Resumo: O presente trabalho analisa a situação jurídica do depositário judicial infiel, com o objetivo de demonstrar a veemente violação aos direitos humanos em sua prisão.
Palavras-chave: Depositário judicial infiel. Prisão administrativa. Direitos Humanos. Princípio da Legalidade.
Sumário: 1.Introdução. 2.Conceitos e Classificações. 3.Situação jurídica do depositário judicial infiel. 4.Direito a liberdade e Principio da Legalidade. 5-Conclusão. Bibliografia.
1- INTRODUÇÃO
É de grande interesse da sociedade que aqueles causadores de dano a outrem sejam punidos. No caso de infidelidade do depositário a regra não é diferente, devendo este também,
com algumas peculiaridades, reparar o dano. Neste sentido, salienta o professor Gelson Amaro de Souza[1]:
“… a partir do art. 159 do Código Civil, pode-se chegar a conclusão de que todo auxiliar de justiça que por culpa ou dolo der prejuízo a alguém deverá responder pelos danos causados, independentemente de haver o Código de Processo previsto ou não de forma expressa. Mesmo porque em matéria de responsabilidade civil prevalece o Código Civil. ”
Porém, questão tormentosa na Moderna Processualística Civil envolve a punição dada ao depositário judicial infiel. Este auxiliar de justiça, diferentemente do contrato de depósito típico previsto nos artigos 627 e ss do Código Civil e 647 e ss do mesmo Diploma, possui relação administrativa, não se enquadrando, portanto, no artigo 5º, inc. LXVII da nossa Carta Magna.
2 – CONCEITOS E CLASSIFICAÇÕES
No dizer do ilustre Silvio Rodrigues[2], depósito: “… é o contrato pelo qual uma pessoa – depositário – recebe, para guardar, um objeto móvel alheio, com a obrigação de restituí-lo quando o depositante o reclamar. Aperfeiçoa-se pela entrega da coisa.”
No mesmo sentido, referindo-se ao instituto do depósito, pontifica Washington de Barros Monteiro[3]: “… o contrato pelo qual uma das partes, recebendo de outra uma coisa móvel, se obriga a guardá-la, temporária e gratuitamente, para restituí-la na ocasião aprazada ou quando lhe for exigida.”
Importante destacar dois elementos essenciais para a caracterização do depósito, comum entre todos os doutrinadores: a guarda e a restituição do bem móvel. Isto significa que devem ser excluídos da situação de depósito aqueles casos em que devedor se recusa a entregar bens dados em garantia de dívida[4]. Assim, Pontes de Miranda[5] expõe brilhantemente: “ Se os bens penhorados, seqüestrados ou arrestados ficaram com o titular dos direitos sobre eles, e tal titular tem a posse imediata, a eficácia da penhora, do seqüestro ou do arresto não precisa de depósito […]”
O depósito, segundo a classificação da doutrina majoritária, pode ser: a) contratual ou voluntária, disciplinado pelos artigos 627 e ss do Código Civil. Este nasce da convenção das partes; b) legal ou necessário, previsto nos artigos 647 e ss do mesmo Código. Este se faz em desempenho de uma obrigação legal ou por situação excepcional; c) judicial. Este, que é o objeto de nosso trabalho, não nasce de uma relação contratual, mas sim de uma necessidade para melhor andamento do processo. A função deste auxiliar de justiça vem bem descrita no art. 148 do Código de Processo Civil: “A guarda e conservação de bens penhorados, arrestados, seqüestrados ou arrecadados serão confiadas a depositário ou a administrador, não dispondo a lei de outro modo”.
3 – SITUAÇÃO JURÍDICA DO DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL
O artigo 5º, inciso LXVII da CF/88 diz taxativamente: “Não haverá prisão civil por divida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
Cabe-nos, neste trabalho, analisar a segunda exceção. Neste sentido, Humberto Theodoro Junior, citando José Frederico Marques, preleciona[6]:
“O ato executivo do depósito não se confunde como depósito convencional regulado no direito privado. O depósito de bem penhorado é de direito processual”. Ainda, “[…] Ele é o longa manus do juízo da execução, seu auxiliar e órgão do processo executivo, com poderes e deveres próprios no exercício de suas atribuições.”
A problemática envolve a distinção entre depositário genuíno ou clássico e depositário judicial. Por se tratar de um auxiliar da justiça, esta ultima espécie de depósito não pode ser considerada contratual. Na verdade, o depositário judicial possui uma relação administrativa com o órgão jurisdicional, posicionando-se em uma relação hierárquica para com o juiz. Conseqüentemente se trataria de prisão administrativa, que é aquela que não tem caráter penal. Serve de medida coercitiva para cumprimento de uma obrigação.
Sobre o tema, há grande divergência doutrinária e jurisprudencial. Autores como Luis F. Cirillo defende a constitucionalidade da prisão administrativa do depositário judicial infiel, já que o Pacto de São José da Costa Rica[7] proíbe apenas a prisão civil.
Por outro lado, Nelson Nery Júnior[8] apoiado na decisão do STF, defende:
“ Depositário judicial. Decretação de prisão civil nos próprios autos da ação de execução. Não ofende a CF 5º LXVII, mas, pelo contrario, nele tem seu fundamento a prisão do executado que, intimado, não entregou o bem penhorado ou o seu equivalente em dinheiro, porque de prisão administrativa não se trata, mas decorrente do exercício de jurisdição. Desnecessário o aforamento da ação de depósito para possibilitar a prisão, podendo ser decretada nos próprios autos da execução, conforme STF 619 (RT 682/186).”[9]
Porém, em ambos os casos percebe-se equívoco. Primeiramente a prisão do depositário judicial é administrativa, visto que é uma forma atípica de depósito. Assim, não há previsão legal para sua prisão, uma vez que o inciso LXVII do artigo 5º da nossa Carta Maior veda apenas a prisão civil. Ainda, há de se salientar que o Pacto de São José da Costa Rica não derrogou o dispositivo constitucional, pois se tratando de hierarquia de normas, prevalece esta última.
Sobre a mesma citação acima, há uma contradição ao dizer que a prisão do depositário judicial infiel é jurisdicional. Na medida em que se dispensa a propositura da ação de depósito, a prisão passa a ser administrativa, uma vez que a Jurisdição é inerte e necessita de provocação através da Ação.
Correta, portanto, a atitude do Desembargador Sérgio Pitombo no acórdão da Sétima Câmara de Direito Publico do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferido pelo Habeas Corpus nº 96.076-5/1 da Comarca de São Paulo, ao revogar a prisão de depositário nomeado nos autos de execução fiscal, por falta de justa causa, ao fundamento de não mais existir suporte legal para a decretação de prisão civil do depositário judicial infiel. Neste sentido, algumas decisões deTribunais nacionais:
“EXECUÇÃO. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. AUTOS DA EXECUÇÃO. Habeas corpus. Prisão de depositário infiel. Somente se inviabiliza, precipuamente após a vigência da CF de 1988, em ação própria, que e a de depósito. Princípios do “due process of law” e da vedação a prisão administrativa acolhidos pela CF, art. 5, incisos LIV e LXI. Ainda que assim não fora, não se dispensa jamais motivada decisão para embasar mandado de prisão. Hábeas corpus concedido.”10
“EXECUÇÃO. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. AUTOS DA EXECUÇÃO. CF ART. 5 INC. LXI DE 1988. VEDAÇÃO. B Agravo de instrumento. Prisão do depositário infiel. Dita prisão, quando decretada nos próprios autos da execução, possui natureza administrativa (CÓD. Civil, art. 1.287), e, por isso, não e mais permitida sob o regime constitucional vigente (CF, art. 5, LXI). Agravo improvido.”11
Exposto isto, em se tratando de depositário judicial infiel, percebe-se a incisiva ilegalidade da prisão deste auxiliar de justiça, tendo como fundamento se tratar de prisão administrativa e assim, não prevista pelo dispositivo constitucional citado. Neste sentido, bem nos ensina Humberto Theodoro Júnior12:
“Na regulamentação do direito material, a prisão do depositário é prevista apenas para o contrato de depósito e o depósito necessário, situações típicas de direito privado (C. Civil de 2002, art 652). Na lei processual, por outro lado, só há regulamentação ou autorização da prisão do depositário, como conseqüência ou efeito da sentença na ação de depósito (art 904, parágrafo único).”
4- DIREITOS HUMANOS E PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Norberto Bobbio, em sua memorável obra “A era dos direitos”, integra o direito a liberdade no rol dos direitos fundamentais de 1ºgeração. David Araújo cita a Magna Carta Libertatum de João Sem-Terra, em 1215, como o marco inicial dos direitos humanos, ao passo que os nobres e clérigos reivindicavam direitos frente ao Poder Absolutista. Por fim, alguns doutrinadores sustentam ainda que o direito de liberdade se concretizou com a Revolução Francesa em 1789 e a conseqüente publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Num breve histórico, é inegável que se passaram séculos de luta em busca da Liberdade. Neste contexto, é inaceitável que, em pleno século XXI, a Liberdade, um dos mais importantes e basilares direito do homem, seja privada por mera vontade do julgador, como bem enfatizamos no desenvolver do trabalho.
Destarte, não é cabível a prisão sem prévia cominação legal. Bem disposto no artigo 5º, inciso XXXIX da CF/88 e art. 1º do Código Penal, o Principio da Legalidade constitui um dos mais preciosos postulados do Direito Contemporâneo, sendo certo que sua violação implica numa enorme transgressão aos direitos humanos.
A saber, o caso aqui tratado tornou-se mera prisão costumeira, uma vez que inexiste dispositivo legal que regulamente sua prisão, devido à natureza administrativa do depositário judicial, conforme explicado acima.
No dizer do ilustre constitucionalista BULOS, 13: “O Principio constitucional penal da legalidade tem contornos bastante definidos. Corrobora uma garantia basilar dos direitos humanos, integrando o rol das liberdades públicas na Constituição de 1988”.
5- CONCLUSÃO
Sendo o depositário judicial a pessoa responsável pela guarda e conservação dos bens penhorados, arrestados, seqüestrados ou arrecadados em juízo até a sentença do magistrado, não é possível se falar em contrato civil, uma vez que a relação entre este auxiliar da justiça e o juiz da causa é meramente administrativa. O inciso LXVII do art 5º da CF/88 diz taxativamente que não haverá prisão civil por dívida, salvo o inadimplemento da pensão alimentícia e o depositário infiel. Assim, em se tratando de um direito fundamental, não é possível fazer uma interpretação ampliativa do referido inciso estendendo a incidência da prisão além dos contratos civis. Percebemos assim, uma discrepante transgressão àqueles direitos mais básicos do homem, necessários para um mínimo de dignidade, a qual seja os direitos humanos.
Informações Sobre o Autor
Daniel Gustavo de Oliveira Colnago Rodrigues
Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Presidente Prudente (Toledo). Professor convidado nos Cursos de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito Damásio de Jesus, Faculdade de Direito de Dracena, dentre outras instituições. Mestrando em Direito. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade de Direito de Presidente Prudente. Advogado. Membro do Grupo de Estudos “Processo Civil Moderno e Acesso à Justiça”, coordenado pelo prof. Dr. Gelson Amaro de Souza. Colaborador da American University College of Law (Washington, EUA).