Resumo: O presente artigo tem por escopo analisar o relevante papel do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias a fim de tornar viável a integração regional naquele continente. Busca fundamentar de que modo a experiência europeia, marcada pela supranacionalidade e pela existência de um ordenamento jurídico comunitário autônomo, dotado de princípios, fontes e instituições próprias, pode inspirar a criação de uma corte equivalente no âmbito do Mercosul, com as funções de solucionar litígios decorrentes da integração regional e impor sanções aos Estados-membros que praticarem condutas incompatíveis com o propósito integracionista. Destaca as diferenças existentes entre o modelo supranacional adotado pela União europeia e o regime de intergovernabilidade vigente no Mercosul.
Palavras-chave: Tribunais Internacionais de Justiça. União Europeia. Mercosul.
Abstract: This paper aims to analyze the important role of the European Court of Justice in order to make viable the regional integration in that continent. Seek to substantiate how the European experience, marked by supranational and the existence of an autonomous Community law, endowed with principles, sources and institutions, can inspire the creation of an equivalent court in the Mercosur, with the functions of resolving disputes concerning regional integration and to impose sanctions on Member States who practice behaviors incompatible with the integrationist purpose. Highlights the differences between the model adopted by the supranational European Union and the system of intergovernmentalism practiced by Mercosur.
Key words: International Courts of Justice. European Union. Mercosur.
Sumário : Introdução. 1. Supranacionalidade e o direito comunitário europeu. 2. Princípios do direito comunitário europeu. 2.1 Princípio da primazia do direito comunitário. 2.2 Princípio da aplicabilidade direta e imediata do direito comunitário. 2.3 Princípio da uniformidade de interpretação da norma comunitária. 3. Tribunal internacional de justiça e mercosul. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O fenômeno que se convencionou denominar globalização tem como traço característico a intensa circulação de bens, capitais, tecnologias e pessoas entre as fronteiras nacionais, com a consequente geração de riquezas e progresso para alguns e a estagnação para outros.
Este contexto tem ensejado a formação de blocos regionais ou sub-regionais de Estados, que se protegem contra os traços negativos relativos ao processo de globalização. Sob esse aspecto, tem-se verificado a profusão de distintas formas de articulação regional entre Estados que buscam alinhar-se com o propósito de fomentar o desenvolvimento econômico conjunto e promover avanços nas áreas de saúde, trabalho, infraestrutura e educação.
Esta aproximação de países que procuram cooperar-se mutuamente para enfrentar os desafios do mercado globalizado deu origem à construção de um complexo arcabouço normativo que demanda a criação de processos sistemáticos de implementação de suas normas no âmbito interno de cada Estado, de esclarecimento e interpretação das obrigações internacionais assumidas por estes e de solução das controvérsias advindas deste intercâmbio político e comercial.
O resultado deste cenário é a multiplicação, sobretudo nas últimas décadas, de diversos mecanismos de solução de conflitos, criados via tratados internacionais com a incumbência de resolver determinados litígios oriundos da aplicação da norma de integração pelos Estados membros que compõem os blocos regionais.
Por conseguinte, o presente trabalho tem por escopo discutir de que forma os Tribunais Internacionais de Justiça podem funcionar como esta instância responsável por fiscalizar o cumprimento e interpretação das normas comunitárias, conferindo maior estabilidade e segurança jurídica ao processo de integração, por meio da harmonização da aplicação de suas decisões e normas no plano interno de cada Estado-parte.
Nesse sentido, será tomada como exemplo a experiência da União Europeia, que possui um ordenamento jurídico comunitário, autônomo em relação à ordem interna dos Estados-membros, com características singulares em relação a outros sistemas jurisdicionais internacionais, quais sejam: primazia do direito comunitário em relação direito nacional e a aplicabilidade direta e imediata de suas normas no âmbito interno de cada país.
Estas características peculiares permitiram a criação e funcionamento do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias como verdadeiro motor da integração europeia, ao estabelecer os critérios jurídicos que alicerçaram a aplicação da norma comunitária.
Serão abordados os princípios jurídicos basilares que orientam a atuação do tribunal, acompanhados de precedentes jurisprudenciais ilustrativos da importância de atuação do órgão, na medida em que foi determinante para que o processo de integração não tivesse sua velocidade reduzida por considerações unilaterais de ordem política dos Estados-membros.
Por fim, procurar-se-á demonstrar de que forma a experiência europeia pode servir de exemplo para a criação de um tribunal de justiça no âmbito do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), a fim de corrigir eventuais entraves ao processo de integração.
1 A SUPRANACIONALIDADE E O DIREITO COMUNITÁRIO EUROPEU
Para que seja apreciada a importância da atuação do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias como catalizador do processo de integração da União Europeia, torna-se indispensável discorrer sobre o contexto que permitiu sua criação e desenvolvimento, a partir das noções de supranacionalidade e direito comunitário.
Inicialmente, cumpre destacar que o Direito Comunitário europeu é, para muitos autores, um sistema jurídico sui generis, que não deve ser confundido nem com o direito nacional dos países, pois suas normas são emanadas por órgãos de natureza jurídica comunitária e têm aplicabilidade imediata nas ordens jurídicas internas desses Estados, nem tampouco com o Direito Internacional Público, porquanto sua aplicação é regida por princípios próprios (GOMES, 2005, p. 105).
A origem deste Direito Comunitário teve como pressuposto o instituto da supranacionalidade, que expressa a delegação de poderes ou parcelas de competências soberanas pela qual os Estados-membros, livremente e por um ato de soberania, delegam aos órgãos comunitários poderes constitucionais para legislarem sobre determinada matéria.
Esta delegação de poderes traz como consequência a criação de organismos supranacionais, diferenciados dos entes estatais, que titularizam as quotas de soberania delegadas e se situam num grau de hierarquia superior ao dos Estados-membros.
A conceituação de supranacionalidade não consta expressamente do Tratado da Comunidade Europeia, mas nasceu conjuntamente com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, com o advento do Tratado de Paris. Em seu artigo 9º[1], pela primeira vez passou-se a reconhecer a existência de um poder superior ao das autoridades nacionais dos Estados-membros, a chamada Alta Autoridade, que desempenhava as funções de vigiar o funcionamento de todo o regime. Esta entidade seria composta por personalidades independentes e a sua presidência assegurada por uma personalidade designada por comum acordo dos governos dos países, sendo as suas decisões obrigatórias para os Estados-membros. (GOMES, 2005, p. 108).
Conforme elucida Joana Stelzer (2006, p. 76), três são os pilares de sustentação da supranacionalidade: “Transferência de soberania dos Estados para a organização comunitária (em caráter definitivo), poder normativo do direito comunitário em relação aos direitos pátrios (com o sacrifício destes se colidirem com os interesses da União Europeia) e dimensão teleológica de integração (a supranacionalidade como condição ontológica para alcançar os fins integracionistas).”
É nítido perceber que o instituto da supranacionalidade contribuiu decisivamente para o desenvolvimento da União Europeia, pois possibilitou a criação de instituições comunitárias autônomas, compromissadas unicamente com a tutela dos objetivos integracionistas da comunidade, sem qualquer vinculação ou sujeição aos interesses deste ou daquele Estado-membro: “A origem da supranacionalidade encontra-se na transferência de parcelas soberanas por parte dos Estados nacionais em benefício de um organismo que, ao fusionar as partes recebidas, avoca-se desse poder e opera acima das unidades que o compõem, na qualidade de titular absoluto. Diferentemente das organizações do tipo clássico, na UE não se estabeleceu uma relação de equilíbrio entre os integrantes, baseada na coordenação de soberanias. A dinâmica que norteia o contexto europeu radica, pelo contrário, em verdadeira subordinação dos Estados em benefício da organização criada, resultado da transferência que se operou em certas atribuições, tradicionalmente, pertencentes ao ente estatal.” (STELZER, 2006, p. 77).
Registre-se que a supranacionalidade gera apenas uma transferência de parcelas soberanas dos Estados para a consecução de objetivos de integração previamente determinados, e não de toda a soberania em sua essência, pois, se assim o fosse, estaria havendo um atentado a própria existência do Estado.
Com efeito, o princípio da supranacionalidade caracteriza uma ordem de soberanias estatais normativamente subordinadas e limitadas, quanto a certas funções, ao organismo supranacional.
Nesse ínterim, esta subordinação hierárquica dos Estados-membros europeus a instituições comunitárias permitiu a criação de um ordenamento jurídico autônomo e independente em relação às ordens jurídicas nacionais, o denominado direito comunitário europeu.
Logo, o direito comunitário confunde-se com a própria noção de supranacionalidade, instituto que sedimentou as bases de fundamentação da aplicação das políticas comunitárias nas ordens jurídicas internas de cada Estado-membro: “A supranacionalidade, agregada à delegação de poderes soberanos e aos princípios do primado, da uniformidade na interpretação, da aplicabilidade e dos efeitos diretos das normas comunitárias, compõe o chamado direito comunitário, entendido como ordenamento jurídico derivado de Direito Internacional.” (GOMES, 2005, p. 113)
Por sua vez, Umberto Forte (1994, p. 31) enxerga o direito comunitário como sendo o conjunto de normas vinculantes para as instituições comunitárias e para os Estados-membros, sancionadas principalmente pelos Tratados, e, de outro, como o conjunto de normas contidas em alguns atos qualificados das instituições comunitárias.
Assim, surge o direito comunitário europeu como um ordenamento estruturado com suas próprias fontes e dotado de órgãos e processos aptos a interpretá-lo e aplicá-lo, assim como a fazer constar, sendo caso disso, as suas violações. (RAMOS, 1994, p. 72)
Assim, nota-se que o direito comunitário distingue-se tanto do direito internacional público, pois cria uma subordinação das ordens jurídicas estatais aos interesses e instituições comunitárias independentes, abdicando os Estados-membros de partes de suas soberanias, e do direito nacional, tendo em vista que a atribuição de competências às instituições comunitárias deu origem a uma ordem jurídica específica. (LOBO, 1997, p. 43)
Esta autonomia normativa e a existência de organismos supranacionais em grau hierarquicamente superior com a competência de tutelar o direito comunitário conferiram maior solidez à União Europeia, haja vista que o amparo de sólidas instituições comunitárias permitiu que se impusesse o respeito à aplicação de suas sanções, caso necessário. Isto não ocorre no âmbito do Direito Internacional Público clássico, onde predomina a regra da coordenação de soberanias, sem relação de hierarquia de normas e estando ausente um poder que possa impor com braço forte as normas avençadas.
Não é difícil notar que o desenvolvimento do Direito Comunitário ocorreu graças ao papel preponderante do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que teve a missão de confirmar a autonomia, aplicabilidade e primazia das normas comunitárias sobre as ordens jurídicas nacionais, com o objetivo maior de promover o propósito da integração continental.
Para tanto, sedimentou princípios basilares de aplicação e interpretação do direito comunitário, que vieram a contribuir decisivamente para a efetividade do ordenamento jurídico e aceleração do processo de integração pelo controle de condutas de Estados-membros incompatíveis com o ideal da comunidade.
2 PRINCÍPIOS DO DIREITO COMUNITÁRIO EUROPEU
Como se viu, para que o ordenamento jurídico comunitário existisse e fosse respeitado, tornou-se imprescindível a existência de um órgão que fizesse efetivar esse conjunto normativo, inclusive no que concerne à aplicação interpretativa uniforme por parte das jurisdições nacionais.
Assim surgiu o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, com o escopo de garantir que os Tratados Constitutivos da comunidade se integrassem ao sistema jurídico dos Estados-membros e se impusessem aos órgãos jurisdicionais nacionais: “Através de uma jurisprudência ousada – que poderíamos, no melhor sentido da expressão, chamar de progressista, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias conseguiu definir e impor um conjunto de princípios fundamentais (os princípios da autonomia e da especificidade do direito comunitário, os princípios da aplicabilidade e da primazia da norma comunitária) que, reforçando e completando o sistema jurídico instituído pelos Tratados de Paris e de Roma, permitiram edificar uma verdadeira jurídica comum aos Estado da Comunidade.” (CAMPOS, 1995, p. 264)
Numa notável construção hermenêutica e jurisprudencial, em que os princípios fundamentais do direito comunitário foram definidos desde o início da sua jurisprudência, o Tribunal colocou em destaque os princípios da primazia do direito comunitário, da aplicabilidade direta e imediata da norma comunitária e da uniformidade de interpretação e aplicação das normas comunitárias.
Como se verá a seguir, a aplicação destes princípios em inúmeros julgados evidencia o papel de protagonista do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias como órgão fiscalizador e propulsor do processo de integração europeu.
2.1 Princípio da primazia do direito comunitário
O Tribunal de Justiça estabeleceu este princípio como exigência existencial de própria ordem jurídica comunitária marcada pelos imperativos da unidade, uniformidade e eficácia.
Por este princípio, assegura-se a obrigatoriedade na observância das normas comunitárias nos ordenamentos jurídicos nacionais, os quais não podem derrogá-las.
Segundo a jurisprudência do Tribunal, inaugurada no julgado do caso Costa contra Enel, de 15 de julho de 1964, esta primazia da norma comunitária sobre a ordem jurídica interna decorre diretamente da transferência de certas parcelas de soberania dos Estados-membros em favos da Comunidade Europeia. Logicamente, partindo-se deste pressuposto os Estados não podem aplicar uma regra nacional contrária à disposição comunitária.
Assim, o referido acórdão concretiza o entendimento de que a “integração no direito de cada país membro de disposições provenientes de fonte comunitária e, mais genericamente, os termos e o espírito do tratado têm por corolário na impossibilidade para os Estados-membros de fazer prevalecer, contra uma ordem jurídica aceite por eles numa base de reciprocidade, uma medida unilateral ulterior. A preeminência do direito comunitário é confirmada pelo artigo 189.º, nos termos do qual os regulamentos têm valor obrigatório e são diretamente aplicáveis em qualquer Estado-membro. Resulta do conjunto destes elementos que emanado de uma fonte autônoma, o direito resultante do tratado não poderia em razão da sua natureza específica original, ver-se judiciariamente confrontado com um texto de direito interno qualquer que este fosse, sem perder o seu caráter comunitário e sem que fosse posta em causa a base jurídica da própria Comunidade.” (UNIÃO EUROPEIA, Tribunal de Justiça, C-6/64, 1964)
As normas emanadas das instituições comunitárias competentes são, portanto, hierarquicamente superiores à ordem jurídica nacional, inclusive constitucional. Disto deflui que os organismos jurisdicionais nacionais não devem hesitar em aplicar a norma comunitária, mesmo diante de eventual antinomia normativa em relação à legislação nacional.
Ainda no que concerne aos desdobramentos do aludido princípio, Patrícia Luiza Kriegel (2004, p. 156-157) discorre: “Podemos apresentar esta primazia, de acordo com a jurisprudência do TJCE, em três níveis distintos: a) Não apenas o direito comunitário originário, mas também o derivado possui a prevalência perante o Direito nacional. Assim, o direito nascido do Tratado não poderia, portanto, em razão de sua natureza específica original, deixar-se opor judicialmente a um texto interno de qualquer classe que seja; b) Em relação às leis nacionais anteriores à norma comunitária, esta detém a primazia e revoga aquelas. Mas também leis nacionais posteriores à norma comunitária já editada não são válidas. […] Observe-se que a prevalência do Direito Comunitário ocorre também em relação às cláusulas contratuais privadas, se destas decorre disposição contrária às normas comunitárias[2]; c) Primazia das normas comunitárias sobre as constituições nacionais fundamenta-se no entendimento do TJCE de que o Direito Comunitário não necessita coincidir com as Constituições nacionais e nem pode ser avaliado por ela.”
Uma disposição chave que expressa este princípio é o artigo 4º do Tratado de Funcionamento da União Europeia[3], que estabelece o “dever de fidelização” dos Estados-membros aos objetivos da comunidade, o “dever de colaboração” com as Instituições Comunitárias e, ainda, o “dever de abstenção” no tocante a medidas nacionais que possam pôr em perigo a realização dos objetivos comunitários (LOBO, 2003, p. 109).
Por fim, é interessante observar que a primazia implica a obrigação dos países integrantes da comunidade de indenizar os danos causados pelo não cumprimento de uma norma comunitária. Estes danos originam-se da incapacidade de invocar a norma comunitária não cumprida para resguardar os direitos que dela seriam decorrentes.[4]
2.2 Princípio da aplicabilidade direta e imediata do direito comunitário
A aplicabilidade direta e imediata da norma comunitária traduz a possibilidade de sua incorporação automática ao Direito Interno dos Estados-membros, criando direitos e obrigações para estes e para as pessoas físicas ou jurídicas, sem a necessidade de trâmites legislativos de internalização destas normas.
Diversamente, no estudo do direito internacional público, costuma-se entender o processo de elaboração e internalização de um Tratado de forma não imediata. Após a sua assinatura, que o torna perfeito, válido e exigível na ordem internacional, passa-se a um rito de validação da norma no ordenamento jurídico interno do Estado signatário.
Tomando-se por base a sistemática do direito brasileiro e da grande maioria de demais ordens jurídicas de outros Estados, faz-se imprescindível proceder à ratificação, promulgação, publicação e registro do Tratado. No caso brasileiro, somente após a ratificação veiculada por decreto legislativo emanado do Congresso Nacional é que a convenção internacional consolida-se na ordem jurídica interna, materializando a responsabilidade do Estado pelo cumprimento das regras nela instituídas.
Ao revés, no ordenamento jurídico comunitário europeu, que se vale da regra da aplicabilidade imediata, o processo de elaboração e validade de um tratado encerra-se a partir da promulgação da disposição normativa internacional, que instantaneamente passa a ter força vinculante no âmbito interno do Estado componente do bloco regional, independentemente de provimentos ulteriores de incorporação.
Elucidando a questão, Caichiolo (2011) afirma: “Já em relação às normas comunitárias, contudo, o processo é diferente em virtude da característica da aplicabilidade direta de suas disposições. Rompe-se o paradigma do Direito Internacional Público e, uma vez firmado o Tratado ou regulamento pelos órgãos supranacionais, suas disposições são válidas em todo o território e oponível, em regra, a qualquer um, independentemente de qualquer manifestação dos órgãos legislativo e executivo nacionais. Há uma espécie de recepção automática das normas, não sujeita a nenhum ato de transformação ou execução.”
Desta forma, os Estados-membros não podem invocar razões de Direito Constitucional para abster-se de cumprir a norma comunitária e nem exigir mecanismos diferenciados para sua internalização.
Nas palavras de João Mota de Campos (1994, p. 243), este princípio traduz a “vigência das normas comunitárias na ordem jurídica interna sem a sujeição a qualquer processo nacional de recepção – porque só assim é garantida a plenitude dos seus efeitos de maneira uniforme em todos os Estados membros e porque sem vigência interna dessas normas os tribunais nacionais não poderiam, evidentemente, ser solicitados a aplicá-las nos litígios submetidos ao seu julgamento.”
Outro aspecto umbilicalmente relacionado a este princípio é o denominado efeito direto da norma comunitária, noção esta construída pela jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeia e que diz respeito à capacidade das pessoas privadas de invocarem, perante as jurisdições nacionais, as disposições dos Tratados e dos atos normativos das Instituições Comunitárias e de fazer valer, nas suas relações recíprocas e em face dos próprios Estados, os direitos que nesses textos jurídicos pudessem valer.
Ao conceder aos juízes nacionais o poder-dever de aplicação das normas comunitária, demonstra-se a preocupação quanto ao direito de acesso à justiça do particular enquanto cidadão comunitário, diferentemente do que se verifica no tradicional Direito Internacional Público, no qual os indivíduos não possuem a faculdade de provocar diretamente a apreciação dos direitos que lhe são concedidos por força dos Tratados.
Nessa linha, esta invocabilidade da norma comunitária significa o direito de toda pessoa em pedir ao juiz nacional que aplique o conjunto do direito comunitário, sendo obrigação do juiz e demais autoridades públicas salvaguardarem os direitos e deveres dispostos na legislação comunitária, indiferentemente de seu Estado ou legislação nacional.
2.3 Princípio da uniformidade de interpretação e aplicação da norma comunitária
A autonomia da ordem jurídica comunitária é garantida através da interpretação uniforme de seus preceitos a cargo do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
O mecanismo concebido para este fim é o chamado reenvio prejudicial, previsto no artigo 267 do Tratado de Funcionamento da União Europeia[5], que possibilita a um juiz nacional solicitar um pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sempre que houver alguma obscuridade na interpretação de uma disposição comunitária que servirá de fundamento para a emissão de um provimento jurisdicional no caso concreto.
Trata-se de instrumento de uniformização do Direito Comunitário que, mediante a cooperação ativa entre as jurisdições nacionais e o Tribunal de Justiça, garantindo que a norma comunitária seja interpretada e aplicada da mesma maneira em toda a extensão da comunidade europeia.
O alcance da decisão de reenvio prejudicial é vinculativa, não só para a jurisdição nacional que tenha estado na origem do processo de reenvio prejudicial, mas também a todos os órgãos jurisdicionais dos Estados-membros.
Ao enfocar este princípio, Jorge Fontoura (1997, p. 46-47) aduz que “um direito comunitário deve possuir uniformidade formal e material, sendo para tanto indispensável um aparato harmonizador da sua aplicação e interpretação”. Indo além, conclui que o sistema adotado pela União Europeia visando a possibilitar a uniformidade de interpretação e aplicação do Direito Comunitário através do reenvio prejudicial pode ser considerado “a chave mestra, uma válvula estabilizadora para os juízes nacionais, que são em última análise os efetivos aplicadores do Direito Comunitário”.
3. TRIBUNAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA E MERCOSUL
A grande distinção existente entre a União Europeia e o MERCOSUL, e que deveria ser revista caso o bloco sul-americano pretenda introduzir um Tribunal de Justiça que venha coibir eventuais entraves ao processo de integração, reside na natureza do ordenamento jurídico.
Conforme explanado no transcorrer dos tópicos anteriores, as Comunidades Europeias possuem um ordenamento jurídico comunitário, ou seja, um ordenamento jurídico autônomo em relação ao ordenamento jurídico interno dos Estados-membros e que possui características principais e singulares, que marcam sua distinção em relação às normas de direito internacional, quais sejam: primazia e aplicabilidade direta e imediata.
Quando da análise da característica da primazia, explicou-se que a manifestação da supranacionalidade pela delegação de parcelas de poderes soberanos dos Estados-membros para as comunidades, quando da adesão aos seus tratados constitutivos, em conjunto com a previsão constitucional, pelos Estados-membros, dessa transferência, se constituiu no fundamento de validade do ordenamento jurídico comunitário.
É com base nesse deslocamento do fundamento de validade, do campo interno para o campo comunitário, com a formação de um ordenamento jurídico composto por duas esferas jurídicas coordenadas – a esfera comunitária e a esfera interna de cada Estado-membro – no qual a esfera comunitária possui primazia sobre a esfera interna, nas matérias de sua competência, que o ordenamento jurídico comunitário assegura sua autonomia em relação ao ordenamento jurídico nacional dos Estados-membros, mesmo sobre as normas constitucionais e sobre as normas infraconstitucionais promulgadas posteriormente à aprovação e ratificação dos Tratados, que venham a ser incompatíveis com as normas de direito comunitário.
No âmbito do MERCOSUL, entretanto, não houve a mencionada delegação de parcelas da soberania dos Estados-membros em prol de organismos supranacionais competentes para tutelarem uma ordem jurídica comunitária: “Objetivamente, a diferença primordial entre o modelo integracionista da União Europeia e o do Mercosul está no instituto da supranacionalidade, que é condição para a existência da UE, pois permite que as políticas sejam fixadas segundo os interesses da comunidade e que suas instituições atuem com autonomia na defesa desses interesses. (GOMES, 2005, p. 132-133).”
Sob este aspecto, vigora no processo de integração do MERCOSUL o sistema da intergovernabilidade, que detém como característica marcante a de manter atrelada as decisões do bloco econômico à vontade política dos Estados-membros. As decisões resultam exclusivamente do consenso e sua estrutura institucional serve precipuamente à defesa dos interesses de cada Estado-membro, que continua tão soberano quanto antes de ingressar no bloco regional.
Consoante elucida Lorentz (2001, p. 156), “a intergovernabilidade é uma característica que se apresenta no sentido de relacionamento entre governos, disso decorrendo o fato de os Estados nacionais preservarem suas autonomias plenamente.”
Ao contrário do modelo supranacional de integração, regido pelo Direito Comunitário, o sistema da intergovernabilidade vigorante no MERCOSUL é regido pelo Direito Internacional Público, com todas as suas características e elementos.
Nesse diapasão, os blocos econômicos regidos pelos princípios do Direito Internacional Clássico carecem de mecanismos e instrumentos jurídicos próprios capazes de assegurar a primazia e a aplicabilidade direta das normas produzidas em suas instituições, pois os Estados que os integram não consentiram, em decorrência do conceito de soberania, em delegar poderes a entidades de natureza supranacional.
Sobre a ausência deste poder garantidor da vigência da ordem jurídica no âmbito internacional, Rezek (1991, p. 1) afirma que “a sociedade internacional, ao contrário do que sucede com as comunidades nacionais, é ainda hoje descentralizada. No plano interno, a autoridade superior e o braço forte do Estado garantem a vigência da ordem jurídica, subordinando compulsoriamente as proposições minoritárias à vontade da maioria. No plano internacional, não existe autoridade superior nem milícia permanente. Os Estados se organizam horizontalmente, e prontificam-se a proceder de acordo com as normas jurídicas na exata medida em que estas tenham constituído objeto de seu consentimento.”
Falta, portanto, ao MERCOSUL uma autoridade dotada de poderes supranacionais, como o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, capaz de velar pela correta aplicabilidade das normas oriundas do bloco econômico, pois, no caso sul-americano, suas instituições possuem características intergovernamentais e não representam, efetivamente, os interesses do bloco-econômico, que em verdade são os interesses dos próprios Estados-membros. (GOMES, 2005, p. 139)
Logo, a aplicabilidade de normas comuns aos Estados-partes fica condicionada aos mecanismos internos de recepção previstos na Constituição de cada país e ao posicionamento hierárquico que cada ordenamento constitucional confere às normas internacionais.
Abordando esta distinção existente entre a supranacionalidade e intergovernabilidade, colhem-se os ensinamentos de VENTURA (1996, p. 122): “A diferença básica a ser estabelecida entre organismos intergovernamentais e supranacionais é precisamente a detecção do interesse predominante. Nos primeiros, trata-se de fóruns destinados a cotejar interesses individuais e, se for o caso, harmonizá-los. São marcadamente espaços de negociação, cujas decisões, em existindo, serão aplicadas por iniciativa dos Estados-membros. Entidades supranacionais pressupõem a negociação em outro nível, para definir o interesse coletivo, através de processo decisório próprio, a serviço do qual elas colocarão em funcionamento uma estrutura independente.”
Como na sistemática adotada na intergovernabilidade os Estados nacionais conservam todas as suas prerrogativas constitucionais de soberania, não há nos blocos econômicos orientados por esta perspectiva nenhum instrumento sancionador capaz de obrigar os Estados a cumprirem as determinações exaradas pelas instituições coletivas, pois são elas carentes de autoexecutoriedade, restando sua aplicabilidade condicionada à soberania do Estado.
Este, entretanto, é passível de ser responsabilizado internacionalmente, por meio de procedimentos clássicos de Direito Internacional Público, como a aplicação de medidas compensatórias de efeito equivalente ou mesmo a denúncia do Tratado. A causa da aplicação desses procedimentos de responsabilização reside no fato dos Estados se sujeitarem, ao assinarem e ratificarem um tratado, ao cumprimento suas normas.
Ocorre que a ausência de um organismo supranacional competente para fiscalizar o cumprimento das disposições do tratado muitas vezes torna inócua a aplicação dos mencionados instrumentos de responsabilização internacional, mormente em virtude da falta de interesse dos países, que se aproveitam da ausência de um maior poder de coerção e sanção do Direito Internacional Público (GOMES, 2005, p. 137).
Diante deste quadro, nota-se que o regime da intergovernabilidade corriqueiramente apresenta obstáculos ao aprofundamento do processo integracionista, haja vista que os Estados atuam prioritariamente consoantes seus próprios interesses, que nem sempre coincidem com aqueles que melhor se coadunam com o ideal de integração.
Nessa toada, convém destacar o posicionamento de Klor (2004, p. 158): “O caráter intergovernamental do Mercosul, cujo desenvolvimento e aprofundamento depende da vontade política dos governos dos Estados-Partes, obra como uma barreira para a criação de um supremo tribunal de justiça supranacional. Introduzir modificações nessa direção implica uma transformação substancial, que por uma parte, não contou com o aval suficiente no seio do Conselho do Mercado Comum, e que por outra, requer mudanças constitucionais no Brasil e no Uruguai.”
Nesse modelo de integração, permite-se ao Estado, invocando motivações e interesses internos decorrentes de sua plena soberania, descumprir as normatizações presentes em tratados internacionais, causando instabilidade e insegurança jurídica perante os demais Estados componentes do bloco regional.
Vê-se, portanto, que falta ao MERCOSUL a criação de um ordenamento jurídico comunitário por meio do qual se assegurariam as condições para a efetividade, no âmbito interno dos Estados-partes, dos atos normativos comunitários produzidos no âmbito do MERCOSUL.
Conforme se viu, o surgimento desta ordem jurídica comunitária tem como pressuposto que os Estados nacionais delegassem para o MERCOSUL o exercício de funções de seus poderes soberanos.
O engajamento dos Estados-membros nesse processo materializaria a real intenção e a vontade política de comprometerem-se a empreender esforços para o aprofundamento da integração do Cone Sul, ao admitir que as normas produzidas, no âmbito dessa organização regional, se imporiam, efetivamente, às normas dos ordenamentos jurídicos internos de cada país.
No que toca especificamente à criação de um Tribunal de Justiça do MERCOSUL, com as mesmas competências da corte europeia e desempenhando o mesmo papel de instituição comunitária zeladora da observância dos tratados internacionais, esta delegação de poderes soberanos em prol de órgãos supranacionais seria condição essencial para sua criação: “Especificamente, com relação à criação de um Poder Judiciário no MERCOSUL, cujo marco material seria a criação de um Tribunal de Justiça do MERCOSUL, a transferência de poderes soberanos dos Estados-partes para o órgão regional, que identifica o surgimento do ordenamento jurídico comunitário, apresenta-se como uma condição prévia, inafastável, desde que se tenha o desejo de que esse Tribunal possa atuar nos moldes e com as competências com que atua o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.” (SOUZA, 2001, p. 177-178).
A importância do Tribunal de Justiça no contexto integracionista é inegável, haja vista o exposto referente à atuação da corte equivalente no contexto processo de integração europeu.
Por conseguinte, se há efetivamente o interesse no avanço do MERCOSUL, torna-se imperioso que os Estados-membros cedam parcelas de suas funções soberanas a um Tribunal permanente que seja capaz de os obrigar a obedecerem às normas regionais e sofrerem sanções em razão de seu descumprimento.
CONCLUSÃO
De início, verificou-se que a atuação do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no processo de integração daquele continente teve como pressuposto a noção de supranacionalidade, com a transferência de parcelas de competências soberanas dos Estados-membros para o referido ente comunitário, que passou a possuir jurisdição obrigatória para pessoas jurídicas de direito público (Estados-membros e demais instituições comunitárias), pessoas jurídicas de direito privado e pessoas físicas, localizadas ou que residam na área de atuação da União Europeia.
A supranacionalidade também permitiu a criação de um ordenamento jurídico comunitário autônomo capaz de sobrepor-se aos ordenamentos jurídicos nacionais, com destaque aos princípios da primazia e da aplicabilidade direta e imediata da norma comunitária.
O postulado da primazia da norma comunitária nada mais expressa a exigência essencial de que a disposição normativa regional deve prevalecer sobre as ordens jurídicas nacionais para que não seja comprometida a meta de integração.
Consoante o princípio da aplicabilidade direta, restou manifesta a imediata aplicação da ordem jurídica comunitária nas esferas internas dos Estados-membros, independente de qualquer ato de recepção, ratificando a independência e autonomia do direito comunitário em relação aos sistemas nacionais.
O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias confirmou, em inúmeros acórdãos, a mencionada delegação de competências soberanas, confirmando a marca da supranacionalidade da União Europeia e a proeminência de seu ordenamento jurídico comunitário.
De maneira distinta, o funcionamento do Mercosul baseia-se na sistemática da intergovernabilidade regrada pelos princípios do Direito Internacional Público, com a peculiaridades da inexistência de vinculação direta dos Estados às decisões e normas de direito comunitárias emanadas dos órgãos do bloco econômico, por faltar a elas efetiva coercibilidade e sanção.
Nesse ínterim, destacou-se que a tomada de decisões, no âmbito do Mercosul, resguarda o poder soberano dos Estados-partes, os quais atuam segundo seus próprios interesses, não havendo instituições comunitárias independentes que receberam, por delegação, parcelas de competências soberanas dos Estados-membros.
Portanto, não se observa no contexto do Mercosul as condições basilares deram ensejo à criação do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
A partir desta identificação das distinções entre as Comunidades Europeias e o Mercosul, especialmente no que toca a inexistência de previsão de transferência de poderes soberanos para o órgão regional, no caso sul-americano, verificou-se impedida a criação de um ordenamento jurídico comunitário, tornando sem sentido a criação de um órgão jurisdicional, que não teria respaldo jurídico suficiente para tornar vinculante suas sentenças.
Sob este vértice, conclui-se que o aspecto jurídico mais importante a ser considerado para a criação de um Tribunal de Justiça do Mercosul seria a existência de previsão, nos textos constitucionais de cada Estado-parte, da possibilidade de transferência do exercício de poderes soberanos para órgãos de estrutura institucional do Mercosul, o que representaria a concretização da vontade política dos Estados-partes em assumir o compromisso efetivo com a criação de uma estrutura comunitária.
Informações Sobre o Autor
Emílio Borges e Silva
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Ministério Público e o Estado Democrático de Direito Escola do Ministério Público do Estado do Paraná e em Direito Civil e Processual Civil Universidade Estadual de Londrina