Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar, historicamente, o desenvolvimento do Direito Internacional Penal, incluindo sua diferenciação com o Direito Penal Internacional, culminando com o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional, pelo Estatuto de Roma, necessidade da humanidade desde que se cometem os crimes mais atrozes contra os direitos humanos, tidos como crimes internacionais. Também se analisa, neste trabalho, os pontos em que o Estatuto entra em divergência com o ordenamento jurídico brasileiro em sua Constituição Federal. [1]
Palavras-chave: Direito Internacional Penal; Tribunal Penal Internacional; Estatuto de Roma; Brasil; Constituição Federal de 1988.
Abstract: This work aims to analyse, historically, the development of International Criminal Law, including its difference from Criminal International Law, achieving its pinnacle with the establishment of the International Criminal Court, by the Statue of Rome, which is a needing of mankind since the most atrocious crimes against Human Rights, which are seen as international crimes, are committed. This work also analyzes the aspects in which the Statue diverges with Brazilian Law in its Federal Constitution.
Keywords: International criminal law; International criminal court; Statue of Rome; Brazil; Federal Constitution of 1988.
Sumário: Introdução; 1 Direito Penal Internacional e Direito Internacional Penal; 2 Evolução Histórica do Direito Internacional Penal; 2.1 A Pirataria e Posteriormente as Grandes Guerras; 2.2 Os Tribunais ad hoc para Ruanda e para a Antiga Iugoslávia; 2.3 a Elaboração do Estatuto do Tribunal Penal Internacional; 3 O Estatuto do Tribunal Penal Internacional; 3.1 Sistema Institucional do Tribunal Penal Internacional; 3.2 O Processo no Tribunal Penal Internacional; 4 Príncípios de Direito Internacional Penal; 4.1 Princípio da Responsabilidade Penal Internacional Individual; 4.2 Princípio da Complementaridade e Jurisdição Universal; 4.3 Princípio da Legalidade; 4.4 Princípio do ne bis in idem; 4.5 Princípio da Irretroatividade e da Imprescritibilidade; 4.6 Princípio da Irrelevância da Função Oficial, Responsabilidade de Comandantes e Superiores Hierárquicos; 5 Conflitos Entre o Estatuto de Roma e a Constituição Federal Brasileira; 5.1 A Extradição de Nacionais; 5.2 O Eventual Desrespeito à Coisa Julgada Material; 5.3 A Prisão Perpétua; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O Tribunal Penal Internacional deriva de um processo histórico que se arrastou por muito tempo, no qual se viu a evolução do Direito Internacional Penal, em busca de uma efetiva manutenção dos direitos humanos, processando e julgando autores de crimes contra a dignidade humana. O Tribunal Penal Internacional tem competência para julgar crimes de guerra, agressão, genocídio e crimes contra a humanidade.
Dessa forma, começando pelos crimes de pirataria, primeiros a serem tidos como delitos contra a sociedade internacional como um todo, o Direito Internacional Penal sofreu uma mutação histórica gradativa, em que o período do neocolonialismo, no qual as grandes potências europeias começaram a ter conflitos de interesses foi marcante para a assinatura de inúmeros tratados internacionais buscando evitar a guerra e, caso isso fosse impossível, pelo menos submetê-la a preceitos legais. Como esses tratados não foram, por si só, suficientes pare evitar a Primeira Grande Guerra, com seu fim, os derrotados foram submetidos aos Leipzig Trials, os quais não foram de grande utilidade, representando, na verdade, uma grande derrota para o Direito Internacional Penal. Contudo, com o fim da Guerra, inúmeros outros tratados foram assinados e vieram a ser usados como base para julgar e punir os criminosos de guerra da Segunda Grande Guerra, nos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio. Anos mais tarde, com as atrocidades contra a dignidade humana cometidas na ex-Iugoslávia e em Ruanda, surgiram os Tribunais ad hoc dos anos 1990, um para cada país. Esses tribunais foram primordiais para a criação do Tribunal Penal Internacional, pelo Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário. Contudo, esse Estatuto entra em conflito com a Constituição do Brasil em alguns aspectos, quais sejam: a extradição de nacionais, o desrespeito eventual à coisa julgada material e a prisão perpétua.
Dessa forma, busca-se estudar, por meio de manuais de Direito Penal e de Direito Internacional, bem como livros específicos sobre o tema, o Tribunal Penal Internacional e seus objetivos para conhecê-lo e tentar encontrar uma solução para o impasse entre a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto de Roma.
1. DIREITO PENAL INTERNACIONAL E DIREITO INTERNACIONAL PENAL
Primeiramente, é necessário que se faça uma distinção entre as denominações “Direito Internacional Penal” e “Direito Penal Internacional”. Muitos autores não apreciam essa diferença[2], mas há, também, inúmeros estudiosos da área que optam pela diferenciação.
Entende-se o Direito Penal Internacional como a aplicação das normas penais nacionais para crimes cometidos por estrangeiros, ou em outros países, caracterizando a questão da eficácia da norma penal no espaço. Nos países da Europa Ocidental, especialmente Espanha, França, Itália e Alemanha, o Direito Penal Internacional é, tradicionalmente, composto pela atividade realizada pelas cortes nacionais no âmbito penal, aplicada a delitos de proporções internacionais, ou seja, o direito penal nacional aplicado no tratamento de crimes internacionais, bem como a cooperação entre os Estados para a punição desses crimes.[3]
Por outro lado, o Direito Internacional Penal é um conjunto de regras internacionais, engendrado para prescrever crimes internacionais e obrigar os Estados a processar e punir, pelo menos, alguns desses delitos. Ele também realiza a regulamentação dos procedimentos internacionais para processar e julgar os acusados de tais crimes.[4] Dessa forma, no âmbito do Direito Internacional Penal, já não faculta, aos Estados, usar suas próprias normas penais para sancionar determinados delitos, pois, em escala internacional, cada Estado se submete a formas internacionais de processar e julgar por esses crimes.
Contudo, o Direito Internacional Penal tem uma natureza meramente subsidiária, sendo aplicado tão-somente em ultima ratio, diante da insuficiência, ou mesmo ausência de uma resposta penal interna no país. Dessa forma, não há Direito Internacional Penal sempre que parecer necessário.
Feita essa distinção, pode-se partir para uma análise do desenvolvimento histórico do Direito Internacional Penal, buscando demonstrar, historicamente, como se deu a criação do Tribunal Penal Internacional.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO INTERNACIONAL PENAL
Não é possível fazer uma delimitação certa e inconteste de qual foi o marco fundamental do Direito Internacional Penal[5], havendo tão-somente alguns antecedentes para demarcar o aumento paulatino da demanda universal pela tipificação de crimes internacionais. Vários autores defendem haver, na pirataria, esse marco histórico[6], posto que ela sempre foi reconhecida como delito internacional. Também há autores que apontam o surgimento do Direito Internacional Penal apenas no século XIX, tempo em que apenas os crimes de guerra eram punidos[7].
Entretanto, certo é que, com o aparecimento desse ramo do Direito Internacional – ou do Direito Penal –, houve a tomada de consciência da necessidade de punir delitos cujas consequências transcendiam as fronteiras entre territórios nacionais. Inegavelmente, a pirataria aparece como um delito que as transcende, sendo que a população da época já tinha essa consciência.
Posteriormente, apareceu o Imperialismo europeu e a disputa por áreas de influência, bem como a hipertrofia das potências europeias, demonstrava que a guerra estava próxima e, por isso, assinaram-se inúmeros tratados e convenções, como as de Haia e Genebra, tentando evitar a guerra e, mesmo, estabelecer condutas de guerra. Não obstante, a Primeira Grande Guerra foi travada e, com seu fim, foram instalados os Leipzig Trials – que constituíram um fracasso total – e foi assinado o Tratado de Versalhes. Na mesma linha, após o fim da Segunda Grande Guerra, estabeleceram-se os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, para julgar os “criminosos de guerra”. Houve, ainda, o conflito na Iugoslávia e, posteriormente, em Ruanda, levando à instalação dos tribunais ad hoc para Iugoslávia e para Ruanda. Atualmente, já existe o Tribunal Penal Internacional, instaurado pelo Estatuto de Roma.
2.1. A pirataria e, posteriormente, as grandes guerras
Amplamente difundido nos séculos XVI e XVII[8], o crime de pirataria foi o primeiro delito a ser imputado, em âmbito internacional, a pessoas físicas, posto que, no Direito Internacional clássico, apenas os Estados tinham responsabilidade penal internacional. Isso se mostrou como um verdadeiro avanço, posto que “a repressão como garantia da ordem jurídica interestatal não pode limitar-se aos atos ilícitos coletivos cometidos por Estados, devendo tratar igualmente os atos cometidos pelos indivíduos” [9].
O crime de pirataria, embora só tenha sido reconhecido como delicta ius gentium na Convenção Sobre o Alto-Mar, de 1958, em Genebra, sempre foi um delito que afetava toda a humanidade, e toda a humanidade podia perseguir e processar piratas independentemente da nacionalidade dos autores e das vítimas. Os imputados eram tidos como hostes humani generis, inimigos da humanidade, posto que, além de violarem a propriedade privada, dificultavam a liberdade no mar.
Contudo, a punição imposta aos piratas não buscava proteger valores da comunidade internacional, mas, tão-somente, bens e interesses de particulares contra um inimigo comum a todos os Estados, além de que os próprios Estados processavam, julgavam e sancionavam os piratas como lhes conviesse, não havendo uma legislação internacional para isso [10]– entrando, assim, mais no âmbito do Direito Penal Internacional do que no âmbito do Direito Internacional Penal.
Anos mais tarde, apareceram tratados internacionais, especialmente no que tange à guerra, condenando certas condutas individuais, como foi o caso da Convenção de Genebra de 1864 – para codificar a neutralidade, enfatizando a necessidade de proteger feridos e doentes –, a Declaração de Bruxelas de 1874 – também sobre neutralidade, restringindo, também, a utilização de determinadas armas –, as Convenções de Paz de Haia – também buscando evitar conflitos e estabelecer uma neutralidade. Parte da doutrina defende que, nessas e outras convenções, os crimes internacionais foram aparecendo.
As Convenções de Haia tinham, por objetivo, a imposição, aos Estados de deveres e obrigações, sem criar, contudo, responsabilidades criminais para o indivíduo. As convenções declararam a ilicitude de certos atos, mas sem criminalizá-los, o que pode ser inferido pelo fato de não haver nenhuma sanção prevista para a violação do que ela dispõe. Apenas em Nuremberg foram feitos julgamentos baseados em violações dessas convenções, após a Segunda Grande Guerra. No Estatuto do Tribunal para a Antiga Iugoslávia, ofensas contra leis e costumes de guerra, conhecidas como Hague Law, serão “positivadas”. [11]
São Tomás de Aquino afirma que, além de ter um motivo justo, toda guerra deve ser declarada por uma autoridade que tenham legitimidade para tanto, bem como buscar fazer o bem, evitando o mal[12]. Dessa forma, têm-se duas consequências: a guerra se vê submetida ao direito, de forma a jurisdicionalizar o recurso ao uso da força e ocorre a condução a uma distinção entre abuso de força e guerra lícita, levando a guerra a ser admitida apenas quando houver violação do droit de gens[13].
A guerra de agressão aparece em contraposição à guerra justa “As Convenções da Haia de 1899 e de 1907 e, após a Primeira Guerra Mundial, o Tratado de Versailles condenam a guerra de agressão.”[14].
Sobre a guerra de agressão, é assinado, em 1928, o Pacto Briand-Kellog, que mantém válida apenas a guerra defensiva, condenando a guerra de agressão. Os Estados signatários do pacto são todos autorizados a recorrer à guerra contra qualquer Estado que a tenha declarado em violação do pacto, segundo seu art. 1º, e não apenas o Estado-vítima[15].
Com todos esses acordos, é notável que, diferentemente do que supõe a fórmula doutrinária alemã Krieg ist Krieg, ou a máxima inter armas silent leges, a guerra se diferencia da barbárie ou da violência pura e simples por obedecer, além do motivo que se considera legítimo, a regras[16].
No entanto, o desenvolvimento de regras sobre direito da guerra não é acompanhado da determinação internacional das sanções aplicáveis aos “crimes de guerra”. As famosas Convenções de Haia de 1899 e 1907 nada dispunham a respeito de sanções[17].
De acordo com os ensinamentos de Carlos Calvo e Fauchille, o direito da guerra se submete a dois princípios, quais sejam: o da necessidade – desenvolvido na Alemanha, que afirma que, para se conseguir a vitória numa guerra, não existe restrições quanto aos meios empregados (tese de Hartman, que nega as leis da guerra), teoria fundamentada nas “razões de Estado”, não acolhida pelo Direito Internacional por ser tão-somente política – e o da humanidade, que busca balancear a teoria da necessidade, como estabelece o regulamento anexo da Convenção de Haia de 1907 sobre leis e costumes na guerra terrestre: “os beligerantes não têm o direito ilimitado quanto à escolha dos meios de prejudicar o inimigo”[18].
Em fins da década de 1910, com o fim da Primeira Grande Guerra, cresce, na opinião pública, um interesse na persecução criminal daqueles tidos como responsáveis pela guerra. Isto porque a Guerra abalara muito o mundo, que não vira nada igual até então.
Assim, todos concordam sobre os termos de um tratado de paz chamado Treaty of Peace between the Allied and Associated Powers and Germany, que ficou conhecido como Tratado de Versalhes, por ser concluído em Versalhes, a 28 de junho de 1919. No tratado, está prevista a criação do que seria um tribunal penal internacional ad hoc para julgar o Kaiser alemão Wilhelm II por ter começado a guerra, bem como os militares alemães acusados de violar as leis e costumes da guerra pelos Allied Military Tribunals, ou cortes militares de qualquer um dos Aliados[19].
Contudo, tão somente 40 dos 900 suspeitos alemães são, de fato, tidos como suspeitos e míseros 12 chegam a ser processados. Os julgamentos, realizados na cidade de Leipzig, na Alemanha, e conhecidos como Leipzig Trials são tidos como uma verdadeira derrota para o Direito Internacional Penal.
Com o fim da Segunda Grande Guerra, são instituídos os tribunais de Nuremberg para julgar os alemães e os de Tóquio para julgar os japoneses.
Em Nuremberg, são, a princípio, apresentadas denúncias contra 24 homens considerados criminosos de guerra importantes, por vários motivos. O líder da Frente Trabalhista, Robert Ley, se suicida antes mesmo que os julgamentos sejam iniciados[20] e é julgado, representando as grandes empresas alemãs, Gustav Krupp von Bohlen und Halbach[21]. Entre os 22 réus de fato, doze são condenados à forca; três, à prisão perpétua; dois, a uma pena de vinte anos de reclusão; um, a quinze; outro, a dez; e, por fim, três são inocentados pelo Tribunal[22].
Entre as críticas feitas ao tribunal, há o fato de ter sido adotado após as condutas acusadas terem sido cometidas, o que fere o princípio da legalidade.[23]Contudo, o tribunal optou por rejeitar esse argumento, referindo-se às Convenções da Haia para os crimes de guerra e ao Tratado Briand-Kellog, de 1928. Entretanto, era óbvio que os aliados não abririam mão de julgar – e condenar – os alemães, como era óbvio que o tribunal não seria nem um pouco imparcial.
O mesmo ocorre no Pacífico, com os japoneses nos Tribunais de Tóquio, similares aos de Nuremberg, adotados pelo Estatuto da Corte Militar Internacional[24].
Com o fim da Segunda Grande Guerra e os Tribunais de Nuremberg e Tóquio, as então recém-fundadas Nações Unidas se esforçam para estabelecer um tribunal penal, notavelmente em dois âmbitos: elaboração de um estatuto para o tribunal e tipificação dos crimes internacionais. Assim, seguindo solicitação da Assembleia Geral das Nações Unidas de 21 de novembro de 1947, a International Law Comission inicia a formulação dos princípios reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg, objetivando elaborar um projeto para o Code of Crimes against the Peace and Security of Mankind[25].
Simultaneamente, é estabelecido, pela Assembleia Geral, um comitê para elaborar o estatuto do Tribunal. Essa comissão prepara um projeto em meados de 1993, que, em 1994, tem sua versão final do Estatuto para um Tribunal Penal Internacional submetida à Assembleia Geral[26].
2.2. Os tribunais ad hoc para Ruanda e para a Antiga Iugoslávia
O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1993, decide pela criação de um tribunal para processar os responsáveis pelas atrocidades contra o direito internacional humanitário cometidas na antiga Iugoslávia, a partir de 1991[27].
É elaborado um Estatuto, que define a autoridade do tribunal para processar, segundo princípios básicos, quatro categorias de crimes: graves violações às Convenções de Genebra de 1949; violações às leis e costumes da guerra; crimes contra a humanidade; genocídio. A jurisdição desse tribunal é limitada aos crimes ocorridos na antiga Iugoslávia de 1991 por diante. [28]
Na mesma linha, em novembro de 1994, devido ao massacre, Ruanda solicita, ao Conselho de Segurança, sendo prontamente atendida, a deliberação pela criação de um segundo tribunal ad hoc para processar e julgar as gravíssimas violações ao direito humanitário cometidas naquele país africano, bem como países vizinhos no massacre de Ruanda naquele ano.
A decisão jurisdicional Tadic de 2 de outubro de 1995, primeiro grande julgamento ocorrido na Câmara das Apelações do Tribunal da Iugoslávia, esclareceu algumas importantes questões legais acerca da criação do corpo. Isso apontou, também, o tribunal para uma visão inovadora e progressista do direito dos crimes de guerra, ultrapassando muito os precedentes de Nuremberg, declarando que, mesmo em tempos de pás, podem ocorrer crimes contra a humanidade, estabelecendo, também, a punibilidade de crimes de guerra no decorrer de conflitos armados internos[29].
2.3. A Elaboração do Estatuto do Tribunal Penal Internacional
Dois comitês são convocados pela Assembleia Geral entre 1995 e 1998 para produzir o denominado “texto consolidado” do Draft Statue for the Establishment of an International Criminal Court[30].
Em 1996, o comitê ad hoc é substituído pelo Comitê Preparatório para a Criação de um Tribunal Penal Internacional, que submete o Draft Statue (“Projeto de Estatuto”) e o Draft Final Act (“Projeto de Lei Final”), contendo 116 artigos[31].
Em 1º de julho de 2002, o Estatuto entrou em vigor, encontrando-se aberto para a assinatura e ratificação por qualquer Estado. O Brasil é signatário do texto aprovado, tendo-o ratificado pelo Decreto de Promulgação n. 4.388, de 25/09/2002[32].
3. O ESTATUTO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
3.1. Sistema institucional do Tribunal Penal Internacional
Intitulada “Estabelecimento do Tribunal”, a Parte I do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (ETPI) dispõe que o Tribunal Penal Internacional (TPI), cuja sede deve ser na cidade holandesa de Haia, deve ter relações com a ONU e exercerá sua jurisdição sobre os crimes internacionais mais sérios, sendo seus poderes e funções exercidos no território de qualquer Estado Parte, podendo se estender a outros territórios, mediante acordo especial. A Parte II, “Jurisdição, Admissibilidade e Direito Aplicável” estipula que o TPI pode julgar crimes de genocídio, guerra, agressão e contra a humanidade, sendo, contudo, que os crimes de agressão ainda precisam ser definidos, para que o Estatuto não tenha sua aceitação dificultada. A Parte III, sobre os “Princípios Gerais de Direito Penal” fala os princípios consagrados no Tribunal: responsabilidade penal internacional individual, legalidade, irretroatividade, imprescritibilidade e irrelevância da função de oficial são os principais desses princípios. A Parte IV, “Composição e Administração do Tribunal” prescreve que o TPI possui um presidente, dois vice-presidentes, uma Seção de Apelações, uma Seção de Julgamento em Primeira Instância, uma Seção de Instrução, o Gabinete do Promotor e a Secretaria. A Parte V, “Inquérito e Procedimento Criminal”, detalha as responsabilidades e poderes do Promotor no que tange aos procedimentos seguidos, os direitos das pessoas no decurso do inquérito e o procedimento de detenção no Estado da execução da pena. A Parte VI, “O Julgamento” estabelece as garantias do acusado, das vítimas e das testemunhas. A Parte VII enumera disposições sobre as penas que podem ser impostas pelo TPI, quais sejam: prisão não excedendo 30 anos; prisão perpétua; multa; e perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime. A Parte VIII, “Apelação e Revisão”, estipula os fundamentos por meio dos quais o Promotor e o condenado poderão solicitar um reexame para modificar as resoluções do Tribunal tidas como injustas ou gravosas. A Parte IX, “Cooperação Internacional e Auxílio Judiciário”, fala sobre a obrigação que todos os Estados têm de cooperar com o TPI no inquérito. A Parte X dispõe sobre a função dos Estados na execução das penas de reclusão. A Parte XI discorre sobre a Assembleia dos Estados Partes. A Parte XII versa sobre o financiamento do TPI. Por fim, na Parte XIII, estão as cláusulas finais[33].
Disputas relativas às funções judiciais do TPI são resolvidas por ele próprio. As outras devem ser submetidas à Assembleia dos Estados Partes[34].
O TPI é composto por 18 magistrados, escolhidos dentre pessoas com alto caráter moral, integridade e imparcialidade, possuindo, ainda todas as qualificações exigidas em seus Estados para os postos judiciais mais altos. Devem, também, ser fluentes, em inglês, francês, ou ambas as línguas, que são as línguas de funcionamento do Tribunal, segundo o art. 50 do ETPI. Por fim, eles, que têm mandato de 9 anos, não podendo ser reeleitos, devem ter competência em direito processual penal e a necessária experiência forense em procedimentos criminais, ou ter notável conhecimento em áreas relevantes do Direito Internacional.[35]
Os membros da Presidências, eleitos entre os magistrados por maioria absoluta, desempenharão seus cargos por três anos, a não ser que, antes, seu mandato seja finalizado, única hipótese em que poderão ser reeleitos. A cada três anos, são renovados os membros da Presidência e um terço do total de juízes, sendo que o Presidente e os dois vices devem trabalhar em regime de dedicação exclusiva, nos termos do art. 35 (2) do ETPI.
O Gabinete do Promotor, composto pelo Promotor e pelos Promotores-Adjuntos, atua de forma independente, posto que é um órgão autônomo do TPI.[36] Todos eles, além de idoneidade, elevado nível de competência e prática em processo penal, devem ser fluentes em inglês e/ou francês[37]. Cabe ao Promotor recolher informações devidamente fundamentadas sobre os crimes de competência do TPI, para examiná-las, investigar e exercer a ação penal junto ao TPI. Ele é eleito pela Assembleia dos Estados Partes, bem como os Promotores-Adjuntos, que são eleitos a partir de uma lista de candidatos pré-apresentada pelo Promotor[38]. Eles exercerão seus cargos por nove anos, não podendo ser reeleitos[39] e trabalharão em regime de dedicação exclusiva[40].
Único órgão principal do TPI cujos membros os Estados Partes não elegem diretamente, a Secretaria é dirigida pelo Secretário, eleito pela maioria absoluta dos juízes, para servir por cinco anos, podendo ser reeleito uma vez[41]. Compete ao Secretário criar a Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas, unidade que, com o Gabinete do Promotor, adotará medidas de proteção e dispositivos de segurança e prestará toda forma de assistência às vítimas e testemunhas no tribunal[42].
São as principais funções da Assembleia dos Estados Partes, para a qual cada Estado Parte indicará um representante, além de seus conselheiros e substitutos: escolher o Promotor e os juízes; estabelecer regras administrativas gerais; examinar questões referentes a ocasiões em que os Estados não cooperam com o Tribunal; analisar e aprovar o orçamento do TPI. Cada Estado Parte tem direito a um voto na Assembleia, sendo que as decisões em assuntos substanciais precisam de dois terços de votos dos presentes e votantes, sendo o quórum para votação, a maioria absoluta de Estados Partes. Por sua vez, decisões em assuntos procedimentais só precisam de uma maioria simples[43].
Os fundos do TPI são financiados por três fontes diferentes: contribuições voluntárias, feitas por qualquer pessoa, física ou jurídica; fundos provenientes da ONU e pelas quotas dos Estados Partes, ajustadas segundo os princípios norteadores da tabela adotada pela ONU para seu orçamento ordinário.
3.2. O processo no Tribunal Penal Internacional
O ETPI outorga com exclusividade o direito de solicitar que o TPI exerça sua jurisdição, averiguando se compete ao TPI julgar o crime, além do Promotor, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, bem como qualquer Estado Parte. É necessário, também, que o Estado onde o delito ocorreu, ou o Estado de nacionalidade do acusado aceite que o TPI exerça sua competência, salvo nos casos em que ele é ativado pelo Conselho de Segurança, em que não faculta ao Estado aceitar ou recusar a jurisdição do Tribunal. O Promotor, contudo, deve apreciar a seriedade da acusação, podendo, para tanto, recolher maiores informações com os Estados, órgãos da ONU, Organizações Não Governamentais, ou Intergovernamentais, bem como quaisquer outras fontes que lhe convier[44].
Aberta a investigação ou persecução pelo TPI, somente o Conselho de Segurança pode suspendê-la, em qualquer fase que se encontrem, pelo prazo de 12 meses, prazo este que pode ser estendido[45]. Essa faculdade é duramente criticada pelo fato de que poderia levar a uma politização do TPI, conforme dizem Isabel Linora Delgado e Magdalena M. Martín Martinez, ao afirmarem que talvez seria conveniente valorar o efeito negativo que o regulamento privilegiado que o Conselho de Segurança projeta sobre o funcionamento do TPI de uma forma mais equilibrada. Não é um questionamento acerca da intervenção do Conselho de Segurança implícita, fato chamado por Escobar Hernández de “evidente risco de politização e seletividade”, ou acerca dos efeitos negativos que possivelmente ocorreriam se se suspendesse uma investigação ou persecução (especialmente quanto à prática de provas), mas uma determinação do verdadeiro alcance dessa possibilidade de suspender[46].
Outro exemplo é o de Morten Bergsmo, que afirma que “a atividade do Conselho de Segurança junto à CIC [Corte Internacional Criminal] (…) assegura a continuidade da tensão entre as exigências de paz e justiça na administração dos conflitos internacionais”[47].
Não sendo a investigação inibida pelo Conselho de Segurança, o Promotor pode decretar o arquivamento do inquérito, precisando justificar sua decisão a quem fez a denúncia, ou, ainda, decidir que há motivos suficientes para processar o possível delinquente, pedindo à Câmara de Instrução que emita uma notificação para comparência ou um mandado de detenção.
Assim, a Presidência vai designar uma Câmara de Julgamento em Primeira Instância, julgamento esse que será realizado na sede do TPI, podendo ser mudado a pedido da defesa ou do Promotor[48].
Nesse julgamento, indaga-se do acusado se ele é inocente ou culpado. A confissão do crime não tem por consequência o fim do julgamento, ou uma condenação, tendo em vista que a gravidade dos crimes que o TPI aprecia impede o reconhecimento de valor absoluto à confissão[49]. O acusado é, também, considerado sujeito de direitos, devendo ser garantido a ele o respeito, sob pena de ilegitimidade do poder punitivo, o respeito durante todo o processo no TPI[50].
O ETPI adota, no seu art. 74 (3), o sistema da unanimidade nas decisões do TPI, sendo que, se esta não for possível, pode-se adotar a decisão por maioria. Esta decisão deve ser proferida por escrito, com uma exposição completa e fundamentada da apreciação das provas, seguida da conclusão da Câmara de Julgamento em Primeira Instância.
Para satisfazer o princípio do duplo grau de jurisdição, pela necessidade de boa justiça superar a de segurança jurídica[51], o ETPI permite que suas decisões sejam impugnadas tanto pelo condenado como pelo Promotor. O recurso de apelação pode contestar tanto a pena quanto a culpabilidade[52]. A Câmara de Apelações julga os recursos e pode ratificar a decisão em primeira instância ou mandar que ocorra um novo processo, diante de uma nova Corte de Primeira Instância, segundo o art. 83 (2) do TPI. Durante o processo de apelação, a pessoa condenada em primeira instância permanece detida, nos termos do art. 81 (3) (a) do ETPI. “A sentença da Câmara de Apelações é obrigatória, definitiva e executória[53]”. O art. 85 do ETPI permite que se indenizem vítimas de erros judiciais.
As ordens de prisão proferidas pelo TPI devem ser cumpridas no Estado escolhido pelo Tribunal, dentro de uma lista de Estados que aceitem receber esse tipo de preso.
4. PRINCÍPIOS DE DIREITO INTERNACIONAL PENAL
O Tribunal Penal Internacional é orientado segundo alguns princípios de Direito Internacional Penal, os quais podem ser auferidos do próprio ETPI e passam a ser estudados.
4.1. Princípio da responsabilidade penal internacional individual
Muito embora os Estados permaneçam no centro das relações internacionais e do Direito Internacional, aos poucos, a comunidade internacional, com vistas a assegurar um nível mínimo de ordem pública internacional[54], foi aumentando a demanda por uma responsabilização das pessoas físicas pelo cometimento de delitos de extrema gravidade. Por isso, o ETPI consagra o princípio da responsabilidade penal internacional individual, no art. 25, declarando o TPI competente para julgar pessoas singulares.
4.2. Princípio da complementaridade e jurisdição universal
O TPI pode exercer sua jurisdição tão-somente em duas ocasiões.
A primeira delas é quando “o Estado em que o crime está sendo processado mostra-se incapaz ou não desejoso de processar e julgar”[55]. Para fazer uma determinação acerca da demonstração ou não de vontade de agir em um determinado caso por um Estado, o Tribunal averigua se o processo está pendente ou foi instaurado, ou se a decisão nacional foi realizada tão-somente para inocentar a pessoa de responsabilidade penal por crimes que o Tribunal tem competência para julgar; em caso de morosidade injustificada no processo de forma que seja incompatível com a intenção de levar a pessoa ao Tribunal; ou, ainda, se o processo foi ou está sendo conduzido sem independência ou imparcialidade, mas de uma forma tal que, nessas circunstâncias, não se possa forçar a pessoa em causa a comparecer ao Tribunal[56].
A segunda é quando o caso for de tamanha gravidade que o TPI tem o exercício de sua jurisdição justificável quanto ao caso concreto.
Portanto, o TPI é baseado no princípio da complementaridade, ou seja, ele não substitui os tribunais nacionais, atuando tão-somente de maneira subsidiária com relação às cortes nacionais, tendo em vista que essas possuem prioridade no exercício da jurisdição. Esse princípio é aplicável, também, a Estados não Partes.
No Estado onde o delito se consumou, o conjunto probatório é muito mais acessível, facilitando as investigações e até o próprio julgamento, acessibilidade esta que, além de tudo, implica a redução de custos. Além disso, o TPI busca proteger as soberanias estatais[57]. Ademais, o TPI nem mesmo tem estrutura para julgar a maioria dos crimes internacionais.
Sobre a jurisdição universal, diz-se que é refletida da progressiva tendência das legislações nacionais em atribuir-se competência para investigar e processar possíveis delinquentes internacionais. Por essa regra de Direito Internacional, se obriga ou faculta os Estados a exercerem jurisdição sobre suspeitos de determinados crimes internacionais, não importando o lugar onde tenham sido cometidos, se os suspeitos são ou não seus nacionais, ou, ainda, se os crimes representam uma ameaça direta aos interesses do Estado. Assim, qualquer Estado, com legislação tocante ao princípio da extraterritorialidade, pode julgar um suposto culpado que se encontre em seu território, não precisando remetê-lo ao TPI.
Contudo, a autora Carolina Susana Anello apresenta um grande problema desse princípio que é a questão do “fórum shopping”, que consiste no fato de os supostos delinquentes internacionais poderem escolher para qual país ir, para ser julgado segundo a legislação penal mais branda[58].
4.3. Princípio da legalidade
O ETPI tipifica todos os delitos sujeitos à jurisdição do TPI, constituindo uma espécie de Código Penal (CP) internacional[59], equilibrando os direitos do imputado, as garantias das vítimas e as obrigações de punir, prevenir e perseguir os delitos internacionais. “O extremo detalhamento das previsões do Estatuto de Roma, particularmente aquelas concernentes à definição de crimes e princípios gerais, atesta uma verdadeira obsessão para com o princípio da legalidade”[60].
Segundo esse princípio, não há delito sem lei anterior que o defina, nem pena sem lei anterior que a determine[61]. Dele, decorrem quatro consequências: proibição de analogia para interpretar leis penais, proibição do uso de direito consuetudinário para aplicar e agravar a pena, proibição da retroatividade e proibição de leis penais e penas indeterminadas[62].
4.4. Princípio do ne bis in idem
Por esse princípio, se um delinquente já foi condenado, em qualquer lugar, tendo cumprido pena por seu crime, ele não será submetido a outra restrição de seus direitos devido ao mesmo crime. Não será, nem mesmo, julgado por ele novamente. Há apenas duas ocasiões em que o TPI poderá julgar pessoas que já foram previamente julgadas: quando o primeiro julgamento tiver sido realizado tão-somente para absolver o réu[63], ou quando o TPI tiver, por objetivo, diminuir a pena a ele aplicada[64].
4.5. Princípio da irretroatividade e imprescritibilidade
A lei penal não pode retroagir, nem tem ultratividade, conforme o art. 24 do ETPI. Ademais, o art. 29 determina que os crimes da competência do TPI são imprescritíveis. Tal dispositivo se encontra fundamentado na gravidade dos crimes previstos no ETPI.
4.6. Princípio da irrelevância da função oficial, responsabilidade de comandantes e superiores hierárquicos
Este princípio, descrito no art. 27 do ETPI, preceitua que o Tribunal exercerá sua jurisdição igualmente a todos, indistintamente, não importando sua função oficial. Assim, as imunidades ou normas de procedimento especiais que decorram da qualidade oficial de uma pessoa, tanto em direito interno como internacional, não obstarão a que o TPI exerça sua jurisdição sobre essa pessoa. Ademais, a disposição da responsabilidade penal individual não afeta a responsabilidade dos Estados, segundo o Direito Internacional.
5. CONFLITOS ENTRE O ESTATUTO DE ROMA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA
A análise do ETPI leva à conclusão de que alguns dos seus preceitos são incompatíveis com a Constituição Federal de 1988 (CF/88). Esses pontos de divergência passam a ser analisados abaixo:
5.1. A extradição de nacionais
O art. 89 (1) do ETPI prevê a prerrogativa de o TPI pedir a detenção e entrega de indivíduos a qualquer Estado onde ele estiver, solicitando, também, a cooperação do Estado nessa detenção e entrega, conforme as disposições do ETPI, com procedimentos estabelecidos em seus respectivos direitos internos[65].
“A Constituição brasileira, por seu turno, veda a extradição de nacionais. Ademais, a referida proibição encontra-se inserida no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, sendo, conseqüentemente, um direito fundamental”.[66]Na posição de direito fundamental, essa vedação à extradição de nacionais é uma cláusula pétrea, segundo a própria CF/88. Dessa forma, o Brasil não pode extraditar um brasileiro para ser julgado por uma jurisdição que não a brasileira, o que é um direito constitucionalmente garantido, o qual não pode ser modificado nem mesmo por emenda constitucional.
A doutrina que discorda da existência desse conflito entre o ETPI e a CF/88 se embasa em uma interpretação do conceito de extradição.
Entende-se, por extradição, “o ato por meio do qual um indivíduo é entregue por um Estado a outro, que seja competente para processá-lo e puni-lo”[67]. Assim, como o TPI não é um Estado, a entrega de nacionais a ele não seria vista como uma extradição por essa doutrina. Essa distinção entre entrega e extradição é feita pelo próprio ETPI, justamente para burlar possíveis normas constitucionais presentes nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados partes. Assim, o art. 102 do ETPI diz: “Para fins do presente Estatuto: a) Por entrega, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto; b) Por extradição, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em tratado, em uma convenção ou no direito interno”.
Contudo, embora haja uma “diferença técnica” e, portanto, formal, entre os institutos, é evidente que ambos implicam, materialmente, o mesmo tipo e grau de constrangimento à liberdade individual. Se a extradição é o ato de um Estado entregar um indivíduo a outro para que este o julgue, é evidente que a entrega é espécie sendo a extradição, gênero[68].
5.2 O eventual desrespeito à coisa julgada material
Devido ao princípio do ne bis in idem, o TPI não pode julgar pessoas que já foram julgadas, ou já cumpriram pena em qualquer Estado, salvo em duas ocasiões, conforme dito alhures: quando o julgamento foi feito pelo Estado com o cunho unicamente de absolver o delinquente, ou quando o TPI quiser reduzir a pena a ele aplicada. E é justamente nessas duas exceções que reside uma grave violação à CF/88.
O art. 5º, XXXVI da CF/88 preceitua que “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”[69]. Uma vez que entende-se por coisa julgada material “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário e extraordinário”[70].
Estando, também, na categoria de direitos e garantias fundamentais, este inciso do art. 5º da CF/88 não pode sofrer mutação nem mesmo por emenda constitucional e, dessa forma, se o Brasil permitir que uma pessoa seja rejulgada no TPI, ele estará violando seu próprio ordenamento jurídico, sua própria Lei Maior.
5.3. A prisão perpétua
O ETPI prevê, como regra, que a pena privativa de liberdade geralmente não pode ser superior a 30 anos. Contudo, em casos excepcionais, ele estipula, no art. 77, a possibilidade de aplicação da pena de prisão perpétua devido à gravidade do fato e às próprias circunstâncias pessoais do condenado. Contudo, o art. 5º, XLVII, b da CF/88 proíbe penas de caráter perpétuo. Assim, o Brasil não tem poderes para aplicar penas de prisão perpétua.
Dessa forma, a referida pena é inconstitucional, posto que um Estado não tem poder para delegar, à jurisdição internacional, um poder que não possui. A nossa Carta Magna limitou, expressamente, o exercício do poder punitivo do Estado do Brasil, obstando a pena de prisão perpétua[71].
CONCLUSÃO
O Tribunal Penal Internacional é fruto de um longo processo histórico de evolução do Direito Internacional Penal, rumo a uma efetiva manutenção dos direitos humanos, buscando processar e julgar autores de crimes contra a dignidade humana: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão.
Assim, a começar dos crimes de pirataria, que foram os primeiros a serem vistos como crimes contra toda a comunidade internacional, o Direito Internacional Penal passou por uma gradual evolução histórica, passando pelo neocolonialismo, período em que a ampla hipertrofia das potências europeias levou à assinatura, por parte delas, de inúmeros tratados internacionais para evitar a guerra, ou, caso esta fosse causada, que fosse feita segundo uma ética internacional, criando um direito de guerra. Contudo, todos esses tratados não conseguiram impedir que ocorresse a Primeira Grande Guerra e, assim, aconteceram os Leipzig Trials, para julgar a parte derrotada por supostos crimes de guerra. Contudo, eles não foram, nem de longe, o que deveriam ter sido, representando, assim, uma grande derrota para o Direito Internacional Penal. Após a Segunda Grande Guerra, aconteceram os Tribunais de Nuremberg e os Tribunais de Tóquio, julgando criminosos de guerra das grandes potências do eixo, com base em outros acordos, firmados após o fim da Primeira Grande Guerra. Anos mais tarde, foram criados, para julgar as atrocidades contra os direitos humanos cometidas na ex-Iugoslávia, o Tribunal Penal ad hoc para a Antiga Iugoslávia e, para julgar os culpados do massacre em Ruanda, o Tribunal Penal ad hoc para Ruanda. Com base nos estatutos desses dois tribunais, foi confeccionado o Estatuto de Roma, ou Estatuto do Tribunal Penal Internacional, do qual o Brasil é signatário e proporcionou a criação do Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, na Holanda, para julgar os crimes contra a dignidade humana.
Entretanto, por mais que o Brasil seja signatário do Estatuto, que foi incorporado ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto de Promulgação n. 4.388, de 25/09/2002, em muitos pontos, o Estatuto e, por conseguinte, o Decreto de Promulgação n. 4.388 são inconstitucionais segundo a Constituição do Brasil. Isto se dá pelo eventual desrespeito à coisa julgada material – e ao princípio ne bis in idem – quando o Tribunal achar que um sujeito deve ser julgado novamente, por mais que já tenha sido julgado por um tribunal de direito interno em qualquer Estado, o que se dá quando o julgamento tenha sido feito tão-somente com o intuito de inocentá-lo, ou quando o Tribunal entender que a pena a ele aplicada é excessivamente rigorosa; pela aplicação da pena de prisão perpétua em casos excepcionais, violando um direito fundamental garantido pela nossa Lei Maior; e pela extradição de nacionais para serem julgados pelo Tribunal, o que é vedado pela nossa Carta Magna.
Todavia, não obstante o Estatuto de Roma entre em conflito com a ordem constitucional brasileira, seria importante que o Brasil relevasse esses pontos de conflito, em busca de um bem maior, que é a proteção internacional dos direitos humanos, posto que a dignidade da pessoa humana é o principal princípio do ordenamento jurídico brasileiro, de forma que o Estado do Brasil não deve criar empecilhos ao julgamento e à punição de crimes que atentem contra tal princípio.
Por outro lado, justamente por ser a dignidade humana o principal princípio do Direito brasileiro, é que não se pode admitir tantas infrações e violações de direitos e garantias individuais fundamentais a um criminoso. Isso se dá pelo fato de que, por mais que um sujeito viole a dignidade de um semelhante, ele não deixa de se qualificar como tal, não deixa de ser uma pessoa, um ser humano, tanto quanto aquele (s) que agrediu.
Assim, conclui-se que o Decreto de Promulgação n. 4.388, de 25/09/2002, é inconstitucional, de forma que o Brasil não deveria ter se submetido ao Tribunal Penal Internacional.
Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia
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