Resumo: O mundo instantâneo, de intensa movimentação humana e livre circulação de bens, exige novas políticas dos Estados para dar conta dessa transposição das fronteiras soberanas, já que as relações jurídicas não mais estão vinculadas às fronteiras do velho Estado-nação. Em virtude desse incremento das relações dentro da América do Sul, que tende a aumentar com a integração regional do subcontinente sul-americana, urge pensar na construção de um espaço sul americano de justiça, que de conta da prestação jurisdicional em um espaço além fronteiras.
Palavras-chave: cooperação jurisdicional – América do Sul – espaço sul-americano de justiça.
Abstract: The snapshot world of intense human traffic and free movement of goods requires new policies of the States solve the problems of this crossing of sovereign border. It is necessary because the legal relations are no longer bound by the borders of the old Nation-State. Because of this expansion of relations in South America, which tends to increase with the regional integration of South American subcontinent, should be devised to build a South American area of justice, that account of adjudication in a regional space.
Keywords: jurisdictional co-operation – South America – South American area of justice.
Sabe-se desde há muito tempo que a experiência humana não se limita às fronteiras dos Estados Nacionais. Historicamente, a convivência sempre surgiu como imperativo da própria natureza humana, traduzida em intercâmbios intersubjetivos, sociais, e, posteriormente, comerciais.
Os homens não se vinculam apenas ao Estado em que nasceram. A mobilidade humana, acentuada pela agilidade dos transportes e pela difusão da informação, entre outros fatores, é uma constante na modernidade líquida em que vivemos.
A ausência de quaisquer limites ao sistema capitalista de organização social criou estruturas econômicas que há muito tempo não acatam qualquer fronteira estatal. A busca pela maior lucratividade diluiu as etapas de produção de um produto em diversos países do globo, mesmo que isso se dê à custa da violação de direitos humanos. Da mesma forma, as empresas mundialmente atuantes se tornaram tão influentes politicamente que muitas vezes menosprezam a postura do Estado-nacional como patrocinador do desenvolvimento organizado de uma população.
Dessa transposição das fronteiras do Estado Nacional trata o filósofo Luigi Ferrajoli[1]. Para ele, as mazelas contemporâneas da humanidade – o direito à liberdade e à sobrevivência, a segurança contra a macro-criminalidade, a defesa do meio ambiente, a lavagem de dinheiro, a justiça transfronteiriça, etc. – não estão no âmbito de controle das soberanias nacionais, mas sim, dependem da cessão de parte da soberania dos Estados para organismos não nacionais – supranacionais? – capazes de dar conta das demandas hodiernas.
Nessa moldura de um mundo globalizado, desde a segunda metade do século XX o Estado Nacional deixou de ser o único abrigo de princípios e instituições políticas. As estruturas sociais e políticas tradicionais – que viam no estatalismo a única forma de organização social – mostram-se incompatíveis com a realidade do mundo globalizado e incapazes de responder a demandas básicas dos cidadãos. Por isso, as nações perceberam que sua união, aduaneira ou/e política, seria importante elemento de competitividade na economia internacional e de desenvolvimento tecnológico, social e de salvaguarda dos direitos humanos. Essa permeabilidade entre as fronteiras nacionais favoreceu o intercâmbio das pessoas e a realização de vários negócios jurídicos alhures.
O mundo instantâneo, de intensa movimentação humana e a livre circulação de bens, exige novas políticas dos Estados para dar conta dessa transposição das fronteiras soberanas, já que as relações jurídicas não mais estão vinculadas às fronteiras do velho Estado-nação[2].
Nesse contexto, para dar conta da nova demanda de prestação jurisdicional que envolve elementos transnacionais, urgiu-se uma releitura das funções dos órgãos nacionais prestadores da jurisdição, assim como uma atualização dos mecanismos de auxílio entre as jurisdições. Nesse contexto, os juizes nacionais viram-se rapidamente tomados pela complexidade de causas envolvendo questões que não estavam adstritas às divisas onde estes juízes estavam afeiçoados a atuar.
Esse auxílio entre as jurisdições interestatais se dá, desde então, pelos mecanismos de cooperação jurisdicional[3]. Tal engenho compõe o processo civil internacional, que por sua vez, é ramo do direito internacional privado[4].
Para efetivar uma cooperação jurisdicional, foi necessário que os Estados deixassem de lado a rigidez do seu nacionalismo, possibilitando uma flexibilização do estatalismo, que se abre às novas formas de organização social.
O Direito não está mais recolhido no confortável espaço limitado dos Estados Nacionais: ergue-se ao regional, ao multilateral e ao internacional e, com isso, molda uma nova realidade da prestação jurisdicional, em rede.
Da mesma forma que a produção de direito não está mais encerrada nas fronteiras das legislaturas nacionais, a prestação jurisdicional hodierna tem de resolver demandas concretas que implicam transbordar o sistema jurídico nacional, contribuindo para a construção de um direito que ultrapassa as fronteiras nacionais, em um espaço integrado de justiça. Em virtude disso, hodiernamente há de se considerar a permeabilidades das ordens jurídicas nacionais e não nacionais, de forma a perceber que o Direito Internacional influencia o interno, e o Direito interno influencia o Internacional.
Essa teia da prestação jurídica deve ser entendida a luz da “paz perpétua” kantiana, onde Immanuel Kant apresenta os seus artigos preliminares à paz perpétua entre os Estados. Nela, Kant constata que esse direito aberto de que falamos, cosmopolita, deve ser limitado às condições da hospitalidade universal, já que, compete a cada um e a todos os habitantes do planeta, o direito de visita[5]. Esse cosmopolitismo é uma condição para pensar – urgentemente – a cooperação jurisdicional.
Para Kant, a hospitalidade universal é um direito, não um ato de filantropia. Trata-se de ter direito à face da terra, ou seja, ter direito, mesmo sendo estrangeiro, a não ser tratado como inimigo – este é o conteúdo do terceiro artigo definitivo para a paz perpétua. Ainda para o filósofo:
“Esta ideia racional de uma comunidade pacífica perpétua de todos os povos da Terra (mesmo quando não sejam amigos), entre os quais podem ser estabelecidas relações, não é um princípio filantrópico (moral), mas um princípio de direito. A natureza encerrou todos os homens juntos, por meio da forma redonda que deu ao seu domicílio comum (globus terraqueus), num espaço determinado”[6].
Esse dever de hospitalidade universal de que fala Kant é o que pensava Mancini quando dizia que não existia, segundo o direito das gentes, em cada uma das soberanias independentes, o poder absoluto de recusar a aplicação de leis estrangeiras sobre o seu próprio território. Mancini dizia que o conceito de independência de um Estado não podia ser exagerado a ponto de autorizar a violação dos direitos de outro Estado[7].
O cosmopolitismo de Immanuel Kant tem, no seu projeto de paz perpétua, o objetivo último de todas as nações. E sua ferramenta é o direito cosmopolítico, visto como um “discurso político-jurídico que reúne temáticas vinculadas ao humanismo”[8]. O ideal kantiano pressupunha um mundo de grande interação, reconhecendo a notável influência que os abalos produzidos em um Estado produzem em todos os outros Estados[9].
Assim, é necessário um pensar alargado[10], que abarque o compromisso de cada nação em não subtrair-se de aplicar o direito e as decisões alheias sem lesar todo o direito das gentes e desfazer o vínculo que une a nossa espécie em uma grande comunhão de direito, baseada na sociabilidade da natureza humana. A questão que se apresenta é como fazer isso. E o DIPr tem muito a contribuir.
A diagramação de uma nova gramática para que se possa entender o DIPr pós-moderno de Erik Jayme passa pela extrapolação dos domínios do direito nacional, linear e piramidal, e a adoção de novos referenciais teóricos, que contemplem a complexidade da organização social contemporânea. Busca-se que a compreensão do nacional como quintessência da organização política e social seja superado, e o alargamento ao internacional, à cooperação e à hospitalidade universal seja construído.
Para uma compreensão da cooperação jurisdicional
A cooperação jurisdicional faz alusão ao auxílio mútuo entre os Estados. Refere-se especificamente à concretização de direitos em um espaço além das fronteiras do Estado Nacional. Trata-se de cooperação horizontal, porque em ambos os pólos da relação estão Estados soberanos, sujeitos independentes de direito internacional, que estão em pé de igualdade perante a comunidade internacional.
Diferentemente, os mecanismos de harmonização da aplicação do direito regional[11] se referem à interlocução dos Estados com as instituições de um processo de integração regional, a fim de padronizar a interpretação do mesmo.
No mundo contemporâneo é intenso o inter-relacionamento entre Estados. A globalização[12] acentuou ainda mais essas trocas entre nações, formando uma verdadeira rede global de relacionamento. Essa massificação e popularização do fenômeno globalizante fomentou a circulação de bens e pessoas, causando uma infinidade de fatos jurídicos sedentos pela apreciação judicial.
Nesse cenário de grande complexidade, deverá a jurisdição nacional superar a sua mentalidade estreita, nacionalista, afim de alargar o seu pensamento para empreender um diálogo com os seus pares.
O reconhecimento de um direito somente poderá ser efetivado em outro Estado através dos mecanismos de cooperação interjurisdicionais. Da mesma forma, a produção de provas e a comunicação de atos processuais não estão adstritos às fronteiras dos Estados Nacionais, dependendo daqueles mecanismos para operacionalizar a atuação da justiça.
Cada Estado nacional determina a abrangência da sua jurisdição, não havendo instância supranacional para a resolução de conflitos de competência internacional. Ao aceitar o cumprimento de uma decisão[13] proveniente de outro Estado, o requerido reconhece a jurisdição alheia, para acatar a decisão proferida pelo Estado requerente, de acordo com o conjunto de valores desse Estado.
Os referidos mecanismos de cooperação jurisdicional atuam nas seguintes expressões da efetivação da justiça transfronteiriça: a comunicação de atos processuais, a produção de provas e a homologação de sentenças estrangeiras entre Estados.
Esse diálogo entre as jurisdições nacionais pressupõem um reconhecimento da soberania dos outros Estados (o que é um reflexo da afirmação da própria soberania!), visto que deixam de aplicar o seu conjunto de valores naquele caso concreto para aplicar o do país estrangeiro. Pensamento diverso poderia ser feito, ao considerar que, ao invés de uma cessão de soberania, a cooperação jurisdicional se baseia em uma afirmação da soberania do Estado requerido, já que através do juízo de delibação[14], aceita ou não a produção do ato requerido dentro do seu território.
Esse reconhecimento da soberania alheia se dá através da jurisdição delibatória, através da qual o Estado requerido apenas analisa alguns requisitos formais para, então, dotar a decisão de executoriedade através da expedição do exequatur[15], a partir de quando a referida decisão será comparada às decisões nacionais para efeitos executórios.
Essa jurisdição delibatória é, no entanto, o maior empecilho à efetividade da cooperação jurisdicional entre Estados, em razão do ônus econômico e temporal imposto ao exeqüente, que, invariavelmente, precisa passar por esse crivo para ter executada a sua decisão no Estado devido. Em regra, a jurisdição delibatória forma um processo autônomo, o qual analisará somente o cumprimento das formalidades[16] impostas pela legislação pátria[17].
Os requisitos para a concessão do exequatur são estabelecidos por cada Estado, compondo a sua legislação sobre direito internacional privado. Em regra, os requisitos formais são: a competência internacional do Estado prolator da decisão, o trânsito em julgado da decisão e o respeito à ordem pública[18].
A exceção da ordem pública, em direito internacional privado, funciona como verdadeira válvula de escape àquele país onde é requerida a execução de algum provimento judicial. Isto se dá porque a efetivação da ação requerida violaria o conjunto de valores fundamentais do foro. A regra é a cooperação, de modo que a exceção de ordem pública deve ser utilizada excepcionalmente[19].
Quanto maior for a cooperação entre os países, menor será a delibação e mais célere e simplificado será o procedimento para a expedição do exequatur. Em tempos em que as fronteiras nacionais cedem lugar para a integração regional, esses procedimentos tendem a se simplificar, diminuindo e até suprimindo as exigências à efetivação da decisão proferida no estrangeiro.
O jurista italiano Pasquale Stanislao Mancini, imbuído na unificação da península itálica, no século XIX, foi um dos grandes impulsionadores do movimento de codificação nacional e internacional do DIPr.
Mancini entendia que não existia, segundo o direito das gentes, em cada uma das soberanias independentes, o poder absoluto de recusar a aplicação de leis estrangeiras sobre o seu próprio território. Ele dizia que o conceito de independência de um Estado não podia ser exagerado a ponto de autorizar a violação dos direitos de outro Estado[20].
Em razão da existência de uma comunhão jurídica do mundo inteiro, Mancini advogava a existência de verdadeiros deveres internacionais nesta matéria, e não simplesmente atos de recíproca cortesia e conveniência. As Nações não possuíam o poder legítimo de desconhecer a autoridade e de não dignar respeito às leis estrangeiras sobre o próprio território, assim como de obrigar as pessoas e as relações jurídicas, que pela própria natureza dependem destas leis, a inquinar-se e submeter-se ao comando incompetente da lei territorial. É o abandono decisivo do princípio da territorialidade da teoria de Friedrich Carl von Savigny.
A aplicação das leis estrangeiras, quando por elas devam regular-se as relações jurídicas, não são um simples ato comitas gentium, mas representa o cumprimento de um dever por parte do Estado.
A independência recíproca entre os Estados não é nem mais nem menos violável do que a liberdade recíproca dos indivíduos. Uma Nação não pode subtrair-se de aplicar o Direito alheio sem lesar o direito das gentes e desfazer o vínculo que une a nossa espécie em uma grande comunhão de direito, baseada na comunhão e na sociabilidade da natureza humana. Aqui fica claro o caráter universalista da teoria manciniana.
Não deve se perder de vista que o universalismo de Mancini lhe dá o mérito de ter iniciado a cooperação internacional em matéria de prestação jurisdicional. Ainda mais do que isso, Mancini projetou a unificação das normas de DIPr e de Direito Processual Civil Internacional.
Esse ideário de uma comunhão jurídica do mundo inteiro encontra lastro na teoria da jurista francesa Mireille Delmas-Marty. Ela pesquisa a mundialização do direito – ou dos direitos! – para tentar uma harmonização entre os diferentes sistemas jurídicos existentes no mundo. Delmas-Marty parte da necessidade de não dissociar os direitos humanos (como o direito de acesso à justiça) dos direitos econômicos, mesmo considerando que a economia é o grande motor da mundialização. A autora propõe uma recomposição das paisagens jurídicas nacionais e internacionais, defendendo um direito comum através da harmonização entre as normas provenientes dos mais diversos ordenamentos.
Para a autora francesa, a internacionalização do direito deve ocorrer de forma pluralista, privilegiando a interação de diferentes sistemas jurídicos e não a imposição hegemônica de um único. Assim, a ordenação dos diversos sistemas deve ir além da oposição binária entre relações hierárquicas (subordinação de uma ordem jurídica a outra) para atingir um grau de coordenação entre sistemas, sem que um domine os demais.
Para Delmas-Marty, essa harmonização dos sistemas jurídicos pode se dar, entre outras maneiras, através da fertilização recíproca[21] entre as diferentes experiências nacionais e pós-nacionais. Dessa forma, podem-se orquestrar as experiências dos diversos intentos de integração jurisdicional, como o Espaço Europeu de Justiça, de modo que sirvam mutuamente de experiência uns para os outros, considerando as diferentes realidades sociais, econômicas e culturais em que cada experiência está inserida.
Os âmbitos de produção jurídica: a evolução da cooperação jurisdicional na América do Sul
No direito internacional privado, há uma tendência moderna de harmonizar e até mesmo uniformizar as normas de conflitos de lei para promover a certeza jurídica necessária, sobretudo, ao bom andamento dos negócios no comércio internacional[22].
A preocupação com a efetivação dos direitos em um espaço transfronteiriço não é recente entre os países da América do Sul. Antes mesmo do implemento dos processos formais de integração econômica, a região já tinha experimentado a cooperação jurisdicional de uma forma bastante significativa.
Desde o falido Tratado de Lima, de 1878, tentou-se abordar questões de DIPr coletivamente nos países americanos que se escrevem na família jurídica romano-germânica[23]. Foi o Tratado de Montevidéu, de 1889, que primeiro conseguiu tratar das questões relativas ao direito internacional privado na América Latina[24]. Tal experiência pode ser considerada fecunda se for observado que ali se aprovaram oito tratados e um protocolo adicional, abarcando quase a totalidade do conteúdo do DIPr, entre eles, o Processo Civil Internacional[25].
Logo após, em 1939, outro documento, também conhecido como Tratado de Montevidéu, voltou a tratar do mesmo tema[26].
Em 1928, no marco da Sexta Conferência Panamericana, foi aprovado o Código Americano de Direito Internacional Privado, mais conhecido como Código de Bustamante[27], trazendo inúmeras regras de Processo Civil Internacional. Este foi aceito por diversos países, tendo, inclusive, aplicação nos dias de hoje[28].
Posteriormente, a partir da década de 1970, surgem as Convenções Interamericanas de Direito Internacional Privado, conhecidas como CIDIPs[29], concentrando o poder codificador regional na Organização dos Estados Americanos (OEA).
As CIDIPs tiveram relevante papel enquanto harmonizadoras e unificadoras de normas materiais e processuais nos países americanos, demonstrando desde cedo a preocupação desses países em promover um espaço de facilitação da justiça além-fronteira.
Salienta-se, entre outras, a Convenção Interamericana sobre Eficácia Extraterritorial das Sentenças e Laudos Arbitrais Estrangeiros, de 1979.
Deve-se referir que as CIDIPs não tiveram uma repercussão satisfatória, razão pela qual foram criadas, posteriormente, no âmbito do Mercosul, regras próprias para a promoção da integração através da cooperação jurisdicional.
Entretanto, não há como negar a influência das CIDIPs nos protocolos mercosulinos ligados ao direito internacional privado. Isso é visível, sobretudo, no Protocolo de Las Leñas, que possui muitos dispositivos similares à convenção sobre Cartas Rogatórias.
Os mecanismos de cooperação jurisdicional do MERCOSUL
Se os Tratados de Montevidéu, o Código de Bustamante e as CIDIPs não lograram êxito na construção de um espaço integrado de Justiça na região do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), não se pode deixar de notar que já havia a vontade dos países em construí-lo, antes mesmo do advento do bloco.
Pouco tempo depois de sua constituição, o MERCOSUL começou a excursionar em todas as matérias que compõem o que tradicionalmente se chamou de Direito Processual Civil Internacional: a jurisdição internacional[30], o reconhecimento e execução de laudos arbitrais e sentenças estrangeiras e outros aspectos que giram em torno da vida privada internacional, inclusive a cooperação jurisdicional[31].
Embora algumas convenções sobre cooperação interjurisdicional tenham sido firmadas no âmbito do Mercosul, elas se apresentam com características do direito internacional clássico, notadamente a intergovernamentalidade, principalmente quanto à receptividade dessas normas pelos ordenamentos jurídicos nacionais, que podem legislar ao contrário da diretiva do bloco. Este o maior obstáculo à construção de um espaço integrado de justiça no âmbito do bloco.
Primeiramente, deve-se referir que desde o Tratado de Assunção, de 1991, que constituiu o Mercosul, houve o comprometimento dos Estados-partes em harmonizar suas legislações nas áreas pertinentes a favorecer o processo de integração[32].
No Mercosul essa tentativa de harmonização se deu com o Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa, de 1991, mais conhecido como Protocolo de Las Leñas, que foi aprovado pela Decisão nº 5/92 do Conselho do Mercado Comum (CMC), estando, atualmente, em vigor nos quatro países: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.
Esse Regulamento constitui importante avanço para o processo integracionista mercosulino, já que objetiva aprimorar o direito processual civil do bloco, conferindo extraterritorialidade às decisões oriundas dos países do Mercosul[33] e agilizando o trâmite[34] dos pedidos de cooperação jurisdicional.
Quanto às espécies de cooperação jurisdicional de que trata o protocolo, elas são três. Primeiro: cooperação em atividades de simples trâmite e probatória. Segundo: reconhecimento e execução de sentenças e de laudos arbitrais estrangeiros, Terceiro: fornecimento de informação do direito estrangeiro.
O Protocolo de Las Leñas não trata da cooperação em medidas cautelares. Para esse campo de atuação foi criado o Protocolo de Medidas Cautelares, assinado em Ouro Preto no ano de 1994. Dal documento traz entre as suas regras o mais ágil mecanismo de cooperação jurisdicional da região, já que admite a possibilidade de apreciação delibatória direta em caso de juízos localizados em região de fronteira[35]. Nesses casos, o Protocolo de Medidas Cautelares de Ouro Preto, de 1994, dispensa a transmissão por via das Autoridades Centrais, possibilitando a via judicial direta, sem passar pelo crivo delibatório, como forma de acelerar os procedimentos[36].
O artigo 2º do Protocolo de Las Leñas estabelece as Autoridades Centrais em cada um dos Estados-partes do Mercosul[37]. Tais órgãos têm por objetivo agilizar a circulação das provisões jurisdicionais entre os Estados-partes e a facilitação da harmonização de procedimentos, aumentando a integração entre os países. As Autoridades Centrais são responsáveis pelo contato entre os países, fazendo a ponte entre os diferentes sistemas jurisdicionais. As Autoridades Centrais comunicam-se diretamente entre si, encaminhando e recebendo as petições de assistência jurisdicional assim como fornecem umas às outras as informações sobre o direito interno do seu país, especificamente sobre matéria civil, comercial, trabalhista, administrativa e de direito internacional privado, sem qualquer despesa.
Cuide-se que essas podem não ser órgãos jurisdicionais, fazendo, no caso, a remessa das petições ao órgão jurisdicional competente no Estado-parte correspondente. É o que acontece no caso brasileiro, por exemplo, em que a Autoridade Central é o Ministério das Relações Exteriores e o responsável pelo juízo de delibação é o Superior Tribunal de Justiça[38].
O desafio maior das Autoridades Centrais é a desburocratização dos procedimentos de cooperação, reduzindo gastos com a legalização de documentos, e a facilitação da integração entre as justiças.
Claro está que as Autoridades Centrais não são os únicos órgãos responsáveis pela cooperação jurisdicional no âmbito do Mercosul. Outros órgãos podem e devem contribuir para tanto, como a diplomacia e o Poder Judiciário de cada Estado, que podem valer-se de seu prestígio externo para melhor desempenhar a justiça transfronteiriça.
Os artigos 3º e 4º do Protocolo de Las Leñas expressam a igualdade no acesso à justiça entre os cidadãos mercosulinos, e as pessoas jurídicas constituídas, independente de residirem no Estado-parte a que pertence o tribunal acessado[39].
Para isso, nenhuma caução ou depósito poderá ser imposto em razão da qualidade de cidadão ou residente permanente de outro Estado-parte, assim como em razão de ser a pessoa jurídica de outro Estado-parte.
O protocolo de Las Leñas regulamenta, além da cooperação em atividades de simples trâmite e probatórias, o reconhecimento e execução de sentenças e laudos arbitrais, ainda que de eficácia parcial[40]. Para tanto, foram instituídas as cartas rogatórias[41] como mecanismos hábeis à marcha das sentenças.
De acordo com a moderna diretiva de aceleração da prestação jurisdicional, consta no artigo 12 do Protocolo de Las Leñas que o cumprimento da carta rogatória deverá efetuar-se sem demora.
Buscando promover a aceleração do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras, apostou-se na confiança entre os Estados-partes, já que o procedimento rogatório é tradicionalmente utilizado na cooperação internacional de baixa complexidade, própria de juízos não delibatórios.
Tradicionalmente, o reconhecimento e a execução de sentenças estrangeiras ocorrem através de trâmites diplomáticos, com procedimentos custosos e morosos. Entretanto, no caso do Mercosul, o Protocolo de Las Leñas instituiu as Cartas Rogatórias para o objetivo telado[42].
Note-se que, embora as cartas rogatórias sejam mecanismos típicos de juízos não delibatórios, o Protocolo de Las Leñas não suprimiu tal delibação, que ainda funciona como um entrave à operacionalização da justiça transfronteiriça no Mercosul.
Ademais, existem alguns requisitos delibatórios para o reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras previstos no artigo 20[43]. Entre eles, consta que as sentenças não podem, de nenhuma forma, contrariarem os princípios de ordem pública do Estado no qual se solicita o seu reconhecimento e/ou execução.
Quanto aos procedimentos internos para reconhecimento de sentenças estrangeiras e laudos arbitrais, pertencem à margem nacional[44] de cada um dos Estados-Partes[45], que terão os seus próprios procedimentos de internalização das sentenças.
Denota-se, portanto, que existe no Mercosul uma política de facilitação do trâmite dos pedidos de cooperação jurisdicional, não havendo qualquer unificação ou supressão de procedimentos de internalização das rogatórias entre os Estados-partes. Isto se dá, sobretudo, devido à grande margem nacional dada a cada um dos Estados-partes do Mercosul, devido a sua incipiente integração. Deste modo, possibilita-se que cada país determine o quão disposto está a cooperar juridicamente com os demais países. Mais do que isso, em virtude da intergovernamentalidade que caracteriza a integração em comento, pode-se dizer que o Mercosul não é maior que a vontade dos Estados que o compõe.
Diante da diversidade de modelos integracionistas a seguir, o MERCOSUL optou nitidamente por um modelo minimalista, caracterizado por uma assimetria interna entre seu propósito constitutivo ambicioso e a fragilidade dos meios para efetivá-lo colocados a sua disposição pelos Estados-partes. Assim, o MERCOSUL adotou uma estrutura típica das organizações internacionais de caráter regional, movida por uma dinâmica institucional que se caracteriza pelo entendimento inergovernamental entre os Estados-partes. Da mesma maneira, a cooperação jurisdicional mercosulina segue os moldes do direito internacional clássico, centrado na consensualidade entre as partes e na reciprocidade.
Em função dessas características, no âmbito do MERCOSUL percebe-se uma realidade bastante diversa daquela Europeia, pois o interesse predominante é o resultado da vontade individual de cada um dos Estados-partes. Não há uma estrutura institucional independente e autônoma, além do que, as normas jurídicas devem ser submetidas aos processos de internalização previstos nos textos legislativos de cada País. Não se fala no âmbito do MERCOSUL em aplicabilidade imediata das normas emanadas das instituições e tampouco em primazia frente aos ordenamentos jurídicos nacionais.
Últimas palavras
Kant referia-se ao pensar alargado não como um perfil de conhecimento, mas como uma maneira de pensar a ordem das coisas.
Para um bom resultado no implemento de uma efetiva rede judiciária na América do Sul urge essa mentalidade alargada[46] não somente dos legisladores, mas dos juizes, acadêmicos e até integracionistas de forma geral, mentalidade essa que transponha o paradigma estatalista, berço da organização judiciária, para debruçar-se em um mundo cosmopolita, de fronteiras permeáveis – ou sem fronteiras.
Nem tudo está perdido na cooperação jurisdicional sul-americana. Há motivos para continuar lutando pela maior aproximação dos Estados e da integração da prestação jurisdicional dos mesmos. As CIDIP’s e os protocolos mercosulinos são uma conquista em nada desprezível à harmonização das legislações nacionais e à integração processual da América do Sul, ainda que restrita, os últimos, aos seus quatro Estados-partes. A instituição das cartas rogatórias e o estabelecimento das Autoridades Centrais tendem a alavancar esse processo de cooperação que trará inúmeros benefícios para a integração regional, em princípio, dos quatro sócios, mas no futuro, de toda a família jurídica sul-americana.
Os mecanismos processuais vêm sendo aprimorados com o passar dos tempos, e assim permanecerão – luta-se para isso! – para uma melhor efetivação da justiça transfronteiriça.
A diagramação de uma nova gramática para que se possa entender a prestação jurisdicional no vasto campo do fenômeno da transnacionalização do Direito passa pela extrapolação dos domínios do Direito nacional, linear e piramidal, e a adoção de novos referenciais teóricos, que contemplem a complexidade da organização social contemporânea.
Busca-se que a compreensão do nacional como quintessência da organização política e social seja superado, e o alargamento ao internacional, à cooperação e à hospitalidade universal seja construído.
Informações Sobre o Autor
Ademar Pozzatti Júnior
Mestre em Relações Internacionais do Curso de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – CPGD/UFSC. Doutorando em Direito Internacional Econômico da Università Luigo Bocconi – Itália.