Direito Constitucional

A necessidade de controle por parte do Congresso Nacional sobre o Decreto n° 9.199/2017 que regulamenta a Nova Lei de Migração

Autores:

Denise Jupi de Lima, Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Araraquara. (e-mail: denise_jupi@hotmail.com)

Pedro Reinaldo Campanini, advogado, mestre em Direito, professor de Direito Constitucional na Universidade Paulista de Araraquara. (e-mail: pedrocampanini@gmail.com)

 

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar um tema de grande destaque no contexto atual, o fenômeno das migrações, principalmente no âmbito jurídico. Neste caso, será feita a avaliação do arcabouço jurídico internacional que rege os Direitos Humanos e contempla também o migrante como sujeito de direitos, principalmente diante da situação vulnerável que se encontra. Com ênfase no contexto nacional tem a finalidade de esclarecer o advento da nova Lei de Migração n° 13.445/2017 e suas principais diretrizes baseadas na Constituição da República de 1988 e Tratados Internacionais, representando assim um avanço legislativo pautado na universalidade de direitos. No entanto, a referida lei encontra obstáculos para sua efetivação, dentre estes, o Decreto n° 9.199/2017 que a regulamenta, pois este apresenta inúmeras divergências com relação à própria lei, desvirtuando a sua finalidade. Nesse sentido, parece necessário o controle sobre o ato regulamentador do Poder Executivo, a ser realizado pelo Congresso Nacional por meio de decreto legislativo conforme prevê a Constituição Federal.

Palavras-chave: Imigração. Nova Lei de Migração. Direitos Humanos. Decreto 9.199/2017. Ilegalidade.

 

Abstract: The present article aims to analyze a theme of great notoriety in the current context, the phenomenon of migrations, mainly in the legal scope. In this case, the international legal framework that governs Human Rights will be evaluated, and consider the migrant as a subject of rights, especially in the face of the vulnerable situation. With emphasis on the national context, it aims to clarify the advent of the new Migration Law 13.454/2017 and its main guidelines based on the Constitution of the Republic of 1988 and International Treaties, thus representing a legislative advance based on the universality of rights. However, that one encounters obstacles to its implementation, among them, Decree 9.199/2017, which regulates it since it presents numerous divergences with respect to the law itself, distorting its purpose.
In this sense, it seems necessary to control the regulatory act of the Executive, to be carried out by the National Congress through a legislative decree as provided for in the Federal Constitution.

Keywords: Immigration. New Migration Law. Human rights. Decree 9.199/2017. Illegality.

 

Sumário: Introdução. 1. O ordenamento jurídico brasileiro e a imigração. 2. Nova Lei de Migração e a ênfase nos direitos humanos. 3. Ilegalidades no Decreto 9.199/2017. 4. Necessidade de controle sobre o Decreto 9.199/2017. Conclusões.

 

Introdução

A imigração é algo inerente à natureza humana. Desde a antiguidade os povos sempre estiveram em movimento. No final do século XV os movimentos migratórios intensificaram-se, principalmente com o surgimento e a ampliação de fluxos comerciais ao longo da costa africana e asiática e o início do processo de colonização do continente americano.

A partir do século XIX, o desemprego, fome e guerras, fizeram com que milhões de europeus deixassem sua terra natal rumo à América, África, Austrália e Nova Zelândia (calcula-se que tenham sido mais de 40 milhões). No mesmo período milhões de asiáticos, principalmente chineses, tomaram o mesmo destino.

Hodiernamente as correntes migratórias permanecem intensas, seja por motivos econômicos, climáticos ou por conflitos/perseguições étnicas, políticas ou religiosas.

Por influência da Globalização, o impulso para mudar de país encontra-se fortalecido tanto pelo transporte intercontinental, quanto pelo maior conhecimento sobre o mundo, o que facilitou os deslocamentos para regiões mais distantes.

Há importante crise imigratória nos dias atuais que se torna problema de alcance mundial, principalmente porque que as pessoas envolvidas encontram-se normalmente em situações de desrespeito de seus direitos fundamentais.

Zygmunt Bauman, em seu livro “Estranhos à nossa porta” (p. 85), descreve um fenômeno que classifica como desumanização dos migrantes, ele afirma que:

“Ocorre uma certa desumanização que abre caminho, à exclusão da categoria de seres humanos legítimos, portadores de direitos, e leva, com nefastas consequências, à passagem do tema da migração da esfera da ética para a das ameaças à segurança, prevenção e punição do crime, defesa da ordem e, de modo geral, ao estado de emergência comumente associado à ameaça de agressão e hostilidades militares.”

Atualmente há instrumentos jurídicos internacionais que buscam proteger o migrante. Tais normas partem do pressuposto de proteção dos necessitados, objetivando remediar os efeitos dos desequilíbrios e das disparidades, pois o imigrante nunca se encontra em situação de igualdade com os cidadãos do país em que busca ingressar.

Nesse sentido, podemos citar como importante diploma de proteção à essa condição de vulnerabilidade do imigrante, muitas vezes clandestinos ou ilegais, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, destacando os artigos 13, 14, 15 e 28.

Segundo Baeninger (2018, s.p.), a Declaração Universal de Direitos Humanos reconhece o direito à liberdade de movimento com o foco na emigração (permitindo a saída de pessoas de seus Estados), porém, não faz menção à permissão da entrada e permanência de imigrantes em território de determinado país ou a cidadania aos residentes imigrantes: “[…] é preciso reconhecer o direito a migrar, o direito a se estabelecer em um território, uma vez que se reconhece o direito a deixar o território do Estado de origem.

Em complemente existem diversos tratados internacionais que se destacam na proteção aos imigrantes:

  • Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (1997 – ainda sem adesão do Brasil)[1];
  • Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965 – ratificada pelo Brasil em 1968);
  • Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (adesão do Brasil em 1961)[2];
  • Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (adesão do Brasil em 1992).
  • Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica – adesão do Brasil em 1992).
  • Pacto Global sobre Migração Segura, Organizada e Regular (2018 – adesão do Brasil em 2018).

 

  1. O ordenamento jurídico brasileiro e a imigração

A Constituição da República de 1988 reinstaurou o regime político democrático no Brasil, trazendo um avanço indiscutível na consolidação das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade. Os direitos humanos receberam relevo extraordinário, inclusive possibilitando um progresso significativo no reconhecimento de obrigações internacionais[3] e contribuindo substantivamente para a ratificação pelo Estado Brasileiro de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Sabemos que o reconhecimento dos direitos fundamentais fazem parte de uma construção histórica vivida também pelo nosso país. O histórico das leis de migração se inicia no período do Império e início da República Velha, quando o combate à imigração de algumas etnias (negros, asiáticos e indígenas) começou a se intensificar, dando-se preferência pela imigração europeia (ideias de branqueamento racial).

Após esse período, entre o primeiro governo Vargas (1930-1945) e o regime militar (1964-1985) ocorreram vários momentos de maior repressão em nossa política migratória, como:

– 1930: Decreto que restringia a entrada de imigrantes;

– 1932: Decreto renovado, desta vez proibindo totalmente a imigração;

– 1934: Decretos que criaram regime de cotas para a imigração;

– 1935: a utilização da Lei de Segurança Nacional para expulsar e aumentar restrições à entrada de estrangeiros “indesejáveis”.

Já no período pós-segunda Guerra Mundial começou a ocorrer uma certa abertura para a imigração quando o Brasil firmou acordos com a ONU acerca do recebimento de refugiados, entre eles, grupos que poderiam ser recebidos após a aprovação do governo. Nesse período buscava-se um perfil específico de imigrantes: trabalhadores para o desenvolvimento do país.

Durante a ditadura militar (1964-1985) ressurgiu desejo de restrição e o país se afastou dos regimes internacionais de direitos humanos, fechando-se às migrações internacionais e ao recebimento de refugiados em larga escala, fortalecendo o discurso da segurança nacional. Foi durante esse período que foi criado o Estatuto do Estrangeiro (1980).

Com a redemocratização do país a aceitação aos imigrantes passou por gradativo aumento. Eventos importantes podem ser citados:

– 1996: foi criado o Programa Nacional de Direitos Humanos prevendo a criação de legislação específica para os refugiados e a reformulação do Estatuto do Estrangeiro;

– 1997: a criação do CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados): órgão tripartite, composto por repre­sentantes do Governo Federal, da sociedade civil e do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR);

– 1997 – aprovado o Estatuto dos Refugiados, Lei n° 9.474/1997, considerado moderno e um marco legal de referência para outros países da região, abrange importantes princípios como a não discriminação entre nacionais, so­licitantes de refúgio e refugiados e o non-refoulement[4].

– 2013: apresentação da proposta da Nova Lei de Migração (aprovada em 2017).

 

  1. Nova Lei de Migração e a ênfase nos direitos humanos

Entrou em vigor dia 21 de novembro de 2017 a Nova Lei de Migração n°.13.445 que veio substituir o Estatuto do Estrangeiro. A lei apresenta uma visão contemporânea, em consonância com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, entendendo a migração como um fenômeno da humanidade que precisa de regramento eficaz e simplificado.

A nova legislação coloca o Brasil na vanguarda do acolhimento aos imigrantes[5]. Entre seus avanços destaca-se o reconhecimento de uma série de direitos que até então eram garantidos apenas aos nacionais.

Primeiramente, fica nítido já em seu artigo 1º o repúdio à discriminação e a busca pelo tratamento igualitário: “Esta Lei dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.

Ao conceituar a figura do migrante e do visitante a lei prioriza uma política em prol dos direitos humanitários, abolindo a palavra “estrangeiro”, que remete ao estranhamento e faz com que o indivíduo, que não seja nacional do Estado, não se sinta estranho e rejeitado no local que se encontra, como se um forasteiro fosse.

O artigo 3º ressalta os princípios e diretrizes que serão adotados pela política migratória brasileira, pautada na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; o repúdio e prevenção à xenofobia, racismo e quaisquer formas de discriminação; a não criminalização da migração (proíbe a pronta deportação do imigrante ilegal detido nas fronteiras, que agora terá direito a um defensor público); a acolhida humanitária e inclusão social, por meio do acesso a serviços públicos como programas e benefícios sociais, educação, assistência jurídica integral, trabalho, moradia, serviço bancário entre outros. Também é garantido ao migrante o direito de se associar à reuniões políticas e sindicatos (não previsto ainda o direito ao voto em conformidade com a Constituição).

Já no artigo 4º são enumeradas garantias ao imigrante, além da condição de igualdade com os nacionais já vista, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, direitos estes intimamente correlacionados ao que estabelece o artigo 5 º da Constituição brasileira, demostrando, portanto, o real intento da lei que tem como essência a primazia dos direitos humanos fundamentais.

Outro aspecto relevante é a instituição do visto humanitário, pois até então pela lei brasileira só eram consideradas refugiadas as pessoas que sofriam perseguição ou eram sujeitas a graves violações dos direitos humanos, já as vítimas de desastres naturais e crises ambientais não eram contempladas com o direito de refúgio. Agora com a nova lei, este grupo pode solicitar o visto humanitário, que permite ao imigrante permanecer e trabalhar no país até regularizar sua situação. Esse tipo de visto irá atender demandas específicas, como dos apátridas (outro aspecto importante reconhecido pela lei).

Apesar de ser considerada um marco na legislação brasileira em prol dos Direitos Humanos, a lei também tem sofrido ataques por parte de vários segmentos da sociedade, os setores considerados mais conservadores criticam as grandes possibilidades e oportunidades que passarão a ser conferidas aos indivíduos que não possuem a nacionalidade brasileira (como o direito a participar de associações políticas e outros).

Também veio à tona a opinião popular manifestada através das redes sociais. Segundo pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas[6] durante o período entre a véspera da aprovação pelo Senado e a data da sanção da nova lei, imperou o discurso de ódio[7] em relação à proposta e ao fenômeno migratório, para aquelas pessoas a nova lei promoveria uma entrada massiva de “terroristas, comunistas e traficantes”.

O que mais surpreendeu a equipe no estudo foi a citação ao terrorismo islâmico entre os principais argumentos dos opositores, uma vez que o país não possui casos desse tipo, demonstrando assim a carência de maior reflexão por parte da população sobre os potenciais efeitos da migração para o país.

 

  1. Ilegalidades no Decreto 9.199/2017

A política de migrações no Brasil tem hoje a proteção de direitos humanos como alicerce central, contemplando assim a proteção constitucional da dignidade humana. Nesse sentido, a regularização migratória passou a ser a regra pela lei regente.

Todavia, o Decreto 9.199/2017 promoveu possibilidade de interpretações contrárias à proposta concretizada pela Lei de Imigração.

O decreto têm sido alvo de duras críticas, tanto por parte das organizações da sociedade civil, quan­to da Defensoria Pública da União, pois apresenta lacunas e cria conflitos com a lei regulamentada.

A diminuição de direitos do migrante fica evidente em diversos dispositivos do Decreto que entrou em vigor juntamente com a lei (publicação considerada tardia e incompleta). Claro exemplo está na hipótese de prisão do migrante que será deportado, sendo que o artigo 123 da lei expressamente proíbe privação de liberdade por razões migratórias.

Impeditivo ao apoio ao migrante também se vê no artigo 45, I que, ao regulamentar a concessão de visto temporário para fins de reunião familiar de cônjuge ou companheiro prevista pela nova lei (art. 37, incisos I a IV), adiciona ao texto a expressão “nos termos da legislação brasileira”.

Pode ser citado também o fato de que a lei aprovada no Congresso permite um visto temporário de trabalho para migrantes que comprovem oferta de trabalho, sendo até mesmo dispensada esta exigência se o imigrante “comprovar titulação em curso de ensino superior ou equivalente” (Art. 14, § 5º), enquanto que o artigo 38, I, do Decreto passou a exigir contrato de trabalho consumado e não mais apenas oferta, além do § 5º do mesmo artigo dispensar a oferta de trabalho apenas na “hipótese de capacidades profissionais estratégicas para o país”, trazendo ainda mais restrições.

Tais exemplos configuram uma pequena amostra das deficiências flagrantes do Regulamento quando cotejado ao texto da nova lei de migração.

Para piorar o cenário em janeiro de 2019 o Brasil deixou o Pacto Global de Migração da ONU, acordo que havia assinado em dezembro de 2018. O documento internacional tem como cerne o fortalecimento de direitos dos migrantes. Presume-se com isso uma provável intenção de diminuição de direitos aos migrantes por parte do Poder Executivo brasileiro.

 

  1. Necessidade de controle sobre o Decreto 9.199/2017.

É manifesto, em virtude do artigo 84, IV da Constituição Federal, que o Poder Executivo dispõe de competência exclusiva para expedir regulamentos para a “fiel execução” das leis. Tal procedimento deve se dar pelo decreto presidencial.[8]

Todavia, regulamentar a lei significa jamais desvirtuar seu núcleo, pois o poder regulamentar decorre da edição de ato normativo secundário, dependente da lei anterior, ou seja, o decreto editado não pode ter outra função que não seja dar àquela operacionalidade. Assim, quando houver excesso no poder regulamentar, seja contra a lei (contra legem) ou fora da lei (praeter legem), a ordem constitucional permite evocar não apenas o controle jurisdicional do ato, mas também a atuação pelo Poder Legislativo, na forma prevista no artigo 49, V, que pode se mostrar eficaz e célere.

Podem ser controlados por esse mecanismo os atos normativos do Poder Executivo pertinentes:

  • Ao poder regulamentar (regulamentos editados pela Administração Central e pela Administração Descentralizada para regulamentar a aplicação de leis);
  • Aos limites de delegação legislativa (leis delegadas de que tratam o art. 68 da Constituição). O controle pelo Congresso tem vez, uma vez que o § 2º, do artigo 68 determina que o Congresso editará resolução acerca da forma e do conteúdo da delegação que faz ao Presidente da República para que este edite a chamada lei delegada. Assim, o Presidente da República deve respeitar os limites definidos na resolução, sob pena de ter seu ato controlado (sustado).

Se a lei ou a resolução não tiverem sido editadas, situação nas quais os regulamentos de execução e os delegados, bem como as leis delegadas não podem ser expedidos (só podem ser expedidos regulamentos quando há lei a ser regulamentada, só podem ser realizadas leis delegadas quando houver a delegação).

O art. 49, V, da Constituição permite o controle dos regulamentos de execução e delegados e também dos regulamentos autônomos, primeiro porque a Constituição de 1988 não restringiu apenas as modalidades controladas, segundo porque a separação dos poderes favorece a partilha e o controle das funções entre os poderes e terceiro porque se trata de controle jurídico e não político. É também possível a realização desse controle em relação ao regulamento independente, pois o Congresso estaria fazendo a análise de ato do Executivo editado justamente porque houve omissão de atividade legislativa, ou seja, o Executivo produziu ato sobre matéria que o Legislativo silenciou.

Conforme expresso no art. 49 da Constituição, a competência do Congresso Nacional é apenas para sustar os atos normativos do Poder Executivo que “exorbitem” seus “limites”, vale dizer, apenas a parte excedente, motivo pelo qual, em condições normais, o Congresso não pode dispor sobre a parte do ato normativo controlado que estiver dentro dos limites, do poder regulamentar e da delegação legislativa. Sustar integralmente os atos normativos (mesmo na parte que observa os limites) não só é improdutivo, mas também ofende a separação dos poderes.[9]

“Sustar” significa invalidar, já que há vício jurídico em razão do excesso dos atos normativos do Poder Executivo, motivo pelo qual os atos eventualmente praticados com base na parte da norma sustada devem ser desconstituídos.

Mas o grande desafio desse preceito é efetivamente caracterizá-lo como controle de constitucionalidade e não de legalidade. Em condições normais, os regulamentos são editados em face de leis, daí porque a inobservância de limites importaria em exorbitar primeiro as barreiras da lei, configurando ilegalidade. O mesmo ocorre com as leis delegadas, pois sua edição é feita dentro de limites estabelecidos em resolução do Congresso Nacional, conforme o art. 68 da Constituição, razão pela qual o excesso no exercício da função delegada atingiria primeiro essa resolução legislativa. Tanto no caso do poder regulamentar quanto no da lei delegada, haveria ilegalidade, de modo que a inconstitucionalidade seria alcançada apenas de modo indireto ou reflexo (o que não enseja a classificação como modalidade de controle de constitucionalidade).

No que se refere à possibilidade de ação direta de inconstitucionalidade tendo por objeto decreto regulamentar, o STF já decidiu que[10]:

“O decreto regulamentar não está sujeito ao controle de constitucionalidade, dado que, se o decreto vai além do conteúdo da lei, pratica ilegalidade e não inconstitucionalidade. Somente na hipótese de não existir lei que preceda o ato regulamentar é que poderia este ser acoimado de inconstitucional, assim sujeito ao controle de constitucionalidade.”[11]

Contudo, a previsão do art. 49, V, da Constituição, permite o controle tanto da legalidade quanto da constitucionalidade. Obviamente havendo lei a ser regulamentada e resolução autorizando a edição de lei delegada, a eventual inobservância de limites configurará ilegalidade.

 

Conclusões

A Nova Lei de Migração n° 13.4452/17 representa uma evolução no aspecto legislativo em nosso país, pois com a intensificação das migrações e suas proporções, ficou clara a necessidade de uma nova visão sobre o tema, pautada nos direitos humanos.

No entanto, embora seja uma lei mais moderna e condizente com a normativa internacional, ainda ocorrem muitos impeditivos à sua aplicação, como o Decreto n° 9.199/2017 que a regulamenta e contém muitas barreiras. O Decreto mostra-se deficiente, contradizendo em muitos aspectos a própria lei, o que gerou críticas severas por parte da comunidade jurídica e especialistas em migração. Há diversos empecilhos burocráticos que acabam por dificultar a inclusão dos migrantes na sociedade e a efetivação dos direitos primordiais garantidos na lei.

Por certo o Decreto 9.199/2017 desconsiderou a ampla participação social que ocorreu para a construção do texto da lei. Só por isso, o texto regulamentador merece efetivo reparo por parte do Legislativo.

Aliado a este fato, tivemos recentemente a saída do Brasil do Pacto Global de Migração da ONU, acordo multilateral, não vinculante (portanto não configura violação da soberania como alegado), que tem como intuito aumentar a cooperação internacional sobre o tema e fortalecer os direitos humanos, colocando o foco no indivíduo e em seus direitos. Com essa decisão o Poder Executivo menospreza a tradição de apoio a acordos multilaterais da política externa brasileira, contrariando a natureza da Lei 13.445/2017. Tal ato afeta até mesmo os brasileiros residentes no exterior (a nova lei de imigração contempla um capítulo exclusivamente aos emigrantes).

Assim, diante desse tema de extrema relevância e as sucessivas decisões do Governo brasileiro que claramente vão de encontro aos princípios e garantias expressos na nova Lei de Migração, principalmente em seus artigos 3° e 4°, e de consequência contra os princípios constitucionais, deve o Poder Legislativo socorrer a norma criada. Deve-se combater especificamente o Decreto 9.199/2017 que extrapola e afronta a lei que deveria regulamentar, apresentando visíveis ilegalidades.

Vislumbra-se ainda que apesar de não ser possível, em princípio, a apreciação do texto regulamentar em sede jurisdicional concentrada de controle de constitucionalidade, há uma potencial violação do Texto Maior, estando diante de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua.

Portanto, pode e deve o Congresso Nacional, através de decreto legislativo, sustar as exorbitâncias perpetradas pelo Decreto presidencial de n. 9.199/2017, sob pena da inovadora e importante lei em discussão ter sua essência desrespeitada, impedindo assim a normatividade buscada desde seu projeto.

 

 

Referências:

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BAENINGER, Rosana. Pacto Global da Migração e Direitos Humanos. Publicado em: 07 de maio de 2018. Disponível em: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/rosana-baeninger/pacto-global-da-migracao-e-direitos-humanos>. Acesso em: 27 ago. 2018.

BASÍLIO, Ana Luiza. Entenda o Pacto global de migrações da ONU que o Brasil deixou. Publicado em 10 de janeiro de 2019. Disponível em: http://www.cartaeducacao.com.br/carta-explica/entenda-o-pacto-global-de-migracoes-da-onu-que-o-brasil-deixou/. Acesso em fevereiro de 2019.

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[1] Fixa parâmetros protetivos mínimos a serem aplicados através da aceitação de princípios fundamentais relativos aos tratamento dos trabalhadores migrantes e família, considerando a situação de vulnerabilidade que estas pessoas se encontram (condições de trabalho menos favoráveis e exploração no caso de migrantes trabalhadores não documentados ou em situação irregular). Visa também “a adoção de um olhar mais compreensivo a respeito das diversas dimensões da imigração, que hoje envolve centenas de milhares de pessoas e afeta países de origem, de trânsito e destino”. (PIOVESAN, 2008, p. 212).

[2] Editada para resolver a situação dos refugiados na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Busca esclarecer os direitos e deveres dos refugiados e também dos países que os acolhem.

[3] A Constituição Federal de 1988 estabeleceu como princípios das relações internacionais do país, entre outros, a “prevalência dos direitos humanos” e a “concessão de asilo político” (Art. 4º, II e X). E, no plano interno, garantiu aos estrangeiros residentes no país os mesmos direitos fundamentais dos Cidadãos brasileiros “à vida, à liberdade, à segurança e à proteção” (Art. 5º, caput).

[4] Também chamado de princípio da não-devolução, o non-refoulement diz que um Estado não deve obrigar uma pessoa a retornar a um território onde possa estar exposta à perseguição.

[5] A nova lei foi elogiada inclusive pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que comemorou a aprovação do que considera “uma legislação moderna e em consonância com os princípios da Constituição Federal. ”

[6]A Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV (DAPP/FGV), acompanhou a discussão sobre a temática migratória no Brasil por meio da análise dos 60,5 mil tweets sobre o tema entre 17 de abril e 25 de maio de 2017.

[7] As hashtags mais usadas foram: #vetatemer (22,6 mil), #migracaoveta (1,9 mil), #migracaonao (1,3 mil) e #vetamigracaotemer (1,3 mil).

[8] Embora a principal função do Poder Executivo seja a atividade administrativa, este exerce outras atividades, dentre as quais se destacam a edição de medidas provisórias e o desempenho de funções próprias dentro do processo legislativo. Dentre outras competências, a de expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei sempre gerou controvérsias.

[9] O Supremo Tribunal impõe o respeito a eventual discricionariedade deixada pela Constituição ou pela lei ao titular da função regulamentar, como se constata na Adin MC 748-RS, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello. RTJ 143/510.

[10] ADI 1253 MC, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 30/06/1994, DJ 25-08-1995 PP-26022 EMENT VOL-01797-02 PP-00267.

[11] Os decretos autônomos (ou independentes) estão sujeitos ao controle de constitucionalidade realizado pelo Judiciário, já que são atos nitidamente infraconstitucionais e de caráter normativo.

Âmbito Jurídico

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