1 Introdução
Em razão da nova classificação de créditos preferenciais na falência, dada pela Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (nova Lei de Falências), a Lei Complementar nº 118/05, sancionada na mesma data, introduziu alterações no Código Tributário Nacional para adequar suas disposições aos objetivos perseguidos pelo novo diploma falimentar.
Algumas dessas inovações são pertinentes, necessárias e altamente positivas; outras, são negativas, chegando a abordar matéria processual extravasando o âmbito da competência do legislador complementar delimitada pelo art. 146 da CF.
No presente estudo abordaremos duas matérias: a primeira delas, positiva, que inova a responsabilidade tributária por sucessão empresarial; a segunda, negativa, que dispõe sobre a indisponibilidade global dos bens do devedor.
2 Exclusão de responsabilidade tributária por sucessão empresarial
O art. 1º da LC nº 118/05 acrescentou parágrafos ao art. 133 do CTN, que cuida da responsabilidade tributária de quem suceder (pessoa física ou jurídica) no estabelecimento comercial, industrial ou profissional, nos seguintes termos:
“Art. 133 ……………………………………………………………………………..
§ 1º O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial:
I – em processo de falência;
II – de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial.
§ 2º Não se aplica o disposto no § 1º deste artigo quando o adquirente for:
I – sócio da sociedade falida ou em recuperação judicial, ou sociedade controlada pelo devedor falido ou em recuperação judicial;
II – parente, em linha reta ou colateral até o 4º (quarto) grau, consangüíneo ou afim, do devedor falido ou em recuperação judicial ou de qualquer de seus sócios; ou
III – identificado como agente do falido ou do devedor em recuperação judicial com o objetivo de fraudar a sucessão tributária.
§ 3º Em processo da falência, o produto da alienação judicial de empresa, filial ou unidade produtiva isolada permanecerá em conta de depósito à disposição do juízo de falência pelo prazo de 1 (um) ano, contado da data de alienação, somente podendo ser utilizado para o pagamento de créditos extraconcursais ou de créditos que preferem ao tributário”.
Antes da inovação legislativa, a pessoa física ou jurídica que adquirisse o fundo de comércio de qualquer estabelecimento comercial, industrial ou profissional, por qualquer meio, respondia integralmente pelos tributos devidos pelo alienante na hipótese de este cessar suas atividades, e, subsidiariamente com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar dentro de seis meses, a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou em outro ramo de comércio, indústria ou profissão.
Agora, pelo § 1º, do art. 133 do CTN, não haverá responsabilidade tributária integral ou subsidiária da pessoa física ou jurídica adquirente, quando a sucessão empresarial ocorrer por alienação judicial em processo de falência, ou em caso de alienação de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial.
A espinha dorsal da nova Lei de Falência é a manutenção da unidade produtiva sob dificuldade econômico-financeira, atenta à finalidade social da empresa, de sorte a não interromper a atividade produtiva, assegurar o emprego e acautelar os interesses de credores, por meio de um plano viável de recuperação da empresa devedora.
Por isso, na hipótese de o plano de recuperação abranger venda de filial ou unidade produtiva isolada do devedor, em processo de recuperação judicial, não haverá sucessão tributária a fim de estimular a ação dos adquirentes. O mesmo acontecerá em caso de alienação judicial em processo de falência. Em processo de falência, o produto da alienação judicial permanecerá pelo prazo de um ano, a contar da data da alienação, em conta de depósito à disposição do juízo da falência, para pagamento de créditos extraconcursais ou de créditos que preferem ao tributário, como prescrito no § 3º, acrescido pela lei sob comento.
Para prevenir fraudes na sucessão empresarial, com o fito de apenas livrar-se o sucessor dos encargos tributários da sucedida, o § 2º prescreveu várias hipóteses de inaplicação da exclusão de responsabilidade tributária por sucessão, apontando os casos de aquisição por sócio da empresa falida ou em recuperação judicial, parentes do devedor falido ou em recuperação judicial etc. etc.
Esses preceitos, acrescidos pela LC nº 118/05, são altamente positivos indo de encontro ao principal objetivo perseguido pela Lei nº 11101/05, que é o de estimular a atividade produtiva recuperando as empresas em dificuldades financeiras.
3 Indisponibilidade global dos bens do devedor executado
A inovação negativa, introduzida pela Lei Complementar nº 118/05 diz respeito ao seu art. 2º, que acrescenta o art. 185-A ao Código Tributário Nacional, nos seguintes termos:
‘Art. 185-A Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial.
§ 1º A indisponibilidade de que trata o caput deste artigo limitar-se-á ao valor total exigível, devendo o juiz determinar o imediato levantamento da indisponibilidade dos bens ou valores que excederem esse limite.
§ 2º Os órgãos e entidades aos quais se fizer a comunicação de que trata o caput deste artigo enviarão imediatamente ao juízo a relação discriminada dos bens e direitos cuja indisponibilidade houverem promovido’.
Existem no ordenamento jurídico-tributário, além a Lei nº 6.830/80, que rege a execução fiscal e que privilegia o fisco em prejuízo do princípio de paridade de tratamento das partes, as seguintes medidas opressoras contra os contribuintes inadimplentes, que não encontram menor respaldo nos direitos e garantias constitucionais: a) a medida cautelar fiscal, prevista na Lei 9.532/97, que possibilita tornar indisponíveis os bens do devedor por medida liminar de obrigatória concessão, sempre que requerida pelo fisco, nas hipóteses legais, que nem sempre pressupõem a existência de obrigação líquida e certa; b) a ação de depósito dos tributos retidos na fonte, na forma da Lei nº 8.866/94, que pode culminar com a prisão civil do devedor em até 90 dias, violando, não só, o art. 5º, LXVIII da CF, como também, o Pacto de San José da Costa Rica subscrito pelo nosso País; c) a penhora on line das contas bancárias do devedor, que tem origem no espúrio Convênio firmado entre o Banco Central e o Tribunal Superior do Trabalho, hoje, espantosamente, encampado pelo legislador pátrio, que confunde dinheiro disponível com saldo em conta corrente, confusão essa sequer percebida pelo Judiciário informatizado.
Agora, veio à luz uma estranha norma, de natureza processual, de competência da legislação ordinária, representando, um novo instrumento de massacre do contribuinte, ironicamente, no bojo de uma lei complementar editada para adequar o CTN às disposições da Lei nº 11.101/05, que implantou o regime de recuperação judicial e extrajudicial de empresas em dificuldades financeiras.
O terrorismo legislativo perpetrado por esse art. 185-A salta aos olhos. Se não forem encontrados bens do devedor, após sua regular citação, por um dois meios previstos em lei, para livre penhora na forma da LEF e do CPC, o novo diploma legal sob comento prescreve que o juiz determinará a indisponibilidade de todos os bens e direitos do devedor, comunicando a sua decisão, preferencialmente, por meios eletrônicos aos órgãos competentes (Registro de Imóveis, supervisores do mercado bancário e de capitais etc).
É sempre oportuno lembrar que o meio regular de citação é pelo correio, com aviso de recepção considerando-se ‘feita na data da entrega da carta no endereço do executado’ (art. 8º, I e II da Lei nº 6.830/80). Pergunta-se, como fica em caso de o porteiro de um prédio, por exemplo, ou um empregado da empresa executada deixar de encaminhar a contrafé a quem de direito? Não são raras as hipóteses em que empresas descobrem, por acaso, a pendência de execuções fiscais contra si.
Pois bem, depois de ordenar a indisponibilidade de forma genérica e aleatória, após ‘devidamente citado’ o devedor, prescreve o § 1º que o juiz deverá ‘determinar o imediato levantamento da indisponibilidade dos bens ou valores que excederem’ o valor da dívida sob execução. A avaliação da compatibilidade e da proporcionalidade da garantia, representada pela indisponibilidade de bens ou direitos, far-se-á com base nas informações que os órgãos executores da constrição judicial deverão prestar, ‘imediatamente’, conforme determina o § 2º.
Essas adjetivações legislativas, ‘imediato levantamento da indisponibilidade’, ‘enviarão imediatamente’, inseridas no instrumento normativo aplicável em uma conjuntura caracterizada por uma morosidade extremada de nossa burocracia como nunca dantes visto, têm o mesmo sentido da ‘restituição imediata e preferencial’ do tributo indevido, arrecadado por antecipação, ou da abertura de inquérito administrativo rotulado de ‘rigoroso’, para apuração de faltas gravíssimas imputadas a agentes públicos situados nos elevados postos da hierarquia funcional.
O abuso legislativo é patente, assim como a irracionalidade dos preceitos referidos. A improbidade legislativa exsurge com lapidar clareza. A lei, substituindo as eventuais providências a serem requeridas pela exeqüente, impõe ao juiz providência de ofício, consistente no decreto de indisponibilidade universal de bens e direitos do devedor, transformando pessoas e entidades referidas no caput do art. 185-A em auxiliares da Justiça, a quem cabe a execução da constrição judicial decretada. Verificado o excesso de constrição, o juiz deverá determinar o imediato levantamento da indisponibilidade excedente.
É como se a lei prescrevesse, indiscriminadamente, a aplicação imediata da pena capital a todo e qualquer acusado da prática de qualquer tipo de delito. Mais tarde, após regular instrução processual, se ficar comprovado que a pena aplicada era excessiva, o juiz deverá imediatamente promover sua redução, convolando-a em pena de prisão perpétua ou outra pena de menor potencial ofensivo.
Ora, qualquer profissional que milita no foro sabe que bloquear contas bancárias por via eletrônica, por exemplo, não leva mais que um minuto. Porém, para desbloqueá-las pode levar anos. Mesmo ante a prova de quitação do tributo, muitas vezes, indevido, leva-se meses para desfazer a constrição judicial levada a efeito até mesmo por erro dos computadores. Hoje, existe ordem cronológica até para cumprimento de determinados despachos judiciais como, por exemplo, aquele que ordena a expedição do mandado de levantamento do dinheiro depositado pelo réu vencido na demanda, sujeito ao agendamento prévio para datas cada vez mais distantes. E o legislador não ignora a morosidade da atuação do Poder Judiciário, tanto é que em nome dela até aprovou a ‘Reforma do Judiciário’ por meio da Emenda Constitucional de nº 45/05 que, curiosamente, contém alguns ingredientes que poderão acentuar a sua lentidão.
De há muito, a ineficiência, a inoperância e a incompetência dos órgãos públicos vêm sendo supridas por instrumentos legislativos, cada vez mais truculentos contra contribuintes. Cancelamento do CNPJ/CPF ou sua inativação, ao mesmo tempo em que tornam obrigatória sua apresentação para prática de inúmeros atos da vida civil; apresentação de certidão negativa em “n” situações, até para a Fazenda devedora cumprir sua condenação judicial a favor do particular; leões informatizados, que expedem intimações a alhures para deixar o contribuinte em estado de alerta permanente; uso abusivo do regime de retenção de tributos na fonte, às vezes, com afronta ao fato gerador do tributo a ser retido, e transformando empresas e empresários em fiscais de tributos, sem remuneração; substituição tributária por fato gerador fictício para antecipar a arrecadação, assegurada a imediata e preferencial restituição em caso de configuração do indébito, o qual, na visão do STF é hipótese inexistente etc. etc.
Um dia o legislador vai acabar descobrindo e implantando uma forma sofisticada, inteligente, eficiente e infalível de transferir, automaticamente, a qualquer hora do dia ou da noite, com simples ‘piscar de olhos’, bens e direitos do contribuinte-devedor aos cofres da entidade política credora, dispensando as obsoletas providências burocráticas de um processo judicial de cobrança.
No caso sob comento, ou os bens do devedor existem, ou eles não existem. Se não existem, a providência de indisponibilização é inócua. Se existem, eles devem ser penhorados ou arrestados segundo a lei de regência, após regular diligência efetiva e eficiente do agente público responsável. O que não é admissível é o ato legislativo servir de sucedâneo à ineficiência ou ócio do servidor público encarregado, determinando a indisponibilidade global de bens e direitos do devedor, sem um mínimo de critério para identificar a real propriedade ou disponibilidade desses bens ou direitos, contrariando abertamente o princípio geral de que a execução deve ser feita pelo modo menos gravoso para o devedor (art. 620 do CPC). Exatamente, por ser um princípio geral, o preceito do art. 620 do CPC tem aplicação em qualquer tipo de procedimento executivo.
Pergunta-se, como fica a situação do executado se a indisponibilidade universal recair sobre: salários do devedor comprometidos para realizar uma cirurgia inadiável? numerários de terceiros, temporariamente em poder do devedor? numerários destinados a pagar tributos retidos na fonte, ou a pagar salários de empregados? numerários destinados a pagar duplicatas de fornecedores? numerários destinados a pagar títulos sob protesto? etc. etc. É óbvio que, em todos esses casos, os danos serão irreparáveis, tanto quanto naquele exemplo hipotético de execução prévia da pena capital.
Providências legislativas da espécie, certamente, provocarão adoção de medidas não convencionais por parte dos contribuintes, por uma questão de sobrevivência como, por exemplo, a nomeação à penhora de títulos da época de D. Pedro I, sempre acompanhada de volumosos laudos recheados de documentos, dados e fórmulas, tanto para aferir a sua autenticidade, como também para encontrar o seu justo valor de mercado em moeda atual; nomeação de bônus de guerra, eventualmente encontrados em mãos de vítimas da última Grande Guerra; de TDAs, resultantes de desapropriação a favor dos ‘Sem Terras’, vencidos e não pagos; de precatórios judiciais, uma das moedas podres da atualidade etc.
Não é preciso se estender no exame da violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, pois ela está proclamada pelo próprio § 1º do art. 185-A.
O bloqueio indiscriminado de todos os bens e direitos, como está no art. 185-A caput, poderá acarretar a falência da empresa como conseqüência da interrupção de fornecimento de matérias primas; poderá ensejar a prática de crimes contra ordem tributária, pela impossibilidade de recolhimento de tributos retidos na fonte; poderá ensejar o inadimplemento da folha salarial com graves conseqüências, enfim, “n” situações imprevisíveis poderão ocorrer colocando por terra abaixo o esforço dos legisladores na preservação de unidades produtivas, por meio da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, em função da qual foi editada a LC nº 118/05 sob comento.
Até parece que essas duas leis foram elaboradas e aprovadas por legisladores diferentes. Enquanto uma lei procura reerguer as empresas insolventes, por médio do instituto da recuperação judicial e extrajudicial, substituindo os obsoletos institutos da falência e da concordata, a outra lei procura agir exatamente no sentido aposto, condenando aquelas empresas, em dificuldade financeira momentânea, à falência de fato.
4 Conclusão
Já se incorporou na rotina dos legisladores o atropelamento dos direitos fundamentais do contribuinte em nome a eficiência e da celeridade na arrecadação tributária, por meio de diversos instrumentos injurídicos, sempre acenando com ‘IMEDIATA’ reparação do eventual excesso resultante de aplicação desses mecanismos truculentos.
É preciso que a sociedade cobre seriedade e coerência de nossos legisladores, habituados a dar uma martelada na ferradura e duas no casco.
São Paulo, 20 de fevereiro de 2005.
* Artigo publicado no Repertório de Jurisprudência IOB, 2ª quinzena de março/2005, nº 6, p. 214-211. IOB/LC 118/05 . Inovações no Código Tributário Nacional.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.