Um desabafo sobre o problema da habitação e urbanismo no país

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Ontem à noite ao assistir o noticiário televisivo me deparei com a seguinte reportagem, bem captada pelo jornal: um pai, homem vindo do interior do sertão do Nordeste, tentando e começando a buscar uma vida digna para si e sua família – havia sido contratado para trabalhar numa oficina mecânica – , fora, junto com sua esposa, filhas e alguns outros parentes mais próximos vítimas das fortes chuvas de verão que atingem o Sudeste nesta época do ano.


Todos morreram. Todos. Daquela casa do pobre trabalhador e sonhador nordestino não sobrou ninguém.


Ao repórter, presente na cena da tragédia, vizinhos e amigos disseram que a maior realização e satisfação desse homem vitimado, motivo de muita alegria para este, era olhar para as duas recém-compradas mochilas escolares de suas filhas, eis que o mesmo sempre falava orgulhoso que estudando elas seriam alguém na vida.


Também contaram os populares às câmeras que todos aguardavam o dia de hoje raiar para ouvirem as histórias desse pai, que tinha acabado de voltar de sua visita à mãe no interior do Nordeste, depois de pela primeira vez ter conseguido juntar algum dinheiro para vê-la, para contar boas novas à saudosa velha.


E a vida dessa gente vai embora.


Mas, assim?


O direito social à moradia que preciosamente ornamenta o texto constitucional é uma brincadeira? Uma piada mal contada?


O direito do necessitado a uma habitação digna, assim como as águas das chuvas se precipitam e são lançadas à vala da infelicidade? 


Quando a Defensoria Pública, através de seu Núcleo de Habitação e Urbanismo, lança-se contra a dura retirada de populações carentes de áreas já há anos ocupadas, ajuíza ações de usucapião, contesta demandas reintegratórias contra diversas famílias sem fio de esperança, opõe-se contra a demolição de abandonados prédios urbanos ocupados por carentes, pede a abertura de diálogo nos feitos em trâmite, em verdade, está a evitar que se repita a mesma tragédia acima relatada.


A visão despreocupada e indiferente do leigo não deve vingar. Sabe bem o Defensor Público que o fracasso do pobre nessas demandas possessórias representa catástrofe muito maior do que a de uma sucumbência processual ou mera desocupação da área reivindicada pelo autor.


Não ignora o Defensor Público que o único lugar que essa gente desterrada encontrará para viver, pelo menos debaixo de um teto improvisado, será naquelas zonas de perigo, no alto das encostas dos morros e outros locais condenados pela Defesa Civil, que não resistirão quiçá a algumas garoas.


É curioso, nosso vigente Código de Processo Civil brasileiro de 1973 se contenta com uma demanda possessória entre o rico e o miserável sem sequer fazer menção ao Poder Público integrar a lide ou ser convocado para o debate do drama familiar. Ninguém mais do que o próprio Poder Público, principalmente a Municipalidade, para dizer de algum assentamento ou programa habitacional para famílias carentes envolvidas no litígio sobre a terra.


O princípio-fundamento da República da dignidade da pessoa humana não se retrai frente ao justo título ou ao registro imobiliário do dono da terra. Ao proprietário a propriedade, e ao ser humano a dignidade. Ou seja, as sentenças judiciais dos dias atuais devem guardar observância a ambos os valores de envergadura constitucional.


Quando diversas famílias carentes, sempre com grande número de crianças, idosos e inválidos abandonam a terra por ordem judicial – com o meirinho à frente do portentoso trator ligado e de motor barulhento – sem ter um lugar para onde ir, é o Brasil que é duramente atingido na sua estrutura política fundamental.


Nossa Constituição da República de 1988 proíbe terminantemente a prolação de decisões judiciais que afrontem a construção de uma sociedade livre, justa e solidária aonde se busque a erradicação da pobreza e da marginalização. O silogismo a ser levado a efeito pelos juízes nas ações possessórias e reivindicatórias devem também dar vazão ao sagrado direito social à moradia, sem que com isso processualistas de plantão arguam a pecha de decisão extra-petita ou suposta violação à arcaica regra de congruência ou adstrição.


Ora, nenhuma petição inicial e, assim, nenhum pedido deduzido junto ao Poder Judiciário, qualquer que seja ele, tem o condão de fazer submergir as garantias constitucionais fundamentais ao cidadão. Sendo assim, qualquer veredicto que prestigie (e deverá prestigiar) caros valores constitucionais em prol da dignidade da pessoa humana e erradicação da miséria não pode ser tachado de teratológico pela clássica corrente individualista processual que ainda teima doutrinar seu escólio de soberba, mas que já se encontra com seus dias contados pela vinda do Novo CPC.


Só assim poderemos tirar as pequenas mochilas, berços, geladeiras e fogões de nossa gente do Brasil debaixo da lama das chuvas. Quantos corpos ainda deverão ser resgatados, de recém-nascidos, crianças e idosos, cheios de barro e lama até as narinas, para que todos os Operadores do Direito e toda a sociedade brasileira entendam o drama vivenciado por milhares de famílias brasileiras?



Informações Sobre o Autor

Carlos Eduardo Rios do Amaral

Defensor Público do Estado do Espírito Santo


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