Teorias da ação: do romanismo à concepção clássica

Resumo: Busca-se com o presente artigo traçar um paralelo entre a evolução histórica das teorias da ação – do romanismo à concepção clássica – e a paulatina independência do direito processual em relação ao direito material.

Palavras-chave: Processo civil – teorias da ação – romanismo – teoria clássica.

O estudo da evolução histórica da teoria da ação está diretamente relacionado à paulatina independência do direito processual em relação ao direito material[1].

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Até meados do século XIX, o Direito Processual Civil não era considerado um ramo autônomo do Direito. Com efeito, "não se tinha consciência da autonomia da relação jurídica processual em face da relação jurídica de natureza substancial eventualmente ligando os sujeitos do processo"[2]. Não se vislumbrava, à época, a possibilidade de a ação ser colocada em um plano distinto do plano do direito material[3].

Nesse contexto, a ação era vista, não como um direito próprio, mas sim como uma faceta do direito material. Entendia-se que não havia ação sem direito e que, por conseguinte, a todo o direito corresponderia uma ação que o assegurasse. Havia, portanto, um sincretismo entre as noções de ação e direito material. Nos dizeres de José Maria Rosa Tesheiner[4], um direito sem ação era equiparado a um sino sem badalo, isto é, um direito que não se podia fazer valer em juízo.

Tal concepção remonta ao Direito Romano, conforme a célebre frase de Celso: actio nihil aliud est quam jus persequendi in judicio quod sibi debetur[5]. De acordo com GALENO LACERDA[6], "só teria ação efetivamente o titular do direito subjetivo material". Noutras palavras, a existência do direito material conferia ao seu titular a possibilidade de exercer uma ação"[7]. Logo, "a actio nada mais era do que a própria declaração do jus"[8]. Nesse prisma, "afirmar que a cada direito corresponde uma ação significa também reconhecer que somente há direito quando existe uma forma de exercê-lo judicialmente"[9].

É oportuno destacar que o pensamento de Celso deve ser compreendido dentro de uma perspectiva histórica. Segundo ARAÚJO COSTA[10], a atuação judiciária do Direito Romano era seletiva, já que os magistrados somente tinham a possibilidade de atuar dentro das fórmulas predefinidas. Dessa forma, "uma situação concreta somente poderia ser levada à apreciação judicial nos casos em que havia previamente a definição de uma actio".

Como se pode constatar, a concepção romanista acerca da ação referia-se a sistemas jurídicos em que não existia uma jurisdição universal, ou seja, em que o poder dos juízes era limitado ao reconhecimento e manejo das ações previamente determinadas[11]. Com o surgimento dos Estados modernos – nos quais se consolidou o princípio de que qualquer demanda pode, em tese, ser levada ao Judiciário[12] – percebeu-se que o pensamento romanista precisava de adequações.

Surgiu, então, a teoria civilista da ação – também chamada de clássica, monista ou imanentista – cujo maior expoente foi o alemão Savigny. Conforme se demonstrará a seguir, referida concepção não significou uma ruptura com o modelo anterior, mas sim uma releitura do pensamento romanístico, de modo a adaptá-lo ao novo contexto político e jurídico que surgia.

Para Savigny, a ação não era uma faceta do direito material, mas sim um direito novo, resultante da "'transformação' pela qual o direito material passaria após ter sido lesado"[13]. Consoante precisa síntese de GALENO LACERDA[14], "o devedor, não pagando, estava lesando o direito subjetivo do credor, e por causa do fato novo da lesão surgia um direito novo de ação, o direito de reclamar em juízo a satisfação do direito subjetivo lesado". Noutro dizer, nem todo direito material teria uma ação correspondente, mas apenas os direitos materiais violados. Assim, o objeto da ação não seria a prestação inicialmente ajustada, "mas o direito de exigir judicialmente o cumprimento das obrigações definidas na relação original"[15], ou seja, o direito de invocar uma prestação jurisdicional.

Essa visão proposta por Savigny permitiu que o modelo romanista fosse compatibilizado com as novas realidades políticas dos Estados modernos. Com efeito, entender que a ação configura um direito novo significa o reconhecimento da possibilidade de se invocar a jurisdição em qualquer caso que uma pessoa julgasse ter tido violado um direito[16], e não apenas nas hipóteses em que o ordenamento jurídico previsse tal possibilidade. Nos dizeres de ARAÚJO COSTA[17],

"Os direitos judicializáveis não mais eram limitados aos casos em que a existência da ação permitia o acesso ao Judiciário. A universalização da jurisdição fez com que a existência de um direito subjetivo fosse motivo suficiente para invocar a prestação jurisdicional, sendo expressamente vedada a decisão pelo non liquet".

Seria tal concepção um indício de que o processo estaria se tornando autônomo em relação ao direito material? Os críticos dessa teoria entendem que não. Aliás, a noção de que a ação seria um "direito novo" foi acusada de ser uma inútil duplicação do próprio conceito de direito, pois, se a ação nasce da violação de um direito material, não se pode dizer que ela seja um direito autônomo em relação àquele[18].

Assim, "a vinculação entre direito de ação e violação do direito subjetivo manteve intacta a perspectiva civilista, em que o processo continuou sendo visto como uma decorrência do direito material"[19].

A grande crítica que se faz em relação à teoria clássica diz respeito à sua incapacidade de explicar os casos de improcedência do pedido ou de carência de ação. Ora, se o direito de ação surge em razão da violação de um direito subjetivo, como justificar a existência do direito de ação naqueles casos em que Poder Judiciário afirma a inexistência do direito alegado ou quando afirma que o autor era carecedor do direito de ação? Esta análise mostra que não se pode confundir o direito de ação com o direito material.

Além disso, critica-se a teoria civilista, por não ser aplicável ao Direito Penal. De fato, o entendimento de que o direito de ação decorre de uma relação privada entre as partes não se coaduna com o caráter publicístico do processo penal. Assim, os defensores de uma teoria geral do processo criticam o fato de a teoria de Savigny não ser aplicável a todas e quaisquer ações que possam ser dirigidas ao Poder Judiciário[20].

Por fim, a teoria clássica também não explica a hipótese de ajuizamento de ações declaratórias negativas. Como se sabe, referida modalidade de ação tem como objetivo a declaração de inexistência de relação jurídica entre autor e réu. Ora, se não há qualquer relação jurídica entre as partes, como justificar, sob a ótica civilística, a existência do direito de ação neste caso?

Fica evidente, portanto, a necessidade que se tem de desvincular o direito processual da noção civilística de direito material, passo este que será dado pela Teoria Moderna da Ação.

 

Referências
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo et al. Teoria geral do processo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Conceito de ação: da teoria clássica à moderna. Continuidade ou ruptura? Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, v. 19, n. 76, out./dez. 2011. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/42769>. Acesso em: 18/11/2012.
LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2007.
TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993.
 
Notas:
 
[1] LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 210.

[2] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo et al. Teoria geral do processo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 42.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 161.

[4] TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 85.

[5] Ação nada mais é do que o direito de perseguir em juízo aquilo que lhe é devido.

[6] LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 211.

[7] COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Conceito de ação: da teoria clássica à moderna. Continuidade ou ruptura? Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, v. 19, n. 76, out./dez. 2011, p. 6. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/42769>. Acesso em: 18/11/2012.

[8] LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 216.

[9] IDEM, p. 7.

[10]        COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Op. cit. P. 6.

[11] IDEM. IBIDEM.

[12] IDEM, p. 7.

[13] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 163.

[14] LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 211.

[15] COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Op. Cit. P. 7.

[16] IDEM, p. 8.

[17] IDEM, IBIDEM.

[18] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2007, p. 162.

[19] COSTA, Henrique Araújo; COSTA, Alexandre Araújo. Op. Cit. P. 8.

[20] LACERDA, Galeno. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 212.


Informações Sobre o Autor

Beatriz Monzillo de Almeida

Procuradora Federal. Pós-graduação em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Graduação em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.


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