Inspirado na política de despenalização e descarcerização para os crimes de menor potencial ofensivo, os Juizados Especiais Criminais foram um verdadeiro marco da reformulação do direito penal pátrio. A partir dele, surgiu, no âmbito penal, a composição civil (art. 74), a transação penal (art. 76), a suspensão condicional do processo (art. 89), bem como a necessidade de representação para os crimes de lesão corporal leve e lesão culposa (art. 88).
Os benefícios constantes na Lei nº 9.099/95 representam, indiscutivelmente, vias promissoras da tão esperada desburocratização da Justiça Criminal, na medida em que permitem a pronta resposta estatal ao delito, a reparação dos danos à vítima, a ressocialização do autor do fato, sua não-reincidência, enfim, uma maior celeridade na prestação jurisdicional, ao menos essa é a filosofia inspiradora do novel instituto.
De acordo com a nova redação dada pela Lei nº 11.313/2006, o art. 60 da Lei nº 9.099/95 dispõe que o Juizado Especial Criminal terá competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência.
São considerados delitos de menor potencial ofensivo, para efeitos da aludida lei, as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima cominada não seja superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
Conforme demonstrado alhures, a Lei no 9.099/95 implementou um novo modelo de Justiça Criminal fundada no consensualismo. A possibilidade de transação penal nas infrações de menor potencial ofensivo, da suspensão condicional do processo, da composição dos danos civis e a representação nas lesões corporais leves ou culposas representam importantes vias despenalizadoras no sistema penal.
Ressalte-se que a referida lei não tratou de nenhuma descriminalização, isto é, não retirou o caráter ilícito das infrações penais. Ocorreu, na verdade, o disciplinamento de medidas despenalizadoras como uma resposta à crise do sistema penal instaurado no ordenamento jurídico vigente, ante a falência do sistema carcerário atual.
Adentrando propriamente no tema em deslinde, faz-se necessário um maior esclarecimento acerca do instituto da transação penal. A Transação penal é um instituto jurídico novo que atribui ao Ministério Público, titular da ação penal pública, a faculdade dela dispor, desde que atendidas as condições previstas na lei, propondo ao autor da infração penal de menor potencial ofensivo a aplicação de pena não privativa de liberdade, sem denúncia e instauração de processo.
Para a aplicação da transação penal, a lei exige que requisitos sejam observados e devidamente preenchidos. Requisito prévio é a existência de condições da ação, não admitindo a formulação da proposta se o caso configurar motivo de arquivamento. Os demais requisitos estão estabelecidos no art. 76, § 2º da Lei 9.099/95.
Proposta a transação penal pelo Ministério Público e aceita pelo autor do fato e seu advogado, deverá ser submetida à apreciação do Juiz. A decisão homologatória implica no controle da legalidade da proposta. Deve a decisão conter a descrição do fato que constituiu a infração penal de menor potencial ofensivo, a identificação do Promotor de Justiça, do autor e demais pessoas envolvidas na contenda, bem como a imposição da pena ajustada na proposta.
Não cabe ao magistrado a análise do conteúdo da proposta, mas sim verificar a legalidade da adoção da medida proposta, sob pena de ofensa ao princípio do devido processo legal, pois há uma nítida separação entre as funções do Ministério Público e do Poder Judiciário não podendo haver usurpação de competências.
A decisão homologatória prevista para a transação penal na Lei 9.099/95, não implica atividade meramente chancelatória por parte do Órgão Jurisdicional, pois, conforme será explanado adiante, a depender de sua natureza jurídica, haverá inúmeras implicações, caso a proposta formulada seja descumprida pelo autor do fato.
O ponto crucial que ensejou o presente trabalho reside nas conseqüências do descumprimento injustificado das condições estabelecidas na sentença da transação penal, em virtude da constatação da lacuna atualmente existente na legislação. Há inúmeras divergências doutrinárias e jurisprudenciais referente às conseqüências processuais decorrentes da inexecução injustificada do acordo celebrado em audiência preliminar.
A pena não privativa de liberdade pode ser restritiva de direitos ou multa. Em relação a esta última, não há maiores controvérsias, pelo menos no que concerne à possibilidade de sua conversão em prisão.
Desde o advento da Lei nº 9.268/96, a pena de multa passou a ser considerada como dívida de valor, sendo vedada, em qualquer hipótese, sua conversão em pena privativa de liberdade. Deve a multa, portanto, ser executada nos termos da legislação processual civil em vigor. Inclusive, não é outro o entendimento já pacificado nos mais diversos Tribunais pátrios.
Há uma verdadeira celeuma jurídica acerca das conseqüências processuais do descumprimento injustificado da transação penal. No entanto, a fim de facilitar o presente estudo, as soluções apresentadas podem, na verdade, ser agrupadas em 5 (cinco) correntes, a saber, a) o magistrado condiciona a homologação da sentença ao efetivo cumprimento da medida transacionada; b) o Ministério Público oferece denúncia por crime de desobediência à decisão judicial, nos termos do art. 359 do Código Penal; c) conversão da pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade; d) o Ministério Público oferece denúncia pelo delito em questão, e, por fim, e) a execução da medida no cível.
A primeira solução apontada consiste em subordinar a homologação da sentença ao efetivo cumprimento da medida pelo autor do fato, evitando que o beneficiado se exima da obrigação transacionada. Há, inclusive, decisões no Superior Tribunal de Justiça propugnando que o acordo de transação penal somente seja homologado após o total cumprimento da obrigação, com o escopo de evitar-se a impunidade.
No entanto, tal posicionamento é criticado por Luiz Flávio Gomes, por ser contrário aos ditames do art. 76, §3º da Lei 9.099/95, além de se estar executando antes, para depois se criar um título executivo.[i] Desta feita, a lei estabelece que a homologação será feita em um momento anterior ao cumprimento, com o fito de que tal medida tenha exigibilidade. Seria um contra-senso, haver a exigibilidade de uma decisão antes mesmo de sua jurisdicionalização.
O segundo entendimento estabelece que o Parquet ofereça denúncia nos moldes do art. 359 do Código Penal. Dispõe o art. 359 do CP: “Exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial”. O delito em questão é comissivo, vez que o núcleo do dispositivo é o verbo “exercer”, que sugere uma ação positiva do agente.
A penas restritivas de direito são 5 (cinco), de acordo com o art. 43 do Código Penal: prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana. Dentre as medidas, somente o descumprimento da interdição temporária de direitos e da limitação de fim de semana é que pode ocorrer por meio de ação, configurando o tipo penal em análise. O descumprimento das demais penas consiste em não fazer, ou seja, em omissão, não abrangida pelo tipo penal do art. 359 do Código Penal. Assim sendo, a aceitação da denúncia pelo art. 359 do CP, em caso de descumprimento da pena convencionada na transação penal, permitiria uma solução apenas parcial, não sendo, portanto, uma solução satisfatória.
A terceira corrente defende a conversão de pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade, sob o argumento de que a transação seria uma assunção de culpa e que não haveria desrespeito aos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, uma vez que o autor do fato renunciaria a tais preceitos.
Primeiramente, há de se ressaltar que não se pode dispor do que é indisponível, pois tais princípios se referem à liberdade individual, sendo, portanto, um bem indisponível. Conforme dispõe a Constituição Federal no art. 5º, inciso LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O devido processo legal inclui os corolários do contraditório e da ampla defesa. Ademais, até o momento em que ocorre a transação penal não há sequer processo. O processo penal só se inicia com o oferecimento da denúncia, não existindo, portanto, processo antes da inicial acusatória.
Sendo assim, conclui-se que a conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade caracteriza situação não permitida no ordenamento constitucional pátrio.
Outros doutrinadores afirmam que o não cumprimento da transação penal tem como conseqüência a retomada do processo com o oferecimento da denúncia por parte do representante do Parquet. Assim, a resistência injustificada no cumprimento do avençado na transação penal, importaria na instauração da instância com o oferecimento da denúncia pelo órgão ministerial se houver elementos e, na falta destes, a baixa dos documentos à delegacia para a instauração de inquérito. Argumentam, em apertada síntese, que a decisão homologatória da transação penal não acarretaria em coisa julgada material, perdendo a sua eficácia pelo descumprimento do acordo.
No entanto, a perda da eficácia se dá pelo descumprimento total ou parcial do transacionado, uma vez que somente o cumprimento integral significa o adimplemento da obrigação. Desta feita, o cumprimento parcial do transacionado e a posterior condenação, ante o descumprimento injustificado da transação poderia levar ao bis in idem.
Ademais, havendo o trânsito em julgado da decisão esta não pode ser desconstituída pelo próprio julgador sentenciante para dar ensejo ao prosseguimento do feito. Além do que a natureza jurídica da sentença homologatória gera eficácia de coisa formal e material, o que impossibilitaria o restabelecimento do processo com o início da ação penal. Pois, uma vez preclusas as vias impugnativas da sentença homologatória da transação penal, há coisa julgada formal e material.
Em posicionamento diverso, existem defensores da execução da medida transacionada já aceita e regularmente homologada. A execução da medida transacionada consiste em proceder com a execução forçada, por meio de execução de fazer, de não fazer, entregar coisa ou pagar quantia certa, nos moldes da Lei Processual Civil. Porquanto, a sentença que homologa a transação penal transitada em julgado reveste-se de título executivo judicial.
Com este entendimento, uma vez não satisfeita a obrigação no prazo estipulado, o credor deverá requerer ao juiz que seja executada a medida, às expensas do devedor, ou que seja convertida em perdas e danos, conforme preceitua o art. 633 do Código de Processo Civil.
O Colendo Superior Tribunal de Justiça tem inúmeros julgados acerca do descumprimento injustificado da transação penal, entretanto, há um evidente dissenso jurisprudencial.
Existem decisões corroborando a tese da possibilidade da conversão da pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade. Em entendimento diametralmente oposto, há uma segunda corrente jurisprudencial, dentro daquele próprio Tribunal, que defende a impossibilidade de tal conversão, uma vez que violaria o princípio do devido processo legal.
Por fim, tendo em vista tudo que foi exposto, sopesadas todas as posições elucidadas pelo mais diversos doutrinadores, assim como os argumentos delineados nas diversas decisões judiciais apresentadas no decorrer desta obra, chega-se às seguintes conclusões acerca do tema em alusão:
Entende-se por transação um contrato típico do direito civil por meio do qual os interessados previnem ou terminam o litígio mediante concessões mútuas, nos termos do art. 840 do Código Civil Brasileiro. Desta forma, a transação é a forma de extinção do litígio que se opera mediante concessões recíprocas entre as partes envolvidas, sendo assim, uma modalidade de autocomposição bilateral.
A transação penal, portanto, é um instituto do direito privado, tendo como correspondente lógico de seu descumprimento a execução. A transação e a execução são institutos correlatos de direito civil e processual civil, respectivamente, pois, a sentença homologatória da transação penal transitada em julgado reveste-se de título executivo judicial.
É exatamente o que ocorre no campo processual civil, com a sentença homologatória da transação, conforme estabelece o art. 475-N, III, do Diploma Processual Civil. Entretanto, é inquestionável que a homologação da transação configure sentença, passível de coisa julgada formal e material, dela derivando o título executivo judicial. Via de conseqüência, não sendo cumprida a obrigação assumida pelo autor do fato, nada se poderá fazer a não ser executá-la.
Dada a circunstância de o art. 269, inciso III, do Diploma Processual Civil, equiparar a sentença de homologatória da transação à sentença de mérito é que o art. 475-N, III, do CPC reconhece-a como título executivo judicial. Deve-se entender por título executivo o ato jurídico dotado de eficácia para viabilizar a pretensão executiva, buscando satisfazer uma obrigação inadimplida.
Cumpre destacar, a impossibilidade da conversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade, pois violaria os princípios maiores consagrados na Carta Magna ao privar a liberdade sem o devido processo legal. Além do mais, a pena privativa de liberdade não atende aos anseios de ressocialização do acusado, ao menos no tocante aos crimes menos graves. Seria um contra-senso com a própria filosofia dos Juizados Especiais Criminais o encarceramento ao invés da aplicação dos substitutivos penais. E o Estado Democrático de Direito não pode prescindir do respeito à Constituição e aos princípios da legalidade e do devido processo legal.
Por outra banda, uma vez homologada a transação penal, com decisão definitiva, não pode mais o membro do Parquet deflagrar a competente ação penal, haja vista a sentença revestir-se com o manto da coisa julgada formal e material.
Assim, resta claro que uma vez descumprida a transação penal deve-se executar o seu objeto. No que tange a pena de multa, nos parece não haver mais controvérsia depois da edição da Lei nº 9.268/96, que sepultou de vez a possibilidade da sua conversão em prisão, consoante previa o art. 85 da multicitada Lei nº 9.099/95. Atualmente, o débito deverá ser inscrito em dívida pública da União para fins de execução. Ou seja, aplicada pena de multa, seu valor será convertido em dívida, inscrevendo-se o crédito na dívida ativa da União Federal, na forma da Lei nº 9.268/96, detendo a Procuradoria da Fazenda Nacional a legitimidade para promover a cobrança executiva, de acordo com a Lei nº 6.830/80.
Aplicada medida restritiva de direitos, a única alternativa em consonância com ordenamento jurídico em vigor, e em respeito aos direitos e garantias individuais esculpidos na Carta Maior, é a execução cível, nos moldes da Lei Processual Civil.
A forma de execução cível da medida depende do tipo de pena aplicada, a saber, execução por quantia certa em caso de penas pecuniárias e perda de bens e valores, execução de obrigação de fazer para as medidas de prestação de serviços à comunidade e limitação de fim de semana, e, execução de obrigação de não fazer em se tratando de interdição temporária de direitos. O juízo competente para a execução da sentença será o próprio Juizado Especial, nos termos do art. 86 da Lei nº 9.099/95, respeitado o limite de 40 (quarenta) salários mínimo disposto no art. 52 da multicitada lei.
Informações Sobre o Autor
Marly Anne Ojaime Cavalcanti de Albuquerque
Defensora Pública do Estado do Ceará. Pós Graduada em Direito Público pela UNIDERP. Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco