Um caso comum: a importância das políticas públicas para a efetivação da justiça em sua aplicação positivista

Resumo: o presente artigo trata de abordar a execução das leis em um caso comum pela interpretação positivista kelseniana. Será mostrado como o caso de Natanael Serra da Silva, mesmo tendo seu caso executado de forma estritamente legal, forma criticada por muitos, foi respondido de maneira justa. Ao longo do artigo serão abordados os objetivos do projeto do CNJ: “Começar de Novo”, e a importância das políticas públicas para a eficiência da justiça.


Palavras-chave: Kelsen, positivismo, CNJ, Começar de Novo, políticas públicas.


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Abstract: This article is about law enforcement in a common case for the positivist interpretation of Kelsen. It will be shown as in the case of Nathaniel Serra da Silva, even though his case runs strictly legal, was answered with justice. Throughout the article we will focus on project objectives of CNJ: “Começar de Novo” and the public policy importance to the efficiency of public justice.


Keywords: Kelsen, positivism, CNJ, “Começar de Novo”, public policy,


Sumário: 1. Introdução. 2. Uso e Críticas ao Direito Positivo. 3. A essencialidade de políticas públicas. 4. Conclusão.


1. Introdução


Natanael Serra da Silva foi condenado a doze anos e seis meses de reclusão por homicídio simples cometido na cidade de Timon – MA. Em processo de cumprimento de pena, inicialmente em regime fechado, Natanael ingressou em um programa nacional de assistência presidiária de ressocialização, programa Começar de Novo, do Conselho Nacional de Justiça: praticou atividade interna de artesanato durante 935 dias. Natanael tem direito de remir 312 dias de sua pena (um terço dos dias trabalhados). Com o direito de remissão de pena concretizado já foram cumpridas então mais de um terço de sua pena.


Dada a situação, a Natanael pode ser concedido o livramento condicional. Como apresentou bom comportamento carcerário seu pedido foi efetivado, tendo por autor o Ministério Público Estadual, segundo processo 1945/2009, na 7º vara da Comarca de Timon, realizado pelo juiz Francisco Ferreira Lima, titular da 6º Vara, respondendo pela 7º Vara da Comarca. Natanael foi então liberto, desde que não faça uso de bebidas alcoólicas, não freqüente boates, bares, e locais semelhantes, não volte a delinqüir, encontre emprego em prazo de sessenta dias, dentre outras exigências. O programa Começar de Novo, deu a Natanael a oportunidade de trabalhar dentro da prisão, oportunidade esta que culminou em uma libertação (embora condicional) mais veloz.


Segundo a própria página do Conselho Nacional de Justiça:


  “[…] O Começar de Novo visa à sensibilização de órgãos públicos e da sociedade civil para que forneçam postos de trabalho e cursos de capacitação profissional para presos e egressos do sistema carcerário. O objetivo do programa é promover a cidadania e conseqüentemente reduzir a reincidência de crimes. […]”  (Disponível em: http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/detentos-e-ex-detentos/pj-comecar-de-novo)


Trata-se de um programa de ressocialização, é digno de nota em nosso caso, lembrar que o Maranhão é um dos pioneiros a receber o programa do CNJ. O Centro de Reeducação e Inclusão Social de Mulheres Apenadas (Crisma) visava a reinserir ao mercado de trabalho ex-detentas, capacitando profissionalmente após o cumprimento da pena. O caso de Natanael ocorreu após uma expansão, visto que o programa teve êxito em conseguir uma ocupação interna para aquele. (Fonte: http://www.pcn.ma.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=59&Itemid=58, acesso em 04/07/2011)


Pelo mecanismo da Lei de Execução Penal, ao encontrar um emprego para o detento enquanto este ainda é usuário do sistema carcerário, o programa acaba por diminuir o tempo em que este se encontra dentro da prisão (tanto pela remissão de pena, quanto pelo livramento condicional). Isto está de acordo com um dos lemas do programa: “Uma cela vazia, um posto de trabalho ocupado.” Atualmente, o programa conta com muitos parceiros, Ministério do Desenvolvimento Social, CRASS, INSS, e diversas empresas. (Disponível em: http://www.stds.rs.gov.br/upload/20110613165918apresentacao__no_cnj_do_scn_workshop_oficial.ppt#590,12,Eixos de Trabalho do Sistema Começar de Novo, acesso em 04/072011)


As estatísticas demonstram que cerca de 70% dos criminosos brasileiros são reincidentes. Infelizmente ainda não há estatísticas confiáveis quanto à porcentagem de reincidência dos beneficiados do projeto. Digno de nota é que o objetivo geral do projeto é reduzir a taxa em até 20%#. As expectativas são otimistas (Fonte: http://www.pcn.ma.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=59&Itemid=58, acesso em 04/07/2011)


A condenação de Natanael deu-se pelo conhecido art.121, caput, do Código Penal, ingressou no programa “Começar de Novo” do CNJ, e seu trabalho interno, sua remissão de pena, e por fim, seu livramento condicional, ocorreram conforme a Lei de Execução penal – LEP (lei n 7.210/84). A pena de Natanael foi abrandada, ele teve suporte para ressocialização, pois sai do cárcere após ter aprendido uma atividade técnica profissionalizante.


2. Uso e Críticas ao Direito Positivo.


Em nenhum momento o processo de Natanael deixou de seguir a aplicação pura da lei. Não foi necessário o uso de nenhuma corrente hermenêutica alternativa para que a solução do caso atendesse as expectativas da comunidade.


Enquanto as correntes atuais afirmam a necessidade de uma hermenêutica branda, visando uma adequação social, redução das desigualdades, enfim, um processo de interpretação flexível, o positivismo de Kelsen tem como hermenêutica “uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior” (Kelsen, 1998, p. 463). Mesmo que, para Kelsen tal processo tenha por resultado certa indeterminação inerente ao processo. A questão da justiça, para Kelsen, quando não excluída da ciência jurídica e colocada para o plano da ética, é algo inerente ao fato ser ou não legalizado pelo Estado: “Um Direito Positivo pode ser justo ou injusto; a possibilidade de ser justo ou injusto é uma conseqüência essencial do fato de ser positivo” (Kelsen, 1987, p. 364).


Aprofundando-se um pouco no positivismo jurídico, Bobbio (1995) aponta algumas características dessa corrente. Dentre elas, o fato de a interpretação do jurista ser mecanicista automática. Tal característica é duramente criticada pelo fato de não existir neutralidade absoluta: a decisão do juiz obrigatoriamente e até involuntariamente decidirá levando em conta seus valores pessoais.


Ainda como afirma Marco Aurélio Ventura, o positivismo jurídico ainda sofre outra crítica, advinda do movimento do direito alternativo:


“Há entre os alternativistas uma unanimidade de crítica ao positivismo jurídico, que é entendido como uma postura jurídica técnica-formal-legalista, de apego irrestrito à lei. Os juristas alternativos denunciam que o Direito tem sido excessivamente formal, incoerente e incompleto, deixando várias contradições e lacunas”. (Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/37>. Acesso em: 4 jul. 2011)


E ainda Lyra Filho, em sua crítica ao positivismo apresenta-o como “uma redução do Direito à ordem estabelecida” (LYRA FILHO, 1999: 16). Assim, para este autor, o positivismo, ao vincular as normas jurídicas apenas ao ordenamento estatal dificultaria o advento das novas leis pelas lutas sociais. O Estado, para Lyra filho, um instrumento da classe dominante, (concepção semelhante à Marx), e o positivismo colocaria nas mãos da classe dominante a chave do direito (LYRA FILHO, 1999: 30).


3. A essencialidade de políticas públicas


Apesar de todas essas críticas, notamos no estudado caso, que a corrente positivista teve êxito em adotar medidas coerentes para a reeducação do detento. Afirmar que a hermenêutica de Kelsen seria a mais adequada a qualquer caso, seria deveras uma conclusão simplista. Porém, foi apresentada aqui uma prova de que tal processo de decisão judicial não é de todo errada e é capaz de produzir resultados eficazes. Torna-se necessário acrescentar que tal sucesso só foi possível com a implementação de políticas públicas.


Sem o programa começar de novo, Natanael provavelmente (levando as peculiaridades de cada caso) entraria para o grupo dos demonizados e invisíveis, que não iriam usufruir da imparcialidade da lei devido sua condição financeira.  Como Oscar Vilhena aborda. Ocorre uma subversão do Estado de direito visto que a desigualdade financeira acaba por gerar como resultado a invisibilidade dos miseráveis, a demonização daqueles que lutam contra o sistema estatal e imunidade da classe privilegiada (VIEIRA, 2007) contra as sanções legais.


Eloísa Hofling (2011) já aborda a importância das relações entre Estado e políticas públicas sociais.


Os motivos alegados pela existência de tais ações do estado são muitos: Verza (2000) crê que as políticas públicas podem ocorrer dentro do capitalismo e aposta na formação de cidadãos, pela educação escolar, conscientizando-os desde cedo com a preocupação com a sociedade.  Meksenas (2002), por outro lado, acredita que as políticas públicas servem apenas para conformar a classe oprimida e fazer com que os donos dos meios de produção perpetuem-se no poder de maneira confortável (de maneira semelhante às ações populistas de Vargas). Meksenas ainda afirma que as políticas públicas dão uma falsa ilusão de que a classe beneficiada um dia poderá ascender socialmente.


No Brasil, como bem aponta Faoro (1985), o patrimonialismo é arraigado, e freqüentemente ocorre o uso da máquina pública para fins pessoais (acabando por afetar o uso de políticas públicas). A abordagem de Faoro é pessimista por que acredita que traços patrimonialistas sempre estarão presentes no país, acorrentando assim, o uso das políticas públicas pelo patrimonialismo. A política pública brasileira é ineficiente, e utiliza-se de vários requisitos legais para assim continuar (como a reserva do possível). Mesmo que a fonte social de tais políticas não esteja de fato definida, e ela seja ineficaz, é certo de que elas são importantes para o desenvolvimento do Estado, para a promoção de igualdade racial, segundo Lima e Steyer (2007), igualdade de gênero, conforme Godinho e Silveira (2004), e, se houver um real melhoramento das condições sociais dos beneficiados, contrariando Paulo Meksenas, para a igualdade social. Não só quanto à assistência social “as políticas públicas promovem a construção de uma nova cidadania no Brasil e a formação de espaços públicos do Estado de Direito Brasileiro” (VIEIRA, 2009)


Discordando de Meksenas, o papel das políticas públicas pauta-se na busca pela cidadania, tomando por foco a generalidade, igualdade de direitos e responsabilidades (NOGUEIRA, 2004, p142) e inclusive os “excluídos” (para utilizar a expressão de Vilhena).


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No caso estudado, é mostrado que uma política pública pode proporcionar a justiça mesmo em uma aplicação fria da lei. De fato, desde que o Estado não se escuse de suas responsabilidades e promova igualdade e segurança aos seus componentes, a aplicação comum da lei tenderá para resultados satisfatórios. Isto ocorre por que o estado conseguiu atender satisfatoriamente a demanda da população e fazer com que o processo judiciário funcione sem a necessidade de interpretações e aplicações fora da estritamente legal.


4. Conclusão


Entre as definições mais completas de Direito, está, não a de um jurista ou


juízes construírem o Direito e regularem operador do Direito, mas do poeta italiano do século XIII, Dante Alighieri:


“ius est realis ac personalis hominis ad hominem proiportio, quae servata societatem servat, corruipta corrumipit” (Direito é a proporção real e pessoal de homem para  outro homem que, conservada, conserva a sociedade e que, destruída, a destrói.)” (Dante De Monarchia – II, V.)


A definição de Dante, e com ele, várias definições pertencentes a outros pensadores (Miguel Reale, Hugo Grócio, Kant etc.), nunca afirmaram que o direito pertença exclusivamente à esfera judiciária. No máximo, o positivismo de Kelsen afirma que o direito pertença ao Estado. Assim sendo, não é papel apenas dos a sociedade. Visto que há uma sobrecarga da esfera jurídica (CELSO NETO, 2001), é necessário que o Estado não se esqueça de suas obrigações para com a sociedade, e, por meio de políticas públicas, atenda esta demanda. É de competência de o Estado aplicar corretamente os recursos públicos para a satisfação das necessidades coletivas. Para que não ocorra a sociedade se corrompa, como apontado por Dante.


O resultado do apontado é que, para que as leis aplicadas segundo o positivismo tragam justiça, primeiramente é necessário que o Estado imponha igualdade de tratamento, para que classe oprimida não seja invisível, ou demonizada “(VILHENA, 2010). As políticas públicas têm justamente a finalidade de tornar visíveis tais classes, e, no caso de Natanael, impedir a demonização das mesmas pela inclusão social.


 


Referências bibliográficas:

FAORO, Raymundo. Os donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro, São Paulo, Globo. 1985.

SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. IN Sociologias nº 16. Junho/dezembro 2006, p. 20-45.

MEKSENAS, Paulo. Cidadania, Poder e Comunicação. São Paulo ed. Cortez, 2002.

VERZA, Severino Batista. As Políticas Públicas de Educação no Município. Ijuí ed. UNIJUÍ, 2000

KELSEN,Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo, Martins Martins Fontes, 1987.

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 1995

PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura. Direito alternativo: uma tentativa de impedir a modernização do direito?. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/37> Acesso em: 4 jul. 2011.

OLIVEIRA, Nelson do Vale. Teoria Pura do Direito e sociologia compreensiva. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 65, 1 maio 2003. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4014>. Acesso em: 4 jul. 2011.

VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do Estado de Direito. Vol.4 São Paulo – 2007.

LYRA FILHO, Roberto. (1999) O que é Direito. São Paulo, Ed. Brasiliense.


Informações Sobre os Autores

Sílvio Rennan

Estudante de Direito.

João Gabriel Soares Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí Pós Graduando pela Escola da Assembleia Legislativa do Piauí


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