“Não seria a busca da verdade o que constitui o objeto da criminologia na ordem das coisas judiciárias, e também o que unifica suas duas faces: a verdade do crime em sua face policial, a verdade do criminoso em sua face antropológica”? Jacques Lacan
1. Notas Introdutórias[1]
É curioso como diversos psicanalistas como Jacques Lacan, Maud Mannoni[2], entre outros nomes, em algum momento de seus trabalhos conectaram de alguma forma a Psicanálise com o crime ou com a própria Criminologia[3]. O próprio Freud, criados da Psicanálise, em alguns momentos de seus estudos, também discorreu sobre o crime.
Psicanálise e Criminologia sempre se encontraram. O crime, a loucura, a responsabilidade criminal, o poder agir de outro modo, os traumas, a psicose, parricídio, crimes de amor, a culpa, invariavelmente conectam (ou tentam) o saber criminológico e o saber psicanalítico. Nascidas em um período histórico próximo, a Psicanálise e a Criminologia cresceram cada uma a seu tempo e de seu modo. Paralelamente, houve o florescimento dos outros ramos do saber, sendo que foi em Lacan que essa conexão com outras áreas do conhecimento foi concretizada.
Psicanálise e Criminologia são ciências, para os que defendem esta visão, que surgiram em uma época muito recente e próxima no final do século XIX. Cesare Lombroso[4] publicou “O homem delinqüente” em 1876[5]; Freud publicou o livro “A interpretação dos sonhos” em 1900. Ambas as teorias tiveram uma forte influência do pensamento do final do século XIX, e se desenvolveram com grande velocidade nas primeiras décadas do século XX, a Criminologia com a influência pragmática do pensamento norte-americano, utilitarista, e a Psicanálise com o sopro revitalizador do pensamento lacaniano a partir da década de 1940.
2. Freud e o sentimento de culpa dos criminosos.
Obras conhecidas do grande público sempre recorrem ao sentimento de culpa e angústia de criminosos, sendo, coincidência ou não, que três das obras mais conhecidas da literatura mundial, “Édipo Rei”, de Sófocles; Hamlet, de William Shakespeare e “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoievski, tratam do crime de parricídio (quando o filho mata o próprio pai).
Encontramos o sentimento de culpa presente na Bíblia. Impossível não se lembrar da passagem onde Judas Iscariotes se enforca[6] banhado no remorso por ter traído Jesus Cristo o qual traiu, foi condenado embora sendo inocente das acusações.
Sempre foi explorada na literatura a história pessoal de criminosos atormentados pelo sentimento de culpa. Para muitos dos autores seus personagens só tinham o crime e a necessidade de se entregar para a autoridade policial como forma de se diminuir ou aliviar a companhia do sentimento de culpa. Ser preso era, nessa visão, um alívio emocional para aqueles que tinham no sentimento de culpa uma companhia terrível decorrente da prática de um crime.[7]
Sigmund Freud vai mais longe e defende a posição que, em alguns casos, o sentimento de culpa emerge dos conflitos mal resolvidos oriundos do Complexo de Édipo.[8] Para Freud o sentimento de culpa é anterior á prática do crime, é ele que leva o sujeito á prática do crime e não decorre do crime, é anterior a ele.
Nesse sentido diz Freud:
“Por mais paradoxal que isso possa parecer, devo sustentar que o sentimento de culpa se encontrava presente antes da ação má, não tendo surgido a partir dela, mas inversamente – a iniqüidade decorreu do sentimento de culpa. Essas pessoas podem ser apropriadamente descritas como criminosas em conseqüência do sentimento de culpa. A preexistência do sentimento de culpa fora, naturalmente, demonstrada por todo um conjunto de outras manifestações e efeitos”.[9]
Vê-se, então, que a maneira que o sujeito atravessa o seu Complexo de Édipo[10] pode, em alguns casos, levá-lo a não superar de forma esperada esse conflito pessoal e permitirá o desenvolvimento de um sentimento de culpa, o qual na fase adulta poderá levá-lo a cometer crimes.
Segundo Freud:
“O resultado invariável do trabalho analítico era demonstrar que esse obscuro sentimento de culpa provinha do Complexo de Édipo e constituía uma reação às duas grandes intenções criminosas de matar o pai e ter relações sexuais com a mãe. Em comparação com esses dois, os crimes perpetrados com o propósito de fixar o sentimento de culpa em alguma coisa vinham como um alívio para os sofredores. Nesse sentido, devemos lembrar que o parricídio e o incesto com a mãe são os dois grandes crimes humanos, os únicos que, como tais, são perseguidos e execrados nas comunidades primitivas. Também devemos lembrar como outras investigações nos aproximaram da hipótese segundo a qual a consciência da humanidade, que agora aparece como uma força mental herdada, foi adquirida em relação ao Complexo de Édipo.” [11]
Essa abordagem coloca em xeque a forma como o criminoso é julgado muitas vezes pela Justiça Criminal, ficando bem visível que o Tribunal do Júri atende, em muitos casos, mais à necessidade do Sistema da Justiça Criminal[12] de se autoperpetuar com suas “verdades sabidas” do que descobrir verdadeiramente se o réu é culpado ou inocente.
As discussões que visam identificar se o sentimento de culpa do criminoso antecede ou não ao crime são essenciais para se procurar entender todos os ângulos do fato criminal. Todavia, é a argumentação que prevalece nas dramatizações teatrais dos tribunais do júri por parte dos que se julgam “príncipes do júri”, representantes da acusação e da defesa.
A Justiça deveria procurar entender o porquê do crime e não apenas absolver ou condenar sem entender o que moveu o sujeito a agir dessa forma. O papel do Poder Judiciário e do próprio Tribunal do Júri como “pacificadores sociais”, em verdade, não é atingido, porque prevalece a argumentação de seus atores sobre a profundidade do fato criminal e a complexa subjetividade de seus evolvidos (réus, vítimas e seus familiares).
3. O sentimento de culpa no Tribunal do Júri.
Uma das instituições mais controversas do Direito é o Tribunal do Júri[13]. Defendida por muitos e julgada ultrapassada por um outro tanto, sobrevive o tribunal do júri como um “trunfo da democracia” em vários ordenamentos jurídicos. O júri parte da premissa que um grupo de pessoas da população, leigos, pode dar mais justiça ao caso concreto do que o magistrado togado. É a própria população dando a sua interpretação sobre os limites da aplicação da lei penal nos crimes dolosos contra a vida.
Ao analisar as sessões de julgamento do Tribunal do Júri, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Doutora em Antropologia Social, entende que:
“As sessões permitem aos jurados e aos “príncipes” mostrarem-se atuantes, coesos, íntegros e fortes, pois elas são também espetáculos cerimoniais pedagógicos nos quais o sistema da justiça criminal é apresentado, ensinado e aprendido, legitimado e incorporado. Durante seu transcorrer, reúnem-se, “quase” como iguais e aliados, jurados e “príncipes”, tanto que há, especialmente nos intervalos para o “cafezinho” e nos momentos finais das sustentações orais de promotores e defensores, uma espécie de exaltação a realizações comuns, como a luta contra a impunidade, a criminalidade e os “vícios” de membros da sociedade. Essas mostram o poderio da “Justiça” e dos homens, celebram os desempenhos já realizados e tidos como vitoriosos e apontam o que resta a fazer. Trata-se de uma cerimônia que remodela os atores sociais, engajando-os em um espetáculo no qual eles representam não necessariamente o que são, mas o que devem ser em função do que deles esperam “o estado” e “a sociedade”. Trata-se, portanto, de uma dramatização que personifica categorias e entidades como “a Justiça”,“a punição” e mesmo discursos criminológicos”.[14]
Vê-se que no Tribunal do Júri não há espaço para outros atores como o psicanalista. Não há o costume no Brasil de se arrolar psicólogos, psiquiatras e psicanalistas para serem ouvidos em plenário. E a argumentação acaba prevalecendo no julgamento sobre a realidade do ato criminoso, da história do réu e da vítima.
Aliás, ao comentar o fato do psicólogo raramente aparecer em um tribunal, embora esteja de certa forma com a porta aberta à sua frente, o que em sua visão aponta a carência social da função, Lacan tece críticas também ao Tribunal do Júri.
4. Freud oferece uma nova base psicológica para a punição.
Freud defendeu a possibilidade de se oferecer a punição em uma nova base psicológica. Tal fato pode parecer ultrapassado ou de um reducionismo profundamente inocente, mas, se pensarmos que o texto foi escrito em 1916 e hoje, quase cem anos depois, o Direito ainda não chegou a um consenso sobre o porquê se pune, vê-se que há muito espaço ainda para se discutir essa visão junto à Criminologia.
Segundo Freud:
“No tocante às crianças, é fácil observar que muitas vezes são propositadamente “travessas” para provarem o castigo, e ficam quietas e contentes depois de serem punidas. Frequentemente, a investigação analítica posterior pode situar-nos na trilha do sentimento de culpa que as induziu a procurarem a punição. Entre criminosos adultos devemos, sem dúvidas, excetuar aqueles que praticam crimes sem qualquer sentimento de culpa; que, ou não desenvolveram quaisquer inibições morais, ou, em seu conflito com a sociedade, consideram sua ação justificada. Contudo, no tocante à maioria dos outros criminosos, aqueles para os quais as medidas punitivas são realmente criadas, tal motivação para o crime poderia muito bem ser levada em consideração; ela poderia lançar luz sobre alguns pontos obscuros da psicologia do criminoso e oferecer punição com uma nova base psicológica.[15]”
Freud defendeu sua tese, mas foi cauteloso ao afirmar taxativamente que há exceções. Ao afirmar que existem criminosos adultos que praticam crimes sem qualquer sentimento de culpa deixou aberto caminho para que os delinqüentes psicopatas ou sociopatas[16], e na sua versão mais grave, os assassinos seriais (serial killers) fiquem alijados dessa abordagem pela total ausência de sentimento de culpa em seus atos.
Dentro desse contexto freudiano da culpa é no Complexo de Édipo que se encontra o ponto central para se compreender as origens neuróticas desse sofrimento, o qual irá levar o ser humano no futuro a praticar um crime violento, chegando em alguns casos (tão bem explorados acima) a matar o seu genitor, o pai, configurando o parricídio. Atravessar a fase do complexo de castração será conflituoso, mas normal para a grande maioria, enquanto para alguns o desenvolvimento da culpa será o preço a pagar por não conseguir superar esse momento.
A figura do pai, da autoridade e da lei tão enfraquecidas na sociedade atual podem ser consideradas por muitos como o centro de inúmeros conflitos na esfera criminal. Coincidência ou não, uma grande parte dos jovens e adultos que se envolvem em crimes violentos não conheceu ou não sabe quem foi seu pai. A figura paterna, a representação da lei, em sua vida simplesmente nunca existiu no processo de aculturação.
5. Lacan, crime e psicanálise.
Curiosamente, foi um crime que chamou a atenção do jovem Lacan que em 1932 defendeu sua tese de medicina “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade”, após acompanhar por cerca de um ano e meio a história que ele mesmo chamou de “Caso Aimée”.
Segundo Elizabeth Roudinesco:
“No Hospital Sainte-Anne, durante um ano, Lacan utilizou todos os meios à disposição para construir um caso de paranóia de autopunição, mais próximo de suas preocupações doutrinais que do verdadeiro destino de Marguerite Pantaine. Essa mulher, que malograra em seu crime, apresentava sinais reais de paranóia e, sem dúvida nenhuma, era ao mesmo tempo perseguida, megalômana e mística.” [17]
Pouco depois, outro crime chamou a atenção de Lacan, que buscava construir a sua visão particular da Psicanálise: o caso das irmãs Pappin (1933). Todavia, já houve uma mudança de paradigma da visão lacaniana entre o Caso Aimée e o das Irmãs Pappin.
Para Roudinesco:
“De um crime a outro, de Marguerite a Christine, Lacan havia passado portanto de um monismo spinoziano, no qual pensava a personalidade como uma totalidade que incluía a norma e a patologia, a um monismo hegeliano, que o fazia abandonar a idéia mesma de personalidade em favor da idéia de consciência de si. Mas será preciso esperar o ano de 1936 para que seu encontro com o sistema hegeliano traga realmente seus frutos, a partir da dupla experiência do divã de Loewenstein e do seminário de Kojève.” [18]
6. Lacan e a Criminologia.
Na jornada pessoal do desenvolvimento de suas idéias e da própria Psicanálise, houve dois momentos bem específicos que levaram Lacan a tratar diretamente das relações da Psicanálise com a Criminologia: o primeiro foi a comunicação para a XII Conferência dos Psicanalistas de Língua Francesa, em 29.05.50, publicada em 1966 com o título “Introdução teórica ás funções da Psicanálise em Criminologia” na Obra “Escritos” e o segundo momento no retorno do mesmo tema, com a publicação de “Premissas a todo o desenvolvimento possível da Criminologia”, um resumo das respostas fornecidas por ocasião do debate sobre esse primeiro relatório e que se encontra na obra “Outros escritos”, publicada por Jacques-Alain Miller em 2001.
Lacan deixa claro nesses dois artigos o papel da lei em sua interação com a subjetividade humana e a relação dialética da lei com o crime, uma criação da cultura.
Lacan não foi o primeiro a buscar diretamente a interlocução da psicanálise com a Criminologia e apóia essa idéia por entender que a mesma é positiva citando até casos concretos:
“Reportemo-nos às notáveis observações princeps pelas quais Alexander e Staub introduziram a psicanálise na criminologia. Seu teor é convincente, quer se trate de “tentativa de homicídio de um neurótico”, quer dos furtos singulares do estudante de medicina que não sossegou enquanto não se fez aprisionar pela polícia berlinense, e que, em vez de adquirir o diploma a que seus conhecimentos e dons reais lhe davam direito, preferia exercê-los infringindo a lei, quer se trate ainda do “possesso das viagens de automóvel”. Releiamos também a análise que fez a Sra. Marie Bonaparte do caso da Sra. Lefebvre: a estrutura mórbida do crime ou dos delitos é evidente: o caráter forçado destes na execução, sua estereotipia quando eles se repetem, o estilo provocador da defesa ou da confissão,a incompreensibilidade dos motivos, tudo confirma a “coação por uma força a que o sujeito não pôde resistir”, e os juízes de todos esses casos concluíram nesse sentido.[19]
É interessante como a Justiça Criminal brasileira tem dificuldades em trabalhar com essa situação “coação de uma força a que o sujeito não pode resistir” em seus julgamentos, porque a participação de um psiquiatra, psicólogo[20] ou psicanalista nos julgamentos é sempre exceção, afora os casos onde as partes requerem uma perícia. Se ocorrer um crime onde o réu se submeteu a essa “força” e, por um motivo ou outro, a perícia não foi solicitada será ele condenado a cumprir uma pena de prisão, que pode ser elevada, porque a Justiça Criminal brasileira, profundamente conservadora e abjeta ao que é novo, vê a atuação do psicólogo ou do psiquiatra como um “mero auxiliar” do juiz, quando na verdade, são saberes que estão no mesmo nível (do saber jurídico).[21]
7. Lacan e a crítica à teoria do atavismo criminológico de Cesare Lombroso.
Segundo Elizabeth Roudinesco:
“Se Lombroso inventou a falsa teoria do “criminoso nato”, ele foi também o primeiro grande teorizador do crime a constituir uma documentação sobre a criminalidade, escrita pelos condenados; diários íntimos, autobiografias, depoimentos grafites de prisioneiros e anotações em livros de bibliotecas. Assim a criminologia nascente não se contentava em classificar taras e estigmas, porém já afirmava, como fizera Freud ao lutar contra o niilismo terapêutico, a necessidade de incluir no estudo do crime a fala do principal interessado: o próprio criminoso“.[22]
Lacan rejeita a tentativa anterior de Cesare Lombroso[23] com sua teoria do delinqüente nato, de olhar o criminoso como um ser primitivo, atávico, bem como rejeita a concepção da categoria de crime natural, a qual a Criminologia tentou sem sucesso desenvolver, em especial, com Garofalo.
Para Lacan:
“A psicanálise amplia o campo das indicações de um tratamento possível do criminoso como tal – evidenciando a existência de crimes que só tem sentido se compreendidos numa estrutura fechada de subjetividade – nominalmente, aquela que exclui o neurótico do reconhecimento autêntico do outro, amortecendo para ele as experiências da luta e da comunicação social, estrutura esta que pode deixar atormentado pela raiz truncada da consciência moral que chamamos de supereu, ou, dito de outra maneira, pela profunda ambigüidade do sentimento que isolamos no termo culpa”.[24]
Tal advertência é de suma importância e atualidade para a Criminologia, invadida que foi pelas teorias macrossociológicas norte-americanas, as quais gozam de grande aceitação na Criminologia, por darem uma visão de conjunto do fenômeno criminal, mas não aprofundam a história de cada indivíduo com todas as suas particularidades psicológicas.[25]
8. A transferência como mola propulsora da exteriorização do imaginário do criminoso.
Lacan diz ainda que a Psicanálise irrealiza o crime, mas não desumaniza o criminoso e que nessa possibilita o mundo imaginário do criminoso, através da mola da transferência[26], ser uma porta aberta para o real na figura do juiz de direito.
Infelizmente, no Brasil o elevado número de processos criminais acaba por impedir que seja dado tempo razoável para o interrogatório do acusado. Com a reforma do processo penal de 2008 o interrogatório do acusado, que era um dos primeiros atos do processo e privativo do magistrado, foi deslocado para o fim da instrução após a oitiva de todas as testemunhas, o que, se por um lado auxiliou muito a defesa, por outro lado esvaziou mais ainda o diálogo sincero que poderia haver entre o acusado e o juiz de direito.
Talvez a saída que privilegiasse mais a busca da verdade e a mediação do conflito penal seria a realização de dois interrogatórios, um no início do processo e outro ao final. A busca da verdade estaria assim preservada e o réu teria dois momentos (e não apenas um como é hoje) para apresentar a sua versão dos fatos. Essa medida não interessaria à defesa, motivada na maioria dos casos unicamente por um resultado final útil e nem ao Poder Judiciário, que teria de destinar o dobro de tempo ao acusado (e isso não interessa ao juiz por conta do volume dos processos).
Convém advertir que a transferência do senso comum não se confunde com a transferência psicanalítica, pois segundo Laplanche e Pontalis:
“O termo ‘transferência’ não pertence exclusivamente ao vocabulário psicanalítico. Possui, de fato, um sentido muito geral, próximo do de transporte, mas implica um deslocamento de valores, de direitos, de entidades, mais do que um deslocamento material de objetos (ex: transferência de fundos, transferência de propriedade, etc.). Em psicologia, é utilizado em diversas acepções: transferência sensorial (tradução de uma percepção de um domínio sensorial para outro); transferência de sentimentos (1); sobretudo na psicologia experimental contemporânea, transferência de aprendizagem e de hábitos (os progressos obtidos na aprendizagem de uma certa forma de atividade acarretam uma melhoria no exercício de uma atividade diferente). Esta transferência de aprendizagem é ás vezes chamada positiva, por oposição a uma transferência chamada negativa, que designa a interferência negativa de uma aprendizagem sobre uma segunda(α)”.[27]
A transferência possível do criminoso para o juiz de direito é apenas um deslocamento moral dos valores, uma identificação do criminoso com a figura do magistrado, não tendo a profundidade e nem o alcance da transferência psicanalítica. Esta, só o analista[28] pode conduzir.
A transferência psicanalítica já existia com Freud, que a utilizou após superar a fase do uso da hipnose e do método catártico, desenvolvido em parceria com Joseph Breuer. Aliás, o “Caso Dora”[29] foi emblemático na demonstração da existência desse intenso vínculo afetivo entre o analisante e o analista.
A transferência sempre foi objeto de muita controvérsia e não existe apenas dentro da psicanálise, sendo debatida tanto por Freud como por Lacan. É apontada como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, tendo sido elevada por Lacan em 1964 (Seminário XI) a essa a posição juntamente com o inconsciente, a repetição e a pulsão.
Segundo Elizabeth Roudinesco e Plon:
“Todas as correntes do freudismo consideram a transferência essencial para o processo psicanalítico. Entretanto, conforme as escolas, as divergências são múltiplas quanto a seu lugar no tratamento, seu manejo pelo analista e o momento e os meios de dissociação. Um século depois do nascimento da psicanálise, o conceito de transferência ainda é o objeto de um debate contraditório, cuja origem se encontra na história de seu reconhecimento, de sua avaliação teórica e de sua utilização por Freud a partir do abandono da hipnose e da catarse.” [30]
Então, a realização de um interrogatório bem feito e em tempo razoável pode facilitar a ocorrência da transferência e a facilitação da verbalização do fato pelo sujeito, o qual, em muitos casos, busca na confissão se libertar do sentimento de culpa pelo ato praticado.
E continua Lacan:
“Observem-se aqui a manifestação espontânea dessa mola na conduta do criminoso e a transferência tende a se produzir para a pessoa de seu juiz, da qual seria fácil colher provas. Citemos, apenas, pela beleza do fato, as confidências do chamado Frank ao psiquiatra Gilbert, encarregado da boa apresentação dos réus no processo de Nuremberg: esse Maquiavel derrisório, e neurótico a tal ponto que a ordem insensata do fascismo confiou-lhe suas grandes obras, sentia o remorso agitar sua alma ante a simples aparência de dignidade encarnada na figura de seus juízes, particularmente a do juiz inglês, ‘tão elegante’, em suas palavras.” [31]
Podemos imaginar, então, a revolução no âmago dos processos criminais se o psicanalista estivesse inserido em seu contexto, sendo lhe dada oportunidade para atuar no feito em busca da verdade e as motivações verdadeiras de cada sujeito para a prática do ato criminoso. Para isso, o psiquiatra, psicólogo e o psicanalista deveriam ser encarados não mais como “meros auxiliares” do Poder Judiciário, Ministério Público e advogados, que hoje esperam apenas um “laudo”; mas co-atores no mesmo nível do saber e com o mesmo respeito que se dá e se exige entre os atores principais (do Direito) no processo.
9. Criminologia e Psicanálise: humanizando o criminoso.
A Psicanálise pode através da dialética do sujeito favorecer que o criminoso externe a sua culpa e possa assumir a verdadeira responsabilidade pelo seu ato, que é em relação á vítima, à sociedade e para consigo.
Ainda Lacan:
“Isso porque a realidade humana não é apenas obra da organização social, mas é uma relação subjetiva que, por estar aberta à dialética patética que tem de se submeter o particular ao universal, tem seu ponto de partida numa dolorosa alienação do indivíduo em seu semelhante, e encontra seus encaminhamentos nas represálias da agressividade” [32]
Uma das preocupações da criminologia é a busca da verdade, ou, da percepção mais próxima possível de toda a complexidade do fato criminal, procura que não é a mesma do Direito Penal com suas “verdades jurídicas”. A Psicanálise, neste ponto com Lacan, auxilia na busca dessa verdade, quando inclui a subjetividade do delinqüente no foco do criminólogo, não o deixando alienado de sua história.
É sobre isso que adverte Lacan:
“A ação concreta da psicanálise é de benefício numa ordem rija. As significações que ele revela no sujeito culpado não o excluem da comunidade humana. Ela possibilita um tratamento em que o sujeito não fica alienado em si mesmo. A responsabilidade por ela restaurada nele corresponde à esperança, que palpita em todo o ser condenado, de se integrar em um sentido vivido.” [33]
O condenado vive em um sistema opressivo e com fins manifestos e ocultos. A ressocialização é um dos objetivos apregoados e quase nunca atingidos.[34] É importante que tais ações sigam em frente para se buscar um novo rumo para o sistema, mas sem demagogias. É importante que o criminoso seja tratado com muita dignidade, sendo que a responsabilidade do mesmo pelos seus atos deve ser objeto de especial atenção, porque isso é um ponto importante para a resolução dos conflitos, e em especial, no tocante aos crimes com vítimas.
Finalizando, com Lacan, que chama a atenção para a idéia da responsabilidade do sujeito:
“A verdade a que a psicanálise pode conduzir o criminoso não pode ser desvinculada da base da experiência que a constitui, e essa base é a mesma que define o caráter sagrado da ação médica – ou seja, o respeito pelo sofrimento do homem.”
A psicanálise do criminoso tem limites que são exatamente aqueles em que começa a ação policial, em cujo campo ela deve se recusar a entrar. Por isso é que não há de ser exercida sem punição, mesmo quando o delinqüente, infantil, se beneficiar de uma certa proteção da lei” [35]
10. Considerações finais.
A Criminologia moderna trabalha com teorias de grande relevância para a sociedade para a compreensão do fenômeno criminal. O saber jurídico é fechado, com pouca abertura para interações com outros ramos do saber e até com a própria Criminologia. Hoje, há grande sucesso junto à doutrina nas teorias macrossociológicas, as quais abandonam o foco no ser humano com suas indiossicracias, para procurar padrões de comportamento em grupos dos mais diversos tamanhos, perdendo a essência da pessoa humana que está sendo julgada pelo ato criminal.
Lacan rejeita abertamente a teoria lombrosiana da possível existência de “instintos criminosos”, criticando essa concepção confusa que entende que o crime é uma irrupção dos instintos, as quais dobrariam as barreiras morais de cada um.[36]
Restaurar a história do sujeito que cumpre a pena é humanizar aspectos que a frieza das teorias criminológicas modernas não consegue alcançar, resgatando a dor que todo o evento criminal também traz para os principais envolvidos (criminosos, vítimas e seus familiares).
Aliás, é a busca dessa humanização do sistema penal que tem levado o CFP – Conselho Federal de Psicologia nos últimos anos a questionar e repensar o papel do psicólogo no sistema prisional, haja vista que, no modelo atual, ele atua como um mero reprodutor das situações injustas que o sistema cultiva.
Impossível não lembrar neste ponto como promotores de justiça, juízes, psicólogos, advogados terminam por atuar, em muitas situações, como meras válvulas de uma grande “engrenagem social” [37], que para alguns, dizem possuir “vida própria” no sentido que tem objetivos reais distintos do que defende (ex: ressocialização dos condenados). Alguns chegam abertamente a defender o objetivo único de contenção dos criminosos e até a pena de morte. Está preso o “exército de reserva” social de maltrapilhos, criadores de confusão, vândalos, “traficantes”, drogados etc., que são enviados para um sistema injusto e violento com o intuito de ressocializá-los, mas, ao mesmo tempo, não lhes dá realmente chance alguma de poderem atingir esse objetivo.
Seria possível um retorno às origens pacificadoras do Sistema da Justiça Criminal? Seria um desafio (im)possível para todos os atores da Justiça Criminal? É um grande desafio, pois o sistema da Justiça Criminal na atualidade optou por criar suas próprias verdades e se afastar do seu objetivo principal que é o de resolver os conflitos. Tanto o réu como a vítima (esta sim, uma abandonada) se encontram em uma situação secundária frente a esse Leviatã que se tornou a Justiça Criminal no Brasil. A Psicanálise tem esse desafio de auxiliar a Justiça Criminal a retornar para o seu verdadeiro curso.
Informações Sobre o Autor
Lélio Braga Calhau
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-Graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ). Segundo diretor-secretário do ICP – Instituto de Ciências Penais do Estado de Minas Gerais. Autor do livro Resumo de Criminologia, 4ª edição, Impetus, 2009. Membro da American Society of Criminology