Resumo: Este artigo apresenta uma sucinta análise do conceito de Estado de Natureza de autoria de Thomas Hobbes desenvolvido em sua principal obra, a saber, O Leviatã, e também contempla uma breve discussão a cerca da presença de tal conceito no interior do famoso romance O Senhor das Moscas de William Golding. O objetivo fundamental consiste em apontar a importância e a atualidade deste conceito para universo jurídico e, modestamente, contribuir para os debates em torno da temática do contratualismo. As questões levantadas neste breve estudo visam lançar uma reflexão teórica a respeito da leitura em conjunto de um romance pouco conhecido do público brasileiro com um notório teórico da filosofia política contratualista. Este trabalho foi orientado pela Professora Paula Corrêa Henning.
Palavras-chave: Estado de Natureza, Thomas Hobbes, O Leviatã, William Golding, O Senhor das Moscas.
Abstract: This article presents a brief analysis of the concept of State of Nature by Thomas Hobbes developed in his main work named Leviathan, and also includes a brief discussion about the presence of this concept within the famous novel The Lord of the Flies by William Golding. The fundamental objective is to highlight the importance and relevance of this concept to the legal universe, and modestly contribute to the discussions around the contractualism. The issues raised in this brief study aimed to launch a theoretical reflection about reading a novel set in little-known Brazilian public with a notorious theory of contractarian political philosophy.
Keywords: State of Nature, Thomas Hobbes, Leviathan, William Golding, Lord of the Flies.
Sumário: 1. Introdução. 2 O Estado de Natureza em Hobbes. 3- O Estado de Natureza na perspectiva de Golding 4-Conclusão 5- Fontes Primarias 6- Referências Bibliografia.
1. Introdução
O objetivo deste breve ensaio político-filosófico é apresentar uma leitura concisa acerca desta e da sua relação com a concepção de Estado de Natureza através de um breve apanhado desta problemática em um texto específico de um importante contratualista, a saber, O Leviatã ou Matéria, forma de um poder eclesiástico ou civil[1] (no original Leviathan, or the Matter, Forme, and Power of a Commonwealth, Ecclesiastical and Civil, 1651) de Thomas Hobbes (1588 – 1679), e relacioná-lo com o clássico de William Golding O Senhor das Moscas[2] (no original Lord of the flies, 1954).
Conforme o discurso teórico contratual, o fato de termos nascido previamente inseridos em uma sociedade contratualista coloca a tarefa de historicizar aquilo que teria sido o Estado de Natureza dentro do âmbito de um tropo lingüístico, isto é, devido à impossibilidade do retorno ao passado, põe-se uma barreira intransponível àquele que pretende resolver tal empreitada, que parece estar fadado a duas opções: historicizar tal Estado a partir do presente, correndo o risco de cometer anacronismos, ou recorrer à verossimilhança, inventando (tudo ou parte de) aquilo que se supõe ter sido o Estado de Natureza humana. O projeto intelectual de Thomas Hobbes a respeito de tal Estado parece combinar ambas alternativas.[3]
2. O estado de natureza em Hobbes
Nascido na Inglaterra sob a dinastia Tudor,[4] Thomas Hobbes viveu a transição da Era Tudor para o reinado dos Stuart e, conseqüentemente, vivenciou o cotidiano da guerra civil, o que, conforme pode ser observado em suas obras,[5] o marcou profundamente. A violência, a morte, a brutalidade, isto é, a face do homem que floresce não só mas principalmente na guerra reforçou sua visão do ser humano como autodestrutivo. Desta forma, a concepção hobbesiana do homem em Estado de Natureza é de que este seria egoísta e agiria deliberadamente visando suprir a sua satisfação pessoal e ganância.
De acordo com Hobbes, a natureza teria criado os homens homogeneamente, como podemos perceber na seguinte assertiva:
“Observa-se que a natureza fez os homens tão iguais, no que se refere às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem visivelmente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com razão nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Quanto à força corporal, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo”.[6]
Depreende-se de tal citação que os homens seriam, por natureza, iguais; mais, os homens seriam tão iguais que poderiam desejar as mesmas coisas, o que inevitavelmente levaria ao conflito.[7] Tal impossibilidade de dois homens desfrutarem simultaneamente de uma mesma coisa semearia a discórdia,[8] que por sua vez conduziria os homens a um permanente Estado de Guerra “de todos os homens contra todos os homens”.[9] Em outras palavras, os homens agiriam na busca da satisfação de seus interesses. Assim, na teoria hobbesiana a guerra faria parte da natureza humana.
Entretanto, a beligerância intrínseca ao homem não é percebida como algo negativo. Para o filósofo,
“As noções do bem e do mal, de justiça e de injustiça, não podem ter lugar aí [na guerra]. Onde não há poder comum não há lei. Onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes principais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. (…) Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, domínio, distinção entre o meu e o teu. Pertence a cada homem somente aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza”.[10]
Ao dissertar acerca da maneira de agir no Estado de Natureza, Hobbes afirmou que algumas das noções mais básicas que temos enquanto seres sociais (como bem, mal, justiça, injustiça) não consistem em morais/imorais, mas sim amorais – isto é, que escapam ao âmbito próprio da moralidade. Devido ao caráter amoral que Hobbes confere à belicosidade do homem, tais categorias acima enumeradas são incompatíveis quando analisamos o Estado de Natureza, pois matar alguém neste Estado seria exatamente o mesmo que deixar alguém viver. A razão para isso está na ausência de um governo que estabeleça a ordem e diga às pessoas a conduta correta.
Retomando a primeira citação, Hobbes convida o leitor a pensar como seria a vida sob as condições do Estado de Natureza, ou seja, sob a ausência de um governo. Inicialmente tal Estado poderia ser facilmente confundido com a liberdade total, onde cada um tomaria suas próprias decisões e viver-se-ia sob o jugo de chefe nenhum; não haveria juiz, júri nem executor de sentenças, pois não haveria conseqüências legais nem jurídicas para os atos (tanto para os atos individuais quanto para os coletivos). No Estado de Natureza hobbesiano não há autoridade reconhecida como tal capaz de arbitrar disputas ou possuidora de um poder apto a fazer cumprir as suas decisões. Desta forma, aquilo que poderíamos prontamente denominar “liberdade” acaba por transformar-se em perigo, posto que na ausência de leis todos ficam a mercê dos outros – sobretudo os mais fracos.
Esta é a bellum omnia omnes.[11] É a luta individual pela sobrevivência que culmina, inevitavelmente, na guerra, no caos, no medo constante. O medo, que para Hobbes consiste em um dos instintos mais básicos da natureza humana, é a palavra-chave para que entendamos o por quê da feitura de um contrato social. Trata-se do grande aglutinador social; contudo, dentro da teoria de Hobbes, o medo só pode ser entendido quando analisado em conjunto com um segundo instinto fundamental: o de sobrevivência. De acordo com Hobbes, “as paixões que levam os homens a preferir a paz são o medo da morte”, [12] ou seja, o homem não une-se em sociedade porque ele é naturalmente bom e social; o homem procura viver em grupo porque vê-se constantemente ameaçado e pensa que a melhor forma de evitar a supremacia do mais forte é através da vida no coletivo.
O homem pensa, justamente por ser um animal racional, e consegue entender que a vida no Estado de Natureza não é o melhor jeito de se viver. O desejo de autopreservação obriga as pessoas a suprimir o seu egoísmo/hedonismo natural e a renunciar a sua liberdade. A necessidade de segurança e equilíbrio social demanda a abdicação do uso arbitrário e individual da força a favor do grupo. A cessão da liberdade individual, segundo Hobbes, deveria ser feita em relação ao governo comum, cuja melhor representação repousava na figura do soberano.[13] Este é o Leviatã: um poder absoluto, centralizado, inquestionável. Ceder-se-ia liberdade e em troca ganhar-se-ia paz interna e defesa. Por intermédio do contrato social, o indivíduo priva-se de retomar direitos abdicados, porém, haveria um único momento em que o soberano poderia ser deposto: quando a finalidade essencial do pacto não era verificada, ou seja, quando não haveria segurança interna e externa dos súditos. Nesse caso, e somente neste, o governante poderia ser legitimamente deposto.[14]
A perspectiva hobbesiana do ser humano como mal, ganancioso, egoísta e cuja condição natural é estar em guerra constante, como mencionado anteriormente, não deve ser percebida como negativa, mas sim amoral. A sociabilidade na teoria de Hobbes não é inata, mas sim um advento compelido em virtude da escassez de recursos e da ausência de um governo centralizado que pudesse controlar os impulsos daqueles que visam suprir suas necessidades através da captação (forçada) de tais recursos.
3. O estado de natureza na perspectiva de Golding
Nesta mesma perspectiva teórica a respeito do Estado de Natureza humana, o escritor inglês William Golding construiu uma significativa narrativa literária acerca do retorno a esta condição em O Senhor das Moscas. Nesta obra, que data de 1954, há a exposição de uma visão pessimista da humanidade. Bem como Hobbes, Golding viveu os horrores da guerra – no caso, a Segunda Guerra Mundial. Professor de literatura inglesa, no ano de 1940 tornou-se oficial da Marinha Britânica, participando da perseguição e afundamento do navio alemão Bismarck e também do desembarque das tropas aliadas na Normandia, em 1944.[15] Com o final da guerra, voltou a lecionar, porém, sua concepção de ser humano estaria profundamente marcada pela experiência do Holocausto.[16]
O Senhor das Moscas narra uma situação-limite, como foi extermínio judeu, porém ficcional: durante a fuga de uma cidade que fora destruída por um bombardeio atômico em virtude da Terceira Guerra Mundial, um avião cai em uma ilha deserta e os sobreviventes, um grupo formado apenas por meninos, organiza-se enquanto aguarda pelo resgate. A ilha, situada em algum ponto do oceano Pacífico, é um verdadeiro paraíso tropical: há água em abundância, frutos, bons abrigos, enfim, tudo aquilo que teoricamente seria necessário para conviver harmoniosamente. Apesar de livres das regras sociais que determinam o cotidiano dos garotos, inicialmente eles permanecem conectados aos valores da civilização ocidental: elegem um líder democraticamente e enfrentam as adversidades pacificamente.[17] Embora inseridos em condições favoráveis de coexistência, a escuridão da noite, a demora da chegada do resgate, o medo natural do desconhecido provocam visões de um animal estranho e fazem com que os meninos passem a agir não mais dentro de um padrão civilizado, mas selvagem. Assim, desfeita a ordem, inicia-se um luta desmedida pelo poder, deixando um rastro de destruição que termina em caçadas humanas e assassinatos.[18][19]
William Golding criou quatro personagens emblemáticas em sua trama: Ralph (o protagonista), Jack Merridew (o antagonista), Porquinho (fiel amigo de Ralph) e Simon (que adquire importância ao longo da trama). Não é difícil perceber que cada um destes meninos é uma representação de um determinado modelo social. Ralph pode ser facilmente identificado com o arquétipo da Democracia. Escolhido democraticamente por meio de uma votação direta como o líder do grupo, Ralph é quem procura manter a ordem através do estabelecimento de regras fundamentais, visando não só a sobrevivência, mas também buscar meios para que ocorra o resgate – uma de suas primeiras medidas enquanto chefe foi fazer uma fogueira, com a esperança de que algum navio avistasse a fumaça ao longe.[20]
Jack Merridew é inicialmente apresentado como o líder de um subgrupo, o dos coristas. Educado e sofisticado, ele é o símbolo da tradicional e aristocrática educação inglesa. No entanto, é Jack quem pode ser percebido como a personificação da regressão ao Estado de Natureza do modelo de Thomas Hobbes; agindo selvagemmente, Jack arrasta consigo a grande maioria do grupo. Enquanto Ralph é a metáfora da democracia, Jack é a tirania. A dupla humilhação pública sofrida por Jack (ao perder a eleição para líder e, posteriormente, quando nomeado chefe dos caçadores, perde a oportunidade de matar um porco) abala-o de tal forma que este decide chegar ao poder por outras vias. Apesar de tratar os companheiros rudemente, de ser violento, temperamental e de contrariar as normas impostas por Ralph, há alguma coisa fascinante em seu discurso que atrai os demais meninos. Talvez este magnetismo resida justamente no fato de Jack ser um completo outsider, de não querer se encaixar absolutamente dentro de nenhuma regra, característica essa tão própria da adolescência, ou ainda, Jack pode representar o instinto selvagem que seria inerente ao ser humano, cuja pulsão sufocamos em prol do convívio social, mas que, mesmo dominado, constituiria parte essencial da natureza do homem.
Porquinho, cujo verdadeiro nome não é mencionado, é descrito como um menino gordo, míope e asmático. Apesar de ter a mesma idade dos demais, é certamente mais maduro do que a maioria, procurando agir sempre dentro de uma lógica racional. Porquinho é o conselheiro de Ralph; não possui o instinto nato de liderança deste, porém, é ele quem arquiteta boa parte dos planos de sobrevivência, que nem sempre foram postos em prática. Diferentemente de Ralph, Porquinho não é admirado pelos demais; suas limitações físicas são alvo constante de piadas no grupo. A deterioração de sua saúde ao longo do tempo (seus óculos são quebrados e, posteriormente, roubados por Jack; sua asma impede-o de realizar atividades de exploração coletiva e de nadar; entre outros) pode ser vista como uma metáfora da ruína da racionalidade e da civilização; sua morte, que se dá em circunstancias macabras, seria o marco do fim da civilidade e do retorno ao Estado de Natureza hobbesiano.[21]
Simon é um menino franzino e frágil, porém, sempre disposto a ajudar. Ao longo da obra, Simon teve uma série de revelações místicas, sendo o único menino que consegue dialogar com o “senhor das moscas”(uma cabeça de porco espetada em um pau que Jack dá como oferenda ao “monstro” que habita a floresta; na realidade o “monstro”, misterioso animal criado pela mente fantasiosa das crianças, é o cadáver de um pára-quedista. É o próprio crânio de porco que se autodenomina “senhor das moscas”). Simon é o oposto do estereótipo infantil: é calmo e tranqüilo. Suas revelações místicas (na sua última conversa com o “senhor das moscas” há a predição de sua morte, que de fato ocorre)[22] faz com que alguns críticos de Golding aproximem Simon de São Pedro (cujo nome original é Simão), um dos doze apóstolos de Jesus Cristo e o primeiro papa da Igreja Católica.[23] Diferentemente de Ralph e Porquinho, cujas ações são condicionadas por uma moral que visa à sobrevivência, Simon parece agir por acreditar que a moral é inerente ao comportamento humano. Além disso, ele é o primeiro a afirmar que o suposto monstro escondido na floresta não era um animal real, mas sim a maldade que existe no interior de cada um. Sua morte é simbólica, podendo ser entendida como a existência sim de uma bondade humana que, no entanto, é vencida pela maldade.
O conflito de poder protagonizado por Ralph e Jack encarna a assertiva hobbesiana de que o homem é egoísta e age deliberadamente buscando a satisfação de seus interesses. Apesar da simpatia que o leitor desenvolve com a figura de Ralph, é importante lembrar que todas as suas ações na ilha são voltadas para sua sobrevivência e para o seu resgate – a sobrevivência e o resgate dos demais seriam conseqüências das ações organizadas por ele; seu objetivo maior é a manutenção da sua própria vida. Da mesma forma, isto é, visando a sua sobrevivência, Jack age de maneira distinta: para ele, a busca de recursos alimentares (sobretudo carne) é mais urgente do que a manutenção da fogueira acesa visando sinalizar para algum possível navio.
O conflito de prioridades entre Ralph e Jack é a semente da discórdia: a impossibilidade de conciliá-las torna a convivência entre ambos impraticável. Como Hobbes afirmara, os homens seriam tão iguais que poderiam almejar as mesmas coisas; apesar de possuírem personalidades e prioridades distintas, é evidente que ambos almejam ao posto de liderança, lugar esse que não pode ser ocupado simultaneamente. Estava iniciando o retorno ao Estado de Natureza e, conseqüentemente, começava o Estado de Guerra na ilha.
A fogueira mencionada acima aparece logo nos capítulos iniciais do livro; seu objetivo, como referido, é servir como sinalizador. Durante uma assembléia, é acordado entre os meninos que estes se dividiriam em turnos para mantê-la acesa o tempo todo. Contudo, certa feita um grupo de meninos encarregados de cuidá-la abandona-a e segue junto com Jack para uma caçada; o problema é que, ao longe, os meninos que se encontravam na plataforma avistam um navio e, ao olharem para o cimo da montanha com o intuito de avisar para pôr mais lenha na fogueira e produzir mais fumaça, se dão conta de que não há ninguém lá em cima. O desrespeito a uma ordem não só explicita de Ralph, mas que fora de comum acordo na assembléia, é o estopim para que a rivalidade entre este e Jack torne-se explícita. Depreende-se de tal situação que, apesar de Ralph ser o chefe legítimo, ele não detém meios para punir os meninos que não seguiram as suas normas. Não há conseqüências maiores para este ato, o que faz transparecer a fragilidade do poder do chefe: ele não detém o monopólio do uso da força, pois suas leis foram desobedecidas e absolutamente nada aconteceu aos infratores. Isso abre margem para que Jack comece a questionar os poderes de Ralph.
A impunidade logo unir-se-ia a um elemento decisivo para o entendimento não só do comportamento dos garotos, mas, segundo Hobbes, para a compreensão do ser humano no Estado de Natureza. Para o filósofo, as relações entre os seres humanos no Estado de Natureza são fundamentalmente condicionadas pela precariedade do item segurança – de onde advém, conforme visto, a necessidade de um soberano que a forneça.[24] O medo, enquanto aglutinador social, reúne as pessoas que preferem abdicar do seu poder de ação individual em prol da sua sobrevivência. Os meninos preferiram viver em grupo quando ouviram Ralph tocar a concha e, reunidos em assembléia, escolheram-no como líder, isto é, fizeram o contrato social; a vida no Estado de Natureza não parecia mais tão boa quando se deram conta de que algumas atividades, como a caça aos porcos para obter carne, que inicialmente era fonte de entretenimento, oferecia sérios riscos à integridade física deles e, por isso, somente poderia ser realizada em conjunto.
O contrato social estabelecido entre Ralph e seus “súditos” deu-se razoavelmente bem até aparecer o referido “monstro” na ilha. O fato deste nunca ter sido visto por nenhum dos meninos aumentou a expectativa em torno dele. A questão que gira em torno do “monstro”, crê-se, não é a sua existência empírica ou não, mas sim o fato de que Ralph não cumpre a sua parte no contrato social. Como fora apresentado, o único momento em que a deposição do soberano é legítima seria quando a função básica do pacto não é atendida, ou seja, quando não há segurança para os súditos. Assim, a tomada do poder por Jack seria absolutamente legítima aos olhos de Hobbes.
O novo Estado que é instaurado com a liderança de Jack estabelece a segurança para a maioria dos garotos e mais, transforma Ralph, Simon e Porquinho nos novos outsiders, uma vez que estes formam um grupo paralelo, ainda pautados por conceitos democráticos. As mortes de Simon e Porquinho representam a punição daqueles que subverteram a ordem do soberano e, por mais que sejamos tentados a responsabilizar unicamente Jack por estes atos de “barbarismo”, Hobbes no lembra de que todos os garotos são co-responsáveis pelas ações a partir do momento em que delegaram o poder soberano a Jack:
“A única forma de constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das invasões dos estrangeiros e das injúrias dos próprios comuneiros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio trabalho e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades (…) a uma só vontade. Isso equivale dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante deles próprios, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que os representa praticar ou vier a realizar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns. Todos devem submeter suas vontades à vontade do representante e suas decisões à sua decisão. Isso é mais do que consentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: “Cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfiras a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações”. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas”. (grifo meu)[25]
Como podemos deduzir da assertiva acima, o pacto estabelecido entre os meninos autoriza as ações do soberano Jack. A existência de pessoas que não compactuaram com Jack mina a base de seu poder e põe em risco a existência do Estado instaurado por ele. De acordo com Cláudio Leivas, estudioso de Hobbes, o Estado encontrar-se-ia numa situação de risco de morte caso a desobediência propagasse-se na esfera social. Assim, a eliminação daqueles que estão fora do pacto é imperativa para o bom funcionamento do novo Estado que se instaurava.
4. Conclusão
A obra O Senhor das Moscas constitui um dos marcos da literatura moderna inglesa. As questões levantadas neste breve estudo visam lançar uma reflexão teórica a respeito da leitura em conjunto de um romance pouco conhecido do público brasileiro com um notório teórico da filosofia política contratualista. Muitos outros pontos permaneceram intocados neste incipiente trabalho – como a diferença entre ato de autorização e ato de pacto; um debate mais profundo sobre as leis naturais e outras leis de natureza; a definição mais elaborada de Estado; e mesmo os nomes das obras, ambos derivados de nomes de monstros bíblicos,[26] entre outros – que, por falta de tempo e espaço, não serão aqui abordadas.
Informações Sobre os Autores
Vanessa dos Santos Moura
Estudante de Direito.
Everton Bandeira Martins
Estudante de Direito.
Thiago Vinicius Toledo Pinheiro
Estudante de Direito.