Uma Investigação Acerca do Ativismo Judicial: O Papel do Supremo Tribunal Federal em Meio ao Estado Democrático de Direito no Brasil

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Autores:
1. Anna Helena Muricy Bandeira Ramos
2. José Gustavo Macedo de Souza Alencar
3. Pedro de Oliveira Alves

Resumo

Neste artigo será explorada uma análise crítica diante das origens do fenômeno do ativismo judicial e como tal atuação proativa e expansiva por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) se concretiza no Brasil hodierno. A partir do desenvolvimento de um panorama acerca da organização dos três poderes que compõem o Estado Democrático de Direito brasileiro, serão delineadas as funções típicas e atípicas que competem ao Poder Judiciário, em consonância com as noções que compreendem a intensa judicialização observada no país. Em seguimento, será explicada a perspectiva da dogmática pós-positivista aplicada à contemporaneidade e o panorama histórico que condicionou ao que hoje se chama de Neoconstitucionalismo. Posteriormente, também será demonstrada, doutrinariamente, uma noção mais crítica acerca do ativismo judicial, as relações com a intensa judicialização e como essa postura ativista por parte do Judiciário se apresenta em meio ao cenário neoconstitucionalista. Por fim, serão analisados alguns dos importantes posicionamentos jurisprudenciais ativistas por parte do STF, de forma a compreender se, de fato, há, na contemporaneidade brasileira, um desrespeito ao Princípio da Separação dos Poderes e à democracia do país ou se há, na verdade, um consolidação de uma mecanismo jurídico em favor da proteção efetiva dos direitos fundamentais resguardados constitucionalmente.

Palavras-chave: Ativismo Judicial. Supremo Tribunal Federal. Estado Democrático de
Direito. Poder Judiciário no Brasil. Neoconstitucionalismo.

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1. Acadêmica de Direito na Universidade Estadual da Bahia (UNEB). E-mail:
[email protected]
2. Acadêmico de Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-
mail:[email protected]
3. Professor orientador. Doutor e Mestre em Direito pela UFPE. E-mail: [email protected]

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo discutir acerca do desenvolvimento do ativismo judicial no contexto brasileiro, uma vez que, nos dias atuais, é possível enxergar, de certa forma, uma interferência demasiada do Poder Judiciário nos demais poderes, de modo que tal intervenção possui um embasamento político-histórico, que vem desde a Revolução Francesa até o que chamamos de Neoconstitucionalismo.

Nesse sentido, torna-se válido compreender a evolução da doutrina constitucional ao longo do tempo, visto que essas mudanças tiveram um papel importante na definição da atividade jurisdicional atualmente. Com efeito, uma vez que, segundo Sandoval Góes (2018, p. 138), a criação do direito por parte dos juízes e dos tribunais é o que se caracteriza como ativismo judicial, é preciso entender quais os fatores que concederam ao Poder Judiciário a autoridade para legislar de uma forma que ultrapassa o que lhes era originalmente permitido e proposto na Separação dos Três Poderes .

Diante disso, é possível enxergar no contexto brasileiro, ainda mais após a redemocratização, que se estabelece no Supremo Tribunal Federal (STF) um enorme poder discricionário, a partir da criação de uma Constituição Federal, a qual possui diversos princípios a serem seguidos e aplicados por meio da lei, de maneira que vai trazer consigo um novo modelo de interpretação constitucional, que introduz elementos hermenêuticos que procuram reaproximar o direito com os aspectos éticos.

Com efeito, a análise acerca da evolução e do conceito de Neoconstitucionalismo, bem como a reflexão acerca do Princípio da Separação dos Três Poderes e suas modificações hodiernas, serão elementos essenciais para compreender o embasamento jurídico do ativismo judicial, de maneira que irá possibilitar entender o papel dos juízes em meio à democracia contemporânea – em especial do Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, nota-se que é
necessário entender qual o papel do juiz, atualmente: se o juiz é mero intérprete-aplicador do Direito ou se participa, lato sensu, da atividade legislativa, da criação do Direito.
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4. GÓES, Guilherme Sandoval. Direito Constitucional Avançado, 2018.

1. A Organização do Estado Democrático de Direito no Brasil, a Competência do Poder Judiciário e o Fenômeno da Judicialização

A priori, é possível perceber que o Estado brasileiro tem sua organização sustentada no dogma da Separação dos Três Poderes, o que fica bem evidente ao analisar o art. 60, §4º, da Constituição Federal de 1988, em que são listadas as cláusulas pétreas:

“§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais”

Nesse sentido, a divisão do Estado nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário traz a ideia de equilíbrio na organização do poder, de modo que o poder seria o limite do próprio poder. Contudo, vale ressaltar que a tese inicial de Charles-Louis de Secondat, conhecido como Montesquieu, não pode ser confundida com o entendimento de que os poderes iriam possuir sua esfera própria, sem qualquer interferência aos demais. O objetivo de Montesquieu não era, de fato, afastar os três poderes entre si, sob o pretexto de se isolarem nas suas próprias esferas de poder, mas sim de combiná-los de forma harmônica (SOUZA JÚNIOR, 1980).

Isso se revela no próprio Sistema de Freios e Contrapesos, presente em sua obra “O Espírito das Leis”, em que os próprios poderes poderiam criar medidas para assegurar que eles não rompam os limites de suas competências, à exemplo do poder de veto do Executivo no que diz respeito ao processo legislativo. Todavia, o que se vê na prática, muitas vezes, é uma distorção do pressuposto inicial do que seria a função do Poder Judiciário frente aos demais, visto que, apesar do conceito clássico de divisão dos poderes – o qual demonstra que o Judiciário seria restrito à função de decidir os conflitos com base no direito dogmático e pragmático, o colocando em uma posição passiva -, o que se revela, na prática, é que o juiz, nos dias atuais, se distancia da função de mera “boca da lei”, sob o pretexto da busca da efetivação dos direitos fundamentais . Assim, uma enorme parte dessa postura judicial no que diz respeito às limitações de suas funções e às suas áreas de atuação advém da doutrina do Neoconstitucionalismo e de uma nova forma de interpretação pós-positivista, como será visto no item a seguir.

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CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad. de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1993, p. 13.
OLIVEIRA, Flávio Luís; BRAGIOLA, Ricardo Augusto. Crise dos Poderes da República no Estado Democrático de Direito: Um novo Leviatã. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, v. 18, n. 7, p. 114 – 133, 2017.

Com isso, cabe ressaltar que a função do Poder Judiciário, apesar de existirem funções atípicas previstas constitucionalmente – de natureza executiva e legislativa -, se tornou bem destoante, até certo ponto, do que fora proposto originalmente por Montesquieu, uma vez que a função jurisdicional originária, que teria como cerne dizer o direito do caso concreto e dirimir os conflitos que lhes são levados, é algo bem limitado que não condiz, em alguns momentos, com as recentes interferências incisivas do Supremo Tribunal Federal.

A partir desse entendimento, é possível compreender que essa manifestação do Poder Judiciário em questões de grande relevância nacional, nas diferentes áreas – como na saúde ou na política -, em decorrência do recrudescimento das demandas, é o que se entende como o fenômeno da Judicialização. Ante esse viés, o Ministro Luís Roberto Barroso traz uma excelente definição:

“Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro”.

Dessa maneira, Barroso foi extremamente preciso em atribuir três grandes causas da Judicialização, sendo elas:

1) A redemocratização do país, com a promulgação da Constituição de 1988, de modo que esse novo contexto democrático reviveu o conceito de cidadania e de direitos subjetivos, de maneira que a população começou a buscar no Judiciário a proteção jurídica de seus interesses;
2) A constitucionalização abrangente, que está bastante relacionada com a tendência neoconstitucional de abranger cada vez mais as matérias dentro das Constituições e o caráter analítico da Carta Magna brasileira, de modo que, ao disciplinar as diversas questões em norma constitucional, transforma a Política em Direito;
3) O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, visto que, ao possuir o caráter único de mesclar os sistemas americano e europeu de controle de constitucionalidade, consegue conciliar o controle incidental e difuso americano com o modelo europeu de controle por ação direta, de maneira que, aliado ao direito de propositura amplo, se torna recorrente a apreciação do STF em questões políticas ou de grande relevância moral, como será visto no tópico 4 do presente artigo.

Com efeito, resta procurar quais os fundamentos que contribuem para que tanto a judicialização, quanto o ativismo judicial, tenham sua incidência justificada com base em preceitos constitucionais, de modo que se vê necessário analisar a evolução da doutrina constitucional, tendo seu início com o constitucionalismo liberal até o que chamamos, na contemporaneidade, de Neoconstitucionalismo.

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BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. (Syn) thesis, v. 5, n. 1, p. 23-32, 2012.

2. Neoconstitucionalismo e a Dogmática Pós-positivista

A priori, é preciso entender a evolução da teoria constitucional a partir dos diferentes contextos históricos que existiram no decorrer dos anos. Nesse sentido, é possível compreender que as transformações políticas, sociais e dogmáticas que ocorrem na sociedade refletem no paradigma hermenêutico da Constituição. À exemplo disso, tem-se o Constitucionalismo Liberal, o qual teve seu ímpeto em meio à Revolução Francesa e trouxe consigo o primeiro entendimento do que viria a ser considerado como Primeira Geração de Direitos. Dessa forma, o modelo constitucional liberal teve como cerne os direitos referentes à Liberdade, de modo que se baseia em direitos negativos de defesa do Estado perante o indivíduo, a partir de um Constitucionalismo garantista, com um modelo de estabilidade mínima.

Destarte, a mudança do Estado Liberal para o Estado de Bem Estar Social trouxe consigo um rol extensivo de direitos à Constituição – como os sociais, econômicos, culturais e trabalhistas, intitulados de Direitos da Segunda Geração. Com efeito, a ampliação do conceito de direito a partir do constitucionalismo social dá início a uma concepção de prestações estatais positivas, a fim de garantir a igualdade entre os indivíduos.

Por fim, em meio ao segundo período pós-guerra, como ensina Luís Roberto Barroso (2007, p. 2), “que o novo direito constitucional foi o constitucionalismo do segundo pós-guerra. Após esse período ficou demonstrado o fracasso do Positivismo, cuja principal característica era o caráter avalorativo na interpretação constitucional, o que permitiu o surgimento de concepções jurídicas despreocupadas com os direitos humanos” .

Nesse sentido, o grande desafio após a crise do Positivismo era instaurar uma teoria constitucional que não cometesse os mesmos erros que permitiram o Estado de Direito instaurar ditaduras ao redor do mundo, de modo que era preciso fazer a passagem da dogmática anterior para o que vai ser chamado de Neoconstitucionalismo ou Pós Positivismo. Assim, em contraposição ao Positivismo, a principal finalidade do Neoconstitucionalismo vai ser a busca da máxima efetivação dos direitos fundamentais, de maneira que novos elementos hermenêuticos sejam incorporados à interpretação hodierna, com o fim de reaproximar o direito da ética. Nesse sentido, Guilherme Sandoval Góes afirma:

“Eis aqui a pedra angular do neoconstitucionalismo: o grande esforço exegético de dar plena efetividade aos princípios constitucionais, sem dependência da atividade legiferante do Estado. Com efeito, busca-se, progressivamente, o reconhecimento científico de novas fórmulas de cunho pós-positivista que sejam capazes de harmonizar o texto da lei e o sentimento constitucional de justiça.”

Desse modo, esse novo modelo de interpretação constitucional vai possuir, na verdade, um caráter valorativo, com o fim de assegurar aos indivíduos o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, novo eixo do Estado Democrático de Direito. Logo, essa nova perspectiva da interpretação axiológica, que é baseada em uma visão ampla do direito, desenvolve que a essência dogmática vai ser atribuição de plena efetividade ou eficácia social para toda e qualquer norma constitucional. Diante disso, a eficácia da norma não vai se restringir somente ao que é pré estabelecido in abstracto, visto que vai ser produto de um processo interpretativo que vai levar em conta os elementos do caso concreto, denominados por Sandoval Góes, como fatos portadores de juridicidade, definidos como:

“Por fatos portadores de juridicidade podemos compreender todos os elementos externos do texto que são juridicamente relevantes na formulação da norma-decisão (solução do caso concreto). Em outras palavras, os fatos portadores de juridicidade são todos os aspectos da realidade factual que incidem sobre a norma in abstracto, viabilizando o discurso axiológico-indutivo do direito. Assim, é importante destacar que a solução do caso decidendo perpassa necessariamente pela correta seleção dos fatos portadores de juridicidade.”

Com isso, a convicção jurídica do magistrado não será apenas baseada no que encontra na letra da lei, mas também atrelado a esses fatos portadores de juridicidade, que estão além da legislação. De fato, a atividade jurisdicional vai partir de uma operação exergética, fruto de um exercício criador do magistrado, mesmo que dentro do limite estabelecido constitucionalmente. Dessa maneira, a atividade do juiz não se restringe mais a simples subsunção silogística entre o fato concreto e o que está presente na norma, mas sim em um ato de valoração e reflexão axiológica acerca do sentimento constitucional de justiça.

Nessa perspectiva, essa nova forma de interpretação constitucional e atuação judicial presente na contemporaneidade, fruto de um processo de procura da máxima efetivação dos direitos fundamentais e da dignidade humana, traz ao Poder Judiciário uma função que, muitas vezes, destoa bastante do que fora proposto inicialmente na Separação dos Três Poderes, proposta por Montesquieu. Com isso, é necessário entender a implicação dessa interpretação axiológica em meio ao contexto de ativismo judicial.

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BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 9, março/abril/maio, 2007. Disponível na Internet: Acesso em 10/10/2024.
GÓES, Guilherme Sandoval. Direito Constitucional Avançado, 2018, p. 146.
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3. O Ativismo Judicial

Diante do recrudescimento expressivo do fenômeno da judicialização em meio a uma conjuntura neoconstitucionalista no Brasil hodierno, é evidente o quanto a atuação do Poder Judiciário tem sido projetada em sociedade, de forma mais expansiva e proativa ante a resolução dos inúmeros litígios que envolvem os direitos de cunho social, econômico e político resguardados pela atual Constituição Cidadã – principalmente, quando se nota uma postura omissa por parte do âmbito Legislativo e Executivo na atuação de suas funções.

Sob uma perspectiva histórica, a noção mais primitiva do termo “Ativismo Judicial” tem raízes na Suprema Corte Americana e foi introduzida, pela primeira vez, pelo jornalista e historiador Arthur M. Schlesinger Jr, em 1947, por meio do artigo “The Supreme Court: 1947” – veiculado na Revista “Fortune”. A matéria principal do referido artigo, ao demarcar os magistrados da Suprema Corte Americana em “juízes ativistas” e “juízes de Auto Contenção”, atribui a terminologia do termo “Ativismo Judicial” à postura jurisprudencial dotada de caráter progressista em prol da proteção dos direitos fundamentais – panorama jurídico que transpassa a perspectiva conservadora de um juiz que atua apenas como “boca da lei”.

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GÓES, Guilherme Sandoval. Neoconstitucionalismo e dogmática pós-positivista. In: A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Organizador Luís Roberto Barroso. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 118-123

Com a intensa veiculação da matéria escrita por Schlesinger, o entendimento acerca da perspectiva de um ativismo judicial transpassou as noções da filosofia jurídica e política, disseminou-se e até a contemporaneidade, vem sendo empregado na doutrina jurídica de diversos países democráticos pelo mundo, dentre eles, o Brasil – principalmente, em meio ao cenário da Redemocratização do país, em que se destaca a promulgação da Constituição Federal de 1988. A partir dessa introdução na conjuntura do Poder Judiciário nacional, observa-se que tal expressão se tornou um clichê no âmbito constitucional, mas que ainda é dotada de certas divergências sobre se seria, de fato, um fenômeno positivo ou negativo no que se refere à função jurisdicional de resguardar os valores constitucionais.

Nesse sentido, o Ministro Luís Roberto Barroso, exímio defensor do caráter ativista atribuído ao Poder Judiciário como mecanismo que busca suprir a morosidade da atuação do Poder Legislativo e Executivo, caracteriza o fenômeno da seguinte forma:

A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios. […] o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. […] o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades construindo regras específicas da conduta de enunciados vagos […].

De fato, sob a ótica da postura defendida por Barroso, a imprecisão da Constituição Federal vigente na contemporaneidade – tida como analítica, dada a extensa gama de direitos fundamentais que busca resguardar – permite que inúmeras interpretações sejam extraídas da própria letra da lei. Nessa concepção, o Supremo Tribunal Federal (STF), como guardião da Constituição – ante ao vácuo nocivo que, muitas vezes, o Poder Legislativo e Executivo apresenta na conjuntura hodierna – atua de forma a extrapolar a sua função típica como agente responsável por julgar os conflitos a partir da aplicação direta da lei no caso concreto e designa uma inovadora perspectiva hermenêutica ao proferir decisões para que se efetive, veementemente, uma postura decisiva em favor da proteção dos direitos abarcados na Constituição Federal (como o direito à saúde, à educação e à vida, por exemplo) e do aprimoramento do Estado Democrático de Direito. Nesse âmbito, Luís Roberto Barroso adverte que:

No caso brasileiro, esse movimento de ampliação do Poder Judiciário, particularmente do Supremo Tribunal Federal, tem sido contemporâneo da retratação do Legislativo, que passa por uma crise de funcionalidade e representatividade.

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BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 89
BARROSO, Luís Roberto, Op. Cit, p. 91.

Nesse caso, ainda que sob a denominação crítica como um “governo de juízes”, a atuação do STF, em meio à atual crise da divisão dos poderes na conjuntura brasileira, tem se demonstrado, por muitas vezes, como essencial para a garantia da governabilidade do país que passa por uma evidente retração legislativa (que não age de forma efetiva e célere em prol da elaboração das leis, em grande parte dos casos) e executiva (diante, muitas vezes, da não-concretização de políticas públicas efetivas para com as necessidades sociais).

No entender do Ministro Luiz Fux, não se trata de um ativismo judicial, uma intromissão descabida da Corte Suprema, mas uma atuação natural diante da impossibilidade do STF escolher ou não agir em defesa do ordenamento jurídico brasileiro: há uma obrigação constitucional segundo o qual o Poder Judiciário precisa dar respostas à sociedade quando são protocoladas ações propostas pelos legítimos atores sociais com vistas a dirimir os conflitos e garantir direitos.

Todavia, é cabível salientar, assim como é afirmado por Mauro Cappelletti , célebre figura do âmbito jurídico, o quanto essa vertente da produção do direito pelos juízes, dotada de “criatividade da função jurisdicional”, suscita, a certo ponto, questionamentos problemáticos acerca dos limites e do grau de criatividade e aceitabilidade dessa liberdade judicial dada aos magistrados hodiernos nos tribunais.

Indubitavelmente, a principal vertente crítica que é desenvolvida no que diz respeito ao fenômeno do ativismo judicial, refere-se ao fato do quanto essa nova atuação de um “juiz legislador” representaria, em certa medida, uma potencial ameaça ao Princípio da Separação dos Poderes – resguardado constitucionalmente no artigo 2º e no artigo 60, § 4º, III da CF/88 – e à própria segurança jurídica do Estado Democrático de Direito do país.

Para Elival da Silva Ramos – Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP – o conceito de ativismo judicial se apresentaria, diferentemente dos defensores dessa postura ativista por parte do Supremo Tribunal Federal, dotado de ressalvas:

[…] Se, por meio de exercício ativista, se distorce, de algum modo, o sentido do dispositivo constitucional aplicado (por interpretação descolada dos limites textuais, por atribuição de efeitos com ele incompatíveis ou que devessem ser sopesados por outro poder etc.), está o órgão judiciário deformando a obra do próprio Poder Constituinte originário e perpetrando autêntica mutação inconstitucional”, prática essa cuja gravidade fala por si só. Se o caso envolve o cerceamento da atividade de outro Poder, fundada na discricionariedade decorrente de norma constitucional de princípio ou veiculadora de conceito indeterminado de cunho valorativo, a par da interferência na função constituinte, haverá a interferência indevida na função correspondente à atividade cerceada (administrativa, legislativa, chefia de Estado etc.) […] .

Consoante com tal descrição, o Poder Judiciário ativista adquire uma conotação negativa, uma vez que representaria um fator ensejador da “Supremocracia”, ao invalidar, a certo ponto, as escolhas políticas e as competências dos outros Poderes.

Diante de tais divergências, é coerente que se averigue, a partir da análise casuística de importantes posicionamentos por parte do Supremo Tribunal Federal, se, de fato, há, na contemporaneidade brasileira, um desrespeito ao Sistema de Freios e Contrapesos e à democracia do país ou se há, na verdade, um consolidação de uma mecanismo jurídico em que se busca a proteção efetiva dos direitos fundamentais resguardados constitucionalmente para com a sociedade.

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CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad. de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1993, p. 20.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos – São Paulo: Saraiva, 2010, p.141.

4. Desenvolvimento

4.1. Uma Investigação Acerca da Trajetória do Ativismo Judicial no Brasil e os Recentes Posicionamentos do Supremo Tribunal Federal

4.1.1. O Reconhecimento da União Estável Homoafetiva

O Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011, em decorrência do ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277, declarou, por unanimidade, como procedente o direito ao reconhecimento da união estável homoafetiva, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, conferindo a interpretação e a aplicabilidade, sob a égide da Constituição Federal, do artigo 1.723 do Código Civil para tais casos.

A partir de tal decisão por parte da Corte Suprema do Brasil, as relações entre indivíduos do mesmo sexo puderam ser equiparadas às uniões estáveis entre homens e mulheres. O Ministro Relator Ayres Britto, ao proferir seu voto, pontuou que:

“[…] merecem guarida os pedidos formulados pelos requerentes de ambas as ações. Pedido de “interpretação conforme à Constituição” do dispositivo legal impugnado (art. 1.723 do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família. […]
Prossigo para ajuizar que esse primeiro trato normativo da matéria já antecipa que o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do art. 3º) é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” (este o explícito objetivo que se lê no inciso em foco). […]
Óbvio que, nessa altaneira posição de direito fundamental e bem de personalidade, a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De auto-estima no mais elevado ponto da consciência. Auto-estima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade, tal como positivamente normada desde a primeira declaração norte-americana de direitos humanos (Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 16 de junho de 1768) e até hoje perpassante das declarações constitucionais do gênero. […]
Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo − data vênia de opinião divergente – é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. […]
No mérito, julgo procedentes as duas ações em causa. Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.”

Em consonância com tais argumentos, ainda que muito criticada por parte dos defensores de uma mera interpretação pura da norma legal, a postura ativista por parte do STF ao decidir em favor da uniformidade com relação ao entendimento da lei se consolidou de forma determinante e transformadora em virtude do caráter proativo e expansivo de proteção do direito à igualdade e à não discriminação: adágios basilares intrínsecos ao cenário democrático o qual rege a atual Carta Magna.

Não há que se falar em uma manutenção da interpretação da lei, se essa não se mostra mais adequada à realidade social e não é capaz de suprir a garantia à dignidade dos diversos grupos que compõem a dinâmica social hodierna – como é o caso da população LGBTQIA+. O reconhecimento do direito dos indivíduos, independentemente do sexo e da sexualidade, em constituir sua organização familiar e expor os seus afetos é uma primazia básica que deve ser respeitada e reconhecida não só por parte da população, como também pelas formas legais em que o direito contemporâneo se concretiza – principalmente, quando se observa uma postura omissa por parte do Legislativo e uma conjuntura, que até a decisão do STF, era excludente para com as relações homoafetivas no que se refere aos direitos relativos à partilha de bens, proteção à herança ou à pensão no caso de morte, seguros, constituição de patrimônios, dentre outros direitos que antes se encontravam reservados apenas aos casais heterossexuais.

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[1]ADI nº 4277 e ADPF nº 132, Rel. Min. Ayres Britto, STF, julgado em 05/05/2011

Por meio do ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) propôs no Supremo Tribunal Federal, o julgamento acerca da legalização da prática do aborto nas circunstâncias em que há a gestação de feto anencéfalo. Por maioria de votos, a ADPF nº 54 foi julgada como procedente em 2012 e declarou a inconstitucionalidade da interpretação do Código Penal em que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo se caracterizaria como o crime de aborto – conduta tipificada entre nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal vigente.

Nesse caso, desde que comprovado, por laudo médico, que o feto não possui cérebro e que não há expectativa de sobrevida, o estabelecimento dessa causa especial de exclusão de ilicitude com relação ao crime de aborto – conforme previsto no artigo 128 do Código Penal – autorizaria a gestante em questão a optar, sem a necessidade de outorga do Estado, em realizar a interrupção da gravidez do feto anencéfalo, se assim desejasse.

A principal crítica acerca dessa postura ativista praticada pelo STF diz respeito ao fato da Suprema Corte nacional ter agido em um âmbito que seria, na verdade, de competência do Poder Legislativo, ao incorporar ao rol das hipóteses de aborto legal, o caso de gestação de feto anencéfalo. Dessa forma, os críticos com relação à procedência da ADPF em questão contestam a postura adotada pelo STF sob o argumento principal de que a decisão proferida pelo Poder Judiciário se apresentaria como uma evidente ameaça ao Princípio da Separação dos Poderes e a própria atuação do Legislativo do país.

Transpassando tais críticas e os diversos aspectos de cunho moral, religioso ou ético, é coerente que se analisem os argumentos trazidos pelo Ministro Relator Marco Aurélio Mello, ao proferir o seu voto na sessão:

“Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. Na expressão do Ministro Joaquim Barbosa, constante do voto que chegou a elaborar no Habeas Corpus nº 84.025/RJ, o feto anencéfalo, mesmo que biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, acrescento, principalmente de proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica.”

“Não se coaduna com o princípio da proporcionalidade proteger apenas um dos seres da relação, privilegiar aquele que, no caso da anencefalia, não tem sequer expectativa de vida extrauterina, aniquilando, em contrapartida, os direitos da mulher, impingindo-lhe sacrifício desarrazoado. A imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final será irremediavelmente a morte do feto vai de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional, mais precisamente à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à autodeterminação, à saúde, ao direito de privacidade, do reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. O ato de obrigar a mulher a manter a gestação, colocando-a em uma espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade, assemelha-se à tortura ou a um sacrifício que não pode ser pedido a qualquer pessoa ou dela exigido” .

Sob a égide de tais argumentos, é inegável o quanto o exercício expansivo e proativo por parte do Supremo Tribunal Federal se concretizou ante a sociedade como uma atuação de suma importância para o debate de um tema ainda tão criticado e pouco abordado politicamente e socialmente, como é caso do aborto. Em meio a um contexto legislativo e político omisso – que se encontra, muitas vezes, apregoado de ideias machistas que tolhem, em grande parte, a liberdade da mulher sobre o seu próprio corpo – no que refere à atuação em prol de tais discussões, é justificável que o STF, quando provocado, aja em favor da democracia brasileira e da defesa dos direitos fundamentais relativos à dignidade da pessoa humana, à liberdade do campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde para com a figura da mulher.

4.1.3. A Atuação do Supremo Tribunal Federal em Meio à Pandemia da Covid-19

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2020, declarou, oficialmente, a pandemia do vírus da Covid-19. Esse cenário de crise sanitária disseminou um estado de calamidade pública no âmbito da saúde em todo o mundo, inclusive no Brasil. Recomendados pela OMS, os mecanismos de controle do isolamento social, apesar de se apresentarem como uma forma essencial para conter o avanço do contágio da doença, consolidaram-se no território do país como um fator desafiador para a continuidade de diversas atividades cotidianas da população e exigiram, por parte do Poder Executivo e Legislativo, uma postura mais célere diante da urgência da situação – o que nem sempre se consolidou, na prática.

Nesse sentido, a figura ativista do Supremo Tribunal Federal se apresentou, em inúmeras decisões – dada a morosidade dos demais poderes -, como uma atuação proativa indispensável para a proteção do coletivo, quanto ao cumprimento das medidas restritivas da liberdade individual no contexto de crise sanitária causada pela pandemia. Diante de tais circunstâncias, é de suma relevância que sejam analisadas algumas das importantes decisões realizadas pelo STF para que se observe se, de fato, houve um desrespeito à competência legítima dos outros poderes e um atentado ao Estado Democrático de Direito ou se há, na verdade, a consolidação de uma postura protetora ao direito à saúde da população – primazia básica e intrínseca a qualquer cidadão brasileiro, resguardada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196.

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Em primeiro plano, o ajuizamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) nº 668 e 669, por parte da Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (CNTM) e do partido Rede Sustentabilidade, trouxe para o STF a discussão acerca da produção e da veiculação de campanhas realizadas pelo Governo Federal – sob o slogan “O Brasil não pode parar” – em que havia o claro incentivo à retomada das atividades sociais e um menosprezo evidente pelas medidas sanitárias de combate ao vírus da Covid-19, ao propagar desinformações acerca da potencialidade da doença.

Luís Roberto Barroso, ministro relator do referido processo, concedeu medida cautelar, dada a urgência da situação e a plausibilidade do pedido, de forma a vedar a propagação das referidas campanhas responsáveis por incentivar a população a ir de encontro às medidas de redução da circulação social. A decisão baseou-se no artigo 37, §1º, da Constituição Federal, segundo o qual há a consolidação da primazia básica das campanhas publicitárias dos órgãos públicos serem dotadas de caráter “informativo, educativo ou de orientação social”: aspectos que, segundo Barroso , não eram observados nas campanhas do “O Brasil não pode parar”, promovidas pelo Governo Federal. Em suas palavras:

“Em momento em que a Organização Mundial de Saúde, o Ministério da Saúde, as mais diversas entidades médicas se manifestam pela necessidade de distanciamento social, uma propaganda do Governo incita a população ao inverso. Trata-se, ademais, de uma campanha ‘desinformativa’: se o Poder Público chama os cidadãos da ‘Pátria Amada’ a voltar ao trabalho, a medida sinaliza que não há uma grave ameaça para a saúde da população e leva cada cidadão a tomar decisões firmadas em bases inverídicas acerca das suas reais condições de segurança e de saúde […].
O uso de recursos públicos para tais fins, claramente desassociados do interesse público consistente em salvar vidas, proteger a saúde e preservar a ordem e o funcionamento do sistema de saúde, traduz uma aplicação de recursos públicos que não observa os princípios da legalidade, da moralidade e da eficiência, além de deixar de alocar valores escassos para a medida que é a mais emergencial: salvar vidas[…]
A supressão das medidas de distanciamento social, como informa a ciência, não produzirá resultado favorável à proteção da vida e da saúde da população. Não se trata de questão ideológica. Trata-se de questão técnica. E o Supremo Tribunal Federal tem o dever constitucional de tutelar os direitos fundamentais à vida, à saúde e à informação de todos os brasileiros.’’

Adepto da postura proativa por parte do STF, a Suprema Corte do país decidiu em prol da aplicação dos princípios da prevenção e da precaução, ao resguardar, de forma proativa e favorável às orientações da sanitárias da OMS, uma proteção mais efetiva ao direito à saúde da população em meio ao lastimável contexto pandêmico.

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ADPF nº 54, Min. Rel. Marco Aurélio Mello, STF, 12 de abr. 2012.

Em agosto de 2020, outra importante decisão de caráter ativista proferida pelo STF diz respeito à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, ajuizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e seis partidos políticos (PSOL, Rede, PT, PDT, PSB e PCdoB), onde se buscava denunciar a omissão do Governo Federal no que se refere ao combate do Coronavírus entre as populações indígenas brasileiras. Em favor dos princípios da precaução e da prevenção e do respeito à proteção da saúde pública e da vida, o ministro Luís Roberto Barroso concedeu decisão liminar e determinou à União o desenvolvimento de um plano nacional a fim de garantir o enfrentamento da pandemia nas comunidades indígenas do país, conforme é possível observar a seguir na ementa relativa ao processo:

Ementa: DIREITOS FUNDAMENTAIS. POVOS INDÍGENAS. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. TUTELA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS FACE À PANDEMIA DA COVID-19. CAUTELARES PARCIALMENTE DEFERIDAS. 1. Ação que tem por objeto falhas e omissões do Poder Público no combate à pandemia da COVID-19 entre os Povos Indígenas, com alto risco de contágio e mesmo de extermínio de etnias. 2. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB possui legitimidade ativa para propor ação direta perante o Supremo Tribunal Federal e, bem assim, os partidos políticos que assinam a petição inicial. PREMISSAS DA DECISÃO 3. Os Povos Indígenas são especialmente vulneráveis a doenças infecto contagiosas, para as quais apresentam baixa imunidade e taxa de mortalidade superior à média nacional. Há indícios de expansão acelerada do contágio da COVID-19 entre seus membros e alegação de insuficiência das ações promovidas pela União para sua contenção. 4. Os Povos Indígenas têm o direito de participar da formulação e execução das ações de saúde que lhes são destinadas. Trata-se de direito assegurado pela Constituição de 1988 e pela Convenção 169 da OIT, que é norma interna no Brasil. 5. A análise aqui desenvolvida observou três diretrizes: (i) os princípios da precaução e da prevenção, no que respeita à proteção à vida e à saúde; (ii) a necessidade de diálogo institucional entre o Judiciário e o Poder Executivo, em matéria de políticas públicas decorrentes da Constituição; e (iii) a imprescindibilidade de diálogo intercultural, em toda questão que envolva os direitos de povos indígenas. PEDIDOS FORMULADOS 6. Na ação são formulados pedidos específicos em relação aos povos indígenas em isolamento ou de contato recente, bem como pedidos que se destinam aos povos indígenas em geral. Tais pretensões incluem a criação de barreiras sanitárias, a instalação de sala de situação, a retirada de invasores das terras indígenas, o acesso de todos os indígenas ao Subsistema Indígena de Saúde e a elaboração de plano para enfrentamento e monitoramento da COVID-19. 7. Todos os pedidos são relevantes e pertinentes. Infelizmente, nem todos podem ser integralmente acolhidos no âmbito precário de uma decisão cautelar e, mais que tudo, nem todos podem ser satisfeitos por simples ato de vontade, caneta e tinta. Exigem, ao revés, planejamento adequado e diálogo institucional entre os Poderes. DECISÃO CAUTELAR Quanto aos pedidos dos povos indígenas em isolamento e de contato recente 8. Determinação de criação de barreiras sanitárias, conforme plano a ser apresentado pela União, ouvidos os membros da Sala de Situação, no prazo de 10 dias, contados da ciência desta decisão. 9. Determinação de instalação da Sala de Situação, como previsto em norma vigente, para gestão de ações de combate à pandemia quanto aos povos indígenas em isolamento e de contato recente, com participação de representantes das comunidades indígenas, da Procuradoria Geral da República e da Defensoria Pública da União, observados os prazos e especificações detalhados na decisão. Quanto aos povos indígenas em geral 10. A retirada de invasores das terras indígenas é medida imperativa e imprescindível. Todavia, não se trata de questão nova e associada à pandemia da COVID-19. A remoção de dezenas de milhares de pessoas deve considerar: a) o risco de conflitos; e b) a necessidade de ingresso nas terras indígenas de forças policiais e militares, agravando o perigo de contaminação. Assim sendo, sem prejuízo do dever da União de equacionar o problema e desenvolver um plano de desintrusão, fica determinado, por ora, que seja incluído no Plano de Enfrentamento e Monitoramento da COVID-19 para os Povos Indígenas, referido adiante, medida emergencial de contenção e isolamento dos invasores em relação às comunidades indígenas ou providência alternativa apta a evitar o contato. 11. Determinação de que os serviços do Subsistema Indígena de Saúde sejam acessíveis a todos os indígenas aldeados, independentemente de suas reservas estarem ou não homologadas. Quanto aos não aldeados, por ora, a utilização do Subsistema de Saúde Indígena se dará somente na falta de disponibilidade do SUS geral. 12. Determinação de elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da COVID-19 para os Povos Indígenas Brasileiros, de comum acordo, pela União e pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, com a participação das comunidades indígenas, observados os prazos e condições especificados na decisão. 13. Cautelar parcialmente deferida.

De fato, na atual conjuntura brasileira, é nítido que não fossem as próprias falhas de atuação e as omissões do Governo Federal, mormente no tocante à questão do enfrentamento da pandemia da Covid-19 e da proteção do direito à saúde da população, não se veriam tantos momentos em que o Poder Judiciário precisou atuar: o amplo espectro de lacunas oriundas da falta de ação do Executivo (e também do Legislativo) impôs que o Supremo Tribunal Federal estabelecesse as bases jurídicas necessárias para a aplicação das políticas públicas direcionadas à busca da normalidade, dentro do possível, naquele contexto desolador de calamidade pública.

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[1] ADPFs nº 668 e 669, Min. Rel. Luís Roberto Barroso, STF.


Conclusão

Em virtude dos fatos supracitados, é nítido que a postura ativista por parte do Supremo Tribunal Federal em decorrência da inércia institucional do Poder Legislativo e Executivo, ainda suscita muitas controvérsias em meio ao contexto neoconstitucionalista da contemporaneidade, em que há o recrudescimento da judicialização das matérias que a Constituição Federal se propõe a regular.
Há quem considere o ativismo judicial como um fenômeno negativo, por ir além do que da simples subsunção silogística entre o fato concreto e o que está presente na lei ao propor um exercício de valoração e reflexão axiológica acerca do sentimento constitucional de justiça. Há também a vertente que considera o ativismo judicial como um fenômeno positivo que efetivamente age para resguardar os valores constitucionais em sociedade, quando o Executivo e o Legislativo, por vezes, não se mobilizam para tal finalidade.

É certo que os efeitos trazidos pela postura ativista por parte do STF não devem ser restringidos a algo dotado somente de prós ou somente de contras. Na verdade, é evidente que, não se pode haver omissão da Suprema Corte do Brasil quando o que se deve fazer é proteger a observância à Constituição Federal e às leis, fortalecendo a crenças nos ditames do Estado Democrático com um ordenamento jurídico em que o que deve prevalecer é o ideal republicano que visa a tutela dos direitos e o tratamento justo e igualitário a todos os cidadãos do país. Todavia, essa postura ativista deve ser observada com cautela para que não se torne um mecanismo de potencial abuso ao exercício da função jurisdicional por parte dos magistrados do país.

O fato é que, a Constituição Federal, ao seguir os moldes da tripartição dos poderes e elencar as competências de cada poder, busca garantir uma harmonia entre suas funções, de forma a evitar que haja demasias que possam vir a ameaçar o ideal democrático do país. Em face dessa ótica, é claro que deve haver uma observância apta quanto à atuação proativa por parte do STF, uma vez que não se pode – e nem se deve – aceitar como legítima qualquer alegação que, para expressar inconformismo político ou descontentamento eleitoral, descambe para as ameaças de ruptura, como têm sido, lamentavelmente, comuns ao cotidiano instável do Brasil de hoje. Todavia, em consonância com tal postura, é essencial que se busque entender os motivos pelos quais o Legislativo e o Executivo ainda agem de maneira tão omissa, em certos casos, de forma a tornar a sociedade cada vez mais desamparada com relação à tutela dos seus direitos constitucionalmente assegurados.

Em tempos claramente difíceis às atividades institucionais democráticas no Brasil, não há que se falar em silenciamento dos juízes frente ao comportamento ameno e moroso por parte do Poder Executivo e Legislativo, mas sim na defesa legítima do sistema de Justiça brasileiro como uma postura necessária, mesmo que excepcional, para dar a efetiva tutela dos direitos e garantias fundamentais aos diversos grupos que compõem a população brasileira.

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