Uma abordagem propedêutica rumo à análise crítica da reforma constitucional da Previdência Social aplicada no Brasil pelo direito estatal contemporâneo: da ideologia à transição paradigmática

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1. Considerações preliminares à crítica do direito e do Estado contemporâneo


O direito é fenômeno cultural observável histórica e socialmente, mas sua aplicação exclusiva pelo aparato estatal, hegemônica a partir do final da Idade Moderna, tem-se limitado a reproduzir, de forma ideológica, um senso comum positivo-dogmático que não faz distinção essencial entre aquele direito fenomênico e a lei aplicada pelo Estado, apenas determinando o estabelecimento de “verdades jurídicas” voltadas ao caso concreto, num processo de análise autofágica que pressupõe uma coerência lógico-formal posta dentro dos limites da norma jurídica, esta considerada intrínseca aos parâmetros ideológicos e/ou axiológicos vigentes, como Andrade (s.a.:07) bem demonstra.


Na verdade, o Estado – “ente mítico que ocupou o lugar dos velhos fantasmas da Idade Média” – passou a pressuposto do próprio direito, desenvolvendo-se paralelamente à ideologia, “que procura arrancar o homem, a sociedade e o próprio Estado do contexto social-histórico para alçá-los a uma não historicidade”, consoante expressa Coelho (1997:01).


Ocorre que, a partir da transição da Idade Moderna para a Contemporânea, após o triunfo do padrão universal do Estado-nação que se afirma democrático e liberal, ainda segundo afirma Coelho (op. cit., p. 02), o direito deste Estado veio a se identificar, conceitualmente, com a lei, inexistindo, nesta concepção, outro direito afora o emanado do próprio Estado, passando a se encarar as “formas plurais de juridicidade” como se fossem apenas “manifestações primitivas a serem cooptadas pela lei” ou “formas esdrúxulas do jus”, quase sempre excluídas da condição de possível objeto cognoscível pelo “senso comum teórico dos juristas”.


Entretanto, há de se observar que o direito nem sempre serviu, autocrático, à dogmática jurídica, pois deteve, noutros tempos, ora em seu fim, ora em suas formas, certo caráter de emancipação humana, de libertação individual ou coletiva. Assim, conforme Santos, B. de S. (s.a.: 120 e ss.), dentre as características essenciais do direito moderno, destacou-se a tensão dialética entre regulação e emancipação, clarificando a existência duma conotação libertária a revestir a teleologia e o modus operandi do direito.


Porém, com a evolução histórica do capitalismo, esta dicotomia dialética intrínseca ao direito moderno foi substituindo-se, passo a passo, por uma utópica regulação jurídica confiada automaticamente ao Estado liberal, o que conduziu, por obrigatório, à eliminação imediata do confronto entre emancipação e regulação sociais, findando com a “canibalização da emancipação social por parte da regulação social”, numa inversão nitidamente ideológica, também de acordo com Santos, B. de S. (op. cit., p. 140).


Com efeito, tão logo a classe detentora dos meios de produção (poder econômico) obteve para si o controle político da sociedade, marchando sobre os restos do ancièn regime, descumpriu tudo o que havia ajustado com as classes sociais menos favorecidas, extirpando quaisquer possibilidades emancipatórias que se direcionassem ao novo paradigma.


Para tanto, valeu-se de dois instrumentos reguladores essenciais ao desenvolvimento do sistema capitalista-mercantil no seio da sociedade vindoura. De um lado, a assunção da ciência moderna a meio produtivo fundamental, transformando-se “o conhecimento científico num conhecimento regulador hegemônico”; do outro, o direito moderno que, efetivando a disciplina social que o regime nascente exigia, figurou como “um racionalizador de segunda ordem da vida social, um substituto da cientifização da sociedade”, como afirma Santos, B. de S. (op. cit., p. 119).


Para assumir mencionada tarefa, o direito moderno submeteu-se à racionalidade científica, tornando-se eminentemente estatal, com o objetivo de garantir a aguardada supremacia política sobre os suspiros revolucionários do incipiente proletariado, até que a ciência e a tecnologia, através de seus próprios meios, viessem a garanti-la hegemonicamente.


Afinal, as transformações da “ciência moderna na racionalidade hegemônica e na força produtiva fundamental” e do “direito moderno num direito estatal científico”, segundo o mesmo autor (Idem, ibidem., p. 120), são “duas faces de um mesmo processo histórico”. Porque ambos, direito e ciência modernos, tiveram que afastar de sua ontologia, através deste processo, “a tensão entre regulação e emancipação social, originalmente inscrita no paradigma da modernidade”.


Aliás, a perda ou o afastamento desta tensão deu-se tão completa e irreversivelmente, que, para se recuperarem as “energias emancipatórias”, é imprescindível reavaliar-se radicalmente o direito moderno.


Dentre as principais implicações decorrentes desse “novo” direito assumido pelo Estado moderno e transplantado sem modificações estruturalmente significativas para o chamado Estado contemporâneo, especialmente com o declínio do contexto geopolítico da Guerra Fria, destacou-se o positivismo jurídico como “a versão mais apurada” da “co-evolução ideológica” que se verificou entre o “cientificismo jurídico e o estatismo jurídico”.


Assim, Coelho (op. cit., p. 10) leciona que, a partir da confrontação entre “as ideologias racionais do pós-guerra”, estruturou-se “um novo modelo de crítica” que “considera o fenômeno jurídico algo inseparável do contexto social”, passando o positivismo à hegemonia sobre as relações do pensamento jurídico, a ponto de se caracterizar certa exaustão do pensamento jusfilosófico tradicional, não restando à filosofia jurídica tradicional mais do que a unitária “visão positivista de uma teoria geral”, ou apenas determinados encadeamentos do “pensamento analítico” que têm seu auge na “monumental obra de Lógica Proposicional do Direito”, apesar da dissociação absoluta entre esta teoria e as realidades observáveis por meio da prática jurídica profissional.


Ademais, essa visão unitária oculta a conotação ideológica do direito, de acordo com a qual “a legitimidade das normas resulta de um processo ideológico que fundamenta a aceitação das normas pela sociedade por elas regida”, como Coelho (Idem, ibidem., p. 02) também noticia.


Diante disso, o colapso do projeto epistemológico da modernidade abre novas possibilidades ao “pós-modernismo de oposição”, descrito por Santos, B. de S. (op. cit., p. 166 e ss.), pois o direito pode afastar-se da ideologia, tornando-se, desde logo, “arma de emancipação individual e coletiva (…) mediante uma intervenção direta e concreta na vida daqueles que provocam sua ação”, como preleciona Andrade (op. cit., p. 08.).


Mas, pondera Santos, B. de S. (op. cit., p. 166.), “a crise final da modernidade é mais visível como crise epistemológica (uma crise da ciência moderna) do que como crise societal (uma crise do mundo capitalista)”, pois, da relação histórica que existe no binômio capitalismo/modernidade, o autor (Idem, ibidem., p 167.) destaca uma análise da transformação social contemporânea segundo a qual “a modernidade entrou em colapso como projeto epistemológico e cultural, o que vem abrir um vasto leque de possibilidades futuras para a sociedade”, “o pós-modernismo de oposição”.


A esta interpretação, que o autor chama de “conhecimento emancipatório pós-moderno”, é dada a função de “descobrir, inventar e promover as alternativas progressistas que essa transformação pode exigir”.


Trata-se de uma “utopia intelectual” que possibilita certa “utopia política”, considerando que “as transições paradigmáticas se estendem por muito tempo, por várias décadas e, às vezes, por mais de um século” e que mencionadas transições vêm a ocorrer sempre que “as tradições internas do paradigma dominante” não possam ser administradas por força dos instrumentos “de gestão de conflitos e de ajustamento estrutural desenvolvidos pelo paradigma em causa”.


Para auxiliar a satisfação deste “conhecimento emancipatório pós-moderno”, impõe-se separar Estado e direito, reconhecendo a este seu efetivo potencial de emancipação, a partir do reconhecimento do “princípio da gênese histórico-social do direito”, referido por Coelho (op. cit., p. 06.), em oposição ao “princípio da estadualidade do direito”, no sentido de que o Estado não se subordina necessariamente ao direito e este, de acordo com o “princípio da pluridimensionalidade do direito”, não deve eliminar de sua aplicação outras fontes do direito, além das produzidas pelo Estado, tais como o costume, a doutrina e os princípios gerais de direito.


Nesta mesma linha de raciocínio, afirma Andrade (op. cit., p. 08.) que, justamente pelo reconhecimento de que “a realidade é múltipla, mutável e construída socialmente”, surgem novas possibilidades para “uma autoconsciência dos sujeitos, habilitando-os não apenas a uma nova interpretação de si”, mas também da própria realidade em que tais sujeitos estão imersos. E, para Coelho (op. cit., p. 09.), “uma tentativa de reconstrução do saber jurídico” passa, necessariamente, pela “desalienação do jurista e de seu saber, um passo a mais no rumo da libertação”.


2. Introdução à análise crítica da reforma ‘constitucional’ previdenciária aplicada no Brasil


Considerando os aspectos já expostos, observa-se que um dos primeiros degraus que o estudioso do direito pode subir, na escalada em busca duma análise efetivamente crítica da reforma constitucional da previdência social aplicada pelo direito estatal no Brasil contemporâneo, objetivando um “conhecimento emancipatório pós-moderno”, deve ser a compreensão de que a posição dogmático-exegética dos reformistas é nitidamente ideológica e, visando perpetuar um Estado absenteísta nos moldes do capitalismo neoliberal, não se ocupa em resolver os reais problemas da hodierna questão, apenas subsistindo num momento historicamente determinado, no contexto da transição paradigmática, em que os próprios valores da ordem hegemônica global encontram-se em processo de mutação efervescente.


Um próximo passo será a constatação de que, para se efetivar o projeto “pós-moderno de oposição”, é imprescindível dissolver-se a comunhão existente entre Estado e direito, com vistas à construção de políticas progressistas, já que, em se observando as “injustiças e opressões do sistema mundial”, evidencia-se a necessidade de o direito, sem desprezar sua face regulatória, rearticular-se com a revolução, esta concebida como processo fundamental a estruturar a transição de paradigma e, pois, a emancipação humana por novas formas de aplicação do jus, através de um novo senso comum teórico dos juristas.


2.1. Desmistificação dos argumentos ideológicos da reforma atual


Doravante, sem perder de vistas todo o processo emancipatório acima aludido, discutir-se-ão os pressupostos fundamentais da ideologia reformista do sistema constitucional de previdência social, quais sejam: a burocracia da impessoalidade e o mito do desenvolvimento econômico.


Max Weber apud Zago (2001:222) asseverou que a modalidade mais genuína de dominação legal é a que se faz exercer através do quadro burocrático estatal, em que se pode distinguir a dominação burocrática como sendo a “dominação da impessoalidade formalista: sine ira et studio, sem ódio e sem paixão, (…) submetida tão-somente à pressão do dever estrito”, não relevando a significação concreta da realidade fática onde estão imersas as pessoas envolvidas no processo de dominação, mas apenas considerando que os procedimentos utilizados tendem a fornecer igualdade formal para todos, ou melhor, “para todo o interessado que se encontre em igual condição de fato: assim conduz o funcionário ideal seu ofício”.


Noutro quadrante, o termo “burocracia” vem sendo utilizado, em aparente contradição, para expressar, de um lado, uma administração estatal cujo agir denote eficácia, eficiência e efetividade; do outro, a conotação do administrar de maneira inflexível, lenta e disfarçada sob a égide dum poder excessivo que tem por fim a perpetuidade de sua inoperância dissimulada. Mas, deve destacar-se, essa incoerência semasiológica é meramente ilusória, pois a burocracia realmente conjuga ambos os significados, tendo em vista que “burocracia é poder, controle e alienação”, na ponderação de Motta (1981:07). Aliás, na visão deste autor, a burocracia constitui-se numa estrutura social na qual a direção das atividades coletivas é atribuída a uma organização impessoal disposta hierarquicamente, que se deve pautar por critérios impessoais e métodos racionais. Deste modo, caracteriza-se fundamentalmente por compor-se de regras impessoais cujo principal objetivo teleológico é a máxima eficiência.


Por sua vez, embora de maneira paradoxal, justamente o aspecto racionalista da burocracia é que originou a chamada “alienação burocrática”, por força da qual a administração se desumaniza, passando a burocracia a ser “elemento de recalque”, instrumento com que “a autoridade mascara o poder”, afastando toda e qualquer sorte de idéias inovadoras, indispensáveis ao “necessário arejamento e higienização do trabalho”. Reprimidas por esta ‘máscara’, os agentes estatais, genericamente, deixam de falar em nome próprio, não se envolvendo pessoalmente, escondem ou “não desenvolvem seu potencial”, enfim, são absolutamente alheios ao “processo de decisão”, de tal sorte que até mesmo o direito à liberdade de expressão é absolutamente cerceado e substituído por “memorandos, atas, relatórios com fórmulas rígidas”, produzindo demasiada fragmentação. Assim, “a palavra livre e criadora é vista com profunda desconfiança”.


Conseqüências desse panorama, a irresponsabilidade e a irresponsabilização funcional geram uma administração “por documentos”, por força da qual tudo que não for documento não existe, pois a excessiva preocupação em se manterem as amarras do “legalismo” (diligentemente encoberto sob a alcunha de legalidade) relega o mérito ou o resultado administrativos a último plano, chegando a conduzir os próprios funcionários públicos à absoluta frustração, pondera Medauar (1992:123 e ss.).


De outra monta, constata-se, verdadeiramente, a excessiva, desnorteada e aleatória expansão da máquina administrativa transferindo ao Estado contemporâneo um legado que se onera entre o descrédito e a desconfiança por parte daqueles que lhe deveriam dar sustentáculo, os cidadãos. Essa imagem, preceitua Zago (op. cit., p. 226), vem coligada aos fenômenos da ineficiência, do crescimento desatinado da burocracia, da inexistência de impessoalidade estatal, dos elevados custos suportados pelos cidadãos para a mantença da administração, comumente incompatíveis com a qualidade da prestação dos serviços públicos ofertados, em contrapartida, ao corpo social.


Portanto, o desmesurado aumento da burocracia acaba por ser, como entende Di Pietro (1997:19), uma conseqüência negativa do Estado Social de Direito, por produzir um sensível desequilíbrio entre os poderes constituídos, em especial entre o legislativo e o executivo, que fez teóricos mais exaltados chegarem a profetizar estar em vias de ocorrer a mais completa “burocratização do mundo”.


Em toda parte, insurgiram-se questionamentos acerca da expansão desgovernada do Estado, bem como de sua forma de atuação, das funções por ele desempenhadas; donde se há de concluir pela necessidade de redimensionamento do modelo estatal rumo a uma nova imposição da ordem econômica, como enfatiza Zago (op. cit., p. 227).


Todavia, continuando a lição da mesma autora, deve-se observar que essa “necessidade de desburocratização” em busca da “eficiência, da celeridade e eficácia” administrativas não pode obstar a busca pela concretização das garantias cidadãs de tal forma que a onda do “reformismo” dos direitos dos administrados, através das privatizações, jamais deve servir de instrumento para transgressões aos princípios da legalidade estrita, competência, controle e responsabilidade do Estado.


Ora, na verdade, é muito bem provável que a efetivação plena dos direitos humanos fundamentais dos cidadãos não prescinda de uma necessária busca de novos modelos paradigmáticos para o direito, que sejam baseados na superação da organização econômica supra-estatal hegemônica, justamente porque em se ladeado as conjecturas ideológicas e se limitando à observação da estrutura do sistema capitalista, constatar-se-á que “o processo de acumulação tende a ampliar o fosso entre um centro em crescente homogeneização e uma constelação de economias periféricas, cujas disparidades continuam a se acentuar”, para se utilizar expressão de Furtado (2005:79).


Ademais, ainda segundo o mencionado jus-economista, enquanto a ascensão hegemônica das grandes empresas na condução do processo acumulativo implica, no centro, numa “tendência à homogeneização dos padrões de consumo”, nas economias periféricas, designa exatamente um afastamento das condições de vivência de “uma minoria privilegiada” em face da grande massa populacional desprovida de toda a sorte de direitos.


Daí a negação que faz esse autor (op. cit., p. 82) a toda e qualquer possibilidade de generalização planetária dos “atuais padrões de consumo dos países ricos”, sob pena de contradição imediata com a “orientação geral do desenvolvimento que se realiza atualmente no conjunto do sistema”, donde se obtém “a exclusão das grandes massas que vivem nos países periféricos” de todas as benesses geradas por esse ‘desenvolvimento’. Até porque, acrescenta (Idem, ibidem, p. 86), embora venha a ocorrer um “aumento relativo do número de privilegiados” no âmbito dos países de economia periférica, isso não impedirá, necessariamente, a manutenção e, até mesmo, o aprofundamento da disparidade existente entre estes privilegiados e a população majoritária de tais países, excluída de boa parte dos direitos fundamentais. Ora, há de se ver, continua (Ibid., p. 87), que essa massa destituída crescente nos países periféricos acaba por constituir, em si mesma, um fator significativo a influir na “evolução do sistema”, na medida em que possibilita a ocorrência de modificações sobre o “sistema de poder político”, seja em alguns países seja generalizadamente, “sob a pressão dessas massas”, com alterações estruturais na própria “orientação geral do processo de desenvolvimento”.


Com base nesses fundamentos, deve constatar-se, juntamente com Furtado (Idem, 88-90.), que, dentro das condições materiais de evolução aparente do capitalismo, não há como ser acolhida “a hipótese de extensão ao conjunto do sistema capitalista das formas de consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos”, posto que “o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria”. Isto porque o custo material deste estilo é tão elevado que qualquer tentativa de o fazer genérico conduziria “inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana”.


Logo, conforme resta cabalmente demonstrado pelo autor, a expressão ideológica “desenvolvimento econômico” é absolutamente surreal, não se podendo concretizar no plano fático, tendo-se por certo ser “irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista” e que “a idéia de desenvolvimento econômico é um simples mito”, o qual, por sua vez, se trata de “um dos pilares da doutrina que serve de cobertura à dominação dos povos dos países periféricos dentro da nova estrutura do sistema capitalista”.


2.2. A atual reforma em cheque: três vertentes de uma só crise


Consoante ensina Bonavides (2005:196), certa estabilidade ou permanência do texto constitucional é, por tradição, um das implicações do sistema de constituições rígidas, modelo adotado, teoricamente, pelo constitucionalismo brasileiro contemporâneo.


Mas, continua o eminente constitucionalista, não é demais relembrar que “a pretensão à imutabilidade foi o sonho de alguns iluministas do século XVIII”, descartado pelos doutrinadores pós-modernos após constatarem que a lei não pode ser tida como “um produto lógico e absoluto, (…) atualizado para todas as gerações”.


Com efeito, essa estabilidade deve ser enxergada de modo relativo, também compreende Silva (2001:42), porque não é concebível uma “constituição imutável diante da realidade social cambiante, pois ela não é apenas um instrumento de ordem, mas deverá sê-lo, também, de progresso social”.


Ademais, lembra Bonavides (op. cit., 197), em se adotando a tese da imutabilidade constitucional, optar-se-ia, de imediato, pela exclusiva solução das crises através da força, do medo e da violência, outorgando as articulações de toda reforma do sistema político à revolução e ao golpe de Estado e, indiscriminadamente, eliminando a face regulatória de que também se reveste o direito, como já afirmado neste artigo.


Ora, com o fim de evitar este outro extremo – a dissociação entre o direito e a regulamentação –, pode adotar-se como estratégia a idéia de “legitimação do conceito jurídico de reforma constitucional”, explicada pelo professor emérito da UFC (Idem, ibidem, 198), sem, com isso, abalar necessariamente a essencial aliança entre o direito e a revolução, perdida historicamente com a ascensão política da burguesia na França do final do séc. XVIII.


Realmente, Meirelles Teixeira apud Silva (op. cit., 42) assegura que a “rigidez relativa constitui técnica” capaz de atender às exigências de ambos os elementos do jus, ordem e revolução, “permitindo emendas, reformas e revisões, para adaptar as normas constitucionais às novas necessidades sociais”, mas também exigindo um processo legislativo mais solene, pelo menos em tese, para a modificação de tais regras, se comparadas com a via regular de se modificar a legislação ordinária.


Portanto, assemelha-se irracional o desprezo completo à importância, no contexto contemporâneo, do modelo teórico “reforma constitucional” a ser utilizado quando a ordem social o impuser e desde que ainda não haja condições históricas determinantes à superação do sistema jurídico hegemônico, dogmático e ideológico. Mas não menos irracional é tentar compreender as atuais “reformas” sem se vislumbrar as tendências da crise em que elas se inserem.


2.2.1. A crise do Estado social


Conforme Bonavides (op. cit., 368), a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, à semelhança das de 1934 e de 1946, é inserida num contexto político de constituições marcadas pelo registro solene dos “direitos que assinalam o primado da Sociedade sobre o Estado e o indivíduo ou que fazem do homem o destinatário da norma constitucional”, salientando-se que este ‘homem’ é “o homem-pessoa, com a plenitude de suas expectativas de proteção social e jurídica, isto é, o homem reconciliado com o Estado”, em contraposição à idéia de ‘homem-indivíduo’, tutelado pelo liberalismo caricato do bacharelismo legalista brasileiro, otimamente retratado por Wolkmer (2003:98 e ss.).


Logo, pode dizer-se, juntamente com o constitucionalista referido no parágrafo supra (op. cit., 371), que a vigente Constituição brasileira “é basicamente em muitas de suas dimensões essenciais uma Constituição do Estado social”, inspirada por “valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no Poder”. Este direito constitucional do Estado social assumido pela Constituição de 1988 caracteriza-se por exteriorizar num atomismo lógico “a tensão entre a norma e a realidade, (…) entre a economia de mercado e a economia dirigida, entre a liberdade e a planificação, (…) entre a harmonia e o conflito, (…) entre representação e democracia, entre legalidade e legitimidade”, oposições dialéticas que figuram “invariavelmente na crista da revolução participatória de nosso tempo”, (Idem, ibidem, p. 373).


Outrossim, para compreender esse “constitucionalismo do Estado social brasileiro” inserido na Carta Política de 1988 é imprescindível eleger-se, dentre outros aspectos, a “teoria dos direitos sociais fundamentais”, em que a previdência social está abrangida, tendo em vista a incontestável relevância que esta teorização assume no escopo de delimitar o rumo do Estado a fim de se “concretizar a proteção da liberdade em termos de plena eficácia social”, reconhecendo-se a indubitável importância desempenhada pelo princípio da igualdade, enquanto núcleo jurídico do Estado social e dos direitos que lhe são inerentes. Tal princípio passou a deter reconhecido e ampliado grau qualitativo, traduzindo-se mesmo na essência dessa concepção estatal e renunciando à exclusiva condição de igualdade formal, típica do liberalismo, para alcançar a materialidade, a substância, nesta nova forma de Estado, em que já não é mais tolerável ignorar-se a primazia do fator ideológico nem sequer a de outros aspectos axiológicos. O conceito de igualdade, portanto, passa a ter dentre seus elementos a ideologia e os valores, “provocando uma crise para a velha igualdade jurídica do antigo Estado de Direito”. A partir daí, observa-se que o Estado social acaba por ser um “Estado produtor de igualdade fática”, conceito este que serve de suporte e orientação à hermenêutica constitucional, com vista ao estabelecimento da “equivalência de direitos”. O Estado fica casualmente obrigado a prestações positivas “para concretizar comandos normativos de isonomia”, considerando-se que, a partir da introdução dos direitos sociais básicos, os direitos fundamentais, apesar de não haverem mudado substancialmente, encobriram-se de uma nova roupagem. “A igualdade não revogou a liberdade, mas a liberdade sem a igualdade é valor vulnerável”. Transmudou-se a liberdade jurídica em liberdade real, assim como a igualdade abstrata modificou-se em igualdade fática. “A igualdade material faz livres aqueles que a liberdade do Estado de Direito da burguesia fizera paradoxalmente súditos” (Ibid., pp. 373-379).


Hodiernamente, o desatendimento dos direitos sociais básicos tem sido um dos grandes motivos de desestabilização constitucional e, sobretudo nos países de economia periférica – cuja ordem social ainda procuram aperfeiçoar, envoltos nas crises que a busca do mito desenvolvimentista enseja –, tais direitos apresentam-se num contexto “de luta, controvérsia, mobilidade, fazendo sempre precária a obtenção de um consenso sobre o sistema, o governo e o regime”. Positivados na Constituição, a um só tempo, colaboram substancialmente para torná-la dinâmica, mas a submete “a graves e periódicas crises de instabilidade, que afetam o Estado, o governo, a cidadania e as instituições”; por isso mesmo é que se diz ser a “Constituição do Estado social na democracia” símbolo de “conflito, dos conteúdos dinâmicos, do pluralismo, da tensão sempre renovada entre a igualdade e a liberdade” e, talvez por esta mesma causa, “o grande problema do momento constitucional brasileiro” seja a concretização do seu texto, questão que também interessa à Ciência Política. Certamente, trata-se do grande “desafio das Constituições brasileiras, desde os primórdios da República”, pois, dentre nós, infelizmente, o maior obstáculo de preocupação política vem sendo, desde o princípio “após a queda de cada ditadura, apenas legitimar um chefe de governo, (…) um caudilho, um aventureiro político”, sequer se discutindo a necessidade de construção de “um sistema de poder, uma pauta de regras e princípios, uma ordem jurídica moderna ou uma nova estrutura da economia”. (Ibid., pp. 380-381)


2.2.2. A crise constituinte


Noutro quadrante, há de se observar, a respeito da crise da estatalidade social brasileira, que se trata de uma crise institucional, “por todos os ângulos possíveis”, e não apenas de certa fase crítica de uma Constituição. Trata-se não somente de uma “crise constitucional”, mas de uma “crise constituinte”. Enquanto a primeira seria “a crise de uma Constituição ou, de modo mais freqüente e preciso, de um determinado ponto da Constituição”, a segunda, mais grave, “costuma ferir mortalmente as instituições compelindo à cirurgia dos tecidos sociais ou fazendo até mesmo inevitável a revolução”; é, na realidade, “a crise do próprio poder constituinte”. Desde o princípio do Estado brasileiro, a crise constituinte vem sendo “a crise que ainda não se resolveu”. (Ibid., pp. 381-384)


Em determinados momentos de maior tensão social, os países cêntricos têm enfrentado normalmente diversas situações de crise constitucional, enquanto as nações de economia periférica vêem-se obrigadas a suportar “um quadro muito mais sério e conturbador: a crise constituinte, que naqueles é a exceção e nestes a regra”. Assim, também no Brasil, desde nossa “emancipação formal” do Império Lusitano, “a crise constituinte tomou aspectos gravíssimos, porquanto nunca se resolveu em termos definitivos”, mas restou “sempre latente e recessiva”, por isso se afirma que a história republicana brasileira “não é a história das crises constitucionais, mas das crises constituintes” e essas crises, ao longo da história política do país, acabaram por se transformar em “nossa mais profunda crise de legitimidade”, seja formal seja materialmente, celebrizando a triste verdade de que no Brasil jamais houve “uma Assembléia Nacional Constituinte, dotada de liberdade, exclusividade e plenitude de poderes”, sequer dos meios institucionais que “a teoria revolucionária do século XVII sempre armara esses parlamentos, a fim de que, providos da suprema vontade da Nação, pudessem refazer as instituições desde os seus fundamentos”. Esse desencontro histórico torna a atual Constituição “carente de juridicidade” e permite, conseqüentemente, o “prosseguimento da crise constituinte, fadada a perpetuar-se nas organizações políticas dos países subdesenvolvidos” (Ibid., pp. 384-388).


2.2.3. A crise da seguridade social


Inovadoramente, através do Diploma Político de 1988, introduziu-se na história brasileira “um sistema verdadeiramente onicompreensivo de seguridade social”, alimentando-se “as esperanças de que a crise e os problemas sociais seriam superados”. Mas este “sonho” foi muito breve, pois “até o momento o novo sistema de Seguridade Social tem sido um verdadeiro fracasso”, cujas causas vêem desde “problemas técnico-administrativos e/ou financeiros, sonegações, fraudes” até “despesas com benefícios sociais superiores às receitas”, como assegura Santos, M.F.S. (2005:105-109).


Nada obstante, a crise da seguridade tem sido vista, equivocadamente, como se fosse um problema exógeno ao jus, alheio até mesmo ao “Direito da Seguridade Social”, como se ela não passasse de “uma questão meramente política ou econômica, sem qualquer participação ativa da classe jurídica” e, o que até parece inimaginável, como se “as teorias e concepções jurídicas vigentes na atualidade” não contribuíssem diretamente “para a concentração de renda e para o aumento das desigualdades sociais”. (Idem, ibidem, p. 110).


Na verdade, a imensa influência de princípios de direito assistencial sobre o nosso subsistema previdenciário acabou por contribuir para que este subsistema tenha tido sua identidade substancial esvaída, constituindo-se este fato num evidente retrato da crise do Estado social brasileiro, já analisada. Por isto mesmo é que “a crise econômica da previdência social notoriamente tem origem no modelo assistencial de seguridade social” adotado, não sendo demais afirmar que “a origem do desequilíbrio econômico” decorre de uma errônea idéia segundo a qual “interpreta-se previdência como se assistência social fosse, fracionando-se a relação previdenciária sinalagmática em duas relações obrigacionais simples e desconexas entre si”. Noutras palavras, transmudada a previdência pública em assistência social, através do reformismo atual, acaba-se colocando “a classe trabalhadora, em nome da qual demagogicamente se realiza essa ‘reforma’, nas mãos dos neoliberais”, abrindo-se “definitivamente as portas do mercado à previdência privada”, sendo o ocaso da previdência pública. (Idem, ibidem, p. 115-127).


CONCLUSÃO


Como visto acima, o direito moderno submeteu-se à racionalidade científica, tornando-se ‘exclusivamente’ estatal, passando o positivismo a dominar as relações do pensamento jurídico, ocultando que o jus é, essencialmente, produto de ações humanas e instrumento de realização e reprodução ideológicas, devendo, por conseguinte, ser compreendido como fenômeno social, cultural e histórico. Viu-se, também, que o colapso do projeto epistemológico da modernidade abre novas possibilidades ao “pós-modernismo de oposição”. E que, dentre as formas de concretizar o potencial emancipatório do direito, com vista à construção de uma nova organização societal, destacam-se a separação entre Estado e direito, reconhecendo a este seu efetivo potencial de emancipação humana, a “desalienação do jurista e de seu saber” e a cabível aproximação entre direito e revolução, esta concebida enquanto processo fundamental que vise estruturar a transição de paradigma.


Num segundo momento, buscou-se uma introdução à análise crítica da reforma ‘constitucional’ previdenciária aplicada no Brasil, a partir da desmistificação dos principais argumentos ideológicos da reforma atual (a burocracia da impessoalidade e o mito do desenvolvimento econômico) e da observação crítica de três vertentes da crise política que produz o contexto idealizado para a reforma (A crise do Estado social; a crise constituinte e a crise da seguridade social). A partir do estudo destas três “crises”, podemos sugerir, como alternativas a cada uma delas rumo a um novo paradigma, três propostas iniciais a serem dissecadas noutra oportunidade: uma maior interação da sociedade com os instrumentos do poder, ou seja, a implementação de uma concreta ‘cidadania participativa’; a aplicação de uma nova hermenêutica constitucional, fundada de modo axiológico nos princípios gerais de direito e outros valores relevantes socialmente; e, por fim, a partir dessas duas propostas, a implementação de uma nova seguridade social, orientada pela necessidade constante de acolhimento de novas regras sociais não emanadas exclusivamente do Estado, com vistas a um processo revolucionário de emancipação do homem pelo homem através do direito, por meio da universalização da dignidade humana.


 


Referências bibliográficas

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Informações Sobre o Autor

Paulo Giovanni de Siqueira Brandão

Advogado na Região Tocantina (Sul do Maranhão e adjacências), Professor Universitário, Especializando em Jurisdição e Processo Civil pela ESMARN/UnP