Um estudo sobre a fundamentação da metafísica dos costumes à luz de Immanuel Kant

Resumo: Estudo e análise crítica do Prefácio e Primeira Seção da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, integrante da produção científica de Immanuel Kant acerca da Ética e da Moral.

Palavras-chaves: Filosofia. Ética. Moral. Kant. Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Prefácio; 3 – Primeira Seção; 4 – Conclusão; Referências.

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1. Introdução

Kant é, sem dúvida, um dos mais importantes filósofos modernos, tendo se destacado mundialmente pela introdução de modificações radicais no modo de pensar sobre a filosofia. Kant fugiu do empirismo até então reinante, representado pela obra de David Hume, e inaugurou uma nova concepção filosófica, baseada na razão.

As principais obras de Kant são a Crítica da Razão Pura (1781), que trata sobre o conhecimento; Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785); Crítica da Razão Prática (1788) e Metafísica dos Costumes (1797). As três últimas estudam a Ética e a moralidade.

Uma das obras, em particular, que atinge hoje em dia grande destaque é a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, considerada por muitos filósofos como a mais importante já escrita sobre a moral.

Nesta obra Kant afirma que o que distingue o homem dos outros seres da natureza é a razão. Pretende alterar o conceito de moralidade e introduz conceitos como a Boa Vontade. Kant considera leis morais apenas as leis universais. A ação humana, no seu entender, quando puder ser elevada a condição de universalmente aceita, acaba se tornando uma lei moral, devendo, por razões racionais, ser observada por todos.

A obra é composta pelo prefácio e por três seções. No prefácio Kant faz rápidas pinceladas sobre o tema, sem intenção de tecer conceitos ou esgotar o tema. Nas seções ele aborda a passagem do conhecimento vulgar para o filosófico; a transição da filosofia moral popular para a Metafísica dos Costumes; e a passagem da Metafísica dos Costumes para a Crítica da Razão Pura Prática.

A análise que será feita no presente trabalho se restringirá apenas às duas partes consideradas mais importantes, o Prefácio e a primeira seção.

2. Prefácio

Kant inicia observando que a velha filosofia grega divide as ciências em três partes: a Física, a Ética e a Lógica. As duas primeiras fazem parte do conhecimento dito material, pois consideram o objeto e as leis a que estão submetidos e possuem partes empíricas e racionais. A lógica, por sua vez, faz parte do conhecimento formal, que se ocupa do entendimento, da razão e das regras universais do pensar em geral, sem distinção de objetos. O conhecimento formal é apenas racional, não tendo parte prática.

O autor também comenta sobre as filosofias naturais, morais e puras (esta última seria a formal, a lógica pura). A filosofia natural estaria regida pelas leis da natureza e poderia ser chamada também de teoria da natureza ou metafísica da natureza. É guiada pela regra do “ser”, categórico, isto é, as leis naturais não admitem exceções ou falseamento.

A filosofia moral, por sua vez, é também conhecida como leis da liberdade ou teoria dos costumes, ou ainda, metafísica dos costumes, regrada pelo “dever ser”, pelo hipotético. As leis morais consistem em condutas esperadas, porém não necessariamente obrigatórias, que admitem, portanto, a hipótese de descumprimento ou relativização. Consiste no estudo da vontade do homem.

Existe, portanto, uma dupla metafísica. A metafísica da natureza e a Metafísica dos costumes. A primeira é representada pela física e possui partes empírica (princípio da experiência) e racional bem definidas. A metafísica dos costumes é representada pela ética, que apresenta uma parte empírica, consistente na antropologia prática (estudo do conhecimento do homem) e uma parte racional, correspondente à moral.

A razão no sentido prático ou vontade é um conceito fundamental para Kant. A razão prática é aquela que não se preocupa em traduzir as leis da natureza (razão teórica – ser), mas sim as leis segundo as quais o ser racional, dotado de liberdade deve agir. Dizer que o homem tem vontade é dizer que ele pode representar-se uma lei e agir de acordo com ela.

A dicotomia entre o ser e o dever ser, já abordada pelos gregos, é explorada por Kant, que separa bem o pensamento racional e o empírico.

As leis morais se diferenciam de tudo que seja produto da experiência, ou seja, de tudo que seja empírico. Trata-se do pressuposto de pureza constante nas obras de Kant.

A filosofia moral é considerada pura pois foge do empirismo. Não recorre a nada do conhecimento do homem. Pelo contrário, fornece a este, como ser racional, leis a priori. A metafísica dos costumes serve para investigar a origem dos princípios práticos que residem aprioristicamente na razão.

Ademais, os costumes podem se perverter quando falta um elemento que os conduzam para a moral. A conduta moralmente boa deve ser cumprida por amor da lei moral, sob pena de inconsistência e incerteza.

Voltando às classificações, Kant observa duas formas de conhecimento: o Empírico ou a posteriori, e o Puro, racional ou a priori. O conhecimento empírico decorre de dados fornecidos pelas experiências sensíveis. Como exemplo ele menciona a constatação de que uma janela está aberta. Tal constatação decorre de informações captadas pelos sentidos.

Por outro lado, a noção de que a linha reta é a distancia mais curta entre dois pontos decorre do pensamento puro, não sendo necessário constatar tal fato por meio de experimentação.

O termo “Metafísica” para Kant significa um conhecimento não-empírico ou racional. Combinando com o conceito de costumes, que designa todo o conjunto de leis ou regras de conduta que normatizam a ação humana, Kant chega ao conceito de Metafísica dos Costumes, que é o estudo de leis que regulam a conduta humana sob um ponto de vista essencialmente racional e não contaminado pela empiria.

Kant diferencia a Metafísica dos Costumes da Filosofia Prática Universal proposta por Wolff. Esta ultima é o querer em geral, considerando tanto parte empírica quanto racional. A Metafísica dos Costumes, por sua vez, deve investigar a idéia e os princípios duma possível vontade pura, e não as ações e condições do querer humano em geral, as quais são tiradas em sua maior parte da Psicologia. Esse é o principal ponto de distinção, pois a Filosofia Prática Universal não considerou nenhuma vontade que fosse determinada completamente por princípios a priori e sem quaisquer móbiles empíricos e a que se poderia chamar uma vontade pura.

Na verdade, a concepção de Kant teve como objetivo purificar a filosofia, reivindicando que a Metafísica não é senão o inventário de tudo que possuímos através da razão pura (puros conceitos formulados pelo pensamento puro ou pelo intelecto).

Kant afirma que a razão humana no campo da moral, mesmo no caso do mais vulgar entendimento, pode ser facilmente levada a um alto grau de justeza e desenvolvimento, o que reforça a idéia de que a moralidade é ínsita ao ser humano.

O objetivo da Fundamentação da Metafísica dos Costumes é buscar um princípio de moralidade que fundamente os costumes e o agir moral. O método empregado abrange dois passos. Primeiro, analiticamente, ir do conhecimento vulgar ao princípio supremo desta espécie de conhecimento. Segundo, sinteticamente, em sentido inverso, caminhar deste princípio e de suas fontes para a Crítica da razão pura prática.

A obra, por conseguinte, compõe-se de três partes, além do Prefácio: Primeira seção: passagem do conhecimento vulgar para o filosófico; Segunda seção: saída da filosofia moral popular para a Metafísica dos Costumes; Terceira seção: o último passo, da Metafísica dos Costumes para a Crítica da Razão Pura Prática.

3. Primeira Seção

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As leis morais orientam o agir humano, sendo o ponto de partida a boa vontade. Dizemos que as coisas são boas ou más, porém elas não são nem boas nem más em si mesmas. O homem é o único ser do qual se pode extrair os sentimentos de bondade ou a maldade, pois é ele que realiza ações e almeja alcançar as respectivas finalidades. Estas finalidades se relacionam com a moralidade das condutas, de modo a se concluir que a única coisa que pode ser boa ou má é a própria vontade humana.

Ademais, a boa vontade constitui a condição indispensável para que o homem seja digno de felicidade. Não adianta possuir qualidades ou dons se a pessoa não possuir boa vontade, pois todas as qualidades da pessoa podem ser desvirtuadas, desde que se tenha má vontade.

Aliás, o resultado concreto positivo sequer é necessário para se qualificar determinada ação humana como moralmente boa. Conforme Kant, a mera vontade do sujeito já poderia ser suficiente para se considerar determinada conduta valorosa.

A própria razão vulgar indica a boa vontade como moralmente boa.

Kant menciona a dicotomia entre a razão e instinto. O instinto, a principio, garantiria ao sujeito a adoção da melhor opção, no sentido de auto-preservação, o que poderia ser taxado como conduta moralmente boa. A razão não seria suficiente para guiar o homem para a satisfação de suas necessidades.

Contudo, a razão foi dada como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade. O destino da razão deverá produzir uma vontade boa em si mesma e não boa como meio para atingir fins diversos. A razão deve prevalecer sobre o instinto. Deve buscar o bem supremo, a satisfação e, ainda, evitar inclinações e instintos.

Kant propõe, então, a diferenciação de a) cumprir determinada lei por dever; b) cumprir conforme ao dever.

Exclui, ao mesmo tempo, a ação contrária ao dever e as ações verdadeiramente conformes ao dever (sem inclinação).

Analisaremos, então, alguns exemplos:

1º exemplo: Se o negócio corre muito bem, o comerciante esperto mantém um preço fixo para toda a clientela. O merceeiro, honradamente, age conforme ao dever. No entanto, pode ter agido assim por interesse e não por amor aos fregueses.

A ação não foi, portanto, praticada nem por dever nem por inclinação imediata, mas somente por inclinação egoísta.

2º exemplo: Conservar a vida é um dever e uma inclinação natural, por isso os homens dedicam-lhe um cuidado exagerado. Agem, então, conforme ao dever, mas não por dever. Se, porém, a sua vida é infeliz e, mesmo desejando a morte, conserva a vida sem amor, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral.

3º exemplo: Assegurar a felicidade própria é um dever, já que a infelicidade constitui tentação para a transgressão dos deveres, mas todos os homens possuem inclinação para a felicidade, idéia que reúne a soma de todas as inclinações.

Kant lança mão do gotoso, que prefere o prazer da mesa à felicidade da saúde. Ele não é determinado pela inclinação para a felicidade, mas também não age por dever, porque o dever determina a procura da felicidade.

4º exemplo  A Sagrada Escritura manda que amemos o próximo, mesmo o nosso inimigo. Esse é o amor por dever, prático, não sensível, não patológico; que pode ser ordenado, que depende da ordem da vontade.

Podemos então concluir que uma ação conforme ao dever depende do objeto e é praticada por inclinação, por interesse ou por egoísmo. Uma ação praticada por dever vale pela máxima que a determina, tem o seu objeto na vontade.

Por fim, para se saber se a conduta praticada é moral Kant utiliza-se do seguinte método: o agente deve observar a sua conduta e se perguntar se esta conduta deve passar a ser universalmente utilizada. Assim, mesmo se no ponto de vista particular a conduta trouxe benefício ao agente, se ela não puder se estendida como boa para toda a coletividade, não poderá ser taxada como moralmente aceita.

Kant utiliza-se de mais um exemplo. A pessoa que em situação de apuros faz uma promessa que sabe que não cumprirá certamente considerará esta conduta como aceitável e até mesmo boa, pois lhe livrou da situação emergencial em que se encontrava. Entretanto, a mesma pessoa, em um exame intimo, certamente não considerará correto ou aceitável que todos passassem a realizar promessas falsas para se livrar de situações inusitadas. Assim, a conclusão que se chega é que a conduta não é moralmente aceita como boa.

4. Conclusão

Nesta obra Kant pretende expor que a razão é o motor que distingue o homem dos demais seres. Por ser regido pela racionalidade, as condutas humanas serão moralmente positivas somente se forem executadas com o ânimo igualmente positivo do agente. Ou seja, se for imbuído de boa vontade. A lei moral, portanto, é cumprida fruto do pensamento racional positivo humano.

Concluímos que o objetivo da obra é, portanto, buscar um princípio de moralidade que fundamente os costumes e o agir moral.

 

Referências:
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Traduzido do alemão por Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Reno Sampaio Mesquita Martins

 

Procurador da Fazenda Nacional

 


 

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