«La règle du plus favorable constitue le coeur historique des rapports de la loi et de la convention collective, lorsque ces deux sources sont en concurrence». Georges Borenfreund e Marie-Armelle Souriac,
«Les rapports de la loi et de la convention collective: une mise en perspective», Droit Social, 2003, n.º 1, p. 74.
I. O princípio do favor laboratoris[1]
A recente aprovação do Código do Trabalho português, publicado em anexo à Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, representou, como é óbvio, um acontecimento da maior relevância para todos quantos, directa ou indirectamente, têm o seu quotidiano ligado a este ramo do direito — afinal, a maioria da população portuguesa. Ora, se a relevância do Código do Trabalho é, a todos os títulos, inquestionável, poucos duvidarão de que o art. 4.º constitui uma norma fundamental, um autêntico preceito-chave, na economia do Código. Este artigo analisa-se mesmo, porventura, na mais importante das suas normas, enquanto símbolo de ruptura com o regime jurídico precedente, mas representa ainda, segundo julgo, o caso mais gritante de «publicidade enganosa» naquele contida, visto que o rótulo do preceito não encontra a devida correspondência no respectivo conteúdo.
Na verdade, o preceito codicístico tem como epígrafe «princípio do tratamento mais favorável», não raras vezes designado pela nossa doutrina como «princípio do favor laboratoris». Ora, pode dizer-se que o significado essencial do favor laboratoris, enquanto princípio norteador da aplicação das normas juslaborais — princípio basilar e clássico do Direito do Trabalho, entre nós consagrado no velho e agora revogado art. 13.º/1 da Lei do Contrato de Trabalho (Decreto-Lei n.º 49.408, de 24 de Novembro de 1969) —, se desdobra analiticamente nas seguintes proposições nucleares:
i) O Direito do Trabalho consiste num ordenamento de carácter protectivo e compensador da assimetria típica da relação laboral, desempenhando uma função tuitiva relativamente ao trabalhador assalariado;
ii) Esta função tutelar do Direito do Trabalho é cumprida através de normas que, em regra, possuem uma natureza relativamente imperativa (normas imperativas mínimas ou semi-imperativas, normas de ordem pública social);
iii) Daqui decorre que, no tocante às relações entre a lei e a convenção colectiva, o princípio da prevalência hierárquica da lei deve articular-se com o princípio do favor laboratoris (assim, e em princípio, o regime convencional poderá afastar-se do regime legal, desde que a alteração se processe in melius e não in pejus);
iv) O favor laboratoris perfila-se, pois, como uma técnica de resolução de conflitos entre lei e convenção colectiva, pressupondo que, em princípio, as normas juslaborais possuem um carácter relativamente imperativo, isto é, participam de uma imperatividade mínima ou de uma «inderrogabilidade unidireccional»;[2]
v) Trata-se, afinal, de duas faces da mesma moeda: favor laboratoris e imperatividade mínima das normas juslaborais. Como bem escreve Mercader Uguina, «el criterio de favor se relaciona en el ordenamiento laboral con el jerárquico, del que representa una modalización, en el sentido de que la fuente de intensidad más fuerte prevalece sobre la más débil solamente en orden a la garantía de las condiciones mínimas. Por encima del mínimo, se impone la norma inferior que prevea condiciones más favorables para los trabajadores. La regla de ordenación jerárquica de las fuentes del derecho del Trabajo asume, así, un valor relativo: frente al criterio de favor, la norma de regulación superior se comporta como norma dispositiva y, por tanto, cede ante la regulación de rango inferior, la cual, a su vez, cede ante la norma de regulación superior cuando ésta asegura la garantía de las condiciones mínimas».[3]
Assim sendo, o art. 13.º/1 da Lei do Contrato de Trabalho (LCT) fixava a directriz fundamental em matéria de relacionamento e coordenação entre a lei e a convenção colectiva, ao prescrever que «as fontes de direito superiores prevalecem sempre sobre as fontes inferiores, salvo na parte em que estas, sem oposição daquelas, estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador». E o art. 6.º da Lei dos Instrumentos de Regulamentação Colectiva (Decreto-Lei n.º 519-C1/79, de 29 de Dezembro) complementava aquele preceito da LCT, ao determinar que as convenções colectivas não poderiam «contrariar normas legais imperativas» (al. b) e/ou «incluir qualquer disposição que importe para os trabalhadores tratamento menos favorável do que o estabelecido por lei» (al. c).
Ou seja, as normas legais poderiam, como é óbvio, possuir a mais variada natureza (normas supletivas ou imperativas, normas absolutamente imperativas[4] ou relativamente imperativas, etc.), mas o certo é que, nas palavras de Jorge Leite, a norma típica do ordenamento juslaboral era constituída «por uma regra jurídica explícita impositiva e por uma regra jurídica implícita permissiva, vedando aquela qualquer redução dos mínimos legalmente garantidos e facultando esta a fixação de melhores condições de trabalho (proibição de alteração in pejus e possibilidade de alteração in melius)».[5]
No domínio da concorrência/articulação entre as respectivas fontes, concluía-se, em conformidade, que em Direito do Trabalho a regra era, afinal, a da aplicação da norma que estabelecesse um tratamento mais favorável ao trabalhador, ainda que tal norma se encontrasse contida numa fonte hierarquicamente inferior. A imodificabilidade in melius da norma superior (ou seja, a imperatividade absoluta desta), bem como a sua modificabilidade in pejus por norma inferior (ou seja, a supletividade daquela), eram excepcionais, pelo que era comum aludir-se à «singular imperatividade» das normas juslaborais, à sua natureza «imperativa-limitativa» ou «imperativa-permissiva», qualquer destas expressões traduzindo a ideia de mínimo de protecção da parte mais débil da relação como traço característico e identitário das normas juslaborais.[6]
II. O art. 4.º, n.º 1, do Código do Trabalho
Surge então o art. 4.º/1 do Código do Trabalho, preceituando que «as normas deste Código podem, sem prejuízo do disposto no número seguinte[7], ser afastadas por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, salvo quando delas resultar o contrário».
Apesar do disposto na sua epígrafe, o n.º 1 deste artigo traduz-se, bem vistas as coisas, num verdadeiro atestado de óbito do favor laboratoris relativamente à contratação colectiva, dele se extraindo que, em princípio, o Direito do Trabalho legislado possui um carácter facultativo ou supletivo face à contratação colectiva — ou seja, conclui-se que as normas legais serão, em regra, normas «convénio-dispositivas», isto é, normas livremente afastáveis por convenção colectiva. Destarte, doravante o quadro legal poderá ser alterado in pejus pela convenção colectiva, o que implica uma mutação (dir-se-ia: uma revolução) na filosofia básica inspiradora do Direito do Trabalho: de um direito com uma vocação tutelar relativamente às condições de trabalho, imbuído do princípio da norma social mínima, transitamos para uma espécie de direito neutro, em que o Estado recua e abandona a definição das condições de trabalho à autonomia colectiva.
É, pois, um novo Direito do Trabalho aquele que parece resultar do art. 4.º do Código, um Direito do Trabalho menos garantístico e mais transaccional, em que aumenta o espaço concedido à autonomia colectiva em virtude do relaxamento da regulação estadual das condições de trabalho — um Direito do Trabalho que, assim, muda de alma (alguns dirão: perde a alma).[8]
Em suma, também neste campo — no campo da concorrência e articulação das fontes juslaborais — estamos perante um Direito do Trabalho mais flexível (palavra mágica dos nossos tempos, por mais imprecisa que seja a respectiva noção no plano jurídico)[9], em que a contratação colectiva já não é concebida como um instrumento vocacionado para melhorar as condições de trabalho relativamente à lei[10], mas antes como um puro mecanismo de adequação da lei às circunstâncias e às conveniências da organização produtiva. Coerentemente, o art. 533.º do Código, sucessor do supramencionado art. 6.º da Lei dos Instrumentos de Regulamentação Colectiva, continuando embora a prescrever que as convenções colectivas não podem «contrariar as normas legais imperativas», deixa de acrescentar que aquelas também não podem incluir qualquer disposição que importe para os trabalhadores tratamento menos favorável do que o estabelecido por lei.
Registe-se, de todo o modo, que o Anteprojecto de Código do Trabalho apresentado pelo Governo não prenunciava uma alteração, nesta matéria, como aquela que veio a constar do Código aprovado pela Lei n.º 99/2003. Com efeito, no art. 4.º do Anteprojecto podia ler-se: «Entende-se que as normas deste Código estabelecem um conteúdo mínimo de protecção do trabalhador, sempre que delas não resultar o contrário». Ora, semelhante redacção não exprimia qualquer mudança significativa no tocante ao entendimento tradicional do princípio do favor laboratoris, tal como este se encontrava plasmado no art. 13.º/1 da LCT. Porém — e algo surpreendentemente —, quando o Anteprojecto deu lugar à Proposta de Lei n.º 29/IX, a redacção deste art. 4.º surgiu transfigurada, implicando o aludido decesso do favor laboratoris no domínio da concorrência entre lei e convenção colectiva.
O que vem de ser dito vale, repete-se, no cotejo entre lei e convenção colectiva. Face ao contrato individual o critério legal é já outro, conforme se extrai do n.º 3 do art. 4.º: «As normas deste Código só podem ser afastadas por contrato de trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador e se delas não resultar o contrário». Assim sendo, o art. 4.º do Código do Trabalho parece, afinal, traduzir-se numa disposição legal consagrada ao culto de Jano (a conhecida divindade romana das duas caras), perfilando-se as normas do Código como normas bifrontes ou bidimensionais, isto é, normas relativamente imperativas face ao contrato de trabalho e normas supletivas face à convenção colectiva de trabalho — as chamadas «normas convénio-dispositivas».[11]
Note-se, porém, que o art. 4.º/1 não exclui a existência de normas imperativas — relativa ou absolutamente imperativas — face à convenção colectiva («salvo quando delas resultar o contrário»), assim como o art. 4.º/3 não exclui a existência de normas absolutamente imperativas, ou de normas supletivas, face ao contrato individual («se delas não resultar o contrário»). Tudo dependerá pois, em última análise, da interpretação da concreta norma em causa, sendo certo que a directriz hermenêutica, o critério que habilita o intérprete a pronunciar-se em caso de dúvida, é agora bipartido ou dual: a norma codicística será, em princípio, supletiva ou relativamente imperativa, consoante o cotejo se dê com a contratação colectiva ou com o contrato individual de trabalho.
Será o caso, para dar um exemplo, da norma respeitante ao subsídio de Natal. O art. 254.º do Código estabelece que o trabalhador tem direito a auferir um subsídio de Natal de valor igual a um mês de retribuição: nestes termos, o valor do subsídio não poderá, decerto, ser reduzido através de cláusula contratual (art. 4.º/3), mas já poderá sê-lo através de cláusula convencional (art. 4.º/1). O mesmo valerá quanto à norma relativa à violação patronal do direito a férias: nos termos do art. 222.º, o trabalhador deverá receber, a título de compensação, o triplo da retribuição correspondente ao período em falta, montante este que, não podendo ser reduzido mediante cláusula contratual, já poderá sê-lo mediante cláusula convencional.[12]
De qualquer modo, e retornando ao objecto precípuo desta breve reflexão — a análise das novidades resultantes do art. 4.º/1 do Código —, o certo é que o tratamento mais favorável ao trabalhador, nas palavras de Monteiro Fernandes, «deixa de constituir referencial interpretativo». No Código do Trabalho, sublinha o autor com inteira razão, «o ponto de partida da operação interpretativa-qualificativa incidente sobre a norma legal (para se saber se pode aplicar-se a fonte inferior de conteúdo diferente) já não é a presunção de que essa norma admite variação em sentido mais favorável ao trabalhador, mas a de que admite variação em qualquer dos sentidos. Tal presunção só é afastada se da norma legal resultar inequivocamente que nenhuma variação é legítima, ou que só o será num dos sentidos possíveis».[13]
III. A Constituição da República Portuguesa
Resta saber se, do ponto de vista jurídico-constitucional, não se terá ido longe demais com este art. 4.º/1 do Código. Com efeito, a concepção transaccional do Direito do Trabalho que se desprende deste artigo — em que o Estado-legislador dá luz verde para que tudo ou quase tudo seja livremente negociado em sede de contratação colectiva, em benefício ou em detrimento do trabalhador face ao parâmetro legal — parece compatibilizar-se com bastante dificuldade com o nosso «bloco constitucional do trabalho», maxime com o disposto no art. 59.º/2 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Na verdade, de acordo com este preceito, «incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito», através, por exemplo, do estabelecimento e actualização do salário mínimo nacional, da fixação dos limites máximos da duração do trabalho, etc.[14]. Deste modo, a CRP parece impor que o legislador estabeleça, ele mesmo, um estatuto social mínimo, um patamar legal de protecção dos trabalhadores. Esta é, por força da nossa Constituição, uma tarefa fundamental do Estado-legislador, uma missão de que este se encontra incumbido. Constitucionalmente, tem de haver um mínimo legal intangível, os direitos dos trabalhadores legalmente consagrados deverão situar-se, em princípio, fora do comércio jurídico, não podendo funcionar como simples moeda de troca em sede de contratação colectiva. Ora, com este art. 4.º o Estado-legislador retrai-se e parece mesmo demitir-se das suas responsabilidades: a tarefa constitucional não é cumprida, a missão estadual converte-se, afinal, numa autêntica demissão parlamentar/governamental!
Tenho, por conseguinte, sérias dúvidas sobre a conformidade constitucional deste preceito do Código do Trabalho[15]. Note-se que o Tribunal Constitucional português, no Acórdão n.º 306/2003, não chegou a abordar esta questão, embora se tenha debruçado sobre outras dimensões problemáticas do art. 4.º, designadamente as relativas aos instrumentos de regulamentação colectiva de natureza administrativa (regulamentos de condições mínimas e regulamentos de extensão)[16]. A questão permanece, pois, em aberto. Insisto: uma coisa é introduzir alguma flexibilidade adicional no nosso Direito do Trabalho (opção de política legislativa legítima e insusceptível de reparos do ponto de vista constitucional); outra coisa, porém, será flexibilizar o Direito do Trabalho ao ponto de lhe quebrar a espinha dorsal ou a coluna vertebral (esta última será uma opção politicamente discutível, mas já, decerto, constitucionalmente censurável).
O que está em causa não é, por conseguinte, a existência de normas legais de carácter supletivo ou «convénio-dispositivo» (figura esta bem conhecida e consagrada, por exemplo, no ordenamento juslaboral germânico)[17]. O que se questiona é que esta seja a regra, o que se discute é que este deva ser o princípio, isto é, que, à partida, todas as normas do Código possam ser afastadas por convenção colectiva, inclusive em sentido menos favorável ao trabalhador. Perante isto, é caso para perguntar onde ficará, então, o princípio do Estado Social e a incumbência estadual, resultante da Constituição da República Portuguesa, de assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito…
IV. Nota conclusiva
Entretanto, e pondo a «questão constitucional» entre parêntesis, o certo é que este simbólico preceito significa que a tradicional «grelha de leitura» das normas laborais terá de ser abandonada pelo intérprete: ao pronunciar-se sobre a natureza de cada norma legal, maxime sobre a susceptibilidade de esta ser alterada in pejus por convenção colectiva, o intérprete deverá substituir os velhos óculos «favor laboratoris» (declarados rígidos e caducos) pelos novos óculos «convénio-dispositivos» (mais dinâmicos e maleáveis, mas, quiçá, menos resistentes…).
Estamos, em todo o caso, perante um preceito codicístico que exprime um inegável abrandamento da actuação interventiva e da postura impositiva do Estado neste domínio, concedendo os poderes públicos novos e mais dilatados espaços regulatórios à autonomia colectiva — ainda que deva acrescentar-se (e este é um aspecto que, a meu ver, não poderá ser menosprezado) que, no campo juslaboral, o reconhecimento da autonomia colectiva não se processou contra a heteronomia estadual, mas sim contra o poder decisório unilateral do empregador. Com efeito, o Direito do Trabalho afirmou-se historicamente e consolidou-se dogmaticamente com base na conjugação dialéctica de dois fenómenos — legislação estadual regulamentadora das condições de trabalho e normação convencional disciplinadora do conteúdo das relações laborais ao nível da empresa, da profissão ou do sector de actividade —, ambos tendo como escopo central a tutela do contraente débil, a compressão da liberdade contratual e a limitação da concorrência entre os trabalhadores no mercado de trabalho. Deste ponto de vista, a autonomia colectiva adiciona-se à heteronomia estadual, não se contrapondo e antes aliando-se a esta em ordem a impedir o arbítrio patronal e a «ditadura contratual» de outro modo imposta pelo contraente mais poderoso.
Através deste preceito visar-se-á outrossim, como alguns afirmam, atribuir um estatuto de maioridade às associações sindicais, rejeitando qualquer concepção das mesmas como sujeitos hipossuficientes e carenciados de tutela. Mas não deixa igualmente de ser curioso verificar que este estatuto de maioridade é concedido aos sindicatos numa época histórica em que tanto se fala na crise estrutural do sindicalismo e, justamente, por parte de um Código que continua a não estabelecer quaisquer exigências de representatividade mínima para que um sindicato possa celebrar uma convenção colectiva de trabalho…[18]
Diminuir a carga injuntiva da lei e conceder, do mesmo passo, espaços regulatórios alargados a interlocutores sindicais débeis poderá assim, a meu ver, revelar-se um caminho contraproducente. Os próximos tempos mostrarão se o favor laboratoris no âmbito do relacionamento entre a lei e a contratação colectiva, ainda que sujeito a excepções várias, não terá de ser ressuscitado, enquanto princípio, pelo legislador do trabalho. Aliás, convém não esquecer que o novo paradigma normativo emergente do art. 4.º/1 do Código também não deixa de suscitar bastantes problemas no tocante à respectiva articulação com o direito comunitário, dado que, por um lado, o direito comunitário detém primazia hierárquica sobre o direito interno e, por outro, as directivas comunitárias consagram, via de regra, o princípio da norma social mínima.[19]
Informações Sobre o Autor
João Leal Amado
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra