Valor adicionado do ICMS

Continua a insegurança jurídica quanto ao critério correto para atribuição de valor adicionado do ICMS decorrente da comercialização de energia elétrica produzida, quando as instalações da Usina se localizam em um Município e as represas de água em outro Município e, às vezes, o estabelecimento vendedor de energia em um terceiro Município.

Essa insegurança ao nosso ver decorre da insuficiência quanto à compreensão do fato gerador da obrigação tributária em seus múltiplos aspectos. É a ocorrência do fato gerador que desencadeia a obrigação tributária, pelo que é importante precisar o aspecto espacial desse fato gerador, isto é, examinar onde ocorreu o fato gerador e, por conseguinte, em que Município surgiu à obrigação de pagar o ICMS.

O critério de localização das instalações da usina geradora de energia não tem respaldo jurídico algum, porque elas sequer são sujeitos de direito, mas meros objetos de direito, portanto, incapazes de praticar qualquer ato jurídico. Logo, na transmissão de energia elétrica da Usina Geradora para o estabelecimento comercial da empresa, proprietário dessa Usina, não há que se falar em fato gerador, não bastasse o disposto na Súmula nº 166 do STJ.

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O mesmo acontece com os reservatórios de água que não têm personalidade jurídica e, portanto, são incapazes de deflagrar o fato gerador da obrigação tributária tanto quanto as instalações da usina. O prejuízo suportado pelo Município pela invasão de seu território por águas represadas deve ser indenizado com o pagamento da compensação financeira prevista no § 1º, do art. 20, da CF.

As instalações da Usina só têm relevância jurídica se elas se constituírem em uma unidade econômica em forma de um estabelecimento industrial ou comercial regularmente inscrito no Cadastro Fiscal, hipótese em que poderá praticar operações relativas à circulação de mercadorias. Na maioria dos casos isso não acontece. A Usina de Três Irmãos, por exemplo, que tem provocado disputas do VAF entre o Município de Andradina, onde estão situadas a maior parte das instalações, e o Município de Pereira Barreto, onde estão situadas pequena parte dessas instalações e a totalidade dos reservatórios de água é de propriedade da CESP, que tem domicílio fiscal no Município de Pereira Barreto, o qual, vem recebendo o VAF. É nesse Município que ocorre o fato gerador da obrigação tributária, porque toda energia hidroelétrica produzida é comercializada pelo estabelecimento situado no referido Município, onde se localiza o estabelecimento da CESP, dona da Usina. Por isso, impõe-se o exame caso a caso, não sendo possível firmar a tese de que o VAF pertence ao Município onde se situar as instalações da usina. O que se pode, sem margem de erro, é firmar a tese de que o VAF pertence sempre ao Município onde ocorrer o fato gerador da obrigação tributária, vale dizer, onde tiver domicílio o estabelecimento vendedor da energia elétrica, onde quer que ela tenha sido produzida, ou, onde quer que ela venha a ser consumida.

Quem pratica o ato tipificado na lei tributária é a pessoa jurídica ou física, proprietária da usina hidroelétrica, regularmente inscrita no CNPJ e no Cadastro Estadual de Contribuintes. Só ela é capaz de concretizar o fato gerador mediante operação de venda da energia produzida. Só ela pode integrar o elemento subjetivo passivo do fato gerador, na condição de contribuinte ou responsável tributário.

Portanto, é suficiente localizar no espaço o estabelecimento que promove a operação relativa à circulação de mercadorias e serviços para saber onde ocorreu o fato gerador e, por conseguinte, definir o município beneficiário dos ¾ do VAF a que alude o inciso I, do parágrafo único, do art. 158, da CF. O local do estabelecimento vendedor de energia é eleito pelo contribuinte (dona da Usina) consoante a regra do art. 127 do CTN. E nada impede de o contribuinte eleger o seu domicílio tributário no município em que não situa, nem as instalações da Usina, nem as represas d’água. Não cabe ao fisco alterar esse endereço a menos que o local eleito esteja dificultando ou impossibilitando a fiscalização e arrecadação do tributo. É o que prescreve o § 2º, do art. 127 do CTN. Também, não cabe ao aplicador questionar o critério de justiça do legislador que deu essa flexibilidade ao contribuinte de promover a arrecadação deste ou daquele município.

O aspecto espacial do fato gerador da obrigação tributária aponta onde ocorreu o fato gerador e, consequentemente, define o sujeito ativo dessa obrigação tributária por força o princípio da territorialidade que só pode ser afastado nas hipóteses do art. 102 do CTN. Em outras palavras, a identificação do aspecto espacial do fato gerador conduz à fixação do aspecto subjetivo ativo do fato gerador sobre um dos 27 Estados componentes da Federação, no caso do ICMS.

Em recente julgado a Primeira Seção do STJ, em grau de Embargos de Divergência no Recurso Especial, e por maioria de votos, afastou as duas teses em conflito e adotou uma terceira: prevalência do local do consumo da energia elétrica.

Para maior clareza transcreve-se a Ementa do V. Acórdão:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. DISSÍDIO CONFIGURADO. ICMS. REPARTIÇÃO. VAF. REGRA CONSTITUCIONAL. CRITÉRIO. ENERGIA ELÉTRICA. ELEMENTO TEMPORAL E ESPACIAL DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA. CONSUMO. LIMITES DO PROCESSO. ELEIÇÃO DE TERCEIRA TESE NO JULGAMENTO DE EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA.PRECEDENTES.

1. Os arestos embargado e paradigmas decidiram que o Valor Adicionado Fiscal, para efeito de repartição da receita do ICMS, deve ser computado ao município onde se concretiza a hipótese de incidência tributária. Divergiram, todavia, quanto à definição dos elementos espacial e temporal da obrigação tributária do ICMS incidente sobre energia elétrica: (a) o aresto embargado adotou o critério da produção e, por isso, atribuiu o VAF ao Município de Ubarana, onde localizados os geradores da usina hidrelétrica; e (b) os paradigmas acolheram o critério da distribuição e, consequentemente, destinaram o VAF ao Município de Promissão, onde situada a subestação elevadora, a partir de onde é distribuída a energia elétrica produzida na municipalidade vizinha. Dissídio configurado. Embargos de divergência admitidos.

2. O critério eleito pelo art. 158, parágrafo único, inciso I, da CF/88 para definir a quem pertence o valor adicionado fiscal relativo a uma operação ou prestação sujeita, em tese, à incidência do ICMS é, unicamente, espacial, ou seja, local onde se concretiza o fato gerador do imposto.

3. Conforme posição doutrinária e jurisprudencial uniforme, o consumo é o elemento temporal da obrigação tributária do ICMS incidente sobre energia elétrica, sendo o aspecto espacial, por dedução lógica, o local onde consumida a energia.

4. A produção e a distribuição de energia elétrica, portanto, não configuram, isoladamente, fato gerador do ICMS, que somente se aperfeiçoa com o consumo da energia gerada e transmitida.

5. Como o critério de rateio do ICMS leva em conta o valor adicionado fiscal que ocorre no território de cada município e não há incidência tributária pela geração da energia ou por sua distribuição, consequentemente, não se justifica a participação do município produtor ou distribuidor na partilha do ICMS incidente sobre as operações com energia elétrica, que somente contemplará os municípios consumidores.

6. Conhecidos os embargos de divergência, incumbe ao órgão julgador aplicar o direito à espécie, mesmo que, para isso, seja necessária a adoção de uma terceira tese, diversa das que foram acolhidas nos arestos embargado e paradigma. Precedentes da

Corte Especial e de todas as Seções do STJ.

7. Atualmente, só o Município de Promissão, onde situada a Subestação elevadora, tem direito de adicionar ao seu índice de participação as operações vinculadas à Usina de mesmo nome. A ação judicial objetiva compelir o Estado de São Paulo a computar essas operações, em sua totalidade, a favor do Município de Ubarana, onde se acham localizados os geradores da Usina.

8. As conclusões adotadas conduzem à procedência, em parte, da pretensão autoral, devendo a Fazenda Pública ré acrescer ao índice de participação do Município autor as operações da Usina de Promissão proporcionalmente ao consumo de energia elétrica verificado em seu respectivo território.

9. Embargos de divergência acolhidos em parte para julgar procedente, também em parte, a pretensão do autor, ora embargado.” (Embargos de Divergência em Resp nº 811.712, Rel. Min. Hamilton Cavalhido, Relator para Acórdão Min. Castro Meira, Dje de 6-3-13).

Como se verifica, o V. Acórdão afirmou corretamente que o critério eleito pela Constituição para definir a quem pertence o valor adicionado do ICMS é unicamente o espacial, isto é, o local onde se concretiza o fato gerador do imposto. Nem poderia ser de outra forma.

Entretanto, prossegue o acórdão que o “consumo é o elemento temporal da obrigação tributária do ICMS” (Item 3), para fixar a tese de que o VAF deve ser deferido ao Município onde ocorrer o consumo da energia.

E aqui reside o grande equivoco. O consumo nada tem a ver com o fato gerador do ICMS. Uma vez ocorrido o fato gerador por venda da mercadoria, por exemplo, o imposto é devido independentemente de ter havido o consumo de mercadoria, ou do local do consumo.

Cinco são os elementos do fato gerador da obrigação tributária: (a) elemento material ou objetivo ou, ainda, nuclear (descrição legislativa da hipótese em que é devido o tributo); (b) elemento subjetivo (ativo = Fazenda Pública e passivo = contribuinte ou responsável); ( c ) elemento quantitativo (base de cálculo e alíquota); (d) elemento espacial (onde ocorre o fato gerador); e (e) elemento temporal (quando ocorre o fato gerador). Faltando um desses cinco elementos não existirá obrigação tributária que outra coisa não é senão uma relação jurídica que não se diferencia da obrigação do direito comum a não ser pelo seu objeto (exclusivamente tributo) e pela sua origem (exclusivamente com base na lei).

 O consumo, por não fazer parte integrante do fato gerador, é indiferente para o fim de deflagrar o nascimento da obrigação tributária. O local do consumo só é relevante nas operações interestaduais de petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica (art. 155, § 2º, X, b, da CF), quando o ICMS será devido integralmente no Estado destinatário, onde se dá o consumo, hipótese em que caberá a esse Estado destinatário proceder a distribuição do VAF. Consoante decidiu o STF, a tributação no destino foi estabelecido para beneficiar o Estado consumidor e não o consumidor final, razão da exceção constitucional expressa.

Fora de dúvida, pois, que o consumo não representa o aspecto temporal do fato gerador. O elemento temporal do fato gerador da obrigação tributária é o momento definido na lei tributária competente, que precisa quando se tem por ocorrido o fato gerador, para definir a legislação aplicável segundo o princípio tempus regit actum. Dessa forma, o aspecto temporal do imposto de importação, por exemplo, é a data do registro da importação na repartição aduaneira (art. 23 do Decreto-lei nº 37/66), sendo que o aspecto material do fato gerador desse imposto é a entrada de produtos estrangeiros no território nacional, conforme prescreve o art. 19 do CTN. Esse aspecto temporal é de suma importância para definir a legislação aplicável a cada caso concreto, pois a alíquota desse imposto pode variar de um dia para outro por força da delegação contida no § 1º, do art. 153, da CF.

O elemento espacial do fato gerador diz respeito ao local da ocorrência do fato gerador. Tem conexão direta com o elemento subjetivo ativo do fato gerador, à medida que define o ente político competente para tributar o ICMS dentre os 27 Estados que compõem a Federação.

Enquanto não se fizer um estudo sistemático dos cinco aspectos que compõem o fato gerador da obrigação tributária, geralmente estudado apenas pelo seu aspecto material ou objetivo, as imprecisões doutrinárias e jurisprudenciais continuarão. Diríamos, sem exagero, que o estudo do Direito Tributário se resume praticamente no estudo aprofundado da teoria do fato gerador da obrigação tributária.

 Nem se diga que a questão do VAF é matéria que se insere no âmbito do Direito Financeiro e não na esfera do Direito Tributário. É verdade, mas é verdade, também, que o legislador constituinte ao deferir os ¾ do VAF apegou-se ao critério do local da ocorrência do fato gerador. Apenas em relação a outro ¼ do VAF é que ficou facultado a cada Estado eleger qualquer outro critério não vinculado ao Direito Tributário. A maioria dos Estados levaram em conta o número de habitantes do município , o montante da receita de tributo próprio de cada Município etc.


Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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Equipe Âmbito Jurídico

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