Uma leitura do conceito de identidade, ante a configuração de sociedade civil na contemporaneidade

Resumo: O presente trabalho objetiva articular alguns aspectos da relação entre sociedade civil e democracia. Ao observar a configuração contemporânea da sociedade em “redes”, constata-se que a noção de “identidade coletiva” tende a assumir um papel essencial na compreensão da própria democracia brasileira e para a (re)afirmação e empoderamento da sociedade civil no quadro político brasileiro. Observa-se que a sociedade civil, contemporaneamente, tende a ser uma sociedade de redes organizacionais, inter-organizacionais e de movimentos e de formação de parcerias entre as esferas públicas privadas e estatais, constituindo novos espaços de governança com o crescimento da participação cidadã. Deste modo, um caminho possível para a prática da cidadania é a manifestação de conflitos e a mediação destes pela sociedade política, ou seja, o estabelecimento de uma nova identidade de sociedade civil.

Palavras-Chave: Sociedade Civil. Identidade Coletiva. Democracia. Estado. Redes.

Abstract: This paper pretends to articulate some aspects of the relation between civil society and democracy. Observing the contemporary configuration of society in “networks”, one figures that the notion of “collective identity” tends to assume an essential role in the understanding of Brazilian democracy itself and for the (re)affirming and empowerment of the civil society in the Brazilian political scene. One observes that civil society, contemporaneously, tends to be a society of organizational and interorganizational networks, and of movements and partnership formation between the public, private and state spheres, constituting new spaces of governance with the growth of citizen participation. Thus, a path for the practice of citizenship is the manifestation of conflicts and their mediation by political society, that is to say, the establishment of a new civil society identity.

Key-Words: Civil Society. Colective Identity. Democracy. State. Networks.

Sumário: Introdução – O conceito de Sociedade Civil. 1. Relações entre Sociedade Civil e Estado. 2. Globalização e a necessidade de novas estratégias. 3. Politização social e as redes: um novo olhar para a democracia. 4. Redes e aproximação entre pluralidades: a identidade em questão. Conclusão.

Introdução – O conceito de Sociedade Civil

A constituição da concepção de “sociedade civil” é perpassada por diversas vertentes teóricas, clássicas e contemporâneas. A partir da leitura que Bobbio constrói da historicidade do termo, amparado nos jusnaturalistas, Rousseau, Hegel, Marx e Gramsci e mesmo em uma leitura contemporânea, vê-se que o termo envolve discussões acerca da democracia, da existência ou não do Estado, dos distanciamentos ou aproximações entre a concepção de sociedade civil e sociedade política. (BOBBIO, 1994) Com efeito, o que se destaca é a pluralidade de acepções que temos em voga, variantes segundo o contexto e principalmente as demandas coletivas. A partir de tal premissa, buscaremos neste artigo discutir as relações entre a configuração da sociedade civil e a noção de democracia, perpassando pelo debate acerca das “redes” na contemporaneidade e, por fim, a essencialidade do conceito de “identidade” no bojo de tais discussões sociais e políticas.

É possível perceber, conforme assinala Scherer-Warren, que a concepção de sociedade civil comumente está atrelada à esfera da defesa da cidadania e de suas respectivas formas de organização em torno de interesses públicos e valores, nunca isenta de relações e conflitos de poder, disputas por hegemonias e representações sociais e políticas diversas. Em suas palavras:

“(…) a sociedade civil é a representação de vários níveis de como os interesses e os valores da cidadania se organizam em cada sociedade para encaminhamento de suas ações em prol de políticas sociais e públicas, protestos sociais, manifestações simbólicas e pressões políticas.” (SCHERER-WARREN, 2006: 110)

No artigo “Sociedade Civil e Democracia: reflexões sobre a realidade brasileira”, o Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática parte da percepção de democracia enquanto uma forma de sociedade, incluindo suas práticas sociais e culturais, não restrita aos aparatos tão somente institucionais. Para o Grupo, o termo “sociedade civil” “configura-se como um amplo e diverso conjunto de experimentações de organização política, que abriga diferentes objetivos e projetos.” (1998-1999: 14) Tais experimentações são pautadas pela preocupação coletiva com relação à democratização, tomada enquanto uma instituição política, mas também nas próprias relações sociais, também responsáveis pela construção da democracia.

No âmbito brasileiro e no processo de democratização social, a categoria “sociedade civil” passou a ser mais comumente utilizada e associada à política a partir dos anos 1970, em especial pelo surgimento e generalização de um conjunto de organizações e associações civis nascidas no contexto da ditadura militar. Aqui, trata-se de um quadro novo, pois houve a ampliação e pluralização dos grupos, associações e instituições, que buscavam então se posicionar de modo autônomo com relação ao Estado. “A questão da autonomia surge, portanto, como o primeiro elemento articulador de uma noção de sociedade civil.” (1998-1999: 16)

Para Gohn (1995: 201-202), a construção da cidadania no Brasil nunca foi linear, havendo momentos de perdas, retrocessos e até mesmo a supressão de direitos básicos, como nos períodos ditatoriais, entre 1930 e 1945 e 1964 e 1984. Porém, a década de 1980 apresentou a eclosão de diversas lutas sociais, fortalecidas pela conjuntura internacional, pela defesa dos direitos humanos e pelo anseio pela redemocratização. A cidadania tornou-se o motor de articulação dos movimentos sociais e as lutas sociais representaram a construção de um novo paradigma de ação social, fundamentado no anseio por uma sociedade diferente, este mesclado com as antigas demandas, agora politizadas.

Deste modo, portanto, o contexto de mobilização deste período incentivou o surgimento de novas reflexões acerca do sentido democrático no Brasil. Houve a recuperação da idéia de democracia como um valor universal e a própria redefinição do campo político, não mais restrito ao Estado ou aos partidos políticos, mas pensado como uma atividade a ser realizada coletivamente. Em suma, o desenvolvimento do termo sociedade civil está diretamente relacionado à ênfase nas iniciativas e manifestações vindas da base da sociedade: “pensar em sociedade civil significa pensar naquilo que potencialmente emerge da sociedade sem o controle do Estado.” (Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática, 1998-1999: 23)

Já os anos 1990, conforme pontua Gohn (1995:205), acompanharam a ascensão de novas lutas sociais, agora pluriclassistas, mais difusas do ponto de vista sociopolítico. O modelo referencial das lutas passou a enfatizar os valores da ética e da moral e, desse modo, a sociedade civil também passou a desacreditar a política, os políticos e mesmo as ações estatais em geral, processo para o qual muito contribuiu o aumento do desemprego e da violência em todos os espaços da vida social. Por outro lado, grupos crescentes da sociedade civil passaram a acreditar cada vez mais em sua capacidade de atuação independente, buscando-se construir mudanças pontuais, num processo que valorizava a nova cultura política emergente. Os homens passaram a se posicionar como atores sociais, respeitando o direito à diferença – a luta pela participação na sociedade, civil e política, aliou-se a um respeito pelas identidades e desejo de manutenção dos valores culturais. “A concepção de cidadania que resulta deste cenário busca corrigir diferenças instituídas, destacando o valor da igualdade. A solidariedade volta a ser amálgama mobilizador dos grupos sociais.” (GOHN, 1995: 209)

Portanto, os anos 90 reconfiguraram a sociedade civil, com a consolidação inicial do regime democrático, através de novas formas de atuação, o que significa afirmar que os movimentos sociais neste período não vivenciaram um momento de refluxo, mas de redefinição de suas práticas. Isso porque houve maior abertura de negociação entre a sociedade civil e o Estado, tendência à institucionalização dos movimentos e das ONGs, ampliação das temáticas abordadas pela sociedade civil, do número de atores envolvidos e das próprias demandas e posicionamentos, maiores possibilidades de atuação na esfera pública e articulações dos movimentos sociais entre si e com diferentes atores sociais em redes, o que configura um novo padrão de atuação dos movimentos sociais. Tal configuração complexifica possíveis definições da sociedade civil ou dos movimentos sociais. (Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática, 1998-1999)

A partir do esgotamento do modelo capitalista, Nogueira constata novos encaminhamentos em um cenário que antes era desenvolvimentista e de exaltação neoliberal. A partir de um impulso “revisionista”, então se defenderam investimentos sociais, educacionais e práticas que aumentassem a governabilidade econômica. Conforme J. Stiglitz (NOGUEIRA, 2004: 80), economista-chefe do Banco Mundial em 1998, os próprios objetivos do desenvolvimento deveriam ser revistos, para que se pudesse ultrapassar o mero crescimento e houvesse desenvolvimento sustentável, equitativo e democrático; o Estado teria papel essencial na produção de regulações apropriadas, na proteção e no bem-estar social.

Nesse viés, também se questiona a virtude da globalização, enquanto um processo derivado de fatos objetivos, indiferentes às decisões humanas; por outro lado, buscam-se caminhos para construir um processo de globalização justo e integrador. Os problemas gerados pelo capitalismo são aprofundados e desníveis de renda, escolaridade, saúde e nutrição se aliam a novos problemas, promovidos pela revolução tecnológica e pelo avanço industrial e neoliberal. Os investimentos estatais ainda não são significativos e a qualidade da gestão das políticas sociais não foi significativamente alterada, mesmo após a reabertura democrática nos países latino-americanos. No entanto, para Nogueira, a percepção de que o campo de batalha está delimitado e que se delineia um novo olhar para os problemas sociais é sem dúvida motivo de esperança.

Relações entre Sociedade Civil e Estado

Essa movimentação ampliou as discussões sobre o papel estatal, sua estrutura e as políticas sociais. Cogitou-se até mesmo a possibilidade de substituição do Estado pela sociedade civil, pensada enquanto “potência reformadora”, o que “ganhou densidade teórica e converteu-se num dos mais decisivos campos políticos e intelectuais da modernidade.” (NOGUEIRA, 2004: 86) Porém, a sociedade civil é capaz de gerar as condições necessárias para uma convivência dignificante, justa e igualitária? Assim, continua-se a buscar um Estado democratizado e articulado, capaz de dignificar a vida coletiva. “Um Estado, em suma, da e para a sociedade civil.” (NOGUEIRA, 2004: 87) E o que fazer com o Estado existente? Como reformá-lo? Como relacioná-lo à sociedade civil?

Diversos autores questionam uma suposta virtuosidade e homogeneidade que o termo “sociedade civil” possa sugerir. Ao contrário, o termo implica pluralidade e heterogeneidade, em um quadro que é complexo. Esse quadro assim se visualiza:

“(…) composto por um leque multifacetário de organizações que atuam desde a filantropia até a crítica radical do sistema, e desde as práticas políticas e culturais mais tradicionais e autoritárias até as que lutam para a construção de uma sociedade efetivamente democrática.” (Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática, 1998-1999: 33)

Conforme Silva, a adoção de uma perspectiva relacional na compreensão da categoria “sociedade civil” possibilita romper com a noção de uma “natureza virtuosa”, “preestabelecida” que comumente se aplica ao conceito. Uma possível releitura:

“(…) colocaria a necessidade de analisar, em cada configuração empírica específica, como a sociedade civil se constitui na e pela relação com outras dimensões da realidade social em estudo. Isto implicaria em rejeitar a concepção de que existiria uma sociedade civil cujas características já estariam definidas de antemão, mas sim diferentes configurações da sociedade civil, nas quais esta pode assumir características específicas e, até mesmo, contraditórias.” (SILVA, 2006: 160)

A abrangência do projeto democrático sugere um dos seus principais problemas – como encontrar as condições de sua realização. Sua necessidade em criar um sistema de decisão coletivo e participativo é conflituosa com a vida moderna. Porém, para Nogueira (2004), o projeto democrático repõe-se a cada dia, cuja plena ativação depende, em síntese, de uma movimentação que seja capaz de reinventar a política como prática e como projeto, o que significa repor o fazer política como uma atividade que se ocupe de questõesfundamentais, ao lado de uma nova concepção de desenvolvimento. Trata-se de um projeto reformista do Estado:

“(…) concebe uma nova sociedade e um novo conjunto de articulações entre economia e política, Estado e sociedade civil, instituições, grupos e indivíduos, superando e dando consistência ética às operações que se dedicam a ajustar e a baratear os governos e os aparatos administrativos.” (NOGUEIRA, 2004: 101)

A questão da sociedade civil se coloca efetivamente no âmbito do projeto democrático. Mas, se por um lado se coloca a necessidade de politização e “libertação” da sociedade civil, por outro, com a descrença em relação à política, há a emergência de uma hipotética natureza virtuosa dessa sociedade, conforme já referido. Nogueira também defende que esta segunda via é despolitizada, pois não pensa a sociedade civil como um espaço de organização de subjetividades.

“Concebida sem laços orgânicos com o Estado, a sociedade civil não consegue aparecer como terreno no qual os grupos lutam pela hegemonia (…), pela possibilidade de construir uma nova forma de consenso e de consentimento.” (NOGUEIRA, 2004: 103)

Segundo Escorel e Moreira (2008), a participação social é base constitutiva da democracia, enquanto expressão da soberania popular – ambas profundamente interligadas. Porém, mesmo que a democracia confira a liberdade e o direito de participar, não significa que estabeleça os mecanismos e os processos para sua efetivação. Para uma democracia participativa há a necessidade de uma cidadania ativa. Atualmente, a democracia com participação direta dos indivíduos é escassa, manifestando-se no plebiscito e no referendo, p. exemplo. É mais comum a existência dos mecanismos representativos, quando o poder do cidadão é delegado a um representante escolhido por meio de voto.

Porém, inconsistências e conflitos à margem, para Escorel e Moreira (2008) a luta entre diferentes projetos e caminhos é que constroem a esfera política de uma sociedade. Nenhuma sociedade civil, conforme defende Nogueira (2004: 101) é imediatamente política. Somente através do conflito entre diversas demandas, é que a esfera política da sociedade pode efetivamente se vincular ao espaço público democrático e servir como base para as disputas hegemônicas.

Todavia, os traços constitutivos da globalização provocaram a falência dos fundamentos da política clássica e o aprofundamento das oposições entre a sociedade civil e o Estado. Isso faz com que aumente o risco de generalização da ideia de uma sociedade civil desprovida de formas de mediação – “que se representa a si mesmo o tempo todo e, portanto, nunca se representa de fato (…)” (NOGUEIRA, 2004: 107), através da qual é improvável a afirmação de novas hegemonias. Além disso, aumentam as possibilidades de um Estado onipotentemente concentrado em seus poderes executivos, vazio de política e racionalmente gerencial.

O aprofundamento e a inovação do cenário político nacional tiveram como potencialidades o orçamento participativo e os conselhos gestores, os quais representam a participação dos sujeitos em instancias colegiadas com caráter deliberativo sobre determinados setores das políticas sociais. Escorel e Moreira (2008: 1002) apontam que os conselhos conjugam características da democracia representativa e da democracia direta, como o controle dos atos do conselheiro, diretamente ou por meio das entidades, assim como a revogabilidade do mandato. Em resumo, os conselhos têm latente potencial para se afirmarem como instancias que impulsionam a participação da sociedade organizada no âmbito das instituições e nas políticas públicas, contribuindo para a reforma ou transformação da estrutura política e institucionalizada do país.

Globalização e a necessidade de novas estratégias

Diante desse processo de crise, por um lado, e de construção de novas estratégias democráticas, o que se pode aduzir é que o papel estatal não poderá ser o mesmo de antes, mas adequado à constituição da sociedade civil e ao próprio processo de globalização e ocidentalização. Conforme Nogueira, a sociedade civil não é a extensão mecânica da cidadania política ou da vida democrática – trata-se de um território de interesses contrapostos, até mesmo permeada por valores egoístas. Ela precisa ser politizada, assim como o próprio Estado, para que seja possível o enfrentamento de um quadro complexo e fragmentado para a construção de uma nova democracia.

Historicamente, a representação nem sempre significou democracia, sobretudo nas câmaras de nobres constituídos pelos reis europeus ou nomeadas por governantes.

“A representação passou por uma evolução democrática que envolveu, além da ampliação do direito de voto para camadas sociais e para as mulheres, o estabelecimento da duração limitada do mandato, uma das características fundamentais dos parlamentos contemporâneos.” (ESCOREL & MOREIRA, 2008: 988)

Nas últimas décadas, muito embora ainda vejamos resquícios da cultura patrimonialista brasileira, apresentaram-se novas formas de atuação e inserção popular, como é o caso do surgimento dos Conselhos, tomado como um órgão de mediação entre a sociedade e o poder instituído, como já visto. Gohn (1995) observa que é o jogo político de cada comunidade que explica a existência e o funcionamento de cada conselho, pois sua operação é feita por meio das plenárias populares, dos fóruns e audiências públicas, exigindo especialmente regularidade de atuação e espaços consignados para seu funcionamento, fatores não tão acessíveis. A autora observa que tais conselhos representam sem dúvida novas formas de integração social, os quais possivelmente podem colaborar para transformar o agir das ações individuais e coletivas.

Frente a tal heterogeneidade em relação às diferentes estratégias e configurações da sociedade civil, é importante pontuar que o papel da mesma está intimamente relacionado com o processo de democratização, tanto junto ao Estado, quanto junto à própria sociedade, que precisa ser sensibilizada, muitas vezes, acerca da importância da participação e da atuação política. Ao discutir alguns aspectos da possível constituição da esfera pública no país, Raichelis também acentua a necessidade de reformas constitucionais e do avanço democrático: “exigem-se transformações radicais no padrão de relacionamento entre o Estado e a sociedade civil, o que implica a construção de esferas públicas efetivamente democráticas.” (1998: 74) Esta é uma questão fundamental a ser observada no que diz respeito às redes.

Politização social e as redes: um novo olhar para a democracia

Na perspectiva de mudança do nosso olhar para a democracia e a politização social, faz-se pertinente compreendermos as configurações das chamadas “redes de movimentos sociais”, presentes na América Latina e no mundo todo. No artigo “Redes sociales y de movimientos en la sociedad de la información”, Scherer-Warren (2005) se propõe a colaborar com o debate contemporâneo sobre a utilização da categoria “redes sociais” para o estudo da ação coletiva, especialmente a atuação dos movimentos sociais, no contexto da chamada sociedade da informação. A autora observa que uma característica distintiva para analisar a constituição destas redes na contemporaneidade tem sido a definição da unidade de análise, considerando os atores sociais envolvidos, investigados em redes relacionais ou como redes formadoras de ações coletivas e, neste caso, a vontade política se torna um fator importante na análise.

Para melhor compreender o campo político é preciso distinguir entre “coletivos em rede” e “redes de movimentos sociais”, conforme destaca a autora. A primeira categoria se refere às conexões de diferentes atores e organizações que desejam difundir informações, procurar meios solidários de apoio ou estabelecer estratégias de ação conjunta. No que se refere à segunda categoria, são redes sociais complexas que transcendem organizações empiricamente definidas; conectam simbólica, solidária ou estrategicamente, sujeitos individuais e coletivos, cujas identidades se constituem em um processo dialógico. Os coletivos em rede podem ser formas solidárias ou estratégicas de instrumentalização das redes de movimentos, virtuais ou presenciais. Scherer-Warren (2005) destaca que não definem por si um movimento social, mas fazem parte de movimentos sociais na sociedade da informação.

“En otras palabras, para comprender los movimientos sociales contemporâneos hay que tratar de entender cómo los individuos se vuelven sujetos de sus destinos personales, y cómo de sujetos se transforman en actores políticos por medio de conexiones en redes.” (SCHERER-WARREN, 2005: 79)

Entretanto, conforme Dupas (2005:69), no que se refere à contextualização social em nosso século, o Estado nas sociedades pós-modernas segue um caminho de fragmentação, enquanto as novas tecnologias estão presentes em todos os lugares e compõe as cenas da vida cotidiana. As redes globais constituem uma nova morfologia social na era da informação. Deve-se questionar se há alguma possibilidade de estas, com a importância estratégica operacional que possuem, venham a favorecer a inclusão social de segmentos da sociedade cada vez mais marginalizados pelo processo de globalização da produção, ou se serão rapidamente transformadas em uma forma a mais de apartheid – um fosso digital.

Scherer-Warren (2005: 80) defende que os movimentos sociais podem se constituir em torno de legados históricos ou de raízes culturais, sendo que através de seus vários níveis de manifestação, as redes destes movimentos podem se fundamentar em diferentes temporalidades. Deste modo, mais que isso, podem ser tomadas como portadoras de historicidade, negando a idéia de que existem padrões normativos naturais, imanentes, universais e livres de pressões temporais e espaciais.

Isso nos leva a refletir acerca da utilização das redes em nossa sociedade. Tomadas como portadoras de historicidade, com empoderamento político e voltadas à cidadania, as novas tecnologias podem ser entendidas como meios para a aproximação e a análise das várias temporalidades sociais por parte das redes políticas, não apenas obtendo uma comunicação informatizada em tempo real, mas também aproximando e permitindo a reflexão efetiva de diferentes temporalidades históricas, conforme defende a autora: a tradição, a modernidade e/ou o pós-modernismo.

Redes e aproximação entre pluralidades: a identidade em questão

Multiformes, as redes possibilitam, portanto, a aproximação de sujeitos diversificados e o diálogo da diversidade de valores e interesses e, deste modo, também se possibilitam aos movimentos sociais e defesa de um sujeito plural, não mais identitário único, como é o caso da Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB) e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM). Fóruns e redes transnacionais também têm sido tomados como espaços de articulação das lutas por direitos humanos em suas várias dimensões sociais, nos quais se observa o debate de temas transversais e a emergência de novas demandas, o que tem implicado o alargamento da concepção de direitos humanos e a ampliação das mobilizações. (SCHERER-WARREN, 2006: 112)

“(…) pressupõe a identificação de sujeitos coletivos em torno de valores, objetivos ou projetos em comum, os quais definem os atores ou situações sistêmicas antagônicas que devem ser combatidas e transformadas. Em outras palavras, o Movimento Social, em sentido mais amplo, se constitui em torno de uma identidade ou identificação, da definição de adversários ou opositores e de um projeto ou utopia, num contínuo processo em construção (…). A ideia de rede de movimento social é, portanto, um conceito de referencia que busca apreender o porvir ou o rumo das ações de movimento, transcendendo as experiências empíricas, concretas, datadas, localizadas dos sujeitos/atores coletivos.” (SCHERER-WARREN, 2006: 113)

Nesse caminhar, verifica-se que a noção de “identidade coletiva” tende a assumir um papel importante na atual configuração da sociedade civil e da democracia brasileira, seja devido à precarização do sistema estatal, seja por estratégia política. Pode-se observar que, se o conceito desempenha papel essencial para a (re)afirmação da sociedade civil no quadro político brasileiro, faz-se necessário nos atentarmos sobre o mesmo. Para pensarmos acerca da configuração das identidades coletivas e mesmo da sociedade muito colabora os estudos de Norbert Elias, em especial “Sociedade dos Indivíduos”.

Em “A Sociedade dos Indivíduos” o autor se propõe a analisar a relação entre indivíduo e sociedade, buscando compreender a separação tácita entre as duas categorias. “Que tipo de formação é essa, esta “sociedade” que compomos em conjunto, que não foi pretendida ou planejada por nenhum de nós, nem tampouco por todos nós juntos?” (ELIAS, 1994: 13). Continuamente, o autor questiona a formação da “sociedade” e sua modificação através das décadas, dado o não planejamento explicito da mesma por parte dos “indivíduos”. “Seremos também nós, como seres humanos individuais, não mais que um meio que vive e ama, luta e morre, em prol do todo social?” (ELIAS, 1994: 17)

Propõe Elias uma leitura que rompa a antítese cristalizada, compreendendo as noções de individuo e de sociedade não mais como opostas, mas construídas em associação. Nesse sentido, Santos pontua que é através da noção de identidade que é possível o rompimento com as dicotomias entre indivíduo e sociedade, passado e presente, bem como entre ciência e prática social, está tão associada à idéia de memória como esta última à primeira. Para a autora, o sentido de continuidade e permanência presente em cada indivíduo ou em um grupo social ao longo do tempo depende do que é lembrado, o que por sua vez depende da identidade de quem lembra. (SANTOS, 1998)

Mendes percebe a identidade como ponto de ligação entre os nossos discursos e práticas e os processos que produzem a subjetividade e nos constroem enquanto sujeitos, objetivando apresentar uma concepção identitária múltipla, diversificada e narrativamente construída. O autor valoriza o invisível, o não-dito e o papel do outro, observando que as identidades são socialmente distribuídas, em constante manutenção, contextualização e interação social. Construídas no e pelo discurso, são originadas na necessidade de controle do espaço social e físico e definidas como negociações de sentido. (MENDES, 2002)

É possível afirmar que as representações sociais da realidade estão sempre “vinculadas às experiências, à cultura assimilada no decorrer de sua vida, à linguagem que utiliza nas relações sociais, enfim à própria história pessoal e do grupo social com o qual convive e se relaciona”. (GREGIO, 2005) O conhecimento dessas representações oferece a compreensão de como os sujeitos sociais apreendem os acontecimentos da vida diária, as características do meio, as informações que circulam, as relações sociais e, deste modo, como constroem suas próprias práticas identitárias.

Isto posto, representação social pode ser entendida como um conteúdo mental estruturado, ou seja, cognitivo, avaliativo e simbólico, sobre um fenômeno social relevante (entenda-se realidade), que toma a forma de imagens ou metáforas, processo este conscientemente compartilhado com outros membros do grupo social. (FERNANDES, 2003:02) Ressalta-se que a reafirmação identitária faz-se através do diálogo com o outro e atua seguindo um padrão de atos verbais e não verbais, conforme interage com códigos construídos e/ou impostos neste processo. A identidade passa a ser essencial na perpetuação de memórias à medida que se procura reiterar certezas adquiridas, cristalizando-as. Por sua vez, o espaço de inscrição das práticas assume importância, visto que as práticas tradicionais são especificas e se definem espacialmente, com trocas desiguais de identidades e de culturas. (MENDES, 2002)

Para Norbert Elias, cada um tem um lugar socialmente designado, este moldado pela estrutura específica da rede humana em questão. O individuo recebe suas marcas pessoais a partir da história das relações firmadas socialmente, das quais necessita para que se firme efetivamente enquanto ser humano e se transforme em um ser mais complexo. Ademais, mesmo dentro de um mesmo grupo social, cada pessoa parte de uma posição única em sua rede de relações, atravessando uma história que lhe é particular, até a sua finitude – as histórias individuais nunca podem ser exatamente idênticas. (ELIAS, 1994:26-31)

“Numa palavra, cada pessoa que passa por outra, como estranhos aparentemente desvinculados na rua, está ligada a outras por laços invisíveis, sejam estes laços de trabalho e propriedade, sejam de instintos e afetos. Os tipos mais díspares de funções tornaram-na dependente de outrem e tornaram outros dependentes dela. Ela vive, e viveu desde pequena, numa rede de dependências que não lhe é possível modificar ou romper pelo simples giro de um anel mágico, mas somente até onde a própria estrutura dessas dependências o permita; vive num tecido de relações móveis que a essa altura já se precipitaram nela como seu caráter pessoal.” (ELIAS, 1994:22)

Ademais, em cada associação de seres humanos este contexto funcional do qual nos fala Elias tem uma estrutura muito específica, que confere a cada sociedade seu caráter particular. Ou seja, não se trata de uma criação a partir de indivíduos particulares:

“(…) cada indivíduo, mesmo o mais poderoso, (…) é representante de uma função que só é formada e mantida em relação a outras funções, as quais só podem ser entendidas em termos da estrutura específica e das tensões específicas desse contexto total.” (ELIAS, 1994:22)

Em resumo, Elias nos chama a atenção para o caráter singular da relação entre indivíduo e sociedade, o que significa afirmar, conforme já mencionado, que não há relação igual ou análoga em qualquer outra esfera da existência. Cada estrutura social se trata de uma rede de relações características de uma conformação histórica. O abismo que encontramos cristalizado entre indivíduo e sociedade tem sua origem nos hábitos mentais específicos de hoje e que estão arraigados em nossa consciência. Segundo Viana, esclarecendo a postura de Elias, para a maioria das pessoas é extremamente difícil pensar que as relações podem ter estrutura e regularidade próprias, o que faz com que seja também complexo compreender a própria estrutura das relações humanas. Portanto, torna-se necessário pensar em termos de relações e funções para se compreender a relação indivíduo-sociedade. (VIANA, 2001: 936)

Portanto, relacional também deve ser a leitura da noção de sociedade civil, isto porque a sociedade, concordando com Elias, produz não somente o típico, como também o individual e, deste modo, a identidade do ser humano se constrói num contexto histórico e social delimitado e se transforma com a transformação deste contexto, dependendo muito das relações de poder que permeiam tal estruturação.

As redes também são impregnadas por relações de poder. Deste modo, Ilse Scherer-Warren (2006) aponta como necessária a percepção de como se dá o equilíbrio entre tendências antagônicas e se é possível a autonomia dos sujeitos sociais, dos indivíduos, especialmente os mais excluídos e marginalizados. Ou seja, faz-se necessário que atentemos para as condições de mediação social para a construção de empoderamento democrático e inclusão social das bases, a partir do entendimento da estruturação social. Para tanto, conforme propõe a autora, requer-se mobilizações de base local na esfera pública, empoderamento através dos fóruns e redes da sociedade civil, participação nos conselhos setoriais de parceria entre sociedade civil e Estado e a busca por ativa participação nas conferencias nacionais e globais de iniciativa governamental em parceria com a sociedade civil organizada.

Por intermédio das narrativas de sua história, um povo define um mundo da vida compartilhado, que distingue claramente quem é parte dele e quem não é, nos fala Eder. Tais narrativas constituem poderosos sinalizadores de fronteiras de inclusão ou exclusão e reivindicam como bem particular uma identidade entendida como um bem coletivo. “A identidade não é algo que se negocie com outros; trata-se de um bem indivisível. Não há termo comum entre identidades.” (EDER, P.09-10)

Os indivíduos se relacionam com diferentes quadros sociais da memória durante suas vidas, nos diferentes espaços com os quais se integram ao longo de sua trajetória. Podemos compreender estes quadros em contínuo movimento e reestruturação, os quais influenciam a própria composição da sociedade civil e interferem nos rumos da constituição da esfera pública e da efetivação democrática.

Esta sociedade civil, contemporaneamente, tende a ser uma sociedade de redes organizacionais, inter-organizacionais e de movimentos e de formação de parcerias entre as esferas públicas privadas e estatais, constituindo novos espaços de governança com o crescimento da participação cidadã. Deste modo, as redes possibilitam a transposição de fronteiras territoriais, temporais e sociais, sempre em defesa pela democracia na diversidade, diversidade esta de indivíduos e demandas, que trazem consigo uma composição única de inúmeras experiências. (SCHERER-WARREN, 2006)

Conclusão

Em síntese, defendemos como caminho para a constituição de um mundo melhor, em concordância com Dupas, a tomada dos meios de informação como benéficos à sociedade, a revisão do conceito de sociedade civil e a via da democracia e da cidadania, através dos quais podem ser recuperadas a legitimidade do Estado e a própria confiabilidade política. O conceito de cidadania necessariamente inclui lidar com a complexidade dos conflitos acerca dos direitos decorrentes de uma sociedade fragmentada pelo aumento das desigualdades sociais.

A condição essencial para a prática da cidadania é a manifestação de conflitos e a mediação destes pela sociedade política. Assim, o desafio que se coloca à contemporaneidade é o estabelecimento de uma nova identidade de sociedade civil, num contexto de descrédito de utopias e de banalização da política. Efetivamente, mudanças institucionais e a renovação política podem constituir novas relações, constituir novas oportunidades e estimular novas práticas organizativas que alterem, em maior ou menor grau, a configuração da sociedade civil e das suas relações com o campo político-institucional.

 

Referëncias
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Informações Sobre o Autor

Maristela Carneiro

Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás; Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa; licenciada em História e Filosofia


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