Uma reflexão sobre a História do Direito a partir da teoria da história de Cornelius Castoriadis

Resumo: Este artigo pretende mostrar algumas das considerações presentes na obra de Cornelius Castoriadis a respeito da teoria da História. O artigo trata também da discussão do conceito de Direito utilizado na teoria da história e da posição do autor para sua transformação, alterando com isso todo o estudo de História do Direito. Para tanto, o artigo apresenta algumas considerações sobre a teoria da História utilizada no Direito, algumas considerações sobre a teoria da História marxista. [1]

Palavras-chave: História do Direito, Teoria do Direito, Direito como instituição imaginária, Castoriadis

Abstract: This article intends to show some of the considerations present in the work of Cornelius Castoriadis regarding the theory of History. The article also deals with the discussion of the concept of Law used in the theory of history and the position of the author for its transformation, thus altering the whole study of History of Law. For this, the article presents some considerations on the theory of History used in the Law, some considerations on the theory of Marxist history.

Key-words: History Law, Law as imaginary institution, Castoriadis

Sumário: Introdução, 1) Uma outra visão da História do Direito , 2) A crítica de Castoriadis da teoria da história marxista, 3) Teoria da história de Castoriadis, 4) Uma outra visão do Objeto da História do Direito, Considerações Finais, Referências

Sumary: Introduction, 1) Another view of the History of Law, 2) Castoriadis's critique of Marxist history theory, 3) Castoriadi´s Theory of history, 4) Another view of the Object of Law History, Final Thoughts, Bibliography

Introdução

A História do Direito vem tomando rumos novos nos últimos anos, trazendo para a discussão o próprio conceito de Direito. Longe de uma metodologia positivista e dogmática, a História do Direito tem se estabelecido como uma esfera crítica da produção jurídica. A partir das novas abordagens do Direito fornecidas pelos Filósofos do Direito, a História do Direito busca entender o Direito como um objeto complexo. Ao delimitar seu objeto de estudo, o historiador do direito necessita delimitar o que entende por Direito e com isso coloca em discussão a concepção do Direito. O objeto de estudo da história depende de um ponto de vista sobre seu objeto e a História do Direito não é diferente.

A História do Direito presente nos manuais de Direito, que fazem parte da produção geralmente dos juristas especializados na área, focam-se na lei como fonte da História do Direito do Trabalho. Não raras vezes a História é utilizada como uma introdução à legislação atual, destacando o caráter teleológico da história. A seleção dos fatos e leis feitas nesse tipo de produção tem como um de seus objetivos apresentar uma história linear, que conquistou um objetivo: implantação de uma legislação estatal trabalhista no âmbito nacional e especialmente mostrar uma história que não salienta os conflitos sociais. Focando-se na legislação o Direito, torna-se o Direito Estatal e com isso as divergências internas dos governantes, dos doutrinadores e mesmo nas discussões dos tribunais são desconsideradas. A desconsideração é possível, pois a concepção de Direito utilizada é a concepção de um Direito estatal oficial. Diversas concepções de Direito são desconsideradas, para que essa prevaleça. Porém, o mais grave é a apresentação da concepção de Direito estatal e oficial como a única concepção possível.

Assim, esse tipo de História se foca em um tipo de concepção de Direito, que é a que entende o Direito somente como legislação estatal oficial. Em outras palavras, essa é uma História que se utiliza de um conceito kelseniano de Direito, ou seja, que o Direito é norma e que essa norma deve ser estatal. A Filosofia do Direito vem lutando para afastar ou mesmo relativizar essa concepção de Direito, ao apontar que o Direito não tem uma definição, mas sim diversas concepções. O entendimento do que é Direito não está desconectado da posição política e filosófica de cada autor, mesmo quando este não cita expressamente a posição adotada.

A obra de Cornelius Castoriadis apresenta uma importante contribuição aos estudos de história do Direito, pois ao mesmo tempo em que elabora uma teoria da história, pode levar a ampliação do próprio objeto da história do Direito. Este trabalho pretende em sua primeira parte apresentar algumas das inovações da teoria da história de Castoriadis e em um segundo momento apresentar as considerações sobre o objeto da História do Direito a partir da visão Castoriadis.

1) Uma outra visão da História do Direito

Fazer história é diferente de pensar sobre história e muitas vezes o historiador passa ao largo das questões de uma teoria da história em um trabalho de pesquisa. O pensar sobre a história é mais tarefa dos filósofos do que do historiador. Porém, esse senso comum vem sendo desconstruído pelas novas escolas da História, que começaram a colocar em discussão o modo de se fazer a história. .Em muitos casos é necessária a explicitação do que se entende sobre a história ou mesmo da teoria utilizada. Isso acontece quando o paradigma de história utilizado pelo historiador pesquisador não é o que se costuma utilizar naquela área de pesquisa, e é preciso estabelecer os conceitos utilizados.

A História do Direito tem passado por um novo ciclo, com o retorno dos cursos de história nas faculdades. Muitos livros foram retomados e outros tem sido escritos. Há uma necessidade de se acordar uma disciplina que ficou muitos anos restrita a um pequeno conteúdo nas introduções dos livros de dogmática. Sobre essa retomada, destaca WOLKMER:

“É inegável o significado da retomada dos estudos históricos no âmbito do Direito, principalmente quando se tem em conta a necessidade de repensar e reordenar uma tradição normativa, objetivando depurar criticamente determinadas práticas sociais, fontes fundamentais e experiências culturais pretéritas que poderão, no presente, viabilizar o cenário para um processo de conscientização e emancipação. Naturalmente esta preocupação distancia-se de uma historicidade jurídica estruturada na tradição teórico-empírica construída pela força da autoridade, da continuidade, da acumulação, da previsibilidade e do formalismo. A obtenção de nova leitura histórica do fenômeno jurídico enquanto expressão cultural de ideias, pensamento e instituições implica a reinteração das fontes do passado sob o viés da interdisciplinaridade (social, econômico e político) e da reordenação metodológica, em que o Direito seja descrito sob uma perspectiva desmistificadora”. ( 2003, p, 9)

A história do Direito dos juristas geralmente tem um caráter enciclopedista, onde o que importa é o vôo panorâmico por entre os fatos. É uma história em que dificilmente o sujeito que faz a história se expõe, se mostra como transformador de seu objeto de estudo, que é o Direito. Uma proposta de uma outra História do Direito tem de discutir, não somente o que é história, mas também o que é direito. Assim, a discussão sobre a metodologia a ser adotada, ou mesmo, como fazer história e o papel das fontes é essencial para uma nova História do Direito.

A discussão quanto ao método ou do como fazer de uma História do Direito ainda está longe das discussões das faculdades de História, que sofreram uma reviravolta com a Escola do Annales. Muitos autores contrapõem esses dois posicionamentos, para apontar a diferença do método e do objeto dessa nova história, como é o caso de WOLKMER:

“Daí a formulação, ora de uma História oficial, descritiva e personalizada do passado, e que serve para justificar a totalidade do presente, ora da elaboração de uma História subjacente, diferenciada e problematizante que serve para modificar/recriar a realidade vigente. A postura contrastante entre História tradicional e História “alternativa” é perfeitamente sentida por historiadores como Peter Burke, identificados com a “nova História”. Utilizando categorias advindas da filosofia da ciência (Thomas Kuhn) e da Escola dos Annales, Peter Burke observa que a percepção da inconsistência do paradigma” (2003, p.16)

A História do Direito passa por um momento de renovação, em que se busca fazer uma mudança também do papel da História do Direito, que deixa de ser um elemento de cultura elevada e identificação de alto status social, para uma história crítica, em que o foco está no sujeito coletivo, muitas vezes desconhecido. Uma História do Direito crítica passa a ser produzida nas faculdades de História, Sociologia e também nas de Direito. Isso porque não somente o papel da História, mas o que é Direito passa a ser questionado

“Na trajetória da cultura jurídica moderna há consenso de que áreas de investigação, como História do Direito, História das Instituições Jurídicas e História das Ideias ou do Pensamento Jurídico, estão todas identificadas, ora com um saber formalista, abstrato e erudito, ora com uma verdade extraída de grandes textos legislativos, interpretações exegéticas de magistrados, formulações herméticas de jusfilósofos e institutos arcaicos e burocratizados. Todavia, essa longa tradição foi interrompida nas últimas duas décadas por um renovado interesse de natureza crítico-ideológica por questões metodológicas sobre a História do Direito. Tal approach reflete também o esgotamento de certo tipo de historiografia jurídica embasada em valores liberal-individualistas. Essa retomada do viés historicista acerca das ideias ou das instituições jurídicas busca superar a demasiada crise que se abateu sobre esse campo de pesquisa. A pouca relevância da disciplina não se deve à falta de especialistas ou aficcionados, mas muito mais em função de uma crise motivada por sua falta de significado e pela dificuldade de encontrar uma função que realmente justifique sua existência” (WOLKMER, 2003, p.19)

Deixar de lado uma História do Direito positivista e que afirma uma neutralidade frente ao objeto não é somente fundar uma nova disciplina com outros padrões no Direito, mas questionar todo o ensino jurídico com base nesses padrões positivistas. Ricardo Fonseca aponta que a História positivista foi utilizada por muito tempo como legitimadora de uma dogmática positivista:

“António M. Hespanha, que nos lembra que, a par desse procedimento positivista acabar por distanciar-se do passado que é (ou deveria ser) objeto do estudo e aproximar-se da lógica do presente (como visto acima), a historiografia jurídica positivista serve de combustível para uma glorificação da positividade jurídica vigente. E isto ocorre de duas formas básicas. Por primeiro, tal história do direito cumpre um papel legitimador do direito presente ao pretender provar que determinadas características do discurso jurídico – como Estado, família ou o princípio de que os contratos devem ser cumpridos ponto por ponto – pertencem à “natureza das coisas”. (FONSECA, p.161)

Hespanha destaca que esse papel legitimador da dogmática também é seguido da estratégia de se afirmar a linearidade do progresso jurídico (HESPANHA, p. 28) É muito comum o direito e a história do direito nos manuais jurídicos serem evolutivas, apresentando direitos ditos primitivos e depois dito evoluídos.

“Nesta história progressiva, o elemento legitimador é o contraste entre o direito histórico, rude e imperfeito, e o direito dos nossos dias, produto de um imenso trabalho agregativo de aperfeiçoamento, levado a cabo por uma cadeia de juristas memoráveis”. (HESPANHA, p.29)

2) A crítica de Castoriadis da teoria da história marxista

Castoriadis constrói sua teoria da história confrontando-a com a teoria da história marxista. Pretende-se retomar alguma das críticas feitas pelo filósofo grego à teoria da história marxista. Marilena Chauí, no texto “A história no pensamento de Marx,” analisa a crítica de Castoriadis sobre a teoria da história de Marx (CHAUÍ,2007). Chauí entende que a teoria da história de Marx possibilita diversas interpretações, devido às variações das diversas obras de Marx e uma das interpretações possíveis é a de Castoriadis. O filósofo grego não é apenas um crítico de Marx, mas utiliza-se de sua obra para construir uma outra teoria da história. Assim, torna-se menos importante a obra de Marx em si, mas o que Castoriadis faz com essa interpretação. Ao desmontar a obra de Marx, Castoriadis busca retirar os tijolos para construir o seu edifício filosófico. Nesse sentido diz Castoriadis:

“Se a concepção marxista não oferece a explicação procurada da história, não existe talvez uma outra que a ofereceria, e a construção de uma nova concepção, “melhor”, não seria a tarefa mais urgente? Esta questão é bem mais importante que a outra, pois afinal de contas, que uma teoria científica se mostre insuficiente ou errada, é a própria lei do processo do conhecimento. Entretanto, a condição desse progresso é compreender porque uma teoria se revelou insuficiente ou falsa”. (CASTORIADIS, 1982, p,36)

Castoriadis resume sua crítica à teoria da história de Marx, e aponta em três pontos porque esta não deve ser aceita: a) Faz do desenvolvimento da técnica motor da história em última análise, atribuindo- lhe uma evolução autônoma e uma significação fechada e bem definida; b) tenta submeter o conjunto da história a categorias que só tem sentido para a sociedade capitalista desenvolvida e cuja aplicação às formas precedentes da vida social coloca, mais do que resolve problemas; c) é baseada no postulado velado de uma natureza humana essencialmente inalterável, cuja motivação predominante seria a motivação econômica (CASTORIADIS, 1982, p,41).

Estes pontos criticados por Castoriadis em Marx também são apontados por Marilena Chauí no texto A história no pensamento de Marx,: 1) não se pode dar à economia o lugar central independentes de outras relações sociais; 2) é preciso reformular a categoria de reificação e com isso toda a teoria da história de Marx; 3) não é verdade que, a um certo estágio de desenvolvimento as forças produtivas cessam de se desenvolver porque entram em contradição com as relações de produção existentes ou as relações de propriedade- isso não é uma contradição e sim, no máximo, uma tensão que pode ser, e tem sido, resolvida pelo sistema; 4) não se pode passar da afirmação da determinação material da existência humana a redução da produção ou do trabalho às forças produtivas e, portanto, a técnica (supostamente dotada de desenvolvimento autônomo), deixando as demais atividades humanas na condição de ‘superestruturas’; 5) na fase presente do capitalismo o desenvolvimento das forças produtivas ou da técnica não é autônomo, e sim planejado, orientado e dirigido explicitamente para os fins que as classes dominantes determinam, não há passividade social, pois o desenvolvimento da técnica não é o motor da história nem possui um significado unívoco e fechado; 6) não se pode estender para todas as sociedades categorias que só tem sentido no capitalismo desenvolvido, a menos que a teoria se baseie no postulado escondido de uma natureza humana inalterável cuja motivação é econômica; 7) é impossível negligenciar que a consciência humana sempre foi e é um agente transformador e criador, uma consciência prática, uma razão operante que não se reduz a uma modificação do mundo material, é preciso portanto, recusar a ‘ideologia marxista’ ou o ‘idealismo técnico’, no qual as ideias fazem a história e a consciência humana está sempre enganada e iludida. (CHAUÍ, 2007)

Castoriadis também critica a filosofia da história de Marx por ser racionalista, pois desenvolve uma teoria que procura incorporar também a não-racionalidade. Chauí ao analisar a crítica de Castoriadis, aponta que o racionalismo que o filósofo grego imputa à Marx, é um racionalismo objetivo (CASTORIADIS, 1982, p,55) e isso implicaria em uma história racional em três aspectos:

“O objeto da história passada é racional porque um objeto cujo modelo é o das ciências naturais, forças agindo sobre pontos de aplicação definidos produzem os resultados predeterminados segundo um grande esquema casual que deve explicar a estática e a dinâmica da história, a constituição e o funcionamento de cada sociedade, bom como o desequilíbrio e a perturbação que devem conduzir a uma forma nova. O objeto da história futura é igualmente racional e realizará a razão num segundo sentido, não apenas como fato (passado), mas também como valor. A história por vir será o que ela deve ser, verá nascer uma sociedade racional que encarnará as aspirações da humanidade e onde o homem será enfim humano (isto é, sua existência e sua essência coincidirão, seu ser efetivo realizará seu conceito. Enfim, a história é racional num terceiro sentido da ligação do passado com o futuro, da passagem do fato ao valor, as leis quase naturais cegas arem caminho para uma humanidade livre, a liberdade emergindo do seio da pura necessidade, há uma razão imanente às coisas que fará surgir uma sociedade miraculosamente conforme à nossa razão” (CHAUÍ, 2007, p,9).

Nesse sentido, se a história não é determinada é que o homem é dono de seu destino e que o homem pode alterar o rumo do mundo por suas ações. “Não estamos no mundo para olhá- lo ou para suportá- lo, nosso destino não é o da servidão, há uma ação que pode apoiar-se sobre o que existe para fazer existir o que quereremos ser (…)”. (CASTORIADIS, 1982, p.71). Essa ação está localizada no âmbito da política. Castoriadis irá afirmar que a história é o “domínio onde as significações encarnam e todas as coisas significam” (CASTORIADIS, 1982, p.35). Assim, para entender a história é necessário entender essas significações que são diferentes em cada sociedade e em cada tempo.

Nem todas as significações são explícitas e para entender a sociedade é preciso ir além verificando os sentidos implícitos, que se remetem à própria sociedade. Não há assim, substâncias separadas na sociedade agindo umas sobre as outras (CASTORIADIS, 1982, p,36), e para entender a sociedade é necessário olhar para essas significações imersas na sociedade que as produziu. “O direito, como a política, a religião, etc., só podem alcançar seu pleno e verdadeiro sentido em função de uma referência aos demais fenômenos sociais de uma época” (CASTORIADIS, 1982, p.34).

A visão teleológica do historiador parece ser um fardo impossível dele se livrar, uma vez que sempre se olha para o passado com os olhos daquele que está no presente. Esse olhar não tem somente relação com a visão do historiador, mas também com o olhar da sociedade em que está inserido o historiador: “(…) eu vejo significa eu vejo porque eu sou eu, e não vejo somente com meus olhos, quando vejo alguma coisa toda minha vida ai está, encarnada nesta visão, neste ato de ver” (CASTORIADIS, 1982, p.53). Esse olhar sempre fragmentado por aquele que vê a história, para Castoriadis, impede aquilo que Marx apontou como história total.

Um dos principais conflitos da teoria da história de Castoriadis com a de Marx se dá no campo dado à explicação por via da economia, que para Marx está no centro da explicação e para Castoriadis é mais uma das várias dimensões sociais. Segundo Castoriadis, Marx coloca todo peso de sua teoria da história na explicação econômica, e esta apresenta problemas em suas premissas, no método e na sua estrutura (CASTORIADIS, 1982, p.27). Esta teoria da história também apresenta problemas de compatibilidade com a prática, segundo Castoriadis, uma vez que ao contrário do que previa Marx, as crises não levaram ao fim do capitalismo ou mesmo seu abalo (CASTORIADIS, 1982, p. 26).

Segundo Castoriadis, a reificação que faz parte do cerne da explicação de Marx, não pode nunca ser realizada integralmente, e há uma luta constante dos homens pela não reificação, é nesse ponto que reside a contradição do capitalismo e não como Marx havia colocado, qual seja, nas incompatibilidades mecânicas (CASTORIADIS, 1982, p. 28). Isso leva Castoriadis a rever o papel da economia como elemento central na explicação histórica, pois entendendo economia tal como colocava Marx, esse termo se torna uma abstração, uma vez que não se pode encarar as outras relações sociais como secundárias e a economia como a principal delas (CASTORIADIS, 1982, p.28).

Castoriadis também critica a concepção materialista de história de Marx, por achar que as “forças produtivas” não são um fator autônomo e determinante da evolução histórica153. Essa afirmação de Marx não é confirmada por Castoriadis, com base na afirmação de que se assim fosse, todas as sociedades modernas com determinado tipo de forças produtivas seriam semelhantes, como se pode ver no seguinte trecho:

“(…) a teoria marxista da história, e toda teoria geral e simples do mesmo tipo, é, necessariamente, levada a postular que as motivações fundamentais dos homens são e sempre foram as mesmas em todas as sociedades. As “forças”, produtivas ou outras, só podem agir na história através das ações dos homens e dizer que as mesmas forças representam, em todas as situações, o papel determinante, significa que elas correspondem a móveis constantes sempre e em todo lugar. Assim, a teoria que faz do “desenvolvimento das forças produtivas” o motor da história, pressupõe, implicitamente, um tipo invariável de motivação fundamental dos homens, a grosso modo a motivação econômica: desde sempre, as sociedades humanas teriam visado (consciente ou inconscientemente, não importa) primeiro e antes de tudo, o crescimento de sua produção e de seu consumo. Mas esta ideia não é apenas materialmente falsa; ela esquece que os tipos de motivação (e os valores correspondentes que polarizam e orientam a vida dos homens) são criações sociais, que cada cultura institui valores que lhe são próprios e conforma os indivíduos em função deles. Estas conformações são praticamente, onipotentes, porque em outras palavras, o homem não nasce trazendo consigo o sentido definido de sua vida. O máximo de consumo, de poderio ou de santidade não são objetivos inatos à criança, é a cultura na qual crescerá, que lhe ensinará que ela tem “necessidade” disso. E é inadmissível misturar ao exame da história a “necessidade” biológica ou do “instinto” de conservação (…). É absurdo querer fundamentar a história, por definição sempre diferente, sobre a permanência de um “instinto” de conservação, por definição sempre o mesmo”. (CASTORIADIS, 1982, p.37).

Castoriadis afirma com isso que nem todos os povos têm como principal em sua cultura a motivação econômica para seus atos, e que não se pode entender que sempre será predominante a motivação econômica, mesmo no capitalismo (CASTORIADIS, 1982, p.39). Castoriadis ao criticar o determinismo econômico da teoria de Marx, critica a ideia ligada a esta de que a história da humanidade é a história da luta de classes (CASTORIADIS, 1982, p.42). Isso porque para aceitar tal afirmação é necessário acreditar que é a história tem um fim já definido, ou seja, o fim do capitalismo e o rumo ao socialismo, com a eliminação da luta de classes. O entendimento de Castoriadis é de que o proletariado não é o sujeito privilegiado do conhecimento histórico (CASTORIADIS, 1982, p.49), negando com isso que é ele que tem o ponto de vista verdadeiro sobre a história passada (CASTORIADIS, 1982, p.49).

Sem um thelos definido, sem um agente da história definido, Castoriadis permite-se emaranhar no labirinto, sem ter de afirmar a direção da saída. Ter uma saída determinada, ao invés de determinável, foi o que fez, segundo Castoriadis, a teoria marxista da história entrar em decadência, à medida que esta somente pode subsistir em um sistema fechado, em que o thelos fosse realizado. Sobre isso diz Castoriadis:

“A origem teórica da decadência do marxismo (…) deve ser procurada na transformação rápida da nova concepção em um sistema teórico aperfeiçoado e completo em sua intenção (…). A transformação da atividade teórica em sistema teórico que se pretende fechado é a volta ao sentido mais profundo da cultura dominante. É a alienação no que já existe, no já criado; é negação do conteúdo mais profundo do projeto revolucionário, a eliminação da atividade real dos homens como fonte última de toda significação, o esquecimento da revolução como modificação radical, da autonomia como princípio supremo, é a pretensão do teórico assumir a solução dos problemas da humanidade. Uma teoria concluída pretende dar respostas ao que só pode ser resolvido, se é que pode, pela práxis histórica. Ela só pode, pois fichar seu sistema pré-escravizando os homens a seus esquemas, submetendo-os a suas categorias, ignorando a criação histórica, mesmo quando a glorifica em palavras. Ela só pode aceitar o que se passa na história, se isso se apresenta como sua confirmação, do contrário ela o combate- que é a maneira mais clara de exprimir a intenção de parar a história”. (CASTORIADIS, 1982, p.84-85).

Castoriadis também critica a teoria da história marxista, por ter apontado somente a dimensão da funcionalidade nas sociedades. A funcionalidade é uma dimensão do conhecer, que possibilita compreender a história e a sociedade, mas não se reduz a ela (CASTORIADIS, 2007, p,50). A sociedade tem uma dimensão funcional e também outra simbólica:

“A funcionalidade é simplesmente um pressuposto da existência da sociedade. Se a sociedade está sujeito a uma finalidade, esta é precisamente a sua própria existência. A esse respeito, portanto, poderíamos dizer que existe uma funcionalidade da instituição social: que a sociedade continue. Mas no interior dessa instituição que persevera, percebemos outras instituições que não apresentam nenhum tipo de funcionalidade, exceto em um sentido sofístico” (CASTORIADIS, 2007, p,50).

A teoria da história marxista para Castoriadis analisa toda a história a partir do modo de produção capitalista e com isso acaba reduzindo a história, ou seja, ao entender que a economia é o fator principal de todas as sociedades, a teoria da história de Marx, leva padrões do capitalismo para sociedades que não eram capitalistas. Por causar essa distorção é que Castoriadis rompe com a teoria marxista da história, como aponta uma das comentadoras de Castoriadis, Mirtes Maciel no seguinte trecho:

A crítica central de Castoriadis à teoria materialista da história passa, portanto, ao se fazer uma análise histórica, de uma sociedade para outra, sob pena de distorcer os elementos da análise, de perder os elos fundamentais na estruturação do social, enfim de imaginar que o conjunto das atividades humanas se movimenta sempre num mesmo sistema de relações, de reciprocidade e de determinação. O que historicamente não é verdade. Ele dirá mais tarde: “Marx está plenamente sob o domínio das significações imaginárias centrais do capitalismo” ao se referir à sua teoria da história. O seu problema é a invariância categorial na interpretação da história que compromete o conjunto de sua teoria. Isto irá levar ao rompimento definitivo de Castoriadis com o marxismo (MACIEL, 1995, p.81-82).

Depois de criticar a teoria da história marxista e outras teorias (história como produto da vontade de Deus, história como resultado a ação de leis naturais ou leis históricas, história como processo sem sujeito, história como processo aleatório) (CASTORIADIS, 2004, p.356-257) Castoriadis começa a delinear o que entende como história. Para Castoriadis a história não estaria restrita a explicações simples e permitiria “compreender e interpretar nossa sociedade. E isso só podemos fazer relativizando-a, mostrando que nenhuma das formas da presente alienação social é fatal para a humanidade, já que elas nem sempre estiveram presentes – e não querendo transformá- la em absoluto e projetando inconscientemente os aspectos mais profundos da realidade capitalista contra a qual nós lutamos” (CASTORIADIS, 1982, p. 41). Para isso é necessário, segundo Castoriadis: a) Pensar necessariamente a história em função das categorias de sua época e de sua sociedade- categorias estas que são um produto da evolução histórica; b) Pensar a história em função de uma intenção prática ou de um projeto este que faz parte da história (CASTORIADIS, 1982, p.47).

3) Teoria da história de Castoriadis

A teoria da história de Castoriadis faz parte de uma de muitas teorias que foram elaboradas como crítica à teoria marxista. Castoriadis ao mesmo tempo em que proporciona ao historiador uma metodologia, também leva a um pensar sobre o próprio objeto da história. Desse modo, seus apontamentos são interessantes para se pensar uma História do Direito, uma vez que leva o historiador a repensar sobre o próprio conceito de Direito.

Cornelius Castoriadis é um dos críticos à teoria da história marxista e estabelece uma nova metodologia da história, retomando conceitos como o imaginário de Aristóteles, para compor sua história social do imaginário. Castoriadis destaca o papel do imaginário na história ao apresentar o par imaginário-racional. Para se fazer história o caráter do imaginário não pode ser deixado de lado, porque ele se integra a própria noção de racionalidade. Mesmo em uma sociedade em que não se podia fazer distinção entre essas duas esferas (segundo Castoriadis, sociedades não ocidentais dos últimos dois séculos), é necessário que o historiador assuma essa antinomia (CASTORIADIS, 1982, p,195), porque o historiador atual fala de uma sociedade em que o imaginário e o racional são apresentados separadamente. Assumindo o lugar de fala o historiador propõe uma visão para fatos e povos em tempo passado, que levam em conta visões e valores da sociedade de que o historiador fala. Desse modo, não é possível uma história total, nem uma história que não seja revista a todo momento.

“É por isso que o projeto ocidental de constituição de uma história total, de compreensão e de outras épocas contém necessariamente o fracasso em sua raiz, se é tomado como projeto especulativo. A maneira ocidental de conceber a história apóia-se na idéia de que o que era sentido para si, sentido para os assírios de sua sociedade, pode tornar-se, exatamente, sentido para nós. Mas isso é, evidentemente, impossível e ocasiona a impossibilidade do projeto especulativo de história total. A história é sempre história para nós – o que não significa que tenhamos o direito de multilá-la ao nosso bel-prazer, nem de submetê-la ingenuamente às nossas projeções, posto que, precisamente o que nos interessa na história é nossa alteridade autêntica, os outros possíveis do homem em sua singularidade absoluta” (CASTORIADIS, 1982, p,196).

Em seu livro “Figuras do pensável” Castoriadis irá afirmar que não pretende utilizar as doutrinas existentes da história que a vejam como um produto social. Castoriadis afirma:

“A história não acontece à sociedade: ela é seu auto-desdobramento (…) Nós pomos a história em si como criação e destruição. Nós falamos aqui em um nível ontológico, pois nos interessamos pela criação e pela destruição de formas, de eidè.” (CASTORIADIS, 2002a. p, 357.).

O filósofo grego não dissocia a questão da história com a da sociedade, por entender que somente pode-se entender o social-histórico (CASTORIADIS, 1982, p. 201). “A reflexão da historia e da sociedade situou-se sempre no terreno e nas fronteiras da lógica-ontologia herdada” (CASTORIADIS,1982, p.203), fazendo com que não se tivesse uma reflexão sobre a própria história e a sociedade e que as categorias que valem para o social-histórico também valessem para os outros entes, não se multiplicando o sentido do ser (CASTORIADIS,1982, p.203).

A teoria de Castoriadis se destaca quanto a teoria da história, pois: a) utiliza de conceitos como tempo imaginário e não o tempo cronológico, b) entende que a economia não é a única esfera da vida que deva ser analisada para se compreender a sociedade, c) possibilita estudar um sujeito coletivo, d) entende que a história é determinável, mas não determinada, e) defende a busca da autonomia e da democracia, f) aponta para a transformação histórica do homem através da imaginação radical.

Castoriadis entende que há uma relação íntima entre história e sociedade. Porém, isso não significa afirmar que a história é produto da sociedade, ou que a sociedade engendra a história (CASTORIADIS, 2002b, p.355). Para Castoriadis, a história é auto-alteração da sociedade (CASTORIADIS, 2002b, p.355), é criação e destruição (CASTORIADIS, 2002b, p.357). História e sociedade não estão em oposição, nem são esferas diferentes, pois uma interfere na outra, mudando o próprio ser uma da outra. Assim, a história não é algo que a sociedade produz, nem que acontece com a sociedade, mas ela é autodesdobramento da sociedade (CASTORIADIS, 200b, p.356). Logo, conhecer uma sociedade é conhecer o social-histórico, pelas formas que essa sociedade criou, ou seja, as instituições, que são “encarnação das significações imaginárias sociais” (CASTORIADIS, 2002b, p.359).

A história para Castoriadis tem íntima relação com a questão do conhecimento e da verdade. Para Castoriadis cada sociedade realiza um “fechamento de significações” (CASTORIADIS, 2002b, p.360), produzindo e justificando as instituições que cria, ao mesmo tempo em que nega ou estranha as significações dos outros, sejam eles pessoas ou sociedades. A busca por entender os outros, o diferente, a outra sociedade é o que permite romper com o fechamento completo das significações, uma vez que se passa a questionar as próprias instituições e não somente as das outras sociedades. Nas palavras de Castoriadis:

“Em nossos esforços para conhecer os outros, independentemente de qualquer consideração de interesse prático, vamos além do fechamento de significação de nossa própria instituição. Deixamos de dividir o mundo humano entre “nós” e “eles” – nós: os únicos verdadeiros seres humanos; os outros: os selvagens, os bárbaros, o pagão e assim por diante. Deixamos de considerar a nossa própria instituição da sociedade como a única boa, razoável, verdadeiramente humana e as instituições dos outros como curiosidades, aberrações, "absurdos primitivos” (Engels) ou punição divina por sua natureza diabólica. Deixamos também de considerar nossa representação do mundo como a única plena de sentido. Sem necessariamente abandonar nossas instituições que tornaram tal questionamento possível- podemos adotar uma posição crítica sobre ela (…). Isso abre imediatamente a possibilidade de questionar nossa própria instituição e de agir a esse respeito.” (CASTORIADIS, 2002b, p.360).

Castoriadis estende o papel da história, uma vez que entende que ela é processo de conhecimento, de crítica e de transformação, que não é feito apenas pelo historiador, mas por todo aquele que se coloca a conhecer. Esse conhecimento produzido por aquele que vai buscar conhecer o social-histórico nunca é isento, no sentido de não ser neutro, ou mesmo objetivo, aos moldes de uma ciência comteana. Aquele que conhece sempre o faz a partir de suas próprias instituições, a partir de sua sociedade. Nesse ponto, Castoriadis vai além de uma teoria da história, para uma ontologia:

“Mas como podemos conhecer as outras sociedades e épocas históricas? O que conhecemos é pesadamente, e talvez inteiramente, condicionado por aquilo que somos enquanto indivíduos sociais educados e fabricados por esta sociedade particular que é a nossa. Isso vai bem além dos “preconceitos” e muito além da epistemologia e da teoria do conhecimento. A questão tem um fundo ontológico. Somos, e somos aquilo que somos, porque partilhamos um mundo que, longe de flutuar livremente ou de ser neutro (supondo a “humanização” ou a “socialização” em geral), é criado e instituído por nossa própria sociedade” (CASTORIADIS, 2002b, p.363).

Por não ser possível o desligamento completo daquele que estuda a história de sua sociedade, para entrar na sociedade de um outro, é que se pode entender que para Castoriadis sempre há possibilidades de interpretações imprecisas, a tradução das instituições de uma para outra sociedade não são as mesmas, nem ocorrem sem problemas. É possível entender que esses problemas são constantes e inevitáveis, pois não há segundo Castoriadis, muitos universais social-históricos presentes nas sociedades (CASTORIADIS, 2002b, p.364). Isso torna cada sociedade única, que deve ser entendida nas suas especificidades. Assim, o historiador tem o trabalho de conhecer a outra sociedade compreendendo as instituições dessa sociedade, porém, não consegue e não pode abandonar as instituições daquela sociedade que foi formado, ou nas palavras de Castoriadis:

“Sob esse ponto de vista, portanto, seria, não incorreto, mas a bem dizer sem sentido querer captar toda a história precedente da humanidade em função do par de categorias imaginário-racional, que só tem verdadeiramente seu pleno sentido para nós. E, no entanto – ai está o paradoxo – não podemos deixar de fazê- lo. Assim, como não podemos, quando falamos do domínio feudal, fingir esquecer o conceito de economia, nem eximir-nos de categorizar como econômicos fenômenos que não o eram para os homens da época, não podemos fingir ignorar a distinção do racional e do imaginário falando de uma sociedade para a qual ela não tem sentido ou o mesmo conteúdo para nós. Esta antinomia, nossa consideração da história deve necessariamente assumi- la. O historiador ou o etnólogo deve obrigatoriamente tentar compreender o universo dos babilônicos ou dos bororos, natural e social, tal como era vivido por eles, tentando explica-lo, abster-se de introduzir determinações que não existem para esta cultura (conscientemente ou não conscientemente). Mas ele não pode ficar nisso. O etnólogo que assimilou tão bem a visão do mundo dos bororos a ponto de só poder vê- los a sua maneira, não é mais um etnólogo, é um bororo – e os bororos não são etnólogos. Sua razão de ser não é assimilar-se aos bororos, mas explicar aos parisienses, aos londrinos, aos novaiorquinos de 1965 esta outra humanidade que os bororos representam. E isso, ele só pode fazê- lo na linguagem, no sentido mais profundo do termo, no sistema categorial dos parisienses, londrinos, etc. Ora, essas linguagens não são “códigos equivalentes” precisamente porque em sua estruturação as significações imaginárias representam um papel central” (CASTORIADIS, 1982, p.195-196).

O trabalho daquele que busca conhecer a história e a sociedade do outro, segundo Castoriadis, não se restringe a descrição da outra sociedade, pois o fundamental é entender o eidos de cada sociedade em particular. Apontar o funcionamento da sociedade é ficar preso na primeira etapa. Para compreender esse eidos particular de cada sociedade é preciso que o historiador ou aquele que busca conhecer a história, penetre e compreenda o magma das significações imaginárias da outra sociedade (CASTORIADIS, 2002b, p.369).

Esta proposta de Castoriadis está muito longe daquela que busca entender a histórica como um desenrolar de causações (como faz Weber). Desse modo, Castoriadis não aceita a história como um esquema de sucessões177, em que x causa y e leva a z e assim por diante. A história não é um esquema de sucessões, porque se assim fosse seria uma “seqüência determinada do determinado” e para Castoriadis, a história é alteridade radial, criação imanente178. Isso não quer dizer que a história seja um indeterminado, mas sim que ela tem determinável, que tem certa parcela de previsível, mas que não é determinada (CASTORIADIS, 1982, p.111). A história é criação e criação do eidos: “A história é o domínio em que o ser humano cria formas ontológicas – sendo elas próprias, a história e a sociedade, as primeiras dessas formas” (CASTORIADIS, 1982, p.111)

Castoriadis não credita à história um papel explicativo. Sobre isso Castoriadis é taxativo: Na história não há explicações. Há uma outra coisa: de uma lado, uma [inteligibilidade] reduzida do ponto de vista conjuntista- identitário (….); de outro, a compreensão daquilo que se passa (….). Para compreender o desenrolar histórico, devemos fazer apelo, a cada vez, à significações imaginárias sociais da sociedade e àquilo que acontece com elas. Essas significações imaginárias sociais, nós não podemos abordá- las segundo um modo causal e não podemos compreender como é possível que elas motivem as pessoas de forma causal, nem como elas surgem, nem mesmo como elas se desgastam. E é ai que se encontra o ponto central para a compreensão de uma sociedade passada ou de um desenvolvimento histórico. (CASTORIADIS, 2007, p, 38-40)

Há, portanto, duas dimensões no processo de compreensão das outras sociedades, em um tempo e espaço, que são necessárias para a história: a dimensão da lógica e a dimensão das significações imaginárias. Essas duas dimensões têm de estar juntas para bem compreender a história, pois cada uma tem um papel: A dimensão conídica (lógica), de um lado, limitando as possibilidades, colocando determinadas referências (por exemplo: tipos de fundações que pressupõem certos dados sobre o tipo de construções erigidas sobre elas e, por conseguinte, talvez sobre seu uso, etc., e também sobre um determinado tipo de poder; arqueologia, passagem do Neolítico à proto-história, estrutura das vilas e das habitações, diferenças entre uma vida neolítica e aquela de uma sociedade que já pressupõe uma divisão antagônica e assimétrica da população, com um poder coercitivo etc.).

Por outro lado, a capacidade que devemos postular – e tal postulado verifica-se na efetividade da pesquisa histórica – de reviver, reconstituir as significações imaginárias sociais de outras civilizações, sociedades, épocas. Ela pressupõe a capacidade de estabelecer uma familiaridade com a coisa e a capacidade de descentralizar-se em relação às próprias significações imaginárias sociais para centrar-se naquelas de uma outra sociedade e misturar-se com esta outra o bastante para poder, mais ou menos, compreender o que acontecia, o que era para aquelas pessoas viver no mundo que era o delas, quais eram as significações das quais seu modo e suas vidas estavam investidos, o que era ou não importante para elas (CASTORIADIS, 2007, p, 53)

A história não está, portanto, no âmbito da explicação e também não está no âmbito da verdade, nem da ciência. Para Castoriadis, a história que busca compreender as significações imaginárias sociais está no âmbito da recriação poética. (CASTORIADIS, 2007, p, 42) Essa (re)criação não é livre, pois é pautada pelo controle da lógica, mas está longe de ser a verdade, ou mesmo a real compreensão do que ocorreu:

“Não existe, portanto, uma metodologia no sentido estrito, nem a possibilidade de “demonstrar” rigorosamente o que quer que seja; podemos apenas mostrar, para aqueles que têm pelo menos um pouco o sentido dessas coisas, que tal ou tal asserção sobre tal sociedade é uma besteira ou é muito superficial, ou ainda deixa de lado elementos muito mais importantes, etc. Nessa recriação de uma sociedade estrangeira, o papel essencial pertence à imaginação. Há uma dimensão que nos permite viver, através do espírito, no mundo de Roma sem sermos romanos, e ficar suficientemente convencidos de que efetivamente as coisas deveriam ser mais ou menos assim e não de outra forma. Esse uso combinado da imaginação do controle da lógica, lá onde esta última pode ser plicada e tem lugar de ser, é, creio eu, um dos sentidos mais precisos que se pode dar ao termo razão na sua verdadeira acepção” (CASTORIADIS, 2007, p, 43.)

A criação tem relação direta com a autonomia e com a alienação. Isso porque a criação é sempre criação humana, porém em alguns casos, essa criação passa a ser entendida como extra-social, nesse caso nega-se a autonomia e a auto- instituição. Essa alienação, diferente da alienação de Marx, não é de uma classe nem ligada ao capitalismo apenas, mas ocorre toda vez que não se percebe a auto- instituição das instituições imaginárias sociais, como aponta o comentador de Castoriadis, Pablo Ortelado no seguinte trecho:

“A sociedade é sempre auto- instituição, mas ela não se vê, nem se sabe como tal. A sociedade está alienada de sua própria capacidade criadora, de sua perpétua auto-alteração. O pensamento herdado expresso nas ciências sociais é expressão disso. Ele é prisioneiro desta alienação que imputa uma origem extra-social à criação – seja na forma de Deus, da razão, ou da necessidade. Para escapar dessa alienação é preciso uma auto- instituição consciente. Uma lucidez que permita ver na sociedade a fonte da transformação social e a partir dessa consciência, construir a capacidade de conduzir essa alteração no sentido da autonomia. A autonomia, que não é fundada nem guiada por uma necessidade histórica, mas é, ela mesma, significação instituída, só pode existir com o reconhecimento do caráter social da história” (ORTELADO, 2003, p.101-102).

Castoriadis faz a ligação entre história e política, ao ressaltar o caráter reflexivo da história. Essa ligação está presente em especial em alguns tipos de história, como é a história do movimento operário:

“(…) para nós- a classe operária (como, de resto, ainda que de modo diferente, o capitalismo ou a burocracia contemporânea) não é simplesmente um “objeto histórico”, como Roma, o Império Inca ou a música romântica. A questão da classe operária e do movimento operário coincide amplamente (ou, em todo caso, coincidiu durante muito tempo) com a questão da crise da sociedade em que vivemos e da luta que nela se trava, com a questão de sua transformação: em suam, com a questão política contemporânea. Nosso problema, portanto, não é simplesmente o problema epistemodógico ou filosófico relativo ao modo de ser desse “objeto”. Não podemos absolutamente separar a questão “o que é o proletariado” da questão o que é a política hoje”. (CASTORIADIS, 1985, p, 47)

A história do movimento operário é uma história fundamental para Castoriadis, pois é por ela que Castoriadis faz a crítica à teoria da história de Marx e Hegel. Castoriadis não tem como objetivo fazer uma história, mas pensar nessa história do movimento operário, uma vez que considera que pouco de original foi feito nessa história, excetuando alguns trabalhos como o de Thompson, que busca ir além da história dos eventos. (CASTORIADIS, 1985, p, 17). A história do movimento operário tem um caráter fundamental para Castoriadis, pois ela introduziu novas formas e novas significações sociais, que alteraram em aspectos importantes a sociedade moderna, como expõe no texto abaixo:

“A questão do movimento operário e de sua história- à qual se mescla indissoluvelmente a questão das correntes políticas e ideológicas que o influenciaram, o chamado socialismo utópico, marxismo, anarquismo- não é para nós uma questão apenas ou essencialmente teórica. Diante do deslocamento generalizado que abala a sociedade contemporânea muito mais fortemente do que o faria uma “crise” econômica, que é perceptível por todos e confessada cotidianamente pelos próprios representantes do sistema reinante, não pode existir fazer e objetivo político verdadeiro que não sejam envolvidos por toda a profundidade da questão social e que possam concebê- la de um modo que não o seja da perspectiva de uma transformação radical, ou por conseguinte, que possam ser concebidos de um modo que não seja o da condição ou reinício histórico do projeto revolucionário engendrado pelo movimento operário. Não pode haver política que não pretenda revolucionária sem tentar explicitar e elucidar a relação com sua origem e sua raiz histórica, o movimento operário. A história do movimento operário é a história da atividade de homens que pertencem a uma categoria sócio-econômica criada pelo capitalismo (e de outros, que lutaram ao lado dela), através da “classe”, num sentido novo dessa palavra – constitui-se efetivamente numa “classe” cuja história não oferece nenhuma analogia próxima ou distante. Transforma-se transformando a passividade, a fragmentação, a concorrência (que o capitalismo visa e tende a lhe impor), em atividade, solidariedade, coletivização que inverte a significação da coletivização capitalista do trabalho. Ela inventa em sua vida cotidiana, nas fábricas e fora delas, defesas sempre renovadas contra a exploração, engendra princípios estranhos e hostis aos do capitalismo; cria formas de organização e de lutas originais. Tenta se unir acima das fronteiras, faz seu hino de uma canção que se chama A internacional. Paga a ignomínia capitalista o tributo mais pesado de miséria, de perseguição, de deportações, de prisão e de sangue. Nos momentos culminantes de sua história, cria novas instituições universais que encarnam seu poder coletivo, e mostra-se capaz de agir com um a audácia e uma profundidade política raramente igualadas por outras coletividades na história”. .( CASTORIADIS, 1985, p, 72-73)

O movimento operário ao criar novas significações engendra o novo e o faz pela imaginação radical. Essas novas formas alteram a sociedade ao mesmo tempo em que alteram o próprio movimento operário. Assim, a luta por direitos na primeira República modifica o próprio movimento operário, uma vez que suas novas significações de direito chocam-se com as significações hegemônicas, levando a uma repressão policial na defesa das significações hegemônicas pelos governantes e pelos capitalistas. Essa repressão extrema leva a diminuição do próprio movimento operário em anos posteriores, mas leva a consolidação e a legitimação das reivindicações operárias, além da perpetuação das novas significações do direito.

A obra de Castoriadis, em especial a Instituição Imaginária da Sociedade, permite um novo olhar sobre o Direito, pois possibilita uma outra definição de Direito. Esta nova definição, reunida com as inovações sobre uma metodologia da história pode levar o historiador do direito a alcançar novas perspectivas. Pensar a história do Direito somente é possível quando se delimita o que se entende sobre Direito.

4) Uma outra visão do Objeto da História do Direito

Os livros de História do Direito, mesmo aqueles que não adotam o paradigma do positivismo, geralmente utilizam-se do conceito de Direito como norma jurídica estatal, que é apenas um dos muitos conceitos de Direito. Isso faz com que esses estudos, mesmo quando querem adotar uma metodologia diferente, fiquem restritos a um único conceito de Direito. Portanto, para uma se construir uma nova História do Direito, não basta a mudança no conceito de história e em sua metodologia, é necessário se repensar o que se entende como Direito, não restringindo os estudos a um único conceito.

Castoriadis traz um novo conceito do que venha a ser Direito. Nesse item apresenta-se esse conceito de Direito a partir de sua oposição com diversos conceitos de Direito, que costumam estar em discussão nos livros de Direito: Direito como norma e como sanção, Direito como uma pluralidade de normas, Direito como um objeto sem história/universal, Direito como função/sem dimensão simbólica, Direito como sistema, Direito como comunicação, Direito como esfera da racionalidade, Direito apartado da dimensão política. Essas concepções de Direito não serão retomadas a partir dos seus autores, uma vez que o que se pretende aqui é apenas apontar como elas são diferentes da definição que Castoriadis adota para o Direito.

A obra de Castoriadis traz uma nova dimensão para os estudos do Direito que ultimamente tem se preocupado em buscar novos conceitos de Direito. Castoriadis permite que se conceitue o Direito de uma maneira plúrima, o que amplia o objeto da História do Direito e proporciona ao historiador a pensar em Direitos no plural. Esses Direitos existem como existem o Direito estatal e não há uma hierarquia entre eles. Assim, o direito estatal não é mais importante que os direitos consuetudinários, os direitos marginais, etc; nem é visto como o único direito possível, como afirmava Hans Kelsen.

Para Castoriadis o Direito não é um conceito definido e dado, mas algo construído no tempo. Se o Direito não se congela em um tempo é porque é dinâmico e vivo, é fruto da sociedade e caminha com ela, apresentando seus fluxos e refluxos. Castoriadis não é um teórico do Direito, apesar de ter cursado uma faculdade de Direito, mas ao tratar das instituições da sociedade trata também do Direito, uma vez que o Direito é uma das instituições sociais.

O direito não é definido pela sanção, segundo Castoriadis. O direito entendido como uma instituição social imaginária perde uma de suas principais características juntos aos juristas da atualidade, que o definem por sua sanção. É a sanção jurídica que diferencia para muitos as normas do direito e outros tipos de normas. Jhering destaca o caráter sancionador do Direito por via do Estado, quando afirma: “O Direito pode, em meu entender, definir-se exatamente – o conjunto de normas em virtude das quais, num Estado, se exerce a coação”. (JHERING, 1956, p, 256). Kelsen afirma em seu mais famoso texto Teoria Pura do Direito, que: “Direito é essencialmente ordem de coação. Prescreve uma certa conduta de modo que, como consequência, liga um ato de coação à conduta contrária do ser-devido”.( KELSEN, 1994, p, 30)

 Para Castoriadis as instituições asseguram sua validade efetiva, apenas em alguns casos pela sanção e pela coerção, e na grande parte das vezes e com mais eficiência, pela adesão, apoio, consenso, legitimidade e crença. (CASTORIADIS, 2002a. p, 238) Como o direito é uma instituição, pode-se inferir que para Castoriadis, o principal do direito não é a sanção, mas sim a capacidade de criar adesão social, pois ele molda o homem ao mesmo tempo em que permite que esse homem construa um novo direito.

“Não pergunte: como é possível que a maioria das pessoas não venha a roubar, ainda que tivessem fome? Não pergunte nem mesmo: como é possível que elas continuem a votar em tal ou qual partido mesmo após terem sido repetidamente enganadas? Pergunte-se antes: qual é a parcela de todo o meu pensamento e de todas as minhas maneiras de ver as coisas e de fazer coisas que não está condicionada e co-determinada, em um grau decisivo, pela estrutura e pelas significações de minha língua materna, pela organização do mundo que essa língua carrega consigo, pelo meu primeiro ambiente familiar, pela escola, por todos os ‘faça’ e ‘não faça’ com que freqüentemente fui assediado, pelos meus amigos, pelas opiniões correntes ao meu redor, pelos modos de fazer que me são impostos pelos inumeráveis artefatos que me cercam, e assim por diante. Se você puder verdadeiramente responder, com toda a sinceridade, mais ou menos 1%, você será com certeza um pensador mais- original que já existiu. Não temos certamente nenhum mérito por não ‘ver’ Ninfa habitando cada árvore ou cada fonte (nem seríamos doentes, ou deficientes, se a víssemos). Somos todos, em primeiro lugar, fragmentos ambulantes da instituição de nossa sociedade – fragmentos complementares, ‘partes totais’, como diria um matemático. A instituição produz indivíduos conforme suas normas, e estes indivíduos, dada sua construção, não apenas são capazes de, mas obrigados a, reproduzir a instituição. A ‘lei’ produz ‘elementos’ de tal modo que o próprio funcionamento desses elementos incorpora e reproduz – perpetua- a ‘lei’.” (CASTORIADIS. 2002a , p, 238)

A teoria de Castoriadis é interessante ao Direito não apenas por permitir o pluralismo jurídico, mas sim por proporcionar uma outra saída para as teorias do Direito existentes. Para Castoriadis o Direito não é comunicação, não é sistema e não é função. Ou pelo menos, não é só isso. O Direito pode ser entendido na teoria de Castoriadis como uma instituição imaginária da sociedade (o autor não chega a tratar em profundidade do Direito, porém este é um dos muitos objetos de interesse que estão esparsos em sua obra). Castoriadis entende como instituição: “uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um componente imaginário”(CASTORIADIS, 1982, p.159) .

O direito como instituição imaginária da sociedade é um magma de significações que a sociedade atribui em um dado tempo e lugar. O direto não poderia ser um objeto apresentado no tempo sem mudança, isso porque a descrição do objeto também depende de quem o vê. Essa visão e revisão levam a uma alteração constante do objeto, que não é pré-determinado, mas se constrói pelas significações. A teoria de Castoriadis busca ir além dos conceitos positivistas, marxistas, estruturalistas e do funcionalismo. Assim, o Direito não pode ser definido só ontologicamente, pois esse Direito é um objeto em construção.

O direito somente pode ser entendido a partir dessa visão de Castoriadis como uma instituição definida em um tempo histórico e que representa e é representada por uma sociedade. Assim entendido, o direito não pode ser um objeto universal, nem descolado de seu tempo, nem se restringir ao direito estatal, como aponta a teoria hegemônica do Direito. O Direito é necessariamente histórico: (CASTORIADIS, 1982, p,145).

“Mas, sobretudo, enfatizando a funcionalidade do direito romano, escamotearemos a característica dominante de sua evolução durante dez séculos, justamente aquilo eu faz dele um fascinante exemplo do tipo de relações entre a instituição e a ´realidade social subjacente´ (…) A lição do direito romano, considerado em sua evolução histórica real, não é a funcionalidade do direito, e sim a relativa independência do formalismo ou do simbolismo em relação à funcionalidade, no início; em seguida, a conquista lenta, e jamais integral do simbolismo pela funcionalidade”. (CASTORIADIS, 1982, p.146).

Como o Direito é histórico ele se altera conforme a sociedade efetiva suas mudanças. Mas como histórico, o Direito atualmente é fruto de uma sociedade capitalista e reflete seus valores. Castoriadis não entende que o Direito deixará de existir em uma outra sociedade, assim como afirma Marx, em que na sociedade comunista o direito deixa de existir porque não há luta de classes. Para Castoriadis o Direito é uma instituição imaginária da sociedade e somente pode se extinguir quando o homem deixar de existir. Marx ao dar ênfase à questão econômica acaba por escamotear o papel do imaginário frente ao papel funcional, apesar de reconhecer sua existência. Para Castoriadis a esfera do econômico é apenas mais uma das esferas da sociedade e não necessariamente a principal, o que evidencia sua ruptura com o marxismo. A posição de Castoriadis é por isso diferente das de muitos sociólogos do Direito de vertente marxista, que explicam as mudanças do Direito pela economia.

O direito também não fica restrito às suas funções, pois pode englobar a esfera do simbólico. Castoriadis se posiciona contra o funcionalismo:

“Contestamos a visão funcionalista, sobretudo, devido ao vazio que apresenta naquilo que deveria ser para ela o ponto central: quais são as ´necessidades reais´ de uma sociedade, que as instituições se destinariam a servir? (…) Uma sociedade só pode existir se uma série de funções são constantemente preenchidas (produção, gestação e educação, gestão da coletividade, resolução dos litígios, etc), mas ela não se reduz só a isso, nem suas maneiras de encarar seus problemas são ditadas uma vez por todas por sua ´natureza´; ela inventa e define a si mesma tanto novas maneiras de responder às suas necessidades, como novas necessidades”. (CASTORIADIS, 1982, p.141).

Afirmar que há uma esfera além da função, significa introduzir um componente não racional, em um saber que a partir de seu estabelecimento como ciência, tratou de se estabelecer como um estudo racionalizado.

O estudo do simbólico no Direito permite entender diversos componentes, que somente a racionalidade não explica. Não se trata apenas de um estudo do Direito que permita aquilo que é irracional, mas sim, que permita a noção de caos, que é o que possibilita a criação. Somente a racionalidade para Castoriadis, leva a reprodução do que já foi criado, pois está na esfera do cosmos. A esfera do caos é que cria, e é esta esfera que foi alijada durante muito tempo do saber e que Castoriadis pretende reintroduzir a partir da superação de uma lógica conjuntista-identitária.

O Direito é entendido por Castoriadis como instituição social e como tal, apresenta um caráter funcional e simbólico. Se o Direito, ou melhor, se há Direitos com funções, esses Direitos também tem um caráter simbólico, que não pode ser desprezado, pois muitas vezes o caráter simbólico se sobrepõe à questão da função.

“As instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbólico, são impossíveis fora de um simbólico em segundo grau e constituem cada qual sua rede simbólica. Uma organização dada da economia, um sistema de direito, um poder instituído, uma religião, existem socialmente como sistemas simbólicos sancionados. Eles consistem em ligar a símbolos (a significantes) significados (representações, ordens, injunções ou incitações para fazer ou não fazer, conseqüências – significações, no sentido amplo do termo) e fazê-los valer como tais, ou seja tornar esta ligação mais ou menos forçosa para a sociedade ou o grupo considerado”. (CASTORIADIS, 1982, p.142)

Castoriadis se volta contra os funcionalistas, mas também ataca as explicações estruturalistas. O direito não é função, como não é estrutura. O Direito tem função e estrutura e muitas outras coisas, inclusive o simbólico. Para Castoriadis o Direito é entendido pelos estruturalistas como tendo um sentido a partir de uma combinação de signos. Porém, o que os estruturalistas não evidenciam é que a estrutura somente pode ser formada a partir da criação de alguém ou de uma sociedade, que criou essa estrutura. O estruturalista deve sua existência ao criador (CASTORIADIS, 1982, p.167)

O direito não é sistema, no entender de Castoriadis, como procura definir Parsons e seu aluno Luhmann. Entender o Direito como sistema é reproduzir a lógica conjuntista-identitária e esquecer da dimensão simbólica do social. Os teóricos sistêmicos entendem que o direito tem um telos e esse telos é geralmente o controle social. Castoriadis afasta-se dessa posição ao entender que o Direito é instituição social imaginária, não é algo extra sociedade com caráter punitivo e fiscalizador, mas expressão da própria sociedade. A sociedade para Castoriadis é formada de homens, sujeitos da sua própria história, afastando-se da ideia luhmanniana de papel social. Restringir, portanto, o que é direito e a dimensão de sua atuação é muito mais difícil, do que entender que o Direito é um sistema. Não raras vezes os autores sistêmicos subetendem sistema jurídico por sistema de normas e com isso caem mais uma vez na armadilha kelseniana ao qual tentaram se safar.

O direito também não é apenas comunicação, como buscaram definir os teóricos do Direito com viés lingüístico (Alexy, Gunther, Perelman) ou da teoria da comunicação (como Habermas)[2]. A fala não é o único meio de se comunicar, pois há o simbólico. Castoriadis entende que nem toda comunicação é racional, como grande parte dos autores citados acima. A posição de Castoriadis é diferente da de Habermas, pois para o filósofo grego o direito é práxis que se realiza na sociedade. A possibilidade de emancipação não está na ação comunicativa, mas sim na busca por uma autonomia através do imaginário radical, que cria o novo. A questão do Direito não pode ser restringida à política racional individualista, mas participativa, para efetivar mudanças possíveis no atual sistema capitalista, pois para Castoriadis a dimensão política da sociedade se dá no coletivo e é propiciada pelo caos criativo.

O direito não se restringe a dimensão racional. O direito a partir do século XIX busca afirmar seu caráter de ciência, realçando a questão da racionalidade presente em suas normas e na prática legislativa e do judiciário. A dimensão do que não era racional acabou sendo deixada em uma perspectiva do jusnaturalista, que foi sendo abandonada frente ao paradigma dominante de ciência do direito, o juspositivismo.Nessa mudança temas que eram fundamentais no Direito como a questão da justiça ou da moral, ficaram sem muito lugar no juspositivismo. A questão do justo ou do injusto não tinha vez em um Direito que entendia que o Direito estatal era o justo e não poderia ser questionado em seu estatuto de Direito. A justiça, nesse sentido de sentimento, fica sem locus no direito moderno, porque não está definida nos limites do racional.

Castoriadis por entender que o homem não é definido pelo racional, mas sim por sua capacidade criadora, não foca seus estudos no caráter racional e com isso permite um Direito que possa ser percebido por outras dimensões. Isso não quer dizer que o Direito não tenha uma parcela do racional, mas que também tem uma grande parcela do simbólico e que não raras vezes o racional, como produto social, é também simbólico.

Assim, se pode dizer que o Direito racionalizado dos positivistas jurídicos, dentre ele o mais famoso Hans Kelsen, tem sua racionalidade como um símbolo. Nesse sentido a racionalidade se torna fetiche, no entender marxista do termo. A racionalidade que a sociedade busca é um indicador do que essa própria sociedade acredita e entende como verdade. Castoriadis toma um caminho diferente da Escola de Frankfurt, que desiste da racionalidade fetichizada (como Adorno-Horkeimer) ou tenta reabilitar seu status (como Habermas). Isso porque, para Castoriadis a racionalidade não é uma patologia social dentro da sociedade capitalista que deve ser tratada, mas ela é uma instituição imaginária dessa própria sociedade.

“O que se dá como racionalidade da sociedade moderna, é simplesmente a forma, as conexões exteriormente necessárias, o domínio perpétuo do silogismo. Mas nesses silogismos da vida moderna, as premissas tomam seu contudo do imaginário; é a prevalência do silogismo como tal, a obsessão da racionalidade separada do resto, constitui um imaginário em segundo grau. A pseudo-racionalidade moderna é uma das formas históricas do imaginário; ela é arbitrária em seus fins últimos na medida em que eles não dependem de nenhuma razão, e é arbitrária quando se coloca como fim, visando uma ´racionalização´ formal e vazia”. (CASTORIADIS, 1982, p.188).

O direito como instituição imaginária social pode ser entendido como um direito em que o caráter político não é escamoteado. A política é uma das esferas que no entender de Castoriadis, permite a transformação para a autonomia da sociedade, que somente é possível em uma democracia. Assim, Castoriadis se diferencia também de outros autores que afirmam a dimensão política do Direito, mas fazem com que haja subordinação ou interdependência do Direito à Política. Entre esses autores pode-se encontrar Bobbio, que afirma que Direito e Política são duas faces da mesma moeda, ou mesmo filósofos de posições diferentes como Carl Schmitt, Lassale e Pasuckanis, que tem em comum entender que o Direito é servo da Política.

 O grande objetivo da política, para Castoriadis, é a autonomia da coletividade, que somente pode ser realizada pela auto-instituição e pelos auto-governos, chegando assim a uma liberdade efetiva. O Direito, nesse sentido, é político uma vez que faz parte das decisões da polis e somente pode se desenvolver na esfera pública, pois nela é que ocorre as discussões para efetivação de melhoras na sociedade.

Para Castoriadis a autonomia somente é possível na democracia. Ele entende como democracia um regime de autolimitação (CASTORIADIS, 2002 a, p.206) . Limitação que é dada pelo próprio povo, uma vez que a palavra democracia quer dizer isso mesmo, poder do povo. Desse modo, a limitação do povo dada ao próprio povo é a própria expressão da autonomia. É nesse sentido que Castoriadis afasta o argumento de que com as leis não se tem mais autonomia, pois se é obrigado a respeitar leis que não foram feitas pela própria pessoa. Portanto o papel das leis, e aqui pode-se dizer, do Direito, para uma sociedade é fundamental, pois ela leva à própria sociedade, ao mesmo tempo que em um círculo virtuoso, propicia que a sociedade crie um Direito.

Considerações Finais

A teoria da História de Castoriadis é conhecida, mas não muito utilizada no âmbito da pesquisa histórica. Porém, ela propicia para o historiador do Direito um instrumental teórico interessante ao propor uma ampliação do objeto da história, que é o Direito. Assim, o Direito não precisa se restringir ao Direito estatal. O Direito visto como uma instituição imaginária da sociedade é um objeto social-histórico, fruto da criatividade humana, que é alterado e altera a sociedade. Nesse sentido, Castoriadis permite o estudo de um objeto que é construído por um sujeito coletivo, mas que não se restringe a posição heterônoma de Direito. Os estudos de história, com isso, ganham uma dimensão muito mais complexa e permite um estudo mais rico ao entender o Direito como um objeto que é fruto da criação radical dos homens.

 

Referências
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 6 ed.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
_____. A experiência do movimento operário. São Paulo: Brasiliense,1985.
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Notas
[1] Este texto é uma reelaboração de uma parte do relatório de pós-doutoramento entregue na FD-USP, com financiamento da Fapesp, denominada: As significações do Direito pelo movimento operário paulista (1917-1920): um estudo de história imaginária do Direito, e da palestra proferida no IBDH- O Direito como instituição imaginária da sociedade: uma reflexão sobre o objeto da História do Direito a partir da teoria da história de Castoriadis; ambos inéditos até o momento

[2] Habermas contrapõe sua teoria com a de Castoriadis no texto “Excurso sobre C. Castoriadis: a instituição imaginária”. In: Discurso Filosófico da Modernidade.


Informações Sobre o Autor

Gisele Mascarelli Salgado

Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056


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