma sanção penal.
Em segundo lugar, a culpabilidade – como elemento da determinação ou medição da pena. Nessa acepção, a culpabilidade funciona não como fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios, como importância do bem jurídico, fins preventivos, etc.
E, finalmente, em terceiro lugar, a culpabilidade – como conceito contrário à responsabilidade objetiva. Nessa acepção, o princípio de culpabilidade impede a atribuição de responsabilidade objetiva. Ninguém responderá por um resultado absolutamente imprevisível, se não houver obrado com dolo e culpa.
Resumindo, pelo princípio em exame, não há pena sem culpabilidade…”[19]
Obviamente, na teoria do delito não se pode entender a culpabilidade nas três acepções, mas apenas na primeira delas, ou seja, a noção de culpabilidade a integrar a estrutura do crime restringe-se à exigência de que sejam preenchidos os seus elementos positivos que, sob o enfoque da teoria normativa pura, traduzem-se pela capacidade de culpabilidade (imputabilidade), potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
Em resumo, costuma-se consignar que a culpabilidade integrante do delito caracteriza-se pela “reprovabilidade da conduta típica e antijurídica.”[20]
Em vertente atual da dogmática, entretanto, a culpabilidade transcende a estrutura analítica do crime, funcionando não só como complemento do conceito tripartido, mas como verdadeiro princípio limitador do jus puniendi. Volta-se, dessa forma, à tríplice conotação exposta por Cezar Roberto Bitencourt.
O princípio da culpabilidade permite, destarte, o ingresso no conceito de reprovabilidade do fato a condicionar a aplicação de pena, valendo dizer que somente merece reprimenda a conduta negada, “condenada” pelo meio social em que se encontra o autor do fato. Mais ainda, opera como limitador do exercício do direito de punir do Estado, afastando por completo a imposição de sanção somente pela produção de um resultado, desprovida a conduta de dolo ou culpa, e condicionando a sanção a uma ofensa, devendo haver uma proporcionalidade entre ambas.
Evidencia-se, então, o Direito Penal da Culpa. A máxima nullum crimen sine culpa é somada à de que nulla poena sine culpa, dando à culpabilidade a condição de “fundamento último e também medida da responsabilidade penal.”[21]
4. Conceito analítico de transgressão disciplinar
Chega-se agora em momento crucial para o desenvolvimento do raciocínio. Em suma, cumpre averiguar se é possível, não com toda a precisão do Direito Penal, mas com um mínimo de clareza, a elaboração de um conceito estrutural do ilícito administrativo disciplinar ou, mais restritamente, de um ilícito administrativo disciplinar militar.
4.1. Fato típico disciplinar militar
Fazendo um paralelo com a teoria geral do delito, acima esboçada, o primeiro raciocínio deverá ser acerca da tipicidade – entendida aqui como um dos elementos do fato típico – e, já no primeiro passo, ter-se-ia obstáculo considerável a ser vencido.
De modo geral, postula a doutrina não viger, em matéria disciplinar, o princípio da tipicidade, mas seu oposto, ou seja, o princípio da atipicidade. Nesse sentido, note-se o que aduz Di Pietro:
“Ao contrário do Direito Penal, em que a tipicidade é um dos princípios fundamentais, decorrente do postulado segundo o qual não há crime sem lei que o preveja (nullum crimen, nulla poena sine lege), no direito administrativo prevalece a atipicidade; são muito poucas as infrações descritas na lei como ocorre com o abandono de cargo. A maior parte delas fica sujeita à discricionariedade administrativa diante de cada caso concreto; é a autoridade julgadora que vai enquadrar o ilícito como ‘falta grave’, ‘procedimento irregular’, ‘ineficiência do serviço’, ‘incontinência pública’, ou outras infrações previstas de modo indefinido na legislação estatutária. Para esse fim, deve ser levada em consideração a gravidade do ilícito e as conseqüências para o serviço público.” [22]
Sem embargo, o fato transgressional é de difícil concepção de modo que seria impossível a capitulação de todos os possíveis ilícitos disciplinares. Ingressaria o legislador[23] em uma cruzada invencível, ainda mais se entender que a subsidiariedade e a fragmentariedade devem ficar adstritas ao Direito Penal e não alcançar outros ramos do Direito.
Por outro lado, entretanto, não pode ficar o servidor totalmente ao arbítrio da autoridade disciplinar que, de acordo com seu estado de humor, decidirá o que é e o que deixa de ser infração funcional.
Dessa forma, data maxima venia, ousa-se discordar daqueles que postulam a atipicidade em Direito Administrativo Disciplinar, sendo mais apropriado sustentar que vige nesse “ramo” do Direito – especialmente em Direito Administrativo Disciplinar Militar – a tipicidade moderada, ou “tipicidade mitigada”, como será doravante referida.
Basta que se analise o texto dos regulamentos disciplinares das forças militares para que se note que a atipicidade não se afigura como princípio geral aplicável a todas as espécies de ilícito disciplinar.
Em Pernambuco, por exemplo, o Código Disciplinar dos Militares do Estado[24] é organizado em parte geral e parte especial. Ao definir especificamente as transgressões disciplinares, foi feliz o legislador daquela Unidade da Federação ao expor, com clareza e concisão, os elementos caracterizadores de cada ilícito disciplinar, como dispõe, in exemplis, o artigo 80, que consigna como transgressão disciplinar o fato de o militar “dar conhecimento de fatos, documentos ou assuntos militares, a quem deles não deva ter conhecimento e não tenha atribuições para neles intervir”.
Obviamente, há válvula para que outras condutas sejam reprimidas sem que estejam capituladas na parte especial[25], todavia essa exceção não afasta a tipicidade, mas somente postula em favor de um abrandamento, uma mitigação desse princípio na esfera de Direito tratada.
O cenário jurídico não é diferente em outros Estados, ou mesmo nas Forças Armadas, sempre havendo transgressões disciplinares especialmente delineadas, com maior ou menor espectro de incidência.
Diriam alguns, em conclusão, que o princípio da atipicidade aplicar-se-ia somente ao servidor público civil, vez que os militares, até mesmo pela rigidez de seu regime jurídico, possuem restrições sui generis que devem ser bem delineadas, daí a necessidade de uma tipicidade mitigada.
Não é o que se verifica na contemporaneidade. Há atualmente uma clara tendência na elaboração dos diplomas disciplinares, em âmbito do serviço público civil, de se garantir um mínimo aceitável em definição transgressional, como ocorre com a lei que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos da União[26] que, se não traz em seu bojo faltas disciplinares em espécie, consigna, no mínimo, os deveres e proibições[27] afetas a essa categoria de servidores, significando que somente haverá falta funcional com a afronta desses postulados.
Tal tendência, ressalte-se, deve ser não só acolhida com bons olhos, mas exigida, porquanto vai ao encontro da segurança jurídica, inarredável princípio no Estado Democrático de Direito.
Por derradeiro, cumpre sustentar que, se aqui se busca uma similitude com o fato típico penal, todos os elementos que o integram devem ser analisados. Em outras palavras, deve haver no tipo transgressional, ainda que de forma genérica, a conduta descrita com seu elemento subjetivo (um tipo disciplinar subjetivo) sem o qual não haverá que se falar em tipo transgressional.
Como suscitado acima, a teoria finalista da ação deslocou a análise do elemento subjetivo para a conduta, um dos elementos do fato típico. Significa dizer que para que uma conduta seja digna de avaliação penal, deve ser direcionada na intenção de produzir o resultado (dolo) ou, no mínimo, deve ser dotada de um descuro tal que leve ao desvalor da ação (culpa). Neste ponto, a avaliação de dolo e de culpa na conduta chegam mesmo a tangenciar a avaliação de culpabilidade – principalmente na terceira acepção trazida por Bitencourt, acima transcrita, em que culpabilidade é entendida como limite à responsabilidade penal objetiva – o que somente faz valer a máxima de que o delito, apesar de suas cisões didáticas, é fato único, representado pelo termo alemão Tatbestand[28].
Pois bem, no caso do ilícito disciplinar, a conduta também deve ser provida de tal elemento subjetivo, sob pena de indesejável responsabilização objetiva. A esta discussão serão somados argumentos abaixo, quando se tratar da culpabilidade.
Obviamente, também há necessidade de que haja um resultado, se assim exigir a norma disciplinar. Há casos, porém, em que a transgressão disciplinar abre mão de um resultado naturalístico, aproximando-se, pois, de um delito formal. Sempre haverá, entretanto, um resultado jurídico a ser apurado, imputável a alguém por inequívoco liame causal.
Presentes esses elementos – conduta, resultado, nexo causal e tipicidade mitigada – surge o fato típico disciplinar.
4.2. Antijuridicidade da transgressão disciplinar militar
Ter-se-ia em segundo momento uma análise da antijuridicidade, entendida como a contrariedade da ação com o ordenamento jurídico, interferindo nesse juízo as causas excludentes de antijuridicidade que podem abranger circunstâncias legais e supralegais, tornando um fato, prima facie tido por ilícito, “autorizado” pelo ordenamento jurídico.
Em sede disciplinar, basta dizer que os regulamentos militares consagram as causas que excluem a antijuridicidade, em regra, sob o título “causas de justificação” ou “causas justificantes”. Não obstante consignem alguns diplomas que, em se verificando tais causas, não haverá pena ou “não haverá aplicação de sanção disciplinar”, não identificando exatamente o campo de incidência, são tais circunstâncias verdadeiras excludentes de ilicitude do fato transgressional, não se podendo falar em ilícito disciplinar quando forem evidenciadas.
Tome-se por base o que prevê o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo[29], que em seu art. 34 consigna:
“Artigo 34 – Não haverá aplicação de sanção disciplinar quando for reconhecida qualquer das seguintes causas de justificação:
I – motivo de força maior ou caso fortuito, plenamente comprovados;
II – benefício do serviço, da preservação da ordem pública ou do interesse público;
III – legítima defesa própria ou de outrem;
IV – obediência a ordem superior, desde que a ordem recebida não seja manifestamente ilegal;
V – uso de força para compelir o subordinado a cumprir rigorosamente o seu dever, no caso de perigo, necessidade urgente, calamidade pública ou manutenção da ordem e da disciplina.”
Como se verifica, o diploma em questão enumera como circunstâncias que obstam a sanção disciplinar, uma causa reconhecidamente excludente de antijuridicidade em Direito Penal (a legítima defesa) e outra tida como excludente ou mitigadora de culpabilidade (a obediência hierárquica). Deve-se ressaltar que embora o diploma mencione a não aplicação de pena, o artigo foi concebido sob a rubrica “causas de justificação”, o que transmuda a excludente de culpabilidade em excludente de antijuridicidade ou de ilicitude disciplinar. Essa abordagem deve ser a mesma em todo e qualquer diploma disciplinar, porquanto o que é lícito ou ilícito cabe ao legislador decidir e, como no caso analisado, se ele preferiu enumerar como causa excludente de ilicitude, clássicas excludentes ou mitigadoras de culpabilidade, que assim seja.
Todavia, surge ainda a necessidade de se considerar ou não a possibilidade de causa supralegal a excluir a ilicitude disciplinar.
Partindo-se do exemplo do cirurgião plástico (item 3.2), pode-se usar exemplo semelhante, ou seja, um médico de uma corporação militar que efetua cirurgia reparatória em um paciente, também militar. Mais próximo ainda da realidade, o que dizer da vasectomia? Não consiste seu procedimento em verdadeira lesão? A resposta é afirmativa, mas nem por isso está-se diante de uma transgressão disciplinar.
Dessa forma, pode-se concluir que é perfeitamente aceitável causas excludentes da ilicitude disciplinar sem expressa previsão legal, como o consentimento do ofendido nos exemplos supra.
4.3. Culpabilidade no direito administrativo disciplinar
O ponto de partida deve sem dúvida ser a primeira acepção da culpabilidade, ou seja, aquela integrante do próprio delito.
Sob esse prisma, não se enxerga óbices para a adaptação dos elementos da culpabilidade (teoria normativa pura) em sede administrativa disciplinar.
Sem embargo, para o reconhecimento da culpabilidade, o agente deve ser capaz de ser responsabilizado, ter consciência, ainda que em potencial, da ilicitude do ato e conduta diversa não pode ser exigível.
A propósito da capacidade para ser culpável, deve-se ressaltar que não há, em se tratando de ilícito disciplinar militar, a discussão acerca da maioridade, pois, uma vez incorporado à força militar poderá suportar o peso do estatuto disciplinar correspondente, independentemente de sua idade. A inimputabilidade, dessa forma, será apenas argüida sob a invocação de insanidade mental.
Em abordagem mais abrangente da culpabilidade, surge o questionamento acerca da possibilidade de se afastar ou não a sanção disciplinar do agente que age sem culpa (lato). Em outras palavras, poderá haver transgressão disciplinar sem o preenchimento do elemento subjetivo?
Magistral a contribuição de Fábio Medina ao discorrer sobre a culpabilidade em sua “Teoria da Responsabilidade do Agente”, que assim sacramenta:
“Não se discute a existência de um princípio constitucional da culpabilidade no direito penal, princípio que decorreria do conjunto destas garantias. Não se tolera responsabilidade penal objetiva, sem dolo ou culpa, sem os fundamentos e pressupostos da responsabilidade subjetiva. Não há dúvidas a esse respeito.
Ficaria o princípio da culpabilidade adstrito, na produção de seus efeitos e reflexos, ao campo penal? Parece-me evidente que não. E isso por que tal princípio não tem natureza essencialmente penal, mas sim constitucional. É um princípio constitucional genérico que limita o poder punitivo do Estado. Trata-se, nesse passo, de garantia individual contra o arbítrio, garantia que se corporifica em direitos fundamentais da pessoa humana.
Culpabilidade é uma exigência inarredável, para as pessoas físicas, decorrente da fórmula substancial do devido processo legal e da necessária proporcionalidade das infrações e das sanções, sendo imprescindível uma análise da subjetividade do autor do fato ilícito, quando se trate de pessoa humana.” [30]
“Irretocável(!)”, esse é o adjetivo apropriado para a lição consignada.
A sustentação de que o princípio da culpabilidade tem espectro muito maior que aquele delimitado pelo Direito Penal é na verdade a exaltação de que não se admite, no estágio atual de desenvolvimento do raciocínio jurídico, que alguém seja responsabilizado por uma conduta sem que haja culpa (sentido lato). Falar-se-ía, portanto, não só em Direito Penal, mas em um “Direito Sancionador da Culpa”, que teria por linha mestra a limitação do direito de punir do Estado pela culpabilidade.
Note-se que a presente formulação não é apenas elucubração abstrata com o escopo de “engessar” a Administração Pública a ponto de evitar a busca pela eficiência – hoje princípio constitucional, seja na correção de atitudes do servidor, seja, em estágio último, na depuração interna.
A discussão do assunto, ao contrário, é tema atual e de profunda aplicação prática, permitindo, inclusive, a aceitação da “teoria da culpabilidade” em direito disciplinar nas três vertentes apontadas por Bitencourt.
Para melhor clarear o campo sobre o qual se pisa, deve-se trabalhar com exemplos.
Tome-se, como primeiro caso, o servidor militar que fere alguém, por disparo de arma de fogo, agindo, porém, sob uma dirimente putativa, a legítima defesa. Imagine-se, para limitar as ilações contrárias, que cabalmente ficou demonstrado em processo-crime que o agente equivocou-se em sua compreensão da realidade, possibilitando sua absolvição por exclusão da culpabilidade, evidenciando o erro de proibição[31], se se tratar de crime comum, ou erro de fato, se se tratar de ilícito penal militar, considerando neste último caso que o ilícito está abrangido por uma das alíneas do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar e que as circunstanciam conduzem à conclusão de que não se tratou de ato doloso contra a vida de civil.
Frente à absolvição, nos termos transcrito acima, a autoridade disciplinar estaria compelida a impor sanção, pois não há causa de justificação que dê guarida à conduta. Estaria, destarte, diante de um dilema: deveria punir um militar do Estado sem culpa, especificamente afeta à primeira acepção da culpabilidade, vez que o agente não tinha consciência da ilicitude, pois pensava estar amparado por excludente de antijuridicidade (legítima defesa real).
Note-se que o inciso III do citado art. 34, ao mencionar legítima defesa, não abrange a legítima defesa putativa, figura estranha ao Regulamento Disciplinar.
Veja-se outro caso. Um comandante de Unidade, frente ao parecer favorável da Consultoria Jurídica, celebra contrato, após regular procedimento licitatório, com uma empresa fornecedora de gêneros. Ao ser submetido ao crivo do Tribunal de Contas do Estado, verifica-se irregularidade na avença, irregularidade essa de cunho técnico-jurídico, que deveria ser apontada pelo Procurador do Estado em sede preliminar. Com efeito, ninguém pode alegar o desconhecimento da lei, porém, deve-se ter em conta que o servidor não agiu com a plena consciência de que praticava fato repudiado pelo Direito, mormente porque sua categoria profissional não tem como requisito a formação jurídica. Acerca do conflito entre o erro de proibição e a ignorância da lei, postula Francisco Muñoz:
“El tratamiento del error de prohibición es doctrinalmente muy discutido. Al principio se consideraba que el error de prohibición no debía ser relevante en ningún caso (error iuris nocet); pero este planteamiento ni siquiera se mantiene ya en el ámbito del Derecho civil (cfr. art. 6 Cc). Pronto se observó que, además de ser injusto, planteaba en la práctica serios problemas porque muchos tipos penales se refieren a disposiciones administrativas cambiantes (“normas penales en blanco”) y porque el error no siempre se refiere a la norma prohibitiva, sino a la existencia de una causa de justificación o a los presupuestos fácticos de dicha causa. Ante ello, la jurisprudencia comenzó a distinguir entre el error de hecho (relevante) y el error de Derecho, que en principio era irrelevante, pero que empezó a considerar-se relevante cuando recaía sobre una norma de carácter extrapenal.” [32]
Indiscutivelmente, a questão apresentada seria relevante penalmente, porém há que se questionar se o erro de proibição traria reflexos na esfera disciplinar.
Já se afirmou, no início deste raciocínio, que há aqueles que o reconhecem, citando-se como exemplo Edmir Netto de Araújo. De certo, a incidência em erro sobre a ilicitude do fato, comungado à inexigibilidade de conduta diversa, são fortes argumentos a afastar a responsabilidade disciplinar, sob pena de aceitação de responsabilidade objetiva.
Nas condutas acima, tratou-se de uma das acepções da culpabilidade, ou seja, não haveria o ilícito em razão do não preenchimento de seus requisitos – nos exemplos consignados, especificamente a consciência da ilicitude e, quiçá, a inexigibilidade de conduta outra que não a praticada pelo agente.
Poder-se-ía, ainda, trazer à baila, para exemplificar totalmente a acepção tratada, caso de ilícito disciplinar praticado por agente mentalmente insano (comprovado por laudo médico), quando se discutiria sua inimputabilidade.
Nas outras conotações da culpabilidade, deve-se lembrar que o tipo transgressional, ainda que mitigado, contempla o elemento subjetivo, indicando a necessidade de que se evidencie o dolo ou a culpa. Em outras palavras, a mera voluntariedade não é suficiente para a responsabilização do servidor militar.
Da conjugação das duas acepções, surgiria a sedimentação da impossibilidade de punição de um subordinado. Nesse sentido, abuse-se um pouco mais das sempre preciosas lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, ao discorrer sobre o elemento subjetivo do ilícito de improbidade administrativa – na sua visão, ilícito de ordem civil e política – aduz:
“O enquadramento na lei de improbidade exige culpa ou dolo por parte do sujeito ativo. Mesmo quando algum ato ilegal seja praticado, é preciso verificar se houve culpa ou dolo, se houve um mínimo de má-fé que revele realmente a presença de um comportamento desonesto. Quantidade de leis, decretos, medidas provisórias, regulamentos, portarias torna praticamente impossível a aplicação do velho princípio de que todos conhecem a lei. Além disso, algumas formas admitem diferentes interpretações e são aplicadas por servidores públicos estranhos à área jurídica.”[33]
Foge ao escopo deste raciocínio, esmiuçar a acepção da culpabilidade como condicionante quantitativa de sanção disciplinar. Basta apenas indicar que, a exemplo do art. 59 do Código Penal ou do art. 69 do Código Penal Militar, deve-se ter em conta na cominação da sanção disciplinar, o grau de culpa (em sentido lato – intensidade do dolo ou o grau de culpa) do agente.[34]
6. “Teoria tripartite da transgressão disciplinar”
Sustentada não só a viabilidade de reconhecimento de elementos integrantes do ilícito disciplinar, mas também a necessidade de instalação de um Direito Sancionador da Culpa, cumpre questionar qual a fórmula a ser seguida pela autoridade disciplinar para não punir o seu subordinado – evitando injustiças – com base nos postulados supra.
Partindo de derradeira análise da culpabilidade – apenas com o escopo de exaltar aquilo que se considera essencial discutir – deve-se entender que a ausência de elemento subjetivo, ou a existência de elemento subjetivo diverso daquele suscitado pelo tipo transgressional, impede a imposição de sanção disciplinar, sob pena de se instalar uma responsabilidade disciplinar objetiva, agredindo, pois, o princípio constitucional da culpabilidade.
Entretanto, pode-se evitar a responsabilização disciplinar ainda quando do início da análise do ilícito, por exclusão de seus elementos. Em outros termos, a ausência de ação típica disciplinar (positiva ou negativa), de antijuridicidade ou de culpabilidade, inviabilizam o sancionamento do agente, por simples declaração, obviamente motivada, de inexistência de ilícito administrativo disciplinar militar.
Poder-se-ia, por exemplo, sustentar a existência de causas justificantes supralegais, trazendo ao problema a equação necessária para a não responsabilização disciplinar.
Outra alternativa seria a defesa de que a culpabilidade integra o conceito estrutural da transgressão disciplinar – e aqui reside o ponto mais polêmico e, em conseqüência, mais palpitante do tema – favorecendo, destarte, a elaboração de uma “teoria tripartida” dessa espécie de ilícito.
Nesse diapasão, transgressão disciplinar seria definida como conduta típica (caracterizada por uma “tipicidade mitigada”), antijurídica (não simétrica ao Direito Penal, vez que a “lei disciplinar” poderia enumerar como causas de justificação não só as excludentes de antijuridicidade reconhecidas no Direito Penal, mas também aquelas afetas à exclusão de culpabilidade) e, por fim, culpável.
Como culpável deve-se compreender o fato reprovável no grupo em questão – inclusive levando-se em consideração os usos e costumes daquele grupo, fator preponderante e até mesmo verdadeira fonte normativa nas instituições militares. Obviamente, deveriam estar presentes os elementos positivos da culpabilidade (teoria normativa pura), ou seja, imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
A sedimentação de citada teoria propiciaria um deslinde adequado às questões disciplinares afetas à culpabilidade, como os exemplos supracitados, permitindo que a autoridade disciplinar, em vez de reconhecer a existência de uma causa supralegal que impeça a imposição de sanção, ficando assim sujeita a interpretações desfavoráveis que a imputariam a inobservância da legalidade (podendo gerar, inclusive, efeitos inerentes à lei “anti-improbidade”[35]), simplesmente declare, por decisão fundamentada, a inexistência de ilícito disciplinar.
7. Conclusão
Há que se ratificar o escopo principal deste trabalho, afastando-se, como já dito, a visão de que se pretende estagnar a repressão transgressional, depondo contra o princípio da eficiência e, por conseqüência, fomentando uma Administração Pública “amadora”, sem o comprometimento inerente à sua existência: o atendimento dos anseios e rogos coletivos.
O que se pretende, de fato, é propiciar a estabilidade nas relações disciplinares afetas aos servidores públicos, neste caso especificamente direcionada aos militares dos Estados, fomentando a segurança jurídica dessas relações. Quer-se ainda, que o novel princípio da eficiência não tenha leitura tosca, desmedida, segundo a qual os fins justificam os meios, fomentando dessa forma, com a devida permissão para parafrasear o caríssimo Professor Osvaldo Duek[36], uma “responsabilidade disciplinar flutuante”, à busca de alguém a ser punido.
De forma paralela, mas não menos importante, busca-se uma alternativa para evitar o cometimento de impropriedades – injustiças, em verdade – em que uma absolvição por reconhecida excludente de culpabilidade possa não obstar, por exemplo, a exclusão de um militar, a despeito da verificação de que qualquer um, até mesmo a autoridade disciplinar julgadora, teria comportamento idêntico nas circunstâncias fáticas apresentadas.
Urge, pois, a necessidade de maior dedicação à “Teoria Geral do Ilícito Disciplinar”, razão pela qual espera-se que este trabalho inicie a combustão em discussões variadas, não só favoráveis aos argumentos expostos, mas principalmente dotadas de construtivas críticas.
Vultus animi janua est!
Capitão da Polícia Militar do Estado de São Paulo, servindo na Corregedoria da Instituição. Bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público. Especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Polícia Judiciária Militar do Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES) e de Direito Penal Militar da Academia de Polícia Militar do Barro Branco
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