Resumo: A mutação constitucional foi realizada para reconhecer a igualdades de tratamento as uniões homoafetivas no Brasil. Tanto a interpretação conforme a Constituição, como a leitura moral foram aplicados na ADPF 132/RJ como forma de mudar o sentido da norma e permitir a paridade de tratamento nas relações homoafetivas, em igualdade de direitos.
Palavras-chave: Direito Constitucional – Mutação Constitucional – União Homoafetiva.
Abstract: The constitutional mutation was performed to recognize the equality of treatment to homo-affectivity unions in Brazil. Both the interpretation according to the Constitution, as the moral reading were applied in ADPF 132/RJ as a way to change the meaning of the rule and allow for equal treatment in homo-affectivity relations on equal rights.
Keywords: Constitutional Law – Constitutional Changes – homo-affective Union.
Sumário: Introdução. 1- Eficácia da constituição. 2- Mutação constitucional. 3-Reconhecimento da mutação constitucional nas uniões homoafetivas. 4- A vedação expressa da Constituição. Conclusão. Referências.
Introdução
As relações fáticas estão sujeitas a mudanças, que podem ou não provocar mudanças na interpretação da Constituição. Havendo a necessidade de concretizar a mudança de sentido normativo, a revisão constitucional afigura-se inevitável, sob pena da tensão entre norma e realidade figurar em violação ao sentido de justiça.
Assim a técnica da mutação constitucional surge como instrumento apto para deflagrar a alteração do sentido dos enunciados, conservando o texto da constituição e promovendo a alteração semântica, deixando intactas as palavras, mas conferindo uma nova significação.
No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 do Rio de Janeiro convertida em ação direta de inconstitucionalidade 4277, promoveu-se a mutação constitucional, alterando o sentido do texto, conferindo ao art. 1.723 do Código Civil, interpretação para excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo.
Entretanto há debates tentando compreender se a Corte Constitucional se utilizou da leitura moral ou da leitura conforme a Constituição, tomando como ponto de partida a vedação expressa contida no art. 226, § 3º da Magna Carta, levando a conclusão que o Supremo Tribunal Federal promoveu a alteração da norma para que o seu significado se adaptasse ao contexto moral da época.
Pretende-se examinar quais dos instrumentos foram utilizados para promover a mutação constitucional, a leitura moral ou a leitura conforme a Constituição, no julgamento da ADPF 132, fazendo a cotejamento analítico dos votos encartados e da bibliografia sobre o tema.
1. Eficácia da constituição
Lassalle (1988), em sua obra sobre a essência da constituição expôs que questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim políticas. Ele entendia que a constituição encontrava uma relação com o poder nela dominante. Havia uma relação entre o poder real que resultava na verdadeira força ativa da lei e da sociedade. Expressão designada por ele como fatores reais de poder de forma que a constituição de um determinado País, o documento escrito é a Constituição Jurídica e não passa de um pedaço de papel, pois a vida da Constituição Jurídica só pode reinar se houver compatibilidade com a Constituição Real, do contrário haveria um conflito em que a Constituição Jurídica seria tratada apenas com um pedaço de papel sem significado.
Korand Hesse (1991) propõe que a relação da Constituição Jurídica com a Constituição Real vai além. Há uma relação de simbiose entre ambos, do contrário, a ciência jurídica, seria apenas uma ciência política, que se limitaria a justificar as relações de poder dominante. Enquanto a Constituição Real não expressaria nenhuma normatividade para a sociedade, se tornando uma ciência do ser. É um fato que a constituição expressa um momento do poder e está inserida em um momento histórico, porém é uma visão equivocada se não considerar que a constituição possui uma força própria.
Partindo do postulado de Konrad Hesse que se aborda a necessidade de modificar o sentido do texto da Constituição como uma forma de se alcançar a igualdade de tratamento entre as uniões homoafetivas e ao mesmo tempo preservar a força normativa da Constituição.
A eficácia tem elementos autônomos e reflete mais do que as condições fáticas da vigência, mas também as forças sociais e políticas. Graças a pretensão de eficácia a constituição imprime ordem e conformação a realidade política e social. Determina a realidade social e ao mesmo tempo é determinada por ela. É tanto um elemento criado pela sociedade quanto um elemento que a modifica.
A constituição real e a constituição jurídica estão em uma relação de coordenação e não de antagonismo como proposto por Lassalle (apud HESSE, 1991). É que a pretensão de eficácia dada a constituição a faz ter uma força normativa que só é possível existir a partir do momento em que a constituição jurídica limita a realidade.
Ademais, a constituição exclusivamente política e fundada apenas racionalmente não tem êxito. Apenas a constituição que resulta da luta tem eficácia. É um fato que a constituição se vincula a historia e se orienta a ordenação com parâmetros de racionalidade. A norma constitucional somente pode atuar se procura construir algo com base na realidade.
A ordem normativa deve assegurar que o Estado não haja ao arbítrio é, portanto uma ordem que precisa estar sempre legitimada pelos fatos e não pode existir sem a vontade humana, por isso o conteúdo da Constituição deve ser fidedigna ao presente justamente para assegurar a força normativa.
Afigura-se, igualmente, indispensável que a Constituição mostre-se em condições de adaptar-se a uma eventual mudança dessas condicionantes. Abstraídas as disposições de índole técnico-organizatória, ela deve limitar-se , se possível ao estabelecimento de alguns poucos princípios fundamentais, cujo conteúdo específico ainda que apresente características novas, em virtude das céleres mudanças na realidade sócio-política, mostre-se em condições de ser desenvolvida.
O desenvolvimento da força normativa não depende só do seu conteúdo, mas também de sua prática. É a vontade da Constituição que deve ser preservada mesmo que tenha que renunciar alguns benefícios e para dar garantia a existência do Estado Democrático. Outra situação perigosa para a Constituição é o excesso de reformas. Cada reforma expressa a ideia deque os fatos possuem maior relevância e abala a confiança da Carta Magna.
Portanto, uma mudança das relações fáticas pode, ou melhor deve provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. Se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade com a supressão do próprio direito.
A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, logo, da sua estabilidade. Caso ela venha faltar, torna-se inevitável a ruptura da situação jurídica vigente.
A constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Sua eficácia só pode ser realizada se levar em conta essa realidade, contudo esta não se configura apenas de uma dada realidade, ela ordena e conforma a realidade política e social. A Constituição modifica a realidade posto que determina e converte a realidade social e politica. Esta modificação será mais efetiva quanto mais convicção houver sobre a sua inviolabilidade. Nesse contexto é possível enquadrar a mutação constitucional como uma forma de garantir a eficácia da Constituição.
2. Mutação constitucional
A técnica da mutação constitucional visa a alteração do sentido dos enunciados, conservando intacto a disposição literal do texto da constituição. Não se trata de uma particularidade da Constituição, na verdade é uma premissa geral do ordenamento jurídico e é possível observá-la também no campo semântico onde é possível observar que as palavras assumem com o protrair do tempo e do espaço uma nova significação (MENDES et al, 2009).
Uma das característica da linguagem normativa é a sua textura aberta e algo que se estende ao linguajar do direito e aos enunciados da Constituição, que são ainda mais abertos que aqueles que veiculam outros comandos jurídicos.
Partindo dessas premissas, as mutações constitucionais se assemelham as alterações semânticas dentro da Constituição é um movimento que decorre das mudanças na história, sociologia, são mudanças da realidade. A mutação constitucional parte também da dimensão tripartite do direito que foi abordada por Miguel Reale (apud MENDES et al 2009, p.152).
Da interação entre fato, valor e norma é possível observar que as leis se mantêm imutáveis, mas a acepção do seu conteúdo sofre um processo de modificação gradual que vai enriquecendo o sentido da norma, atribuindo ao texto um comando novo que o atualiza.
Trata-se de um processo gradual e comum a todas normas sujeitas a um controle sobre o seu próprio comando, ou seja, é um fato irremediável de que a Constituição convive com o fardo de regular diversos setores e que por fim esbarra em fatores externos que exigem uma postura dialética cobrando uma releitura de seus comandos apta a solucionar problemas surgidos da evolução da sociedade.
É uma técnica de julgamento e de interpretação que visa modificar o sentido da norma, para que esta não seja fossilizada e garanta a eficácia proposto por Hesse, tendo em vista que a mutação assegura que a norma está em compatibilidade com a realidade social e possui capacidade de regular as relações jurídicas.
Apenas observar a ordenação jurídica, ou seja, verificar se a norma está em vigor ou derrogada, ou unicamente considerar a realidade política e social seria ignorar o significado de ordenação. Isto faz parte do pensamento constitucional do passado que está marcado pelo isolamento entre a norma e a realidade. É constatação extraída tanto no positivismo da Escola de Paul Laband e Georg Jellinek bem como no positivismo sociológico de Carl Schmitt. A separação entre a realidade e norma, entre ser (sein) e devere (sollen) apenas reforça a idéia de supremacia das relações fáticas que leva inegavelmente a destruição da força normativa da Constituição (apud HESSE 1991, p.13 ).
A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade, a sua essência reside na sua eficácia. Há, portanto, uma relação de interdependência que não pode ser desconsiderada das ideias sociais que influenciam a sociedade (HESSE, 1991).
A própria mutação é uma forma de interpretação, com suas peculiaridades, posto que vai além de uma simples releitura, mas visa também uma função política e social.
Os limites da interpretação não constitui um problema isolado da Constituição, mas de toda a hermenêutica jurídica. Todo texto está exposto ao tempo podendo sofrer modificação e até ter o seu significado extinto. No caso da Constituição, que é uma carta política, podemos observar que aqueles que a operam estão inseridos dentro de uma determinada realidade hermenêutica e que com o tempo vão modificando a lei e a transformando em direito interpretado. Por isso não há grande diferença entre o limite da mutação constitucional e o limite da interpretação constitucional, posto que a mutação não passa de uma nova leitura do texto com base na nova realidade que nada difere da interpretação.
Se mutação for apenas a interpretação constitucional então de nada diferem uma da outra. Se mutação, porém se for um fenômeno mais complexo então trata-se de um processo diferente.
Contudo, é óbvio que a mutação constitucional é um processo mais complexo, pois o seu fenômeno decorre de múltiplos fatores e não simplesmente de uma modificação do significado da norma. Há uma função política e social que visa preservar a Constituição e assegurar a sua força normativa.
Contudo, há juristas como Duan-Lin que defendem que a mutação constitucional é uma incongruência, já que não é possível observar uma violação formal a Constituição, posto que esta nada expõe sobre aquela nova interpretação, bem como é impossível exercer um direito apenas invocando a interpretação da Constituição. Trata-se de um problema de ordem geral que versa sobre a legitimidade da mutação, visto que dar novo significado as palavras é também criar novas palavras. (apud MENDES et al 2009, p. 153)
O que se observa dos opositores é a clareza de que a mutação constitucional afasta a segurança jurídica e se aproxima mais de uma Corte Constitucional, justamente por visar um controle de constitucionalidade nas entrelinhas da Constituição.
Por isso é que os operadores do direito analisam os processos de criação do direito através da interpretação já que há possibilidade de haver mudança da norma e é importante que a modificação se mantenha dentro de um espectro aceitável, pois tal violação levaria a criações de novas normas que ultrapassam o sentido literal dos enunciados e transformaria os interpretes em legisladores.
Embora a Constituição não seja um texto rígido e estático isso não significa que o seu texto esteja sujeito a qualquer forma de interpretação, logo não se aceita a leitura que vá além daquelas permitidas. O efeito da alteração feita de forma não autorizada, em razão do efeito da irradiação da constituição, poderia desconfigurar todo o ordenamento jurídico. Por isso há mais rigor em se trabalhar com a mutação constitucional.
O limite da própria mutação também esbarra nas cláusulas pétreas que são conhecidas por visarem a eternidade e que são os núcleos da constituição e asseguram uma unicidade dentro do ordenamento jurídico. Portanto, não será possível que uma mutação viole ainda que indiretamente os dispositivos esposados no Art. 60, § 4º, incisos I a IV da Constituição Federal.
3. Reconhecimento da mutação constitucional nas uniões homoafetivas
É possível compreender bem a aplicação da mutação constitucional no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 do Rio de Janeiro convertida em ação direta de inconstitucionalidade 4277. O voto confere a mudança da interpretação dada ao art. 1.723 do Código Civil, utilizando-se da interpretação conforme a Constituição para excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar (BRITTO, Voto na ADI 4277 e ADPF 132/RJ; p. 49).
“Dando por suficiente a presente análise da Constituição, julgo, em caráter preliminar, parcialmente prejudicada a ADPF no 132-RJ, e, na parteremanescente, dela conheço como ação direta de inconstitucionalidade. No mérito, julgo procedentes as duas ações em causa. Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva.”
Para chegar a essa transformação de entendimento, tomando como partida o voto do relator, percebe-se que este manifestara sobre a acepção da palavra sexo tão amplamente usada na Constituição, em especial do art. 3º, inciso IV. Seguindo a mesma linha de raciocínio trabalhada com a ideia transmitida pela palavra homossexualismo que com o transcorrer do tempo foi sofrendo transformações no seu uso para melhor acortinar a sua verdadeira faceta.
O próprio sufixo em ismo trazia em si a ideia de se tratar de um transtorno, mas a evolução científica já rebateu a sua inveracidade, passando para o tratamento posterior de homossexualidade, que também não agradou por ser dispare da verdadeira relação envolvida. Por isso o mais adequado é homoafetividade, que reforça a ideia do vínculo de amor que surge desta união.
O uso da expressão reforça a ideia da constituição de um novo núcleo familiar que vem se afirmando socialmente ao mesmo tempo em que afasta a interpretação de que ali está presente uma relação comercial ou mercantil exigindo que a sociedade tutele esta relação de uma forma mais próxima a união afetiva presente naquela relação.
Partindo da contexto histórico que a palavra assume com o decorrer do tempo e do espaço é que se inicia o debate sobre a dicotomia entre héteroafetividade e homoafetividade. O antagonismo existente não é um caso isolado na Constituição e também está presente na palavra sexo no inciso IV do Art. 3º que confere a esta o confronto entre o homem e a mulher. Trata-se de uma forma de diferencia duas espécies do gênero humano. Assim bem elucidado no julgado (BRITTO, Voto na ADI 4277 e ADPF 132/RJ; p. 24).
“Trata-se, portanto, de um laborar normativo no sítio da mais natural diferenciação entre as duas tipologias do gênero humano, ou, numa linguagem menos antropológica e mais de lógica formal, trata-se de um laborar normativo no sítio da mais elementar diferenciação entre as duas espécies do gênero humano: a masculina e a feminina. dicotomia culturalmente mais elaborada que a do macho e da fêmea, embora ambas as modalidades digam respeito ao mesmo reino animal, por oposição aos reinos vegetal e mineral.”
O que se observa é vedação ao tratamento discriminatório como uma via para que o Estado alcance o bem de todos. Tornando o alcance da norma ainda maior e mais extenso do que apenas a vedação da desigualdade entre homens e mulheres. Deste conceito extraí-se a eliminação do preconceito entre os sexos como uma forma de buscar o bem de todos, uma norma que visa um reflexo positivo que deve ser alcançado em toda a sociedade. É a concretização do constitucionalismo fraternal que busca a integração entre as pessoas e leva a concretização das políticas públicas afirmativas.
A vedação do preconceito nivela as pessoas ao mesmo patamar, pois deixa de considerar alguém mais ou menos digno em razão do fato de ter nascido em determinada condição. Ademais, palavra sexo assume vários sentidos e pode versar sobre o aparelho sexual, a conjunção carnal e a reprodução biológica. Diante da realidade a palavra sexo é um ponto de partida para a análise do caso concreto das relações afetivas.
O julgado parte do preceito de uma norma geral negativa, trabalhando com a regra de fechamento hermenêutico de Kelsen (apud BRITTO, Voto na ADI 4277 e ADPF 132/RJ; p. 27), tudo que não for proibido é autorizado. Logo, o silêncio da norma sobre a função sexual permite e autoriza a preferência, ou orientação, de cada pessoa. O sexo passa a ser um todo indivisível que deve ser protegido como forma de se alcançar a plenitude existencial para o indivíduo, (BRITTO, Voto na ADI 4277 e ADPF 132/RJ; p. 30):
“Nesse fluxo de interpretação constitucional das coisas, vê-se que estamos a lidar com normas que não distinguem a espécie feminina da espécie masculina, como não excluem qualquer das modalidades do concreto uso da sexualidade de cada pessoa natural.”
A interpretação constitucional não veda o uso concreto da sexualidade, não diferencia que a proteção é exclusiva para diferenciar apenas o gênero feminino do masculino. Nessa falta de distinção é que se observa a forma como se trabalha com a ideia de mutação constitucional, que vai além da interpretação, ela parte de uma mudança da realidade e ao mesmo tempo visa assegurar a Constituição uma força de eficácia.
A proibição de fazer distinção entre homem e mulher também o é fazer em razão da preferência sexual. Ressalta-se ainda que a liberdade para dispor da sexualidade está no rol dos direitos fundamentais do indivíduo, ancorado na autonomia da vontade que emana do princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, está protegido pelo inciso IV do Art. 60 da Constituição. Logo, a preferência sexual se posiciona como um direito fundamental que emana do princípio da dignidade da pessoa humana.
Outro ponto que não pode deixar de ser citado é o conceito de família que não mais comporta o mesmo entendimento pretérito e que teve uma ampliação de seu sentido gradativamente, passando a trazer mais a ideia de um vínculo afetivo do que um vínculo formal. Família é uma unidade que forma Pátria e uma forma essencial para a sobrevivência da própria espécie humana e que assegura o equilíbrio, desenvolvimento, evolução da própria sociedade. É dentro desta unidade que se forma e se concretiza os princípios basilares da sociedade.
A atualidade não mais permite que se faça a distinção entre uma família formalmente constituída e a de fato. Assim, se a Constituição protege as uniões oriundas da heteroafetividade inexiste razão para fomentar tratamento diferenciado as uniões homoafetivas. Não existe sentido ortodoxo para sustentar a afirmação de que as relações entre pessoas do mesmo sexo mereçam menor proteção. Assim, a releitura da Constituição vislumbra que quanto maior for esta unidade, na mesma proporção será o núcleo de colaboração, conforme elucida o julgado (BRITTO, Voto na ADI 4277 e ADPF 132/RJ; p. 39).
“Daqui se desata a nítida compreensão de que a família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada. O que a credencia como base da sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a família como “a Pátria amplificada”).”
Cuida-se de um salto normativa da proibição de distinção com primazia da liberdade decorrente de um mutismo constitucional e não respeitar a igualdade. Assim, interpretando o conceito de família de forma não reduzida deve a Constituição preservar a sua coerência para não agir através de um discurso homofóbico.
4. A vedação expressa da Constituição
Os limites da mutação constitucional estão expostos na vedação de que esta ofenda o núcleo central da Constituição, levando a indagação sobre a vedação expressa contida no art. 226, § 3º da Magna Carta.
A própria ADPF 132/RJ enfrentou o tema, e como exposto pelo relator, não há ofensa a ideia de democracia ao expor que dar tratamento isonômico as relações homoafetivas é igualar os tratos sociais e levar a concretização do pluralismo sócio-político-cultural que serve de parâmetro para o próprio conceito de democracia substancial (material), onde se busca a respeitosa convivência dos contrários.
Há ainda o fechamento quanto a extensão sobre a interpretação cabível, pois se a expressão sexo não tem uma definição exata. Portanto chegaria a conclusão que a Constituição também permite a pedofilia, o estupro, contudo há limites sobre a interpretação. O direito a liberdade de escolha sexual também não pode cercear o direito da liberdade dos outros, pois seria permitir atos de violência e ao mesmo tempo ferir outras liberdades consagradas na Constituição (BRITTO, Voto na ADI 4277 e ADPF 132/RJ; p. 31).
“O que já põe o Direito em estado de alerta ou de especiais cuidados para não incorrer na temeridade de regulamentar o factual e axiologicamente irregulamentável. A não ser quando a sexualidade de uma pessoa é manejada para negar a sexualidade da outra, como sucede, por exemplo, com essa ignominiosa violência a que o Direito apõe o rótulo de estupro. Ou com o desvario ético-social da pedofilia e do incesto. Ou quando resvalar para a zona legalmente proibida do concubinato.”
Como já defendido, a mutação constitucional preserva os comandos basilares das premissas do § 3º do artigo 60 da Constituição Federal, no sentido de atentar contra medida tendente a abolir os direito e garantias individuais.
Ainda que a Constituição fizesse advertência expressa, ao reconhecer a proteção familiar adstrita ao núcleo homem e mulher, a disposição literal contida no parágrafo terceiro do art. 226 confere uma proteção, que não pode ser interpretada de forma exclusiva. Cabe ao interprete ampliar ao texto sentido que dê vida as relações sociais, conferindo força para que as relações homoafetivas assumam com o tempo a mesma proteção que gozam as relações heteroafetivas.
Manter viva a Constituição é fornecer ao texto coerência com o tempo atual é fortalecer a sua supremacia e vigência. Portanto ao promover a mutação a corte constitucional está atribuindo consistência para que as relações comunitárias se fortaleçam em torno da Constituição, como bem coloca o julgado. (BRITTO, Voto na ADI 4277 e ADPF 132/RJ; p. 42).:
“Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico.”
Assumir uma interpretação diferente daquela que reconhece a paridade das uniões homoafetivas seria contraria o sistema e a unidade pretendida, ou seja, é assumir um conceito homofóbico e preconceituoso que violariam diversos preceitos já esposados. Não reconhecer a liberdade e não tutelar de forma adequada seria condenar este vínculo à clandestinidade.
Assim, ao concretizar esta proteção o tribunal não está apenas protegendo a unidade da Constituição, mas está dando uma resposta de caráter positivo, ainda que o legislador não o faça. Se o sistema falha em dar uma resposta e o judiciário é invocado ele não pode se omitir ao pretexto de estar usurpando a competência do poder legislativo.
A omissão do poder legiferante não pode esperar que o debate amadureça para que se chegue a uma solução concreta sobre a mudança que se coloca, portanto, o silêncio normativo reforça o papel do STF como corte constitucional.
Por outro lado, a previsão expressa da Constituição para a vedação do reconhecimento da entidade familiar homoafetiva leva a indicação de que a leitura conforme constitucional, não seria adequada para deflagrar a mutação constitucional proposta no julgamento da ADPF 132.
Nesse sentido Dworkin (2006) reflete bem esse debate ao se referir há existência da Leitura moral do texto, que na verdade são convicções morais dos juízes impostas ao público. Entretanto, não existe razão para que se desconheça que o julgamento da ADPF tenha concretizado a mutação constitucional pelas duas modalidades, tanto impondo a releitura do texto constitucional quanto reforçando a existência da leitura moral.
O que se observa é que houve o uma justaposição entre a leitura moral e a leitura conforme a Constituição, havendo uma distinção de relação temporal atinente a anterioridade de uma em relação a outra.
A leitura moral reavaliou o sentido interpretativo da norma para que seu significado se adaptasse ao contexto social, o que ocorre em momento anterior pelo intérprete e a própria sociedade, exigindo a mudança na interpretação da norma que não mais se adapta aos conceitos morais de sua época.
Por outro lado, a leitura conforme Constituição legitima a mudança, fazendo com que o texto admita o sentido contrário aquele expressamente formulado. Portanto, a legitimação ocorre em momento posterior, a fim que a própria Constituição preserve a sua própria validade.
Conclusão
A mudança na realidade social e politica deve ser observada pela Constituição justamente para se preservar a sua eficácia conforme defendia Konrad Hesse. A efetividade da Carta Magna será maior quanto mais efetiva for a convicção acerca de sua inviolabilidade. Logo, é possível verificar que a mutação constitucional se insere como uma ferramenta válida a concretizar esta eficácia pretendida. A mutação constitucional se apresenta como técnica apta a alterar o sentido dos comandos legais dando uma interpretação conforme o almejado pela tutela demandada, contudo conservando o texto da constituição.
Depreende-se que a Corte Constitucional brasileira aplicou a mutação constitucional, como o observado no julgamento da ADPF 132/RJ, conferindo ao art. 1.723 do Código Civil a vedação de ser interpretado no sentido de não reconhecer as relações homoafetivas.
Ao proteger a discriminação o STF se afirma como Corte Constitucional e não está apenas protegendo a unidade texto, mas está legislando. Este é um ponto que ainda precisa ser mais detalhado e discutido principalmente sob a ótica da separação dos poderes e os efeitos dessa conduta que ainda sofre severas críticas por se tratar de uma medida encarada como ativismo judicial.
As mutações acabam tendo como limite de modificação a vedação a reforma acerca do núcleo da Constituição, justamente para que esta não perca a sua identidade, portanto não será possível qualquer mutação que viole as cláusulas pétreas. O fato é que a integridade das cláusulas pétreas também depende da interpretação, contudo a integridade da Constituição está entregue ao Supremo Tribunal Federal.
Percebe-se que o julgamento da ADPF 132 concretizou a mutação constitucional tanto pela realização da leitura moral, quanto pela leitura conforme a constituição, abarcando ambos institutos em modalidade distintas para conferir ao texto sentido e legitimidade.
Informações Sobre o Autor
Francisco Eugênio Cunha Silva
Formado em direito pelo UNICEUB, pós-graduado em Direito e Jurisdição pelo IESB, discente do mestrado em Direito e Políticas Públicas