A nova Lei dos Tóxicos – Aspectos processuais

“Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre mais fácil e mais cômoda. Com certeza é mais simples para os pais de um menino drogado culpar o fantasma do traficante, que supostamente induziu seu filho ao vício, do que perceber e tratar dos conflitos familiares latentes que, mais provavelmente, motivaram o vício. Como, certamente, é mais simples para a sociedade permitir a desapropriação do conflito e transferi-lo para o Estado, esperando a enganosamente salvadora intervenção do sistema penal.”[1]

1) Introdução

No dia 28 de fevereiro do ano de 2002[2] entrou em vigor em nosso país a Lei nº. 10.409/02 que dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde. Ao todo, foram onze anos de discussão no Congresso Nacional.

O Projeto de Lei no. 1.873, de 1991 (no. 105/96 no Senado Federal), concebido para disciplinar toda a questão referente às drogas em nosso país, nos seus aspectos jurídicos e administrativos, acabou sofrendo um veto do Presidente da República que o sancionou apenas parcialmente, alegando a sua inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público. O veto alcançou cerca de 30% do texto integral. Em linhas gerais, vejam as razões dos vetos:

“A inconstitucionalidade de artigos isolados do projeto, bem como o veto sugerido a todo o Capítulo III, que trata dos Crimes e das Penas, resulta na incapacidade de o sistema legal proposto substituir plenamente a Lei no 6.368, de 21 de outubro de 1976, que "Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Além disso, o espírito do projeto é compatível com a Lei no 6.368/76, que, embora carente de atualização, vem permitindo a sedimentação da jurisprudência ao longo de mais de duas décadas. O legislador, ciente dos avanços tecnológicos, da complexidade crescente da criminalidade, e da necessidade de tratamento jurídico diferenciado entre traficantes e usuários de droga, aprovou o projeto. Todavia, repita-se, a incompatibilidade de alguns dispositivos com a Constituição barrou alguns avanços. Por causa disso, estuda-se a elaboração de projeto de lei em regime de urgência para, sanados os vícios, alcançar à sociedade os aspectos positivos que o legislador sensivelmente expressou. Assim, o projeto soma-se à ordem legal já vigente. Apenas são derrogadas as normas que tratam de matéria especificadamente veiculada nos artigos, parágrafos e incisos sancionados.”

A lei é extremamente confusa e dá azo a diferentes interpretações. Das boas novidades, algumas foram vetadas, como pode ser conferido adiante. É de uma atecnia absoluta, sem falar que desatendeu manifestamente a Lei Complementar nº. 95/98 (alterada pela Lei Complementar nº. 107/2001) que dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. Como bem acentuou João José Leal, “ao contrário de trazer consigo a solução para as questões jurídico-penais e processuais relativas à matéria, acabou se constituindo num grande problema de hermenêutica jurídica.”[3]

Aliás, possivelmente ciente do equívoco, o próprio Governo já encaminhou ao Congresso Nacional um novo projeto de lei (o de nº. 6.108/02), tendo sido aprovado no Senado um substitutivo (nº. 115/02).

Os dois primeiros capítulos dispõem sobre questões administrativas, sanitárias, preventivas e de tratamento relacionadas com o uso de entorpecentes e o seu combate, revogando, nesta parte, a lei anterior. Neste tocante, e para que se dê uma idéia geral da lei e das justificativas aos vetos, iremos basicamente transcrever os artigos, os vetos e as suas respectivas razões.

Quanto aos capítulos IV e V, que abrangem toda a persecutio criminis, procuraremos fazer uma análise mais detida e crítica.

2) O Capítulo I – Disposições Gerais

O veto presidencial[4] começou já no art. 1º. deste Capítulo que dispunha, in verbis: “Esta Lei, que tem aplicação no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, regula as operações e ações relacionadas aos produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.”

O art. 2º. estabelece ser “dever de todas as pessoas, físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras com domicílio ou sede no País, colaborar na prevenção da produção, do tráfico ou uso indevidos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica”, determinando que a “pessoa jurídica que, injustificadamente, negar-se a colaborar com os preceitos desta Lei terá imediatamente suspensos ou indeferidos auxílios ou subvenções, ou autorização de funcionamento, pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, e suas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações, sob pena de responsabilidade da autoridade concedente.” Por outro lado, a “União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão estímulos fiscais e outros, destinados às pessoas físicas e jurídicas que colaborarem na prevenção da produção, do tráfico e do uso de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.”

O art 3º. também foi vetado. Ele estabelecia que para “os fins desta Lei, são considerados ilícitos os produtos, as substâncias ou as drogas que causem dependência física ou psíquica, especificados em lei e tratados internacionais firmados pelo Brasil, relacionados periodicamente pelo órgão competente do Ministério da Saúde, ouvido o Ministério da Justiça”, competindo ao “Ministério da Saúde disciplinar o comércio de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência física ou psíquica e que dependam de prescrição médica”, e estabelecendo que “sempre que as circunstâncias o exigirem, será revista a especificação a que se refere o caput, com inclusão ou exclusão de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência física ou psíquica.” Este dispositivo também foi vetado sob a seguinte justificativa:

“Em face da permanência em vigor da Lei no 6.368/76, assim como de avanços legislativos ocorridos durante o período em que tramitava o projeto, o art. 3o. corresponderia a um retrocesso em relação aos esforços empregados no aperfeiçoamento da regulamentação da matéria. É contrário, portanto, ao interesse público que a definição de substâncias entorpecentes, psicotrópicas, que determinem dependência física ou psíquica, e afins, sofra restrições pela interpretação da lei. A expressão "para os fins desta Lei" é, portanto, potencialmente lesiva à modernização e à complexidade da legislação penal brasileira.”

Dispõe o art. 4º. ser “facultado à União celebrar convênios com os Estados, com o Distrito Federal e com os Municípios, e com entidades públicas e privadas, além de organismos estrangeiros, visando à prevenção, ao tratamento, à fiscalização, ao controle, à repressão ao tráfico e ao uso indevido de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, observado, quanto aos recursos financeiros e orçamentários, o disposto no art. 47”, estabelecendo que “entre as medidas de prevenção inclui-se a orientação escolar nos três níveis de ensino.”

No seu art. 5º. afirma-se que as “autoridades sanitárias, judiciárias, policiais e alfandegárias organizarão e manterão estatísticas, registros e demais informes das respectivas atividades relacionadas com a prevenção, a fiscalização, o controle e a repressão de que trata esta Lei, e remeterão, mensalmente, à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad e aos Conselhos Estaduais e Municipais de Entorpecentes, os dados, observações e sugestões pertinentes”, cabendo ao “Conselho Nacional Antidrogas – Conad elaborar relatórios global e anuais e, anualmente, remetê-los ao órgão internacional de controle de entorpecentes” e sendo “facultado à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, ao Ministério Público, aos órgãos de defesa do consumidor e às autoridades policiais requisitar às autoridades sanitárias a realização de inspeção em empresas industriais e comerciais, estabelecimentos hospitalares, de pesquisa, de ensino, ou congêneres, assim como nos serviços médicos e farmacêuticos que produzirem, venderem, comprarem, consumirem, prescreverem ou fornecerem produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica” (art. 6º.). Neste caso, a “autoridade requisitante pode designar técnico especializado para assistir à inspeção ou comparecer pessoalmente à sua realização.” O § 2o deste art. 6º. ainda estabelece que “no caso de falência ou liquidação extrajudicial das empresas ou estabelecimentos referidos neste artigo, ou de qualquer outro em que existam produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, ou especialidades farmacêuticas que as contenham, incumbe ao juízo perante o qual tramite o feito:

 I – determinar, imediatamente à ciência da falência ou liquidação, sejam lacradas suas instalações;

II – ordenar à autoridade sanitária designada em lei a urgente adoção das medidas necessárias ao recebimento e guarda, em depósito, das substâncias ilícitas, drogas ou especialidades farmacêuticas arrecadadas;

III – dar ciência ao órgão do Ministério Público, para acompanhar o feito”, sendo que a “alienação, em hasta pública, de drogas, especialidades farmacêuticas ou substâncias ilícitas será realizada na presença de representantes da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, dos Conselhos Estaduais de Entorpecentes e do Ministério Público.” O “restante do produto não arrematado será, ato contínuo à hasta pública, destruído pela autoridade sanitária”, na presença daqueles representantes da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, dos Conselhos Estaduais de Entorpecentes e do Ministério Público.

O art. 7º. exige que da “licitação para alienação de drogas, especialidades farmacêuticas ou substâncias ilícitas, só podem participar pessoas jurídicas regularmente habilitadas na área de saúde ou de pesquisa científica que comprovem a destinação lícita a ser dada ao produto a ser arrematado”, sendo que os “que arrematem drogas, especialidades farmacêuticas ou substâncias ilícitas, para comprovar a destinação declarada, estão sujeitos à inspeção da Secretaria Nacional Antidrogas –  Senad e do Ministério Público.”

Observa-se que o Ministério Público terá atuação importante nestas medidas administrativas, devendo, evidentemente, adequar-se a estas novas atribuições, criando interna corporis uma estrutura suficiente para esta demanda que se inicia.

3) O Capítulo II – Da Prevenção, da Erradicação e do Tratamento

Neste capítulo, a primeira seção trata da prevenção e da erradicação, estabelecendo no art. 8º. que são “proibidos, em todo o território nacional, o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de todos os vegetais e substratos, alterados na condição original, dos quais possam ser extraídos produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, especificados pelo órgão competente do Ministério da Saúde”, podendo este órgão “autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput, em local predeterminado, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, sujeitos à fiscalização e à cassação da autorização, a qualquer tempo, pelo mesmo órgão daquele Ministério que a tenha concedido, ou por outro de maior hierarquia.” Fora desta hipótese permissiva, as “plantações ilícitas serão destruídas pelas autoridades policiais mediante prévia autorização judicial, ouvido o Ministério Público e cientificada a Secretaria Nacional Antidrogas – Senad.” Observa-se, aqui, mais uma vez a intervenção obrigatória do parquet.

Vetou-se, porém, a disposição que estabelecia que em “hipóteses excepcionais, as plantações ilícitas poderão, sem a prévia autorização judicial, ser destruídas por determinação do delegado de polícia da circunscrição, que imediatamente comunicará a ocorrência e as razões da medida às autoridades e órgãos previstos no § 2o. (o Ministério Público e a Secretaria Nacional Antidrogas – Senad) e registrará a localização, extensão do plantio e demais informações destinadas a promover a responsabilização”, sob o seguinte argumento:

“A norma presta-se ao desvirtuamento do trabalho policial, na medida em que prioriza a destruição de plantações em detrimento da consecução de prova judicial sólida. Esta última, que permite a prisão de criminosos e o desmantelamento de organizações ilícitas, é realmente instrumento eficiente no combate ao crime. A prova capaz de ensejar a condenação deve ser judicializada. As indeterminadas ´hipóteses excepcionais´ de eliminação da materialidade do delito seriam potencialmente nocivas ao interesse público. Além disso, a regra geral da prévia autorização judicial para o ato policial estipula diligência de dificuldade semelhante à prevista no próprio parágrafo da proposta, qual seja a de ´determinação do delegado da circunscrição´. Por outro lado, normas gerais impedem que haja prejuízo ao trabalho policial em casos excepcionais. A proteção jurídica ao cumprimento do dever e a relevância penal da omissão apontam, portanto, para a desnecessidade da norma.” Cremos que o veto foi correto, até porque o dispositivo poderia ensejar, como é óbvio, um sem número de arbitrariedades.

Manteve-se, no entanto, a disposição segundo a qual a “destruição de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica será feita por incineração e somente pode ser realizada após lavratura do auto de levantamento das condições encontradas, com a delimitação do local e a apreensão de substâncias necessárias ao exame de corpo de delito”, sendo que “em caso de ser utilizada a queimada para destruir a plantação, observar-se-á, no que couber, o disposto no Decreto no 2.661, de 8 de julho de 1998, dispensada a autorização prévia do órgão próprio do Sistema Nacional do Meio Ambiente – Sisnama.” Tal erradicação “far-se-á com cautela, para não causar ao meio ambiente dano além do necessário.” A preocupação aqui demonstrada pelo legislador foi extremamente salutar.

Em seguida, dois outros artigos foram vetados. O primeiro estabelecia que a “autoridade que descumprir o preceito do § 6o. (logo acima transcrito) sujeitar-se-á às sanções administrativas da Lei no. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, após apuração em processo administrativo.” Vetou-se, sob o argumento de que “com ou sem o § 7o. em questão, as operações que exacerbarem o necessário na destruição de culturas ilícitas, e causarem danos ambientais, estarão, de qualquer modo, sujeitas às penas da Lei no. 9.605/98 (Lei do Meio Ambiente). Há mais: a autoridade pública deve conhecer a legislação em sua plenitude. Haja ou não a remissão constante do § 7o., eventual conduta lesiva ao meio ambiente estará induvidosamente sujeita à Lei dos Crimes Ambientais. Desse modo, por ser desnecessário, pronuncia-se o Ministério da Justiça pelo veto do dispositivo enfocado.” Em seguida ocorreu o veto ao parágrafo que estabelecia que as “glebas em que forem cultivadas plantações ilícitas serão expropriadas, conforme o disposto no art. 243 da Constituição Federal, mediante o procedimento judicial adequado, ressalvada, desde que provada, a boa-fé do proprietário que não esteja na posse direta”, alegando-se que o “art. 243 da Constituição dispõe que as glebas onde forem localizadas culturas ilegais serão imediatamente expropriadas, sem qualquer indenização ao proprietário. A instituição, por meio de lei, de ressalva para os casos de boa-fé do proprietário que não esteja na posse direta da terra é inconstitucional. Além disso, a Lei nº. 8.257/91 já trata da matéria, de forma conveniente ao interesse público.”

Determina-se no art. 9o. ser “indispensável a licença prévia da autoridade sanitária para produzir, extrair, fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar, reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou adquirir, para qualquer fim, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, ou produto químico destinado à sua preparação, observadas as demais exigências legais”, dispensando-se, porém, esta exigência para “a aquisição de medicamentos, mediante prescrição médica, de acordo com os preceitos legais e regulamentares.”

No entanto, o Ministério da Saúde sugeriu o veto ao inciso II do parágrafo único do art. 9º. que dispensava aquela licença prévia da autoridade sanitária na “compra e venda de produto químico, ou natural, em pequena quantidade, a ser definida pelo órgão competente do Ministério da Saúde, destinado a uso medicinal, científico ou doméstico.” O veto existiu “tendo em vista a competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA estabelecida na Medida Provisória no. 2.190-34, de 23 de agosto de 2001, que altera a Lei no. 9.782/99, no seu art. 7o., VII: ´autorizar o funcionamento de empresas de fabricação, distribuição e importação dos produtos mencionados no art. 8o. desta Lei de comercialização de medicamentos´.” E, continua: “tal como está redigido o inciso II do parágrafo único do art. 9o. do projeto de lei, cujo veto está sendo sugerido, haverá uma liberalização generalizada, que restringe o exercício do poder de polícia da ANVISA, no tocante a fiscalização e controle elencados no dispositivo retromencionado da Medida Provisória e ainda invalida o preceito do parágrafo 1o. do art. 3o. do projeto de lei. Vale salientar que da forma que foi escrito o projeto de lei, poderá haver uma vulnerabilidade do controle e da fiscalização, já exercidos pela ANVISA, em conformidade com o art. 6o. da Lei no 6.368/76, em função, principalmente, da ausência de clareza na conceituação sobre produto, substância e droga que causa dependência, destinados a uso lícito e ilícito, gerando conflitos de controle no que tange ao uso lícito e também superposição de competências (Ministério da Saúde e Ministério da Justiça) quanto ao controle e fiscalização do uso ilícito. Lembramos ainda, que as ações de controle e fiscalização do uso lícito, de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, incluídos aqueles que causam dependência, historicamente atribuídas ao Ministério da Saúde e hoje, por força da Lei no. 9.782/99, desenvolvidas pela ANVISA, visam sobretudo coibir o uso abusivo e indevido, protegendo e promovendo a saúde e o bem-estar da população.”

O art. 10 prevê que os “dirigentes de estabelecimentos ou entidades das áreas de ensino, saúde, justiça, militar e policial, ou de entidade social, religiosa, cultural, recreativa, desportiva, beneficente e representativas da mídia, das comunidades terapêuticas, dos serviços nacionais profissionalizantes, das associações assistenciais, das instituições financeiras, dos clubes de serviço e dos movimentos comunitários organizados adotarão, no âmbito de suas responsabilidades, todas as medidas necessárias à prevenção ao tráfico, e ao uso de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, que causem dependência física ou psíquica”, sendo que as “pessoas jurídicas e as instituições e entidades, públicas ou privadas, implementarão programas que assegurem a prevenção ao tráfico e uso de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica em seus respectivos locais de trabalho, incluindo campanhas e ações preventivas dirigidas a funcionários e seus familiares.” Estas medidas de prevenção são “as que visem, entre outros objetivos, os seguintes: incentivar atividades esportivas, artísticas e culturais; promover debates de questões ligadas à saúde, cidadania e ética; manter nos estabelecimentos de ensino serviços de apoio, orientação e supervisão de professores e alunos; manter nos hospitais atividades de recuperação de dependentes e de orientação de seus familiares.”

Importante disposição, pois este controle informal é fundamental no combate a este tipo de criminalidade, ainda mais considerando o caráter subsidiário do Direito Penal[5]. A propósito, vale a advertência da educadora espanhola Encarna Bas, doutora em Ciências da Educação, segundo a qual “la educación sobre drogas requiere una política real de prevención, que contemple la formación del profesorado, de los padres y madres, y de otros mediadores sociales, para el desarollo de programas globales, fundamentados, coherentes, continuos, sistemáticos y creativos.”[6] 

3.1) A Justiça Terapêutica:

Na seção II deste capítulo, temos a matéria referente ao tratamento do dependente ou usuário de droga. Aqui vemos uma clara opção do legislador pela chamada “Justiça Terapêutica” de origem estadunidense, e de relativa eficácia, pois equipara injustificadamente o dependente (este sim passível de ser tratado) ao mero ou ocasional usuário de drogas, não necessariamente dependente. Como anota Luiz Flávio Gomes, pretende-se “que todos os usuários sejam submetidos a tratamento. Isso constitui erro clamoroso. É preciso distinguir o usuário dependente do não dependente. O mero experimentador ou ocasional usuário não tem que se submeter a nenhum tratamento, porque dele não necessita. O tratamento não pode nunca ser visto como uma ´pena´ ou um ´castigo´. É apenas uma oferta para recuperar o dependente.”[7] Muito antes, Maria Lúcia Karam afirmava que “leis penais, como a brasileira, que impõem a obrigatoriedade do tratamento àqueles que têm sua culpabilidade excluída, em razão da dependência, contrariam o princípio básico de que o êxito de qualquer tratamento, nesta área, está condicionado à voluntariedade de sua busca.”[8]  

Assim, o art. 11 começa por estabelecer que o “dependente ou o usuário de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, que causem dependência física ou psíquica, relacionados pelo Ministério da Saúde, fica sujeito[9] às medidas previstas neste Capítulo e Seção”, devendo o “tratamento do dependente ou do usuário ser feito de forma multiprofissional e, sempre que possível, com a assistência de sua família”, cabendo ao “Ministério da Saúde regulamentar as ações que visem à redução dos danos sociais e à saúde.” Por outro lado, as “empresas privadas que desenvolverem programas de reinserção no mercado de trabalho, do dependente ou usuário de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, ou que causem dependência física ou psíquica, encaminhados por órgão oficial, poderão receber benefícios a serem criados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios”. Ademais, os “estabelecimentos hospitalares ou psiquiátricos, públicos ou particulares, que receberem dependentes ou usuários para tratamento, encaminharão ao Conselho Nacional Antidrogas – Conad, até o dia 10 (dez) de cada mês, mapa estatístico dos casos atendidos no mês anterior, com a indicação do código da doença, segundo a classificação aprovada pela Organização Mundial de Saúde, vedada a menção do nome do paciente. No caso de internação ou de tratamento ambulatorial por ordem judicial, será feita comunicação mensal do estado de saúde e recuperação do paciente ao juízo competente, se esse o determinar. As instituições hospitalares e ambulatoriais comunicarão à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad os óbitos decorrentes do uso de produto, substância ou droga ilícita.”

O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República sugeriu o veto ao caput do art. 12 que tinha a seguinte redação: “As redes dos serviços de saúde da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado o disposto nos arts. 4o. e 47, desenvolverão programas de tratamento do usuário de substâncias ou drogas ilícitas ou que causem dependência física ou psíquica”, sob o argumento de que “da maneira como se encontra grafado, o artigo em questão determina, em outras palavras, que somente mediante financiamento com recursos arrecadados pela Secretaria Nacional Antidrogas é que as redes de serviços de saúde da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios desenvolverão programas para tratamento do usuário de drogas. Desse entendimento, decorre que essa proposta vai de encontro ao estabelecido pela Política Nacional Antidrogas, conforme pressuposto básico por ela definido no item 2.12. de seu texto. Ainda, relativamente aos objetivos do Sistema Nacional Antidrogas – SISNAD, da mesma maneira não encontra guarida, uma vez que esse Sistema orienta-se por esse pressuposto básico, a responsabilidade compartilhada entre Estado e Sociedade, adotando como estratégia a cooperação mútua e a articulação de esforços entre Governo, iniciativa privada e cidadãos – considerados individualmente ou em suas livres associações. Por outro lado, podem ser considerados, isoladamente, como fatores impeditivos à consecução do desiderato pretendido pelo artigo em comento, a diminuta previsão orçamentária disponibilizada para o Fundo Nacional Antidrogas, mais especificamente, no que diz respeito à fonte de recursos vinculados à arrecadação, bem como a reduzida estrutura da SENAD, que não pode ser comparada à rede do Serviço Único de Saúde – SUS, para efeitos de aplicação, controle e fiscalização do emprego de tais recursos. Nesse sentido, este Gabinete vislumbra que o presente dispositivo deverá ser contemplado em diploma legal especialmente voltado para o assunto, devidamente consideradas as limitações e responsabilidades de todos os órgãos que integram o Sistema Nacional Antidrogas, bem como o Sistema Único de Saúde, em todos os níveis da Federação, uma vez que é legítima a preocupação do Legislador sobre a questão do tratamento do usuário, que se constitui primordialmente em ação de saúde pública, e esta um dever do Estado.”[10]

4) O Capítulo III – Dos Crimes e das Penas

Todo este capítulo foi vetado, continuando em vigor, então, os arts. 12 e seguintes da Lei nº. 6.368/76 que definem os delitos e as respectivas sanções penais. Para simples conhecimento, veja-se como estava ele grafado e as razões do veto:

“Art. 14. Importar, exportar, remeter, traficar ilicitamente, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, financiar, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar a consumo e oferecer, ainda que gratuitamente, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena: reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e multa.

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:

I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, financia, vende, expõe à venda ou oferece, ainda que gratuitamente, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de produto, substância ou droga ilícita ou que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

II – semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas ao consumo direto ou à preparação de produtos, substâncias ou drogas, relacionadas como ilícitas pelo órgão competente do Ministério da Saúde;

III – fabrica, tem em depósito ou vende, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, medicamentos, solventes, inalantes, inebriantes ou produtos que os contenham, de uso não autorizado pelo órgão competente do Ministério da Saúde;

IV – utiliza local de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, para tráfico ou depósito de produto, substância ou droga ilícita.

§ 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém a usar produto, substância ou droga ilícita, bem assim contribuir, efetiva e diretamente, para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico de produto, substância ou droga ilícita:

Pena: reclusão, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Art. 15. Promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de 3 (três) ou mais pessoas que, atuando em conjunto, pratiquem, reiteradamente ou não, algum dos crimes previstos nos arts. 14 a 18 desta Lei:

Pena: reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, e multa.

Art. 16. Utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, guardar e fornecer, ainda que gratuitamente, maquinismo, aparelho ou instrumento, ciente de que se destina à produção ou fabricação ilícita de produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

Art. 17. Prestar colaboração, direta ou indireta, ainda que como informante, ou apoiar grupo, organização ou associação responsável por crimes previstos nos arts. 14, 15 e 16 desta Lei:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Art. 18. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, do tráfico de produtos, substâncias ou drogas ilícitas:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1o Influenciar, induzir ou instigar terceiro a receber ou ocultar, de boa–fé, bem ou valor proveniente de tráfico de produto, substância ou droga ilícita:

Pena: reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.

§ 2o Adquirir ou receber bem proveniente de tráfico ilícito de produto, substância ou droga ilícita, que, pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição da pessoa que o oferece, deva presumir ter sido obtido por meio ilícito:

Pena: reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.

Art. 19. Prescrever ou ministrar, culposamente, o médico, dentista, farmacêutico ou outro profissional da área de saúde, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, em dose evidentemente superior à necessária, ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Penas e medidas aplicáveis: as previstas no art. 21.

Parágrafo único. O juiz comunicará a condenação ao Conselho Federal da categoria profissional a que pertença o agente.

Art. 20. Adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, em pequena quantidade, a ser definida pelo perito, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Penas e medidas aplicáveis: as previstas no art. 21.

§ 1o O agente do delito previsto nos arts. 19 e 20, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, será processado e julgado na forma do art. 60 e seguintes da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995 – Lei dos Juizados Especiais, Parte Criminal.

§ 2o Nas mesmas penas e medidas aplicáveis aos crimes previstos neste artigo, e sob igual procedimento, incorre quem cede, eventualmente, sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, maior de 18 (dezoito) anos, produto, substância ou droga ilícita, para juntos a consumirem.

§ 3o É isento de pena o agente que, tendo cometido o delito previsto neste artigo, era, ao tempo da ação, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, em razão de dependência grave, comprovada por peritos.

§ 4o Quando o juiz absolver o agente, reconhecendo por força de perícia oficial, que ele, à época do delito previsto neste artigo, apresentava as condições prescritas no § 3o, determinará, ato contínuo, na própria sentença absolutória, o seu encaminhamento para o tratamento devido.

Art. 21. As medidas aplicáveis são as seguintes:

I – prestação de serviços à comunidade;

II – internação e tratamento para usuários e dependentes de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, em regime ambulatorial ou em estabelecimento hospitalar ou psiquiátrico;

III – comparecimento a programa de reeducação, curso ou atendimento psicológico;

IV – suspensão temporária da habilitação para conduzir qualquer espécie de veículo;

V – cassação de licença para dirigir veículos;

VI – cassação de licença para porte de arma;

VII – multa;

VIII – interdição judicial;

IX – suspensão da licença para exercer função ou profissão.

§ 1o Ao aplicar as medidas previstas neste artigo, cumulativamente ou não, o juiz considerará a natureza e gravidade do delito, a capacidade de autodeterminação do agente, a sua periculosidade e os fatores referidos no art. 25.

§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a uso pessoal e formar sua convicção, no âmbito de sua competência, o juiz, ou a autoridade policial, considerará todas as circunstâncias e, se necessário, determinará a realização de exame de dependência toxicológica e outras perícias.

Art. 22. Dirigir veículo de espécie diversa das classificadas no art. 96 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 — Código de Trânsito Brasileiro —, após ter consumido produto, substância ou droga relacionados como ilícitos pelo órgão competente do Ministério da Saúde:

Pena: apreensão do veículo, cassação da habilitação respectiva e multa, sem prejuízo de sanções específicas, aplicáveis em razão da natureza náutica ou aérea do veículo.

Art. 23. As penas previstas nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 são aumentadas de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se:

I – dada a natureza, a procedência ou a quantidade da substância, droga ilícita ou produto apreendidos, as circunstâncias do fato evidenciarem o envolvimento do agente com o tráfico ilícito organizado, nacional ou internacional;

II – o agente praticar o crime prevalecendo-se de função pública, ou se desempenhar missão de educação, guarda ou vigilância;

III – a prática visar atingir ou envolver pessoa menor de 18 (dezoito) anos, ou que tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de discernimento ou de autodeterminação;

IV – a infração tiver sido cometida nas dependências de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, em estabelecimento penal, militar ou policial, em transporte público, ou em locais onde alunos se dediquem à prática de atividades esportivas, educativas ou sociais, ou nas suas imediações;

V – o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça ou emprego de arma;

VI – o agente obteve ou procura obter compensação econômica;

VII – o produto, a substância ou a droga ilícita forem distribuídos para mais de 3 (três) pessoas;

VIII – o agente portava mais de uma modalidade de produto, substância ou droga ilícita.

Art. 24. São inafiançáveis e insuscetíveis de graça os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 desta Lei.

§ 1o A prisão temporária requerida para os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.

§ 2o As penas aplicadas aos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 terão pelo menos a primeira terça parte cumprida integralmente em regime fechado.

Art. 25. Na fixação da pena, além do disposto no art. 59 do Código Penal, o juiz apreciará a gravidade do crime, a natureza e a quantidade dos produtos, das substâncias ou das drogas ilícitas apreendidos, o local ou as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta e os antecedentes do agente, podendo, justificadamente, reduzir a pena de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço).

Art. 26. O dependente ou usuário de produto, substância ou droga ilícita que, em razão da prática de qualquer infração penal, se encontrar em cumprimento de pena privativa de liberdade ou medida de segurança poderá ser submetido a tratamento em ambulatório interno do sistema penitenciário respectivo.

Parágrafo único. Enquanto não forem instalados os ambulatórios, o tratamento será realizado na rede pública de saúde.”

Estas foram as razões do veto:

“Em que pese a louvável intenção do legislador ao tentar conferir tratamento diferenciado ao consumidor de drogas, há vício de inconstitucionalidade no art. 21, que contamina a íntegra de vários outros artigos do capítulo em questão.

O art. 5o, XXXIX, da Constituição Federal e o art. 1o. do Código Penal dispõem que ´não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal´. Além disso, o art. 5o, XLVI, da Lei Maior, consagra o princípio da individualização da pena, atribuindo à Lei essa tarefa. Por fim, o art. 5o, XLVII, "b", também da Constituição, determina a proibição de pena de caráter perpétuo.

O projeto, lamentavelmente, deixou de fixar normas precisas quanto a limites e condições das penas cominadas. Diferentemente do que ocorre nos casos de conversão de penas restritivas de liberdade em restritivas de direitos e vice-versa, o projeto não contém limites temporais expressos que atendam aos princípios constitucionais.

Em matéria tão sensível, não se deve presumir a prudência das instituições, pois a indeterminação da lei penal pode ser a porta pela qual se introduzem formas variadas e cruéis de criminalidade legalizada.

A inconstitucionalidade apontada contamina os artigos 19 e 20, na medida em que estes descrevem tipos penais cujas penas são as presentes no art. 21.

Quanto ao artigo 14 do projeto, o primeiro do capítulo em comento, o tipo em questão já é contemplado pelo art. 12 da Lei no 6.368/76, com a mesma cominação de pena. No projeto, todavia, dois verbos somaram-se aos verbos do tipo vigente: "financiar" e "traficar ilicitamente". Conquanto representassem, em tese, avanços legislativos, contêm o risco inadmissível, ainda que remoto, de provocar profunda instabilidade no ordenamento jurídico.

Veicula-se tese no meio jurídico pela qual a redação proposta pelo projeto no art. 14 promoveria uma ´evasão de traficantes das prisões´. Explique-se. O verbo ´traficar´ acrescentado pelo projeto, e que não aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter exclusivo, a aplicação da Lei no. 8.072, de 25 de julho de 1990 (Crimes Hediondos), que impõe o cumprimento integral em regime fechado da pena para o crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Em decorrência disso, apenados condenados por decisão judicial que contenha referência expressa a verbos como ´produzir´, ´ter em depósito´, por exemplo, não estariam submetidos à norma especial sobre o regime. Hediondo seria, por essa interpretação, apenas o verbo novo, o ´traficar´. Assim, por causa do princípio da irretroatividade da lei penal mais grave, todos indivíduos condenados e processados pelo tipo do art.12 da Lei no. 6.368/76, poderiam estar, automaticamente, descobertos pela Lei no. 8.072/90. Conquanto seja tese de duvidosa plausibilidade, divulgada ad terrorem, não é do interesse público que se corra risco algum a respeito do tema. Em vista disso, somado ao fato de que em vários artigos há remissão expressa ao art. 14, a permanência dos demais artigos do Capítulo III acarretaria difícil e temerária conjugação com os tipos previstos na Lei no. 6.368/76. Isso porque a interpretação extensiva e a analogia são proibidas em direito penal. Acrescente-se que, no caso do art. 18 do projeto, o tipo penal consta do art. 1o, I, da Lei no 9.613, de 3 de março de 1998 (lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores) que comina pena mais elevada, o que, em razão do interesse público, deve ser mantida. O tema conhecido por ´lavagem de dinheiro´ merece repressão diferenciada, pois é reconhecido como uma das bases do crime organizado, nacional e transnacional. Por último, os sensíveis avanços contidos no projeto, mas prejudicados por inconstitucionalidade reflexa, não cairão no esquecimento, vez que se estuda, para breve, o encaminhamento de proposta legislativa que tratará de forma adequada da matéria constante do presente capítulo.”

5) O Capítulo IV – Do Procedimento Penal

5.1) Da aplicabilidade dos dispositivos:

Este capítulo, que efetivamente nos interessa (em razão do objeto do nosso trabalho), diz respeito à primeira fase do procedimento penal a ser adotado quando da prática dos delitos tipificados na Lei nº. 6.368/76. Ele engloba os arts. 27 a 34 da nova lei e diz respeito, repita-se, à primeira fase da persecutio criminis.

Adota-se o que a lei denominou de procedimento comum, segundo o qual “o procedimento relativo aos processos por crimes definidos nesta Lei rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.” (Grifo nosso).

Aqui, observa-se uma primeira dificuldade de interpretação causada exatamente pelo veto inteiro ao anterior Capítulo III, pois, na verdade, a lei não define nenhum crime; logo, poder-se-ia argumentar até que este procedimento é inaplicável, visto que, não havendo crime definido nesta lei, o respectivo e pretenso procedimento seria inaplicável, restando, então, incólume aquele procedimento estipulado na Lei nº. 6.368/76[11].

Em que pese reconhecermos a atecnia resultante do veto, não vemos obstáculo jurídico em admitir a validade deste novo procedimento em relação aos delitos tipificados na Lei nº. 6.368/76, mesmo porque esta é a legislação que em nosso País tipifica delitos desta natureza. Por outro lado, ao estabelecer um novo procedimento, a lei nova, implicitamente, revogou a lei anterior nesta sua parte procedimental (art. 2º., § 1º., da Lei de Introdução ao Código Civil). Como escreveu Luiz Flávio Gomes, pelo fato de não existir “a menor dúvida sobre a quais crimes refere-se o art. 27 da Lei nº. 10.409/02 (é evidente, óbvio e ululante que esse dispositivo legal diz respeito aos crimes previstos na Lei nº. 6.368/76), segundo nosso ponto de vista, parece muito claro que o novo procedimento tem que ser observado em todos os seus termos, sob pena de nulidade total do processo (por inobservância do devido processo legal).”[12]

Ademais, devemos interpretar este art. 27 sistematicamente, ou seja, voltando os olhos para o ordenamento jurídico, mais especificamente para os arts. 12 a 19 da Lei nº. 6.368/76. Como afirmava Carlos Maximiliano, o “Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.”[13]

Não esqueçamos, ainda, que o art. 59 desta lei foi vetado, exatamente aquele que revogava a Lei nº. 6.368/76. Atentemos para as razões do veto a este art. 59: “Conquanto repleto de positivas inovações, o projeto, por razões já expostas, não logra êxito quanto à juridicidade de vários de seus artigos. Isso compromete a substituição plena da Lei que regula a matéria. Portanto, a cláusula que revoga a Lei no 6.368/76 não deve persistir, sob pena de abolição de diversos tipos penais, entre outros efeitos nocivos ao interesse público. Apesar disso, a futura norma legal apresenta importante avanço no combate ao crime. Os diversos vetos, se aceitos, obrigam que se aumente o prazo de entrada em vigor da lei, bem como da sua regulamentação. As ausências de que se rescinde o projeto poderão, todavia, ser reparadas posteriormente mediante iniciativa do Poder Executivo, que deverá levar em consideração todas as discussões já havidas no Congresso Nacional.”

Vale neste momento fazer uma ressalva que entendemos necessária e pertinente: a lei dos crimes hediondos havia acrescentado um parágrafo único ao art. 35 da Lei nº. 6.368/76, duplicando os prazos procedimentais quando se tratasse dos crimes previstos nos arts. 12, 13 e 14. Pergunta-se: tal dispositivo continua em vigor com esta nova lei, isto é, no atual procedimento deve prevalecer este parágrafo único? A resposta é negativa, pois não somente toda a parte procedimental da antiga lei foi revogada implicitamente pela nova (incluindo o seu art. 35), como pelo fato de não ter havido qualquer referência neste sentido na lei que ora se comenta (o que poderia ter sido feito). Se não o foi, e sendo uma norma gravosa (principalmente para indiciados e réus presos), evidentemente que não é cabível qualquer outro entendimento. Neste sentido já houve decisão judicial proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Habeas Corpus nº. 000285010-5/00(1), Relator Des. Herculano Rodrigues, in verbis: “A nova lei de tóxicos, em questão de prazo, regulamentou a matéria exaustivamente, e quando entendeu de disciplinar o prazo em dobro, o fez de forma clara e expressa no art. 29, parágrafo único, autorizando a duplicação do prazo, exclusivamente, para a conclusão do inquérito policial.”   

Diga-se o mesmo quanto ao antigo art. 27, segundo o qual “o processo e o julgamento do crime de tráfico com o exterior caberão à justiça estadual com interveniência do Ministério Público respectivo, se o lugar em que tiver sido praticado for município que não seja sede de vara da Justiça Federal, com recurso para o Tribunal Federal de Recursos” (hoje Tribunal Regional Federal). A nova lei não reproduziu esta norma, razão pela qual entendemos não mais ser possível aplicá-la, mesmo porque o art. 109, § 3º. da Constituição Federal exige expressamente (nas causas criminais) que esta permissão seja dada por lei. Ademais, foi vetado o art. 56 do projeto de lei, exatamente o que previa expressamente esta competência residual, senão vejamos:

“Art. 56. O processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17, 18 e 19, se caracterizado ilícito transnacional, caberão à Justiça Federal.

Parágrafo único. Se o lugar em que tiverem sido praticados for Município que não seja sede de vara da Justiça Federal, o processo e o julgamento referidos no caput caberão à Justiça Estadual, com interveniência do Ministério Público respectivo, com recurso para o Tribunal Regional Federal da circunscrição.”

Razões do veto: “O disposto no art. 56 e seu parágrafo único ficam prejudicados em face do veto sugerido ao Capítulo III.”

5.2) Da prisão em flagrante e do inquérito policial:

Logo no início da seção única deste capítulo, foi vetado o caput do art. 28 que dispunha: “Ocorrendo prisão em flagrante, a autoridade policial, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, fará comunicação ao juiz competente, remetendo-lhe cópia do auto lavrado.” Vetou-se porque “a Constituição exige, no art. 5o., LXII, que a prisão de qualquer pessoa seja imediatamente comunicada ao juiz competente. Por ser norma restritiva de direito não pode o legislador ordinário ampliar-lhe o âmbito de aplicação. Além disso, com a ressalva do art. 60, § 4o., IV da Constituição Federal, o veículo adequado para a alteração proposta seria projeto de emenda à Constituição.”

Estabelece a lei que para o efeito “da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da autoria e materialidade do delito, é suficiente o laudo de constatação da natureza e quantidade do produto, da substância ou da droga ilícita, firmado por perito oficial ou, na falta desse, por pessoa idônea, escolhida, preferencialmente, entre as que tenham habilitação técnica.” O perito que subscrever este laudo “não ficará impedido de participar da elaboração do laudo definitivo.” Observa-se que, diferentemente do que ocorre com a feitura do laudo definitivo, para este provisório laudo de constatação não é necessária a participação de dois peritos, como exige o art. 159 e seu § 1º., além de se dispensar o diploma de curso superior para o perito não oficial. Aliás, este parágrafo representa uma clara exceção ao disposto no art. 279, II do Código de Processo Penal, segundo o qual não pode ser perito quem “tiver opinado anteriormente sobre o objeto da perícia.” Aqui, mesmo aquele perito que assinou o primeiro laudo poderá também atestar o segundo e definitivo documento. Tais disposições constavam da lei anterior (art. 22, §§ 1º. e 2º.)

Continua a lei:

“O inquérito policial será concluído no prazo máximo de 15 (quinze) dias, se o indiciado estiver preso, e de 30 (trinta) dias, quando solto”, podendo tais prazos ser “duplicados pelo juiz, mediante pedido justificado da autoridade policial.” Observa-se que pelo Código de Processo Penal, a dilação de prazo para a conclusão do inquérito policial só está permitida quando o indiciado estiver solto (art. 10, § 3º.). Como se percebe, quanto ao indiciado preso aumentou-se o prazo para o término do inquérito policial, em relação àquele estabelecido genericamente no art. 10 do CPP e mesmo no estipulado anteriormente pelo art. 21 da lei antiga. É evidente que apenas quando demonstrada efetivamente a necessidade da dilação é que o Juiz, também fundamentadamente, deferirá o pedido feito pela autoridade policial. Estando preso o indiciado, esta duplicação do prazo deve ser feita com bastante cautela, a fim de que não se prolongue demasiado a conclusão da peça informativa.  

Ao final do procedimento inquisitivo, a “autoridade policial relatará sumariamente as circunstâncias do fato e justificará as razões que a levaram à classificação do delito, com indicação da quantidade e natureza do produto, da substância ou da droga ilícita apreendidos, o local ou as condições em que se desenvolveu a ação criminosa e as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente.”

Excepcionalmente a lei determina que o relatório do inquérito policial indique, expressa e justificadamente, a qualificação jurídica do fato, evitando-se, assim, que arbitrariamente sejam indiciados meros usuários como traficantes, com todas as conseqüências daí decorrentes, como, por exemplo, a impossibilidade de prestar fiança ou mesmo de se livrar solto. Doravante, deverá o Delegado de Polícia explicitar em suas conclusões o que o levou ao indiciamento pelo art. 12 e não pelo art. 16, regra absolutamente inédita e inovadora em nosso sistema processual, pois, como diz Tourinho Filho, tradicionalmente “esse relatório não encerra, não deve nem pode encerrar qualquer juízo de valor.”[14]  Como bem anotaram Gilberto Thums e Vilmar Velho Pacheco Filho, buscou-se “evitar que continuassem sendo adotados alguns critérios abstratos, absurdamente subjetivos em que a autoridade policial usava a ´experiência´ e até mesmo o pressentimento para classificar um crime de tóxico, ou ainda, o procedimento da qualificação pelo delito mais grave uma vez que pairasse qualquer dúvida sobre o realmente ocorrido, contrariando o básico princípio do favor rei ou in dubio pro reo, basilar da melhor justiça penal.”[15]

Continuemos a análise do texto:

“Findos os prazos previstos no art. 29, os autos do inquérito policial serão remetidos ao juízo competente, sem prejuízo da realização de diligências complementares destinadas a esclarecer o fato”, sendo que as “conclusões das diligências e os laudos serão juntados aos autos até o dia anterior ao designado para a audiência de instrução e julgamento.” Entendemos que se tratando de acusado preso, em nenhuma hipótese deve ser adiada a audiência de instrução e julgamento que deverá ser realizada na data marcada, ainda que não tenham sido concluídas aquelas diligências complementares, salvo se se conceder liberdade provisória ao réu. O acusado tem o direito a um julgamento rápido (nada obstante seguro[16]) e sem dilações indevidas[17]. Se aquelas diligências complementares ainda não puderam ser concluídas, a  culpa não é do acusado (se for é diferente) e sim do aparato estatal que não teve a suficiente competência para terminar as investigações oportuno tempore. Tratando-se, porém, de acusado que esteja respondendo ao processo em liberdade, aquela audiência pode ser adiada, requisitando-se com urgência o encaminhamento das diligências complementares. Ainda a propósito deste dispositivo, asseveramos que tais diligências complementares são aquelas que não possam impedir ou inviabilizar a feitura da peça acusatória, ou seja, têm caráter efetivamente complementar (secundário) e não fundamental. É evidente que o inquérito policial deve trazer os fatos já suficientemente esclarecidos, sob pena de não ser possível ao Promotor de Justiça determinar e indicar na peça acusatória a causa de pedir. Caso contrário, os autos retornarão para complementação das investigações (veja-se o novo art. 37, II), sob pena de admitirmos uma denúncia inepta.

Relembre-se que o laudo definitivo continua sendo imprescindível para subsidiar um decreto condenatório, sendo “francamente majoritária a jurisprudência que reputa imprescindível para a condenação nos arts. 12 e 16 da Lei nº. 6.368/76 o exame toxicológico definitivo, não o suprindo o laudo de constatação preliminar.” (TJSP – Rev. 28.417 – Rel. Álvaro Cury – RT 594/304 e RJTJSP 92/482).

Foram vetados também o caput e o § 1º. do art. 32 que tinham a seguinte redação:

“Antes de iniciada a ação penal, o representante do Ministério Público ou o defensor poderão requerer à autoridade judiciária competente o arquivamento do inquérito ou o seu sobrestamento, atendendo às circunstâncias do fato, à personalidade do indiciado, à insignificância de sua participação no crime, ou à condição de que o agente, ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, em razão de dependência grave, comprovada por peritos.

“A solicitação, qualquer que seja a natureza ou a fase do processo, também poderá se basear em qualquer das condições previstas no art. 386 do Código de Processo Penal.”

Eis as razões alegadas: “O Ministério Público é o titular privativo da ação penal pública, conforme disposto no art. 129, I, da Constituição. O juízo de conveniência a respeito da transformação de um inquérito ou de uma notitia criminis em ação penal é, repita-se, exclusivo do Ministério Público. Só ele está legitimado a pedir o arquivamento de inquérito policial. Por isso, mesmo quando o pedido feito pelo Ministério Público é indeferido em primeiro grau, a solução da controvérsia mantém-se sob a responsabilidade do mesmo órgão, dessa vez, contudo, do Procurador-Geral. É o que dispõe o art. 28 do Código de Processo Penal. A hipótese de facultar ao defensor o pedido de arquivamento implica, portanto, limitação ao exercício constitucional da ação penal pelo Ministério Público, pois, em caso de deferimento do pedido feito por advogado ao juiz, o Ministério Público ficaria impedido de exercer sua prerrogativa constitucional. Por outro lado, não há prejuízo para a defesa, pois continua ela dispondo do instrumento constitucional do habeas corpus. O §1o do art. 32, por indissociável do caput, resta prejudicado.”

5.3) O sobrestamento do inquérito policial, a redução da pena e o perdão judicial: a delação premiada[18]:

Deste art. 32 restaram apenas os seus §§ 2o. e 3º. estabelecendo que “o sobrestamento do processo ou a redução da pena podem ainda decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado que, espontaneamente, revelar a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça.” Ademais, se “o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação, eficaz, dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou bando, ou da localização do produto, substância ou droga ilícita, o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la, de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão.”

Como se nota, são parágrafos sem caput, o que se revela estranho. São verdadeiras almas penadas… Como ensina Tourinho Filho, “sabe-se que o parágrafo guarda estreita relação com o artigo a que está atrelado.”[19] O que dirá o mestre…

Vejamos, então, o que se pode fazer para simplesmente não ignorarmos estes dispositivos legais ou torná-los inaplicáveis, até porque são, afinal de contas, disposições que podem vir a favorecer o réu. Como ensinava Carlos Maximiliano, respaldado na lição do francês Charles Brocher, “no Direito Criminal se não tolera a retificação efetuada pelo intérprete, quando prejudicial ao acusado; por outro lado, é de rigor fazê-la, quando aproveite ao réu.” (Grifo nosso)[20]. A lição parece-nos válida no presente caso.

Pois bem. Temos, então, três disposições diferentes contidas nestes parágrafos sobreviventes a este naufrágio legislativo:

1) O sobrestamento do inquérito policial;

2) O perdão judicial;

3) A redução da pena.

Ressalve-se a utilização pela lei brasileira, mais uma vez, de expressões como “organização”, “organização criminosa” e “grupo” sem que se saiba “juridicamente o que é isso no Brasil!”, como bem adverte (e desde há muito) Luiz Flávio Gomes.[21]

Há quem entenda inaplicáveis estes dois parágrafos, exatamente pela falta do caput do art. 32, tornando-os “dispositivos legais juridicamente inócuos ou ineficazes”, devendo aplicar-se a respeito os arts. 13 e 14 da Lei nº. 9.807/99 (Lei de Proteção às Testemunhas)[22]. Preferimos a corrente que sustenta a aplicabilidade dos dois parágrafos, apesar da evidente balbúrdia legislativa ocasionada pelo veto parcial ao art. 32, mesmo porque as disposições da Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas são menos amplas do que estes dois parágrafos. O perdão judicial, por exemplo, só é cabível para o colaborador primário e não há a previsão de sobrestamento do inquérito policial.   

Apesar do § 2º. referir-se a processo, evidentemente não se trata de sobrestamento da ação penal, por dois motivos: primeiro porque este parágrafo encontra-se indiscutivelmente no capítulo atinente à disciplina do inquérito policial e segundo porque o próprio parágrafo refere-se a indiciado. Ademais, o caput vetado iniciava-se com a ressalva “antes de iniciada a ação penal”. Logo, este sobrestamento diz respeito, tão-somente, à primeira fase da persecutio criminis, permanecendo íntegra a regra da indisponibilidade da ação penal (arts. 42 e 576 do CPP), com a mitigação operada pelos arts. 79 e 89 da Lei n. 9.099/95 (suspensão condicional do processo)[23]. Em reforço a esta tese, veja-se a lição de Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves, segundo a qual este capítulo IV “trata, em sua quase totalidade, do inquérito policial e de medidas investigatórias específicas, deixando para o capítulo V (instrução criminal) a incumbência de regulamentar, em todos os aspectos, o novo rito judicial em relação ao tráfico de entorpecentes.”[24]

Segundo o entendimento de Eduardo Araújo da Silva “o emprego do vocábulo ´processo´ pelo legislador foi equivocado, pois o dispositivo trata da colaboração na fase pré-processual. O correto seria o emprego da expressão ´sobrestamento do inquérito ou da investigação´, pois a colaboração na fase processual está disciplinada no § 3º. do mesmo dispositivo.” (idem).

A lei olvidou-se de estabelecer o prazo para o sobrestamento do inquérito policial. Podemos, então, por aplicação analógica (art. 3º., CPP), utilizar-nos do art. 89, caput da Lei nº. 9.099/95 (suspensão condicional do processo). Neste caso, por absoluta falta de previsão legal, não será possível, como determina o art. 89, § 6º., a suspensão do curso do prazo prescricional, pois, como se sabe, a prescrição é um instituto de Direito Penal, logo impossível a analogia in malam partem.

Nas três hipóteses acima indicadas o acordo é feito com o Ministério Público que, no primeiro caso (sobrestamento), agirá autonomamente, sem necessidade de se dirigir ao Juiz de Direito para requerer a homologação do acordo. Esta atividade lhe é privativa, mesmo porque, privativo também é o exercício da ação penal pública.[25]

Já o perdão judicial e a redução da pena serão requeridos pelo Promotor de Justiça ao Juiz do processo. O perdão judicial e a redução da pena são obrigatórias, configurando-se direitos subjetivos do acusado[26], acaso estejam presentes, efetivamente, os pressupostos previstos no referido parágrafo, ou seja, se com a revelação da existência da organização criminosa permitiu-se “a prisão de um ou mais dos seus integrantes, ou a apreensão do produto, da substância ou da droga ilícita, ou que, de qualquer modo, justificado no acordo, contribuir para os interesses da Justiça” (alternativamente). A redução será feita dentro dos parâmetros estabelecidos pelo próprio parágrafo.

Para Eduardo Araújo da Silva (ob. cit.), a redução da pena acordada entre o indiciado e o Ministério Público deve constar expressamente na denúncia, tratando-se de uma nova causa obrigatória de diminuição da pena. Caso, porém, a colaboração se efetive após o oferecimento da peça acusatória, o pedido de redução, e mesmo o de perdão judicial, devem ser feitos no momento dos debates orais.                                              

5.4) Dos meios investigatórios e de prova:

Os arts. 33 e 34 especificam e permitem alguns procedimentos investigatórios até então desconhecidos do nosso sistema, além daqueles já indicados na chamada lei do crime organizado (com a alteração feita pela Lei nº. 10.217/01). Assim, permite-se que “em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, (…) além dos previstos na Lei no. 9.034, de 3 de maio de 1995, mediante autorização judicial, e ouvido o representante do Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:

I – infiltração de policiais em quadrilhas, grupos, organizações ou bandos, com o objetivo de colher informações sobre operações ilícitas desenvolvidas no âmbito dessas associações; este procedimento é amplamente usado, e desde há muito, nos Estados Unidos. É o também chamado agente encoberto, que pode ser conceituado como um “funcionario policial o de las fuerzas de seguridad que hace una investigación dentro de una organización criminal, muchas veces, bajo una identidad modificada, a fin de tomar conocimiento de la comisión de delitos, su preparación e informar sobre dichas circunstancias para así proceder a su descubrimiento, e algunos casos se encuentra autorizado también a participar de la actividad ilícita.”[27] Ocorre que, como bem anotou Isaac Sabbá Guimarães, “não há previsão expressa sobre a conduta a ser seguida pelo agente infiltrado, especificamente sobre atos que eventualmente possam configurar crimes, fato este que inapelavelmente terá de ser tratado pela doutrina e jurisprudência dos tribunais, pois, em inúmeras situações a infiltração levará a alguma conduta criminosa que não poderá ser recusada sob pena de malograr as investigações.”[28] Cremos, sob este aspecto e a depender evidentemente de cada caso concreto, que, nada obstante a conduta típica, estaríamos diante de um estrito cumprimento do dever legal se o ato praticado fosse “rigorosamente necessário[29]”, a excluir a ilicitude. De toda maneira, resta-nos (para quem acredita) pedir proteção aos deuses!

II – a não-atuação policial sobre os portadores de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que entrem no território brasileiro, dele saiam ou nele transitem, com a finalidade de, em colaboração ou não com outros países, identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.” Nesta hipótese, “a autorização será concedida, desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores” e “as autoridades competentes dos países de origem ou de trânsito ofereçam garantia contra a fuga dos suspeitos ou de extravio dos produtos, substâncias ou drogas ilícitas transportadas.” Trata-se, aqui, de mais uma hipótese de flagrante diferido ou protelado, cuja previsão legal já havia na Lei do Crime Organizado, como mostraremos adiante. Em suma, evita-se a prisão em flagrante no momento da prática do delito, a fim de que em um momento posterior, possa ser efetuada com maior eficácia a prisão de todos os participantes da quadrilha ou bando, bem como se permita a apreensão da droga em maior quantidade.

Em seguida, o art. 34 estabelece que “para a persecução criminal e a adoção dos procedimentos investigatórios previstos no art. 33, o Ministério Público e a autoridade policial poderão requerer à autoridade judicial, havendo indícios suficientes da prática criminosa:

I – o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, patrimoniais e financeiras;

II – a colocação, sob vigilância, por período determinado, de contas bancárias;

III – o acesso, por período determinado, aos sistemas informatizados das instituições financeiras; aqui, como explica Isaac Sabbá Guimarães, “a lei não se contenta com a mera informação que pode um estabelecimento da rede bancária fornecer: admite a intervenção das investigações policiais diretamente nos sistemas informatizados.”[30]

IV – a interceptação e a gravação das comunicações telefônicas, por período determinado, observado o disposto na legislação pertinente e no Capítulo II da Lei no 9.034, de 1995.” Aqui permite-se, além da interceptação telefônica (quando nenhum dos interlocutores tem conhecimento da operação realizada por uma terceira pessoa), a gravação telefônica por um dos interlocutores sem a intervenção de terceiros e sem o conhecimento do outro interlocutor, o que é uma novidade entre nós, pois só conhecíamos a interceptação e a escuta telefônica (esta última quando há a intervenção de um terceiro e o conhecimento de apenas um dos interlocutores)[31]. Atente-se que em todas as hipóteses exige-se expressamente a autorização judicial, sem a qual, portanto, torna-se ilícita a prova colhida[32].

Note-se que estes dois últimos artigos fazem referência expressa à Lei nº. 9.034/95 (alterada pela Lei nº. 10.217/01), que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Esta lei procurou definir e regular os meios de prova e os procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou “organizações” ou “associações” criminosas de qualquer tipo.

Por ela, permite-se, em qualquer fase da persecução criminal (tanto no inquérito policial, quanto na instrução criminal, em Juízo), sem prejuízo dos meios de prova já previstos na legislação processual brasileira, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

1) A ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações. Permite-se, por exemplo, que não se prenda os agentes desde logo, ainda que em estado de flagrância, quando há possibilidade de que o diferimento da medida possa ensejar uma situação ainda melhor do ponto de vista repressivo. Exemplo: a Polícia monitora um porto à espera da chegada de um grande carregamento de cocaína, quando, em determinado momento, atraca um pequeno bote com dois dos integrantes da quadrilha ou bando (já conhecidos) portando um saco plástico transparente contendo um pó branco, a indicar ser cocaína. Pois bem: os agentes policiais, ao invés de efetuarem a prisão em flagrante, pois há um crime visto, procrastinam o ato, esperando que a “grande carga” seja desembarcada em um navio que se sabe virá dentro em breve. É o chamado flagrante diferido ou protelado.

2) O acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais. Nesta hipótese, ocorrendo a possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça. Ainda neste caso, para realizar a diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza da função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo. Permite a lei que o juiz, pessoalmente, lavre auto circunstanciado da diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória, podendo para esse efeito, designar uma das pessoas referidas no parágrafo anterior como escrivão ad hoc. O auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa, que não poderão dele servir-se para fins estranhos caso de divulgação. Os argumentos de acusação e defesa que versarem sobre a diligência serão apresentados em separado para serem anexados ao auto da diligência, que poderá servir como elemento na formação da convicção final do juiz. Em caso de recurso, o auto da diligência será fechado, lacrado e endereçado em separado ao juízo competente para revisão, que dele tomará conhecimento sem intervenção das secretarias e gabinetes, devendo o relator dar vistas ao Ministério Público e ao Defensor em recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o julgamento sejam mantidos em absoluto segredo de justiça.

Temos aqui uma perigosa e desaconselhável investigação criminal levada a cabo diretamente pelo Juiz. Não é possível tal disposição em um sistema jurídico acusatório, pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo[33] caracterizado, como genialmente diz o jurista italiano Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este método “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.[34]

Ao comentar este artigo, Luiz Flávio Gomes, pedindo a devida vênia, afirma que o legislador “acabou criando uma monstruosidade, qual seja, a figura do juiz inquisidor, nascido na era do Império Romano, mas com protagonismo acentuado na Idade Média, isto é, época da Inquisição. (…) Não é da tradição do Direito brasileiro e, aliás, também segundo nosso ponto de vista, viola flagrantemente a atual Ordem Constitucional”.[35]

É evidente que o dispositivo é teratológico, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como “necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração de justiça. (…) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’”.[36]

Parece-nos claro que há efetivamente uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade[37] que deve nortear a atuação de um Juiz criminal, o que não se coaduna com a feitura pessoal e direta de diligências investigatórias. Neste sistema, estão divididas claramente as três funções básicas, quais sejam: o Ministério Público acusa (ou investiga), o advogado defende e o Juiz apenas julga, em conformidade com as provas produzidas pelas partes. “Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder.[38] Mas, finalmente, em 12 de fevereiro de 2004 o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria,  declarou a inconstitucionalidade deste art. 3º., na parte que se refere à quebra de sigilos fiscal e eleitoral. A decisão foi dada pelos ministros ao julgarem parcialmente procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1570). A ação havia sido ajuizada pela  Procuradoria-Geral da República. O Ministro Relator, Maurício Corrêa, ao proferir seu voto, observou que o dispositivo impugnado confere ao juiz competência para diligenciar pessoalmente a obtenção de provas pertinentes à persecução penal de atos de organizações criminosas, dispensando o auxílio da Polícia  e do Ministério Público, in verbis: “Passados mais de cinco anos do julgamento cautelar, e após refletir mais detidamente sobre o tema, agora tratando-se de julgamento definitivo, penso que, efetivamente, o dispositivo atacado não pode prevalecer diante das normas constitucionais vigentes”. O Ministro também lembrou que a Lei Complementar nº. 105/01 (norma superveniente e de hierarquia superior), regulou integralmente a questão do sigilo bancário e financeiro nas ações delituosas praticadas por organizações criminosas e revogou, por incompatibilidade, a Lei nº. 9034/95. Para ele, em face da referida Lei Complementar restava prejudicada a ADI na parte em que o procedimento visado incide sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras: “Na verdade, a amplitude ditada pela lei complementar superveniente, incompatível com o cuidado excessivo do preceito em exame, praticamente acabou com a já comprometida eficácia do citado artigo 3º, cuja aplicação prática, a propósito, segundo tenho conhecimento, é quase nula”. O Ministro ainda afirmou que a lei questionada permanece em vigor quando trata da obtenção de informações fiscais e eleitorais, implicando na violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei. Sobre a alegação de violação do princípio do devido processo legal, observou que o art. 3º. criou um “procedimento excepcional, não contemplado na sistemática processual penal contemporânea, dado que permite ao juiz colher pessoalmente as provas que poderão servir, mais tarde, como fundamento fático-jurídico de sua própria decisão.” (…) “Ninguém pode negar que o magistrado, pelo simples fato de ser humano, após realizar pessoalmente as diligências, fique envolvido psicologicamente com a causa, contaminando sua imparcialidade”. No seu voto, sustentou o Relator que, tanto no Direito Penal quanto no Direito Civil, afasta-se do julgamento o juiz que se considera impedido ou cuja suspeição é argüida, inclusive citou o art. 424 do Código de Processo Penal, dispositivo que determina o desaforamento se houver comprometimento com a exigência de imparcialidade do julgador. Para ele, a neutralidade do juiz é essencial, pois sem ela nenhum cidadão procuraria o Poder Judiciário para fazer valer seu direito e o art. 3º. teria exatamente criado o juízo de instrução, que nunca existiu na legislação brasileira. Por fim, julgou a ação procedente, em parte, para declarar inconstitucional o art. 3º. da Lei 9.034/95, na parte em que se refere aos dados “fiscais” e “eleitorais”. 

3) A captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial. Esta medida é novidade em nosso sistema jurídico, que apenas conhecia a interceptação e a escuta telefônicas, disciplinadas pela Lei nº. 9.296/96. Para Luiz Flávio, entende-se “por interceptação ambiental a captação de uma conversa alheia (não telefônica), feita por terceiro, valendo-se de qualquer meio de gravação. Não se trata, como se percebe, de uma conversa telefônica. Não é o caso. É uma conversa não telefônica, ocorrida num gabinete, numa reunião, numa residência etc. Se nenhum dos interlocutores sabe da captação, fala-se em interceptação ambiental em sentido estrito; se um deles tem conhecimento, fala-se em escuta ambiental.”[39]

4) A infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial, caso em que a autorização judicial será estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração.

O restante do capítulo foi vetado. Assim dispunha o parágrafo único do art. 34 e os arts. 35 e 36:

“Parágrafo único. Nos delitos de que trata esta Lei, o flagrante estende-se a até 72 (setenta e duas) horas.”

Eis as razões: “A fixação do limite temporal para configurar o flagrante contraria o disposto no art. 5º, LXI, da Constituição, que trata do assunto. Além disso, fere o interesse público, pois restringe o tempo de perseguição policial, por exemplo. O flagrante obedece a pressupostos bem definidos juridicamente. A idéia de um lapso temporal legal poderia acarretar abusos contra indivíduos, por um lado, ou situações indesejáveis contra a sociedade, por outro. Além do mais, o Código de Processo Penal confere tratamento particularizado à matéria, diferenciando espécies de flagrante, garantindo uma melhor conformação da medida restritiva de direito, das liberdades e garantias fundamentais.” Perfeito o veto. Não faz sentido “cronometrar” o tempo dentro no qual poderia ainda se caracterizar o estado de flagrância. Esta tarefa cabe à jurisprudência, analisando-se caso a caso. 

O art. 35 tinha a seguinte redação: “O juiz decidirá sobre requerimento de prisão cautelar do indiciado, para a garantia da ordem pública, ou para assegurar a aplicação da lei penal.”. Vetou-se porque “o Código de Processo Penal, em seu art. 312, dispõe que a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Observa-se que o projeto restringe as hipóteses previstas no ordenamento codificado. O expurgo da possibilidade de decretação de prisão preventiva por conveniência da instrução criminal constitui grave ofensa ao interesse público. Sabe-se que a instrução é momento crucial na apuração do fato delituoso e de suas circunstâncias. Além disso, o projeto não contempla os requisitos da prova da existência do crime e do indício suficiente de autoria, o que conduziria à inadmissível presunção desta última. Há, portanto, desvirtuamento do instituto da prisão cautelar, que, na legislação pátria, protege tanto o indivíduo, através dos pressupostos da prova da existência do crime e do indício suficiente de autoria, como a sociedade, através das hipóteses já mencionadas, com destaque para a conveniência da instrução criminal.”

Lamentavelmente foi vetado o art. 36 que estabelecia: o “usuário encontrado com pequena quantidade de substância ou droga ilícita, ou que cause dependência física ou psíquica, destinada a consumo pessoal (art. 20), ou o agente do delito previsto no art. 19, se, em ambas as hipóteses, a prática não configurar concurso com os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, será conduzido à autoridade policial para prestar declarações.

§ 1o A declaração será tomada pela autoridade policial em, no máximo, 4 (quatro) horas, a contar da chegada do usuário à delegacia policial e, no mesmo período, examinada a natureza e quantidade do produto ou substância.

§ 2o Concluídos os procedimentos policiais, o usuário será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer, ou se a autoridade policial entender conveniente, e em seguida liberado.

§ 3o Constitui falta disciplinar a desobediência por parte da autoridade policial, quanto à liberação do usuário.”

Vetou-se uma disposição absolutamente salutar que era a possibilidade do usuário livrar-se solto. De toda maneira, e como veremos adiante, hoje os delitos dos arts. 15, 16 e 17 da Lei nº. 6.368/76 são de menor potencial ofensivo, de forma que, em regra, também não haverá a lavratura do auto de prisão em flagrante, nem tampouco instauração de inquérito policial.[40] 

A razões do veto: “O disposto no art. 36 do projeto fica prejudicado em face do veto sugerido ao Capítulo III.” Ocorre que se não houvesse o veto, naturalmente o dispositivo teria inteira aplicação no caso da prática dos crimes tipificados nos arts. 15 e 16 da Lei nº. 6.368/76. A prevalecer esta justificativa, o veto ao Capítulo III acarretaria o veto a todo o Capítulo IV.

6) O Capítulo V – Da Instrução Criminal

6.1) A atuação do Ministério Público:

Este capítulo trata do início da segunda fase da persecutio criminis e não contém aquela expressão constante no começo do Capítulo IV (“crimes definidos nesta lei”), de forma que não haverá maiores discussões a respeito de sua aplicabilidade, como ocorreu em relação ao capítulo anterior.

Inicia-se por estabelecer no seu art. 37 que “recebidos os autos do inquérito policial em juízo, dar-se-á vista ao Ministério Público para, no prazo de 10 (dez) dias, adotar uma das seguintes providências:

I – requerer o arquivamento;

II – requisitar as diligências que entender necessárias; veja o art. 13, II do Código de Processo Penal.

III – oferecer denúncia, arrolar até 5 (cinco) testemunhas e requerer as demais provas que entender pertinentes; o prazo, como se lê, é de 10 dias; caso o indiciado esteja preso, entendemos que este prazo será de 5 dias, atendendo-se à regra geral estabelecida no art. 46 do CPP, mais favorável e aqui utilizada subsidiariamente. Neste prazo, não se conta o primeiro dia se o indiciado estiver solto (art. 798, § 1º., CPP). Se preso, inclui-se o primeiro dia, na forma do art. 10 do Código Penal – neste sentido STF, RTJ, 58/81. Já o número de testemunhas não foi alterado em relação ao antigo procedimento.

IV – deixar, justificadamente, de propor ação penal contra os agentes ou partícipes de delitos. Aqui temos uma clara mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal[41] (que já havia sido mitigado pela possibilidade da transação penal prevista no art. 76 da Lei nº. 9.099/95[42]). Observa-se que esta hipótese difere do arquivamento, cujas regras não mudaram. Com efeito, o arquivamento pode ser requerido em razão da atipicidade do fato, extinção da punibilidade, falta de justa causa, autoria desconhecida, ausência de interesse de agir, etc, já que “o legislador não tratou expressamente das hipóteses de arquivamento, mas sim dos casos em que a ação não deve ser exercitada (art. 43).”[43] Permite-se, agora, além do arquivamento, que o Ministério Público deixe justificadamente (art. 129, VIII, in fine da Constituição Federal) de propor a ação penal, inclusive fundamentando o seu pedido em razões de política criminal. Trata-se, às escâncaras, da consagração, ainda que tímida, em nosso sistema do princípio da oportunidade antes apenas presente nas ações penais de iniciativa privada[44]. É uma excelente inovação, pois, decididamente, o princípio da obrigatoriedade (ou legalidade) da ação penal está em franca decadência nos sistemas modernos.

Assim, por exemplo, caso o indiciado tenha colaborado com as investigações, fazendo jus ao sobrestamento do inquérito policial, ao final do prazo acordado, pode o Ministério Público deixar de oferecer a denúncia em relação a ele, acusando os demais autores cujas participações puderam ser efetivamente esclarecidas com a colaboração processual deste primeiro indiciado. Pode igualmente deixar de ser oferecida a denúncia atendendo às circunstâncias do fato, à personalidade do indiciado, à insignificância de sua participação no crime, ou à condição de que o agente, ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, em razão de dependência grave, comprovada por peritos (estas últimas hipóteses constavam do caput do art. 32, mas podem servir perfeitamente de exemplos, pois o veto ocorreu exclusivamente em razão da possibilidade que existia do defensor requerer o arquivamento do inquérito policial, o que, realmente, contrariava o disposto no art. 129, I da Constituição Federal). Se o Juiz discordar desta opção do Ministério Público poderá encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça, na forma do art. 28 do CPP, usando-se a analogia.

O § 1º. deste artigo estabelece que “requerido o arquivamento do inquérito pelo representante do Ministério Público, mediante fundamentação, os autos serão conclusos à autoridade judiciária.” Repita-se: aqui é o caso do tradicional arquivamento, já sistematizado, ainda que implicitamente, em nosso código processual. Não é, portanto, a hipótese do inciso IV, acima referido.

Se o Juiz “discordar das razões do representante do Ministério Público para o arquivamento do inquérito fará remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, mediante decisão fundamentada”, tal como é hoje[45]. Com a mesma redação do atual art. 28 do CPP, o § 3º. determina que “o Procurador-Geral de Justiça oferecerá denúncia ou designará outro membro do Ministério Público para apresentá-la ou, se entender incabível a denúncia, ratificará a proposta de arquivamento, que, nesse caso, não poderá ser recusada pela autoridade judiciária.”

6.2) As infrações de menor potencial ofensivo:

Observa-se que com o advento da Lei nº. 10.259/01, o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo restou ampliado, fazendo com que alguns dos tipos penais elencados na Lei nº. 6.368/76 passassem, desde então, a ser considerados crimes de menor potencial ofensivo, cuja competência para o julgamento é indiscutivelmente dos Juizados Especiais Criminais, afastando-se, inclusive, o procedimento especial da nova Lei de Tóxicos. Neste caso, deverá ser tentada, antes da denúncia, a transação penal[46]. Dos seis crimes tipificados na Lei nº. 6.368/76 dois deles são de menor potencial ofensivo (arts. 15 e 16, sendo que o do art. 17 restou inaplicável, em razão da revogação do art. 26 da lei[47]), salvo se houver alguma causa de aumento de pena que faça aumentar a pena máxima em abstrato (ex.: art. 18).[48] Os arts. 12, 13 e 14 trazem infrações mais graves.

Portanto, tratando-se de crimes de menor potencial ofensivo, e tendo em vista que a competência para o respectivo processo é dos Juizados Especiais Criminais (art. 98, I da Constituição), indeclinável que em tais casos haverá, ao invés de inquérito policial, um termo circunstanciado, impossibilitando-se, a princípio, a lavratura do auto de prisão em flagrante (art. 69 da Lei nº. 9.099/95).[49]

6.3) A resposta preliminar:

Sendo o caso de oferecimento de denúncia, “o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da juntada do mandato (sic) aos autos ou da primeira publicação do edital de citação, e designará dia e hora para o interrogatório, que se realizará dentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se preso.”

Aqui temos uma primeira disposição absolutamente salutar, já prevista em nosso ordenamento jurídico (art. 514 do CPP, art. 4o. da Lei n. 8.038/90, art. 43, § 1º. da Lei de Imprensa e art. 81 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, além do art. 395 do Projeto de Lei nº. 4.201/01[50]). Temos, efetivamente, uma defesa prévia, anterior ao recebimento da peça acusatória, dando-se oportunidade ao denunciado de contrariar a imputação feita pelo Ministério Público, rechaçando-a e tentando obstaculizar a instauração da ação penal.

O dispositivo determina desde logo que se efetive a citação do denunciado, ainda que não se possa falar, nesta fase, em acusado ou processo. Melhor seria que se determinasse a notificação do denunciado. Após o recebimento da denúncia, então, teríamos a citação do acusado ou réu. Renato de Oliveira Furtado, atento a esta impropriedade técnica, assevera que a “citação não pode ser confundida com notificação e não é possível se falar já em citação quando a denúncia nem mesmo foi ainda recebida.”[51] De toda maneira, referindo-se logo à “citação”, entendemos que, após o recebimento da denúncia, não será mais necessária uma outra citação, mas, tão-somente, a expedição de um mandado de notificação para comparecimento do réu à audiência de instrução e julgamento (ver adiante).

A citação poderá ser feita por edital, evidentemente que nas hipóteses dos arts. 361, 362 e 363 do código processual. A resposta deve ser dada em 10 dias.

Ressalta-se, porém, a Súmula 710 – (DJU de 9.10.2003, publicada também nos DJUs de 10 e 13.10.2003, posterior, portanto a esta lei): “No processo penal, contam-se os prazos da data da intimação, e não da juntada aos autos do mandado ou da carta precatória ou de ordem.” Logo, o prazo conta-se da data da intimação e não do da juntada do respectivo mandado aos autos.

Esta resposta preliminar consiste, na forma do § 1º., na defesa prévia propriamente dita, bem como na argüição de exceções, podendo o denunciado “argüir preliminares e invocar todas as razões de defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas que pretende produzir e arrolar testemunhas.” Já as “exceções serão processadas em apartado, nos termos dos arts. 95 a 113 do Código de Processo Penal.” Como ensina José Frederico Marques, nesta hipótese “estabelece-se um contraditório prévio, para que o Juiz profira, com o despacho liminar, decisão semelhante ao judicium accusationis.”[52] O denunciado poderá argüir em sua defesa qualquer matéria, seja de natureza estritamente processual (ausência de pressupostos processuais ou de condições da ação, por exemplo), como adentrar o próprio mérito da acusação, inclusive postulando a produção de provas que serão realizadas a critério do Juiz, como permite o art. 38, § 5º. Evidentemente que deve ser dada a esta disposição (art. 38, § 5º.) uma correta interpretação, a fim de que não se lhe restrinja o alcance (prejudicando a defesa e o juízo de admissibilidade a ser feito pelo Magistrado), nem, tampouco, elasteça-se-lhe de uma tal forma o significado que se permita uma verdadeira antecipação da instrução criminal.

Atente-se que será nesta resposta prévia que o denunciado deverá, sob pena de preclusão, arrolar as suas cinco testemunhas.

Esta resposta é obrigatória e deverá ser necessariamente subscrita por um advogado. Neste sentido, dispõe o § 3º. que se “a resposta não for apresentada no prazo, o Juiz nomeará defensor para oferecê-la em 10 (dez) dias, concedendo-lhe vista dos autos no ato de nomeação.” Esta observação é válida para os processos pendentes (tempus regit actum – art. 2º., CPP), cuja peça acusatória ainda não foi recebida, conforme já vêm decidindo os nossos Tribunais:

Habeas Corpus – Entorpecente – Denúncia recebida – Inobservância do disposto no art. 38, caput da Lei nº. 10.409/02 – Nulidade – Infringência ao princípio da ampla defesa – Ordem parcialmente concedida, para anular o processo criminal ab initio, impondo-se observar o rito especial da lei em vigência. A inobservância da regra prevista no art. 38 da nova lei de tóxicos impõe seja declarado nulo ex radice o procedimento, por importar óbvia violação do direito constitucional à ampla defesa.” (TAPR, HC 206.389-4, 4ª. CCrim, Rel. Juiz Lauro Augusto Fabrício de Melo, DJ de 13/09/2002).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua 4ª. Câmara Criminal, em 10/09/02, também assim o entendeu, concedendo habeas corpus e anulando um processo criminal a partir da citação (HC nº. 390.665.3/6, Rel. Des. Hélio de Freitas). No mesmo sentido decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, ao julgar o habeas corpus nº. 200300143650, 1ª. Câmara Criminal, Rel. Des. Noé Gonçalves Ferreira, j. 25/02/03, v.u.

Evidentemente, se a peça acusatória já foi regularmente recebida (e o crime ocorreu antes da vigência da nova lei), a resposta preliminar não é necessária, prosseguindo-se nos demais termos (tempus regit actum). Se, tendo sido recebida a denúncia, tratar-se de delito consumado posteriormente à nova lei, obviamente que a oportunidade para a resposta preliminar deve ser deferida. Por fim, e como é óbvio, se a denúncia ainda não foi aceita (e independentemente do tempo do crime), obrigatória é esta primeira providência defensiva. Tais conclusões são extraídas da doutrina moderna acerca da aplicação da lei processual penal no tempo.[53]

Entendemos, inclusive, tratar-se de uma nulidade absoluta, ainda que não haja processo instaurado. Observa-se que em relação ao art. 514 do Código de Processo Penal (que contém disposição idêntica), a jurisprudência, apesar de vacilante, já decidiu, inclusive o Supremo Tribunal Federal:

“Art. 514 do CPP. Formalidade da resposta por escrito em crime afiançável. Nulidade alegada oportunamente e, como tal, irrecusável, causando a recusa prejuízo à parte e ferindo o princípio fundamental da ampla defesa.” (RT 601/409).

“Art. 514 do CPP. Falta de notificação do acusado para responder, por escrito, em caso de crime afiançável, apresentada a denúncia. Relevância da falta, importando nulidade d processo, porque atinge o princípio fundamental da ampla defesa. Evidência do prejuízo.” (RT 572/412).

O Superior Tribunal de Justiça da mesma forma:

“Recurso de habeas corpus. Crime de responsabilidade de funcionário público. Sua notificação para apresentar defesa preliminar (art. 514, CPP). Omissão. Causa de nulidade absoluta e insanável do processo. Ofensa à Constituição Federal (art. 5º., LV). (…) Nos presentes autos, conheceu-se do recurso e deu-se-lhe provimento, para se anular o processo criminal a que respondeu  o paciente, pelo crime do art. 317 do CP, a partir do recebimento da denúncia (inclusive), a fim de que se cumpra o estabelecido no art. 514 do CPP.” (RSTJ 34/64-5).

Se o denunciado tem advogado constituído (e o fez, por exemplo, na fase inquisitorial), além de sua “citação”, deverá também ser notificado este profissional contratado (afinal de contas, como se sabe, a ampla defesa inclui, além da autodefesa, a chamada defesa técnica ou processual[54]). A notificação deste advogado constituído obedecerá ao art. 370 do CPP. Ainda nesta hipótese, não sendo apresentada a defesa preliminar pelo profissional contratado urge que se notifique o denunciado para contratar outro advogado; caso não o faça, que se nomeie, então, um defensor dativo para o mister.      

Após esta defesa inicial, terá vista dos autos, mais uma vez, o Ministério Público, no prazo de 5 dias. Esta deferência ao órgão acusatório parece-nos ferir o princípio do contraditório, pois permite a uma das partes que se pronuncie duas vezes (na denúncia e nesta réplica), ferindo a paridade de armas própria do contraditório. Melhor seria que a disposição repetisse o art. 5º. da Lei nº. 8.038/90 (que regula o procedimento nas ações penais originárias): “se, com a resposta, forem apresentados novos documentos, será intimada a parte contrária para sobre eles se manifestar, no prazo de cinco dias.” 

Também em cinco dias deve ser proferida a respectiva decisão, não recebendo, rejeitando[55] ou aceitando a denúncia. Se não se sentir suficientemente preparado, do ponto de vista probatório, para proferir esta decisão, o Juiz, “se entender imprescindível, determinará a realização de diligências, com prazo máximo de 10 (dez) dias.”[56] Veja-se o que dissemos acima a respeito desta última disposição contida no art. 38, § 5º.

6.4) O interrogatório:

Como vimos acima, a lei determina que o denunciado seja interrogado em 30 dias se estiver solto e em 5 dias se estiver preso. Ocorre que no art. 41 está previsto também o interrogatório do acusado, que será realizado na audiência de instrução e julgamento antes da ouvida das testemunhas. Teríamos, assim, dois interrogatórios, sendo o primeiro antes mesmo da defesa preliminar (tratando-se de indiciado preso) e mesmo da instauração da ação penal. Um interrogatório judicial sem processo, portanto. Haveria, assim, dois interrogatórios judiciais (feitos pelo Juiz), além daquele já realizado na Delegacia de Polícia? Cremos que não. Salvo uma justificável necessidade, basta um interrogatório em Juízo, ressalvando a possibilidade legal de a qualquer momento o Juiz reinterrogar o acusado, mesmo em fase recursal (arts. 185, 502, parágrafo único e 616, todos do CPP).

Para nós, a melhor interpretação que se pode dar a este dispositivo é que a lei exige apenas aquele interrogatório que será realizado na audiência de instrução e julgamento. Qual a necessidade deste que seria um primeiro interrogatório? Concordamos com Renato Flávio Marcão ao dizer “que a parte final do art. 38, caput não reúne condições de aplicabilidade”, não devendo ser designada data para este que seria um primeiro interrogatório, aguardando-se “o momento do art. 40, quando então, recebendo a denúncia, designará data para a audiência em que se procederá ao interrogatório, instrução e julgamento, o que me parece mais adequado, considerando, inclusive, o disposto no art. 41 do mesmo Diploma Legal.”[57] Aliás, é este autor quem observa que o novo projeto de lei em trâmite no Congresso (referido na introdução a este trabalho) exclui expressamente este primeiro interrogatório, deixando apenas o segundo, já na audiência de instrução e julgamento, o que dá a entender o equívoco laborado pelo legislador de agora.[58]

Há indiscutivelmente uma contradição entre os arts. 38 e 41 e em razão disto preferimos adotar aquele posicionamento, ou seja, a realização de apenas um interrogatório, na fase processual (ressalvado, evidentemente o interrogatório policial[59]), não advindo daí nenhum prejuízo, até porque o denunciado terá a oportunidade de alegar qualquer fato em sua defesa escrita. Não faz sentido este primeiro interrogatório (tanto que abolido no projeto de lei acima referido), ainda que esteja preso o indiciado. Aliás, a prevalecer a interpretação literal, nesta hipótese de indiciado preso o interrogatório antecederia mesmo a resposta preliminar. 

De outro modo, como ensina Paganella Boschi, “aceitar a duplicidade de interrogatório significa aceitar, outrossim, a possibilidade de sujeição do autor do fato ao constrangimento de comparecer à audiência pública para responder aos termos de acusação situada dentro de quadro de mera possibilidade!”[60]

De se observar, por fim, que a nova redação dada ao art. 196 do Código de Processo Penal (dada pela Lei nº. 10.792/03) permite que qualquer das partes requeira fundamentadamente ao Juiz a realização de novo interrogatório. 

6.5) A aplicação da Lei nº. 9.271/96:

Determina-se a aplicação da “Lei no 9.271/96, ao processo em que o acusado, citado pessoalmente ou por edital, ou intimado para qualquer ato processual, deixar de comparecer sem motivo justificado”, o que, à primeira vista, poderia indicar a aplicação do art. 366 do CPP (suspensão do processo e do curso do prazo prescricional), ainda que a citação tenha sido pessoal e o réu não compareceu nem constituiu advogado. Não é, porém, esta a hipótese. Com efeito, a Lei nº. 9.271/96 não se restringiu a modificar tão-somente o art. 366 do Código de Processo Penal, mas o fez, também, em relação aos arts. 367 a 369. E, como se sabe, dispõe o art. 367 que “o processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo.” Logo, em relação às regras gerais do Processo Penal brasileiro, nada mudou neste aspecto em relação ao novo procedimento, ou seja, o processo só será suspenso se o revel foi citado por edital. Se a citação foi pessoal, o julgamento ocorrerá à sua revelia. Neste sentido, é a lição de Fernando Capez e Victor Eduardo Gonçalves (idem).

6.6) A rejeição e o não recebimento da denúncia:

Além das hipóteses do art. 43 do Código de Processo Penal, “a denúncia também será rejeitada quando for manifestamente inepta, ou faltar-lhe pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal, ou quando não houver justa causa para a acusação.”

Pergunta-se se nestes casos, incluindo as hipóteses do art. 43, a ação penal pode ser reiniciada. Repetimos, então, a lição da doutrina mais aceita nesta matéria, segundo a qual nas hipóteses dos incisos I e II do art. 43 há uma verdadeira decisão de mérito (rejeição da denúncia)[61], fazendo coisa julgada material e, por conseguinte, impedindo renovação da demanda. No caso do terceiro inciso do referido art. 43, CPP, a denúncia pode ser oferecida mais uma vez, na forma como o permite o seu parágrafo único, acaso sanada a irregularidade.

No caso específico da nova Lei de Tóxicos, cremos que se a denúncia foi rejeitada por manifesta inépcia, o caso está definitivamente decidido, impedindo-se a reiteração da denúncia. Contrariamente, se o não recebimento se der em virtude da falta de um pressuposto processual ou de determinada condição da ação que possa ser suprida (e não diga respeito já ao mérito, como a possibilidade jurídica do pedido), nada impedirá a renovação da peça acusatória, já agora respaldada por todos os pressupostos processuais e todas as condições da ação. Quanto ao não recebimento pela falta de justa causa[62], como se trata de carência de lastro probatório mínimo, evidente que com novas provas a ação penal poderá ser novamente iniciada (é o que ocorre, mutatis mutandis com a decisão de impronúncia fundamentada na falta de suficiente prova da materialidade do crime ou de indícios da autoria – art. 409, parágrafo único do CPP).

6.7) A audiência de instrução e julgamento:

Caso seja recebida a peça acusatória[63], “o juiz designará dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, e ordenará a intimação do acusado, do Ministério Público e, se for o caso[64], do assistente.” Mais uma vez o legislador descurou-se da diferença entre intimação e notificação[65]. Por outro lado, como se trata de crime contra a saúde pública[66], a coletividade é o sujeito passivo da infração, podendo ser considerados prejudicados, secundariamente, e em alguns casos, as pessoas que recebem a droga para o consumo que, então, poderão se habilitar como assistentes da acusação, na forma do art. 268 do Código de Processo Penal.[67] Neste sentido, mutatis mutandis, já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo:

“Mesmo tratando-se de delito contra a fé pública, em que o sujeito passivo é, primariamente, o Estado, secundariamente será sujeito passivo aquele em prejuízo de quem a falsidade tenha sido praticada, tendo legitimidade, pois, para figurar nos autos como assistente do Ministério Público.” (RT 552/308).

Nesta audiência de instrução e julgamento, “após o interrogatório do acusado e a inquirição das testemunhas, será dada a palavra, sucessivamente, ao representante do Ministério Público e ao defensor do acusado, pelo prazo de 20 (vinte) minutos para cada um, prorrogável por mais 10 (dez), a critério do juiz, que, em seguida, proferirá a sentença.” Havendo assistente, o seu advogado terá a palavra após o Promotor de Justiça pelo mesmo período de tempo, aplicando-se analogicamente o art. 539, § 2º. do CPP). A lei certamente descurou-se de uma tendência moderna em considerar o interrogatório também, e principalmente, como um meio de defesa, realizando-o apenas ao final da colheita de toda a prova, como o fez a Lei nº. 9.099/95 e o Projeto de Lei nº. 4.204/01 que visa a reformar o Código de Processo Penal[68].

No interrogatório, deverá o Juiz questionar o acusado sobre eventual dependência, pois continua em vigor o art. 19 e seu parágrafo único da Lei nº. 6.368/76 que se refere à incapacidade por dependência química. Aliás, no regime anterior, determinava o art. 22, § 5º. que o Juiz deveria indagar do réu “sobre eventual dependência, advertindo-o das conseqüências de suas declarações.” Neste aspecto, note-se que recentemente o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “o texto do art. 19 da Lei nº. 6.368/76 é expresso no sentido de aplicar a isenção ou redução de pena, qualquer que seja o crime cometido, ao agente que o praticar em razão da dependência ou sob efeito de substância entorpecente. Comprovado mediante perícia médica que o réu, na data em que cometeu o crime de furto, tinha sua capacidade de autodeterminação diminuída por ser viciado em tóxico, deve sua pena ser reduzida de um a dois terços. A Turma, prosseguindo no julgamento, negou provimento ao recurso.” (REsp 343.600-DF, Rel. Min. Vicente Leal, julgado em 19/8/2003).

Se o Juiz “não se sentir habilitado a julgar de imediato a causa, ordenará que os autos lhe sejam conclusos para, no prazo de 10 (dez) dias, proferir a sentença.”

Foram vetados os arts. 42 e 43 deste capítulo. Dizia o art. 43: “O réu condenado por infração dos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 não poderá apelar sem recolher-se à prisão”, pois “o disposto no art. 43 do projeto fica prejudicado em face do veto ao Capítulo III.”

O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República sugeriu o veto ao art. 42. Ele dispunha:

“Art. 42. O juiz, observado o disposto no art. 77 do Código Penal e as disposições contidas nesta Lei, poderá, ouvido o representante do Ministério Público, determinar a suspensão do processo, com a adoção de uma das medidas previstas no art. 21 desta Lei.

§ 1o O juiz poderá determinar, além de medidas previstas no art. 21, a sujeição do réu a tratamento médico ou psicológico, ou a internação em estabelecimento clínico ou hospitalar adequado.

§ 2o Negando-se o réu ao cumprimento de uma ou mais das medidas previstas no art. 21, ou ao tratamento recomendado, submeter-se-á à pena privativa de liberdade, cumulada ou não com penas restritivas de direitos.”

Estas foram as razões do veto: “Com esse dispositivo, o Legislador objetiva estender o benefício da suspensão condicional da pena (art. 77 e segs. do Código Penal) ao condenado pela prática de qualquer dos crimes tipificados no presente projeto de lei, que tenham a pena privativa de liberdade como reprimenda básica. Na realidade, ainda que com visível e arrojada intenção de propiciar melhor e mais célere interpretação à aplicação do benefício acima, esse dispositivo também reproduz, no contexto deste diploma, o que já preconiza a legislação penal brasileira, a exemplo do disposto no art. 44, c/c arts. 45, 46 e 47 do Código Penal. Outrossim, registre-se que, antes mesmo da vinda do projeto de lei à sanção Presidencial, a redação dada ao presente artigo vem causando preocupantes desentendimentos no seio da opinião pública e das comunidades científica e jurídica, uma vez que tem induzido à associação errônea de que se refira ao simples usuário/ dependente, já contemplado no art. 20, quando, na realidade, se refere ao agente que, sendo usuário e/ou dependente, cumulativamente, tenha cometido delitos efetivamente graves, tal como o narcotráfico, por exemplo. Assim, não obstante a ausência de conflitos entre as situações que define, relativamente às normas de direito positivo em vigor, pela dúvida que suscita, já em seu nascedouro, haja vista a opinião pública ter agregado esse dispositivo à figura do simples usuário/ dependente, o que, juridicamente, não procede, sugere-se o veto ao presente artigo, fato que não impedirá a propositura do tema a que se refere em dispositivo legal futuro, com vistas ao aprimoramento de sua aplicação, conforme pretendeu o Legislador.”

6.8) A inversão do ônus da prova:

Vetou-se o caput do art. 44 que estabelecia que o “juiz, a requerimento do representante do Ministério Público ou da autoridade policial, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, pode decretar, no curso do inquérito policial ou da ação penal, o seqüestro ou a indisponibilidade do produto de crime, ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática dos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18.” Subsistiu, no entanto, o seu parágrafo único (mais uma alma penada…), determinando que “incumbe ao acusado, durante a instrução criminal, ou ao interessado, em incidente específico, provar a origem lícita dos bens, produtos, direitos e valores referidos neste artigo.” Não existindo mais o caput, aplica-se o seu parágrafo, se for o caso, aos bens porventura usados ou adquiridos pelos autores dos crimes tipificados nos arts. 12, 13 e 14 da Lei nº. 6.368/76. Dizemos “se for o caso”, pois temos aqui indiscutivelmente uma odiosa inversão do ônus da prova, o que já havia acontecido no art. 4o., § 2º. da Lei nº. 9.613/98 (“lavagem de dinheiro”).

Observa-se que a ilicitude deve ser provada pelo órgão acusador, a teor, inclusive, do art. 156 do CPP, pois “à parte acusadora incumbe fornecer os necessários meios de prova para a demonstração da existência do corpus delicti e da autoria”, como já ensinava o mestre José Frederico Marques[69]. No dispositivo ora comentado há uma presunção de ilicitude absolutamente estranha aos postulados constitucionais consubstanciados no princípio maior da presunção de inocência. Aliás, comentando aquele dispositivo da Lei de Lavagem de Capitais, Luiz Flávio Gomes advertia que a “sua literalidade poderia dar ensejo a uma interpretação completamente absurda e inconstitucional, além de autoritária e seriamente perigosa, e que consistiria na exigência, em todos os casos, de inversão do ônus da prova (com flagrante violação ao princípio da presunção de inocência).” Para salvá-lo (e a lição é válida para nosso estudo), o jurista propõe a seguinte interpretação: “durante o curso do processo, tendo havido apreensão ou seqüestro de bens, se o acusado, desde logo, espontaneamente (sponte sua, sublinhe-se), já comprovar sua licitude, serão liberados imediatamente, sem necessidade de se esperar a decisão final.” Do contrário, diz ele, estaríamos diante de uma “inconstitucionalidade e arbitrariedade. Ninguém está autorizado a fazer ruir um princípio constitucional conquistado depois de uma luta secular.”[70] 

Por fim, o art. 45 estabelece que as “medidas de seqüestro e de indisponibilidade de bens ou valores serão suspensas, se a ação penal não for iniciada no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data do oferecimento da denúncia.” O pedido de restituição “bem ou valor não será conhecido sem o comparecimento pessoal do acusado ao juízo do feito”, podendo o “juiz determinar a prática de atos necessários à conservação do produto ou bens e a guarda de valores.”

VII – O Capítulo VI – Dos Efeitos da Sentença: a apreensão e a destinação de bens confiscados e a perda da nacionalidade

O presente capítulo trata especificamente dos efeitos da sentença, iniciando pelo art. 46 que dispõe: “Os veículos, embarcações, aeronaves e quaisquer outros meios de transporte, os maquinismos, utensílios, instrumentos e objetos de qualquer natureza, utilizados para a prática dos crimes definidos nesta Lei, após a sua regular apreensão, ficarão sob custódia da autoridade de polícia judiciária, excetuadas as armas, que serão recolhidas na forma de legislação específica.”

A lei permite que, “havendo possibilidade ou necessidade da utilização de qualquer dos bens mencionados neste artigo, a autoridade de polícia judiciária poderá deles fazer uso, sob sua responsabilidade e com o objetivo de sua conservação, mediante autorização judicial, logo após a instauração da competente ação penal, observado o disposto no § 4o deste artigo.”

“§ 2o Feita a apreensão a que se refere o caput, e tendo recaído sobre dinheiro ou cheques emitidos como ordem de pagamento, a autoridade policial que presidir o inquérito deverá, de imediato, requerer ao juízo competente a intimação do Ministério Público.

“§ 3o Intimado, o Ministério Público deverá requerer ao juízo a conversão do numerário apreendido em moeda nacional, se for o caso, a compensação dos cheques emitidos após a instrução do inquérito, com cópias autênticas dos respectivos títulos, e o depósito das correspondentes quantias em conta judicial, juntando-se aos autos o recibo.

“§ 4o O Ministério Público, mediante petição autônoma, requererá ao juízo competente que, em caráter cautelar, proceda à alienação dos bens apreendidos, excetuados aqueles que a União, por intermédio da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, indicar para serem colocados sob uso e custódia da autoridade policial, de órgãos de inteligência ou militares, envolvidos nas operações de prevenção e repressão ao tráfico e uso indevidos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.

“§ 5o Excluídos os bens que se houver indicado para os fins previstos nos §§ 1o. e 4o., o requerimento de alienação deverá conter a relação de todos os demais bens apreendidos, com a descrição e a especificação de cada um deles, e informações sobre quem os tem sob custódia e o local onde se encontram.

“§ 6o Requerida a alienação dos bens, a respectiva petição será autuada em apartado, cujos autos terão tramitação autônoma em relação aos da ação penal principal.

“§ 7o Autuado o requerimento de alienação, os autos serão conclusos ao juiz que, verificada a presença de nexo de instrumentalidade entre o delito e os objetos utilizados para a sua prática e risco de perda de valor econômico pelo decurso do tempo, determinará a avaliação dos bens relacionados, intimará a União, o Ministério Público, a Secretaria Nacional Antidrogas – Senad e o interessado, este, se for o caso, por edital com prazo de 5 (cinco) dias.

“§ 8o Feita a avaliação e dirimidas eventuais divergências sobre o respectivo laudo, o juiz, por sentença, homologará o valor atribuído aos bens e determinará sejam alienados em leilão.

“§ 9o Realizado o leilão, e depositada em conta judicial a quantia apurada, a União será intimada a oferecer, na forma prevista em regulamento, caução equivalente àquele montante e os valores depositados nos termos do § 2o, em certificados de emissão do Tesouro Nacional, com características a serem definidas em ato do Ministro de Estado da Fazenda.

“§ 10. Compete à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad solicitar à Secretaria do Tesouro Nacional a emissão dos certificados a que se refere o § 9o.

“§ 11. Feita a caução, os valores da conta judicial serão transferidos para a União, por depósito na conta do Fundo Nacional Antidrogas – Funad, apensando-se os autos da alienação aos do processo principal.

“§ 12. Terão apenas efeito devolutivo os recursos interpostos contra as decisões proferidas no curso do procedimento previsto neste artigo.” Observa-se, contudo, que em sede de Mandado de Segurança pode-se perfeitamente ser concedida, liminarmente, uma ordem para cassar ou sustar as medidas apontadas nestes parágrafos. Ada, Scarance e Gomes Filho esclarecem que “no curso da demanda surgem com bastante freqüência atos jurisdicionais ilegais, cuja execução é apta a provocar dano irreparável a uma das partes. E a existência de recurso contra esse ato pode não ser suficiente para evitar o dano, quando a impugnação não tiver efeito suspensivo. Nesses casos, o único meio capaz de evitar o dano é o mandado de segurança, notadamente pela suspensão liminar do ato impugnado. Pode-se afirmar, portanto, que, se o writ não pretendia, inicialmente, ser instrumento de controle de atos jurisdicionais, as necessidades da vida judiciária acabaram levando-o a preencher essa finalidade.”[71] 

O art. 47 dispõe, in verbis:

“A União, por intermédio da Secretaria Nacional Antidrogas – Senad, poderá firmar convênio com os Estados, com o Distrito Federal e com organismos orientados para a prevenção, repressão e o tratamento de usuários ou dependentes, com vistas à liberação de equipamentos e de recursos por ela arrecadados, para a implantação e execução de programas de combate ao tráfico ilícito e prevenção ao tráfico e uso indevidos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas ou que causem dependência física ou psíquica.”

Já o art. 48 estabelece que “ao proferir a sentença de mérito, o juiz decidirá sobre o perdimento do produto, bem ou valor apreendido, seqüestrado ou declarado indisponível e sobre o levantamento da caução.” Evidentemente que estes efeitos secundários da sentença não poderiam jamais ser automáticos, exigindo-se a devida e indeclinável fundamentação. Aliás, neste sentido, é o disposto no art. 92, parágrafo único do Código Penal.

Continua a lei:

“§ 1o No caso de levantamento da caução, os certificados a que se refere o § 9o. do art. 46 serão resgatados pelo seu valor de face, e os recursos para o respectivo pagamento providos pelo Fundo Nacional Antidrogas.

“§ 2o A Secretaria do Tesouro Nacional fará constar dotação orçamentária para o pagamento dos certificados referidos no § 9o do art. 46.

 “§ 3o No caso de perdimento, em favor da União, dos bens e valores mencionados no art. 46, a Secretaria do Tesouro Nacional providenciará o cancelamento dos certificados emitidos para caucioná-los.

“§ 4o Os valores apreendidos em decorrência dos crimes tipificados nesta Lei e que não foram objeto de tutela cautelar, após decretado o seu perdimento em favor da União, serão apropriados diretamente ao Fundo Nacional Antidrogas.

“§ 5o Compete à Secretaria Nacional Antidrogas – Senad a alienação dos bens apreendidos e não leiloados em caráter cautelar, cujo perdimento já tenha sido decretado em favor da União.

“§ 6o A Secretaria Nacional Antidrogas – Senad poderá firmar convênios de cooperação, a fim de dar imediato cumprimento ao estabelecido no § 5o.”

A Seção II deste capítulo cuida da perda da nacionalidade. O primeiro artigo foi vetado. Ele dispunha que seria “efeito da condenação perder o naturalizado, condenado por infração aos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, a nacionalidade brasileira. O juiz, transitada em julgado a sentença condenatória, oficiará ao Ministro da Justiça para o cancelamento da concessão da naturalização.” Vetou-se porque “o art. 12, § 4o., I da Constituição Federal, que dispõe sobre a perda da nacionalidade, dá um tratamento diferenciado a questão. A Lei Maior prevê que será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que tiver cancelada sua naturalização por sentença judicial em virtude de atividade nociva ao interesse nacional. É claro que o tráfico de drogas é uma atividade contrária ao interesse nacional. A perda da nacionalidade, todavia, ocorrerá por processo administrativo declaratório, após a decretação judicial do cancelamento da naturalização. Esse processo judicial admite contraditório. O contraditório pode, até mesmo, abarcar questões que envolveriam suposta apatridia em caso de perda da nacionalidade brasileira, caso essa seja a única que possui o indivíduo. A apatridia é fortemente condenada pela Comunidade Internacional e há diversos instrumentos jurídicos internacionais comprometendo os países a evitá-la. O problema do artigo é que atribui uma automática perda da nacionalidade a quem for condenado. Essa perda seria mero efeito da condenação por tráfico. Isso, ao nosso ver, contraria o disposto na Constituição Federal acima mencionado. Quanto ao parágrafo único, este não apresenta problema, já que é o Ministério da Justiça o responsável pela solicitação de processo de cancelamento da naturalização no caso de atividade contrária ao interesse nacional, entretanto, o dispositivo já se encontra regulamentado pelos arts. 23 a 34 da Lei no 818/49. Razão pela qual também não merece prosperar.”

O art. 50, porém, sobreviveu: “É passível de expulsão, na forma da legislação específica, o estrangeiro que comete qualquer dos crimes definidos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, tão logo cumprida a condenação imposta, salvo se o interesse nacional recomendar a expulsão imediata.” Atente-se que a expulsão depende de um inquérito sumário a ser instaurado pela Polícia Federal, assegurando-se ao expulsando, excepcionalmente, o direito de defesa (art. 71 da Lei nº. 6.815/80). Nesta hipótese, como diz Tourinho Filho, “o inquérito é mesmo contraditório, obrigatoriamente contraditório.”[72]

VIII – O Capítulo VII – Da Cooperação Internacional

Foi vetado também todo o CAPÍTULO VII que tratava da Cooperação Internacional (arts. 51 e 52), in verbis:

“Art. 51. Preservadas a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes, o Governo brasileiro, observadas as disposições da Convenção das Nações Unidas de 1988 contra o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e às drogas que causem dependência física ou psíquica de entorpecentes, prestará cooperação a outros países, sem ônus, quando solicitado a:

I – colaborar na produção de provas;

II – realizar exame de objetos e lugares;

III – prestar informação sobre pessoas e coisas;

IV – colher o depoimento de testemunhas;

V – prestar outras formas de colaboração permitidas pela legislação em vigor.

§ 1o A solicitação de que trata este artigo será dirigida ao Ministério da Justiça, via Departamento de Polícia Federal, que a remeterá, quando necessário, à apreciação do Poder Judiciário para decidir a seu respeito, ou a encaminhará à autoridade competente.

§ 2o São requisitos da solicitação:

I – o nome e a qualificação da autoridade solicitante;

II – o objeto e o motivo da solicitação;

III – a descrição sumária do procedimento em curso no país solicitante;

IV – a especificação da assistência solicitada;

V – a documentação indispensável ao esclarecimento da solicitação, quando for o caso.

Art. 52. Para a consecução dos fins fixados nesta Lei, será instituído e mantido sistema de comunicações apto a facilitar o intercâmbio rápido e seguro de informações sobre o tráfico de produtos, substâncias e drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica com órgãos congêneres de outros países.”

Eis as razões do veto: “O artigo apresenta vários e graves problemas. Primeiro, remete a cooperação judiciária a questões de ´bons costumes´, expressão indefinida e que não acrescenta nada às hipóteses de concessão ou denegação de assistência judiciária. Em segundo lugar, elenca de maneira incompleta as formas de cooperação, excluindo, por exemplo, o bloqueio de bens e produtos do crime. Em terceiro lugar, o inciso V do art. 51 dispõe sobre outras formas de assistência previstas na legislação em vigor, sem mencionar, como deveria, dispositivos de instrumentos internacionais bilaterais e multilaterais existentes sobre o tema, que são muitos. A própria Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, prevê, em seu art. 7o e seguintes a assistência Judiciária Recíproca, de maneira mais ampla do que o que consta do projeto. O § 1o do art. 51 prevê o encaminhamento das solicitações de assistência pelo Departamento de Polícia Federal. Entretanto, em todos os acordos internacionais vigentes sobre o tema, é a Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, indicada como Autoridade Central para o trâmite das solicitações de cooperação judiciária em matéria penal. O art. 52, isoladamente, não teria sentido. Fica prejudicado, portanto.”

IX – As Disposições Finais

O Capítulo VIII trata das disposições finais, nos seguintes termos:

“Art. 53. As medidas educativas aplicadas poderão ser revistas judicialmente, a qualquer tempo, mediante pedido expresso do agente, do seu defensor ou do representante do Ministério Público.

 “Art. 55. Havendo a necessidade de reconhecimento do acusado, as testemunhas dos crimes de que trata esta Lei ocuparão sala onde não possam ser identificadas.” Dispositivo absolutamente dispensável, diante do art. 226, III do CPP.

O restante do capítulo foi vetado. Estabelecia:

“Art. 54. Os meios de divulgação manterão sob sigilo os valores atribuídos a drogas e equipamentos apreendidos.”

Razões do veto: “Em que pese o elevado propósito da norma, seu acolhimento apresenta a impropriedade de não especificar quais os meios de divulgação que deverão manter sigilo sobre os valores atribuídos a drogas e a equipamentos apreendidos, além de não definir o tempo desta proibição. A amplitude da norma destoa da intenção do legislador. Poderia, ainda, gerar dificuldades na aplicação da norma, inviabilizando, inclusive, a divulgação de dados oficiais de interesse público.”

“Art. 57. Esta Lei será regulamentada em 90 (noventa) dias.

“Art. 58. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

“Art. 59. Ficam revogados a Lei no 6.368, de 21 de outubro de 1976, mantido o Sistema Nacional Antidrogas de que trata o art. 3o daquela Lei, e o art. 1o da Lei no 9.804, de 30 de junho de 1999.” As razões já foram transcritas acima.
 

Notas
[1] De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: LUAM, 1991, p. 67.
[2] A lei foi publicada no Diário Oficial da União do dia 14 de janeiro de 2002, entrando em vigor 45 dias depois de oficialmente publicada, na forma do art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Civil e da Lei Complementar nº. 95/98 (art. 8º.). 
[3] Boletim do IBCCrim nº. 118, setembro/2002.
[4] Mensagem nº. 25, de 11 de janeiro de 2002.
[5] Sobre o assunto, leia-se “Do Caráter Subsidiário do Direito Penal”, de Paulo de Souza Queiroz, Del Rey Editora.
[6] Drogas – Cambios Sociales y Legales ante el Tercer Milenio, Madrid: Dykinson, 2000, p. 194.
[7] Reformas Penais: a nova Lei de Tóxicos, site www.ibccrim.com.br, 21/02/2003.
[8] De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: LUAM, 1991, p. 54.
[9] Como adverte Luiz Flávio Gomes, “nenhum tratamento pode ser imposto (obrigatório). Aliás, tratamento compulsório está fadado a não produzir nenhum resultado positivo. Todo tratamento só tem chance de prosperar quando há efetiva (e ativa) participação do paciente.” (www.ibccrim.com.br, 21/02/2003).
[10] O jornal Folha de São Paulo, na edição do dia 15 de novembro de 2004, publicou a seguinte matéria jornalística: “Depois de uma série de divergências internas sobre a questão das drogas, o governo federal prepara um realinhamento da política nacional que trata do assunto definindo o consumo como um problema de saúde pública, e não policial, como acontece hoje. Haverá ainda um decreto presidencial criando regras para o atendimento a dependentes, com ênfase em redução de danos, conforme revelou ontem ´O Globo´. A mudança representa uma guinada na forma como o governo vê a questão. Se até hoje as autoridades priorizavam a redução da demanda, ou seja, acreditavam que campanhas de prevenção poderiam eliminar o consumo, a idéia agora é reduzir o dano à saúde desses consumidores. Desde 2003, as equipes dos ministérios da Saúde e da Justiça pressionavam a Senad (Secretaria Nacional Antidrogas) a dar mais atenção aos usuários em vez de campanhas de repressão ao consumo. O novo foco será evidenciado com a mudança de nome da política. Passa de ´Política Nacional Antidrogas´ para ´Política Nacional sobre Drogas´. ´Mudar o nome é simbólico, haverá mudança de orientação. O país está amadurecendo ao aceitar uma postura mais pragmática´, diz Pedro Gabriel Delgado, coordenador de Saúde Mental. O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, general Jorge Armando Félix, também dá seu aval. ´Os dependentes são problema de saúde pública, devem ser tratados como pessoas com qualquer outro tipo de doença, particularmente da área de psiquiatria, precisam de acompanhamento e atendimento.´ Sob essa nova ótica, um decreto do presidente Lula vai regulamentar a área de redução de danos, possibilitando a ampliação da uma rede de atendimento a usuários e a criação de locais de uso seguro. Antes de abrirem as portas, esses locais vão precisar de autorização do Ministério da Saúde e contarão com avaliação permanente. Preferencialmente, os ambientes serão monitorados por universidades e destinados a usuários de maior risco, como o uso de cocaína injetável e crack. O decreto vai conceituar o papel do agente redutor de danos, um profissional de saúde que será responsável pelo contato direto com o usuário. É ele, por exemplo, que vai fornecer seringas esterilizadas e fazer o acompanhamento do quadro do dependente. Hoje, organizações não-governamentais, com o apoio da pasta da Saúde, já desenvolvem programas de redução de danos, mas esbarram em limitações ou proibições do Judiciário, pois não há regulamentação desse tipo de trabalho. Para atender à demanda, há, segundo Delgado, 80 Caps-Ad (Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas) funcionando. O número é insuficiente e a expansão está travada pelas restrições orçamentárias do governo. A meta para 2005 é chegar a 250 unidades. Depois de muita controvérsia e seis fóruns em diferentes Estados, o governo fará dia 24 um fórum nacional para finalizar a nova política. Estão envolvidas as pastas de Saúde, Educação, Justiça, Direitos Humanos e a Senad. A ênfase será na redução de danos e demanda. Segundo o secretário nacional Antidrogas, general Paulo Roberto Uchôa, o governo decidiu centrar esforços no combate ao narcotráfico, deixando ao usuário o atendimento médico. ´A droga é uma coisa inerte. Não combato penicilina nem merthiolate. Agora, combato o tráfico. A droga tenho que conhecer, para poder educar e preparar a sociedade e a juventude para não fazer uso indevido da droga.´ Para Delgado, após um ano e 11 meses de discussão, o governo chegou a um consenso. ´Droga é uma questão polêmica. Arestas sempre vão existir. É importante tirar um vetor comum, um rumo. Os três ministérios estão afinados´, diz o coordenador.”Parte inferior do formulário 
[11] É a opinião, por exemplo, de Cristiano Ávila Maronna e Carlos Alberto Pires Mendes, em artigo publicado no Boletim do IBCCrim nº. 111, fevereiro/2002; e de Sérgio Habib que, fundamentadamente, admite a aplicação deste capítulo apenas “quando for mais favorável ao réu” (Revista Jurídica Consulex, nº. 139, outubro/2002). Assim também Vicente Greco Filho (Revista Jurídica Consulex, nº. 139, outubro/2002).
[12] www.ielf.com.br
[13] Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 7ª. ed., 1961, p. 165.
[14] Processo Penal, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 2000, 22ª. ed., p. 279.
[15] Leis Antitóxicos, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 120.
[16] Atentemos, porém, para a lição de Carnelutti, segundo a qual “se la giustizia è sicura non è rápida, se è rapida non è sicura…”, apud Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. 03, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 94.
[17] A propósito, conferir o art. 7º., 5 do Pacto de São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e art. 14, 3, c do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, assinado em 19 de dezembro de 1966, ambos já incorporados em nosso ordenamento jurídico, por força, respectivamente, do Decreto n.º 678 de 6 de novembro de 1992 e do Decreto n.º 592, de 6 de julho de 1992.
[18] Sobre a delação premiada, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003. Hoje, inclusive e, principalmente, a doutrina estrangeira, prefere a expressão “colaboração processual”, ainda que tal colaboração se dê, também, na fase pré-processual, como informa Eduardo Araújo da Silva (Boletim do IBCCrim. nº. 121, dezembro/2002).
[19] Código de Processo Penal Comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2001, p. 220.
[20] Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 7ª. ed., 1961, p. 404.
[21] “Colcha de Retalhos”, artigo publicado no site www.conjur.com.br, 06/02/2002.
[22] João José Leal, “A Lei nº. 10.409/02 e o Instituto da Delação Premiada”, Boletim do IBCCrim nº. 118, setembro/2002.
[23] Sobre este assunto, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[24] Boletim do IBCCrim nº. 113, abril/2002.
[25] Entende Eduardo Araújo da Silva (ob. cit.) que “caberá ao Ministério Público, no plano interno, disciplinar através de ato normativo, regras básicas de como devem proceder seus membros para a lavratura do acordo a que se refere a lei.”
[26] Comentando a respeito do perdão judicial, Damásio de Jesus entende tratar-se de um “direito penal público subjetivo de liberdade. Não é um favor concedido pelo Juiz. É um direito do réu. Se presentes as circunstâncias exigidas pelo tipo, o juiz não pode, segundo seu puro arbítrio, deixar de aplicá-lo. A expressão ´pode´ empregada pelo CP nos dispositivos que disciplinam o perdão judicial, de acordo com a moderna doutrina penal, perdeu a natureza de simples faculdade judicial, no sentido de o juiz poder, sem fundamentação, aplicar ou não o privilégio. Satisfeitos os pressupostos exigidos pela norma, está o juiz obrigado a deixar de aplicar a pena.” (Direito Penal, Vol. I, Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 19ª. ed., p. 597. 
[27] Claúdia B. Moscato de Santamaría, “El Agente Encubierto”, Buenos Aires: La Ley, 2000, p. 1. Nesta excelente monografia sobre o assunto, a autora portenha distingue claramente o agente encoberto de outras figuras afins, como os informantes (não policiais), arrependidos (criminosos delatores) e os agentes provocadores (policiais que instigam outrem a praticar o delito).
[28] Tóxicos – Comentários, Jurisprudência e Prática, Curitiba: Juruá, 2002, p. 207.
[29] Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, Parte Geral, 5ª. ed., 1999. 
[30] Tóxicos, Curitiba: Juruá Editora, 2002, p. 210.
[31] Luiz Flávio Gomes, Interceptação Telefônica, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, pp. 110/111.
[32] Ada, Scarance e Magalhães Gomes esclarecem que “quando a proibição for colocada por uma lei processual, a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza material, a prova será ilicitamente obtida.” (As Nulidades no Processo Penal, São Paulo: Malheiros, 5ª. ed., 1996, p. 116.
[33] Parece-nos interessante transcrever um depoimento de Leonardo Boff, ao descrever os percalços que passou até ser condenado pelo Vaticano, sem direito de defesa e sob a égide de um típico sistema inquisitivo. Após ser moral e psicologicamente arrasado pelo secretário do Santo Ofício (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), cardeal Jerome Hamer, em prantos, disse-lhe: “Olha, padre, acho que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de uma pessoa. Então não quero mais falar com o senhor, porque eu falo com cristãos, não com ateus.”  Por uma ironia do destino, depois de condenado pelo inquisidor, Boff o telefonou quando o cardeal estava à beira da morte, fulminado por um câncer. Ao ouvi-lo, a autoridade eclesiástica desabafou, chorando: “Ninguém me telefona… foi preciso você me telefonar! Me sinto isolado (…) Boff, vamos ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do Vaticano…” (in Revista Caros Amigos – As Grandes Entrevistas, dezembro/2000).
[34] Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604.
[35] Crime Organizado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. edição, 1997, p. 133
[36] Lopes Jr., Aury, Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 74.
[37] Como diz o Professor da Universidade de Valencia, Juan Montero Aroca, “en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión.” (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186).
[38] Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43.
[39] Interceptação Telefônica, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 111.
[40] Sobre os Juizados Especiais Criminais, remetemos o leitor ao que escrevemos em nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[41] Sobre ação penal e o princípio da obrigatoriedade indicamos: Da Ação Penal – Jorge Alberto Romeiro – Forense; Ação Penal – José Antonio Paganella Boshi – AIDE; Ação Penal Pública – Afrânio Silva Jardim – Forense; Ação Penal Pública – Eduardo Araújo da Silva – Atlas; Ação Penal Condenatória – Paula Bajer Fernandes Martins da Costa – Saraiva; Da Natureza Jurídica da Ação – Benedicto de Siqueira Ferreira – RT; Ação Penal – Joaquim Canuto Mendes de Almeida – RT; Tratado das Ações, Tomo 5 – Pontes de Miranda – Bookseller; Ministério Público e Persecução Criminal – Marcellus Polastri Lima – Lumen Juris; As condições da ação penal – Ada Pellegrini Grinover – José Bushatsky, Editor; Justa Causa para a ação penal – Maria Theresa Rocha de Assis Moura – Editora Revista dos Tribunais; Apontamentos e Guia Prático sobre a Denúncia no Processo Penal – Paulo Cláudio Tovo – Sergio Antonio Fabris Editor; Princípio da Oportunidade – Carlos Adérito Teixeira – Almedina; e Teoria do Direito Processual Penal, de Rogério Lauria Tucci, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
[42] A respeito do assunto, confira-se o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[43] Afrânio Silva Jardim, “Ação Penal Pública – Princípio da Obrigatoriedade”, Rio de Janeiro: Forense, 3ª. ed., p. 46.
[44] Sobre ação penal de iniciativa privada no Direito espanhol, conferir “El Proceso por Delito Privado”, de J. M. Martinez-Pereda, Barcelona, Bosch, 1976.
[45] O Projeto de Lei n. 4.209/01 modifica por completo a redação do art. 28 do CPP, deixando inteiramente nas mãos do Ministério Público o arquivamento das peças de informação. Sobre este projeto de lei veja os nossos comentários no “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[46] Quanto à composição civil dos danos, ficaria na dependência em se admitir ou não a figura de um ofendido em tais delitos, o que é controverso. Voltaremos a abordar esta questão quando, adiante, falarmos sobre a possibilidade do assistente de acusação.
[47] De toda maneira, esta conduta encontra-se tipificada no art. 325 do Código Penal, que trata do sigilo imposto aos funcionários públicos no exercício de suas atribuições.
[48] Sobre assunto, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[49] Nesta obra acima indicada, fazemos um estudo sobre os Juizados Especiais Criminas, onde procuramos abordar todos os seus aspectos, inclusive o que se refere à sua competência ditada pela Constituição Federal.
[50] Sobre este projeto de lei veja os nossos comentários no “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[51] “Nova Lei de Tóxicos” – Revista Jurídica 295 – Maio/2002.
[52] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. III, Campinas, Bookseller, 1998, p. 342.
[53] Sobre o assunto, recomendamos a leitura da obra do mestre português Taipa de Carvalho, “Sucessão de Leis Penais”, Coimbra: Coimbra Editora, págs. 219 e segs., bem como de Carlos Maximiliano, “Direito Intertemporal, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314 e de Rogério Lauria Tucci, “Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo: José Bushatsky, Editor, 1975, 124. 
[54] O defensor exerce a chamada defesa técnica, específica, profissional ou processual, que exige a capacidade postulatória e o conhecimento técnico. O acusado, por sua vez, exercita ao longo do processo (quando, por exemplo, é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas, juntas, compõem a ampla defesa. A propósito, veja-se a definição de Miguel Fenech: “Se entiende por defensa genérica aquella que lleva a cabo la propia parte por sí mediante actos constituídos por acciones u omisiones, encaminados a hacer prosperar o a impedir que prospere la actuación de la pretensión. No se halla regulada por el derecho con normas cogentes, sino con la concesión de determinados derechos inspirados en el conocimientode la naturaleza humana, mediante la prohibición del empleo de medios coactivos, tales como el juramento – cuando se trata de la parte acusada – y cualquier otro género de coacciones destinadas a obtener por fuerza y contra la voluntad del sujeto una declaración de conocimiento que ha de repercutir en contra suya”. Para ele, diferencia-se esta autodefesa da defesa técnica, por ele chamada de específica, processual ou profissional, “que se lleva a cabo no ya por la parte misma, sino por personas peritas que tienen como profesión el ejercicio de esta función técnico-jurídica de defensa de las partes que actuán en el processo penal para poner de relieve sus derechos y contribuir con su conocimiento a la orientación y dirección en orden a la consecusión de los fines que cada parte persigue en el proceso y, en definitiva, facilitar los fines del mismo” (Derecho Procesal Penal, Vol. I, 2ª. ed., Barcelona: Editorial Labor, S. A., 1952,  p. 457). Sobre o assunto, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Forense, 2003.
[55] Sobre a diferença entre rejeição e não-recebimento da denúncia, remetemos o leitor a José Antonio Paganella Boschi (Ação Penal, Rio de Janeiro: AIDE, 3ª. ed., 2002, p. 233). Tratam do assunto também Cezar Roberto Bitencourt (Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 109), Marcellus Polastri Lima (Ministério Público e Persecução Criminal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 235) e Eduardo Mahon (Rejeição e Não Recebimento de Denúncia – Diferenças Fndamentais, in www.ibccrim.com.br, 27/01/2003).
[56] Nunca é demais lembrar a incoerência na permissibilidade de atividade instrutória pelo Juiz em um sistema que se diz acusatório.
[57] Boletim do IBCCrim nº. 120, novembro/2002.
[58] Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves pensam diferentemente e defendem a realização de dois interrogatórios, apesar de admitirem ser “evidente que a repetição do interrogatório soa como desnecessária.” A argumentação dos ilustres Promotores, em suma, é a de que a realização dos dois interrogatórios refletiria a intenção do legislador de “aumentar a possibilidade de defesa dos acusados.” Assim também Jorge Vicente Silva, “Tóxicos”, Curitiba: Juruá, 2002, pp. 104 e segs. Por sua vez, Gevan Almeida tem uma posição, digamos, intermediária: “Acreditamos que no caso de acusado que esteja em liberdade, o interrogatório possa ser realizado na audiência, podendo-se invocar o princípio da economia processual. Contudo, em se tratando de acusado que se encontre preso o prazo estipulado no art. 38 deve ser rigorosamente cumprido, evitando-se, destarte, o relaxamento da prisão, com fundamento no excesso de prazo.” (in Modernos Movimentos de Política Criminal e seus Reflexos na Legislação Brasileira, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 372).
[59] Há quem defenda que na fase inquisitorial não há falar-se em interrogatório (Hélio Tornaghi, Compêndio de Processo Penal, Rio de Janeiro: José Konfino, tomo III, 1967, p. 812), que seria, então, ato tipicamente processual, a ser praticado exclusivamente em Juízo. Em reforço, afirmam que o próprio art. 6o., IV refere-se a “ouvir o ofendido”. A par de ser uma questão meramente terminológica (pois o importante é a observância das garantias constitucionais a qualquer acusado), aduzimos que o art. 304 manda “interrogar” o preso em flagrante, tal como o faz a nossa Lei das leis, no art. 5o., LXIV, referindo-se expressamente ao “interrogatório policial”.
[60] A Nova Lei Antitóxicos – Primeiras Impressões, Revista de Estudos Criminais nº. 07 – 2002, Porto Alegre/RS, p. 63.
[61] Para Paganella Boschi (obra citada na nota de rodapé anterior, p. 233), nestes casos, “a rejeição equivale a julgamento antecipado da lide, que impede a reiteração do pedido, salvo quando fundada nos motivos a que se refere o parágrafo único do atr. 43 do CPP relacionados com a ilegitimidade de parte e as condições de procedibilidade e de punibilidade (vide RJTJRS 79/41 e 131/76).”
[62] A respeito do assunto, vejamos a doutrina nacional. Assim, por exemplo, Paula Bajer Fernandes Martins da Costa define que “o interesse de agir penal está na necessidade e na justa causa. Justa causa é o fundamento fático e jurídico da acusação, demonstrado na peça acusatória e verificável no inquérito policial ou em peças de informação. A justa causa é o justo motivo para a instauração da ação penal, o que não significa, em absoluto, qualquer antecipação de condenação.”[62] (destacamos). Da mesma forma Afrânio Silva Jardim tece comentários sobre as condições da ação penal, principalmente no que diz respeito à justa causa como um desses elementos para o oferecimento da denúncia, in verbis: “Para o regular exercício do direito de ação penal, exige-se a legitimidade das partes, o interesse de agir, a possibilidade jurídica do pedido e a justa causa (suporte probatório mínimo que deve lastrear toda e qualquer acusação penal). São as chamadas condições da ação que, na realidade, não são condições para a existência do direito de agir, mas condições para o seu regular exercício” Para ele, “às três condições que classicamente se apresentam no processo civil, acrescentamos uma quarta: a justa causa, ou seja, um lastro mínimo  de prova que deve fornecer arrimo à acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado. Tal arrimo de prova nos é fornecido pelo inquérito policial ou pelas peças de informação, que devem acompanhar a acusação penal (arts. 12, 39 § 5º. e 46 § 1º., do Código de Processo Penal).”[62] Sendo assim, entende-se pacificamente que não é exigível nesta fase da persecutio criminis a comprovação certa e induvidosa da prática delitiva, bastando apenas elementos suficientes da autoria e materialidade do delito que evidenciem a viabilidade do oferecimento da denúncia, sem que esteja configurado o abuso de poder por parte do Ministério Público. Aqui, prevalece o brocardo sobejamente conhecido do in dubio pro societate. Relembra-se que os pressupostos de uma peça acusatória, citando Tourinho Filho, a partir da lição de Florian, são “autoria conhecida, fato típico e provas mais ou menos idôneas a respeito da relação da causalidade.” (in Processo Penal, Vol. I, p. 352). A propósito, vejamos os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça (grifos nossos): “AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. DENÚNCIA. RECEBIMENTO. 1. Emergindo da análise a presença das condições de procedibilidade para a ação penal, impõe-se o recebimento da denúncia, mesmo porque a improcedência da acusação, traduzida na falta de justa causa apenas tem lugar se a prova for tão certa e evidente, "de modo a não ser possível uma conclusão diversa daquela a que se chega." 2. Denúncia recebida.” (STJ; INQ 300/SP; Inquérito 2001/0047023-8; Rel. Min. Fernando Gonçalves; DJ 12/05/2003 PG:202). “CRIMINAL. SONEGAÇÃO FISCAL. OFERECIMENTO DE DENÚNCIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. Em faltando à Acusação Pública, no ensejo do oferecimento da denúncia, elementos bastantes ao rigoroso atendimento do seu estatuto formal (Código de Processo Penal, artigo 41), principalmente no caso de crime societário, é válida a imputação genérica do fato-crime, admitindo, como admite, a lei processual penal que as omissões da acusatória inicial possam ser supridas a todo tempo, antes da sentença final (Código de Processo Penal, artigo 569). 2. Não há falar em inépcia, quando a denúncia se mostra ajustada à norma inserta no artigo 41 do Código de Processo Penal, estatuto de sua validade e decorre, de seus próprios termos, a justa causa para a ação penal, evidentes que se fazem a tipicidade dos fatos, a suficiência dos indícios de autoria e a certeza da existência material dos delitos. 3. Enquanto requisita o exame do conjunto da prova, próprio do tempo da sentença, a alegação de atipicidade da conduta, por ausência de dolo, faz-se incompatível com a via estreita do habeas corpus. 4. Decidir-se pela inépcia da denúncia, com o fundamento de ausência de dolo, à luz de argumentos presuntivos fático-probatórios – como sói acontecer com afirmações de que a compensação era discutível como direito e fato comum entre comerciantes -, é decidir de meritis, sem qualquer pertinência com a decisão de recebimento da denúncia,  na qual o juiz, no verbo comum da doutrina e da jurisprudência, somente deve verificar se o fato imputado ostenta, primus ictus oculi, tipicidade penal, à luz, de resto, a servir-lhe de limite, da norma que permite o suprimento das omissões da denúncia a todo tempo, até a sentença. 5. Os delitos de que  trata a inicial acusatória, quais sejam, tipificados no artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90, embora de evento, são formais, não dependendo, para a sua consumação, da efetiva ocorrência do resultado ou mesmo a caracterização do dolo específico. 6. Recurso conhecido.”(STJ; Resp 124035/DF; Recurso Especial, 1997/0018817-5; Rel. Min. Hamilton Carvalhido; DJ 27/05/2002, PG:202; RT VOL.:808, PG:592). “RHC. AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. INOCORRÊNCIA. DOLO. DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA. DILAÇÃO PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. VIA ELEITA. 1. O trancamento de ação penal por via de habeas corpus somente se justifica, consoante entendimento pretoriano, quando da narrativa dos fatos pelo Parquet ressai o reconhecimento de imputação de fato atípico ou da falta de qualquer elemento indiciário que embase a acusação. Na espécie, não se verifica ictu oculi a atipicidade da conduta do paciente, que, em princípio, subsume-se ao tipo previsto no art. 339 do  Código Penal, qual seja, dar causa à instauração de investigação policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que se sabe ser inocente. 2. Não há condições de, em um exame perfunctório das provas, peculiar à via estreita do habeas corpus, apreciar a tese de ausência de dolo, para se excluir, de pronto, a acusação contra o paciente. 3. RHC improvido.” (STJ; RHC 11095/SP; Recurso Ordinário em Habeas Corpus 2001/0020475-9; Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES; DJ 01/07/2002 PG:395). “PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA. DENÚNCIA. INÉPCIA. JUSTA CAUSA. IDenúncia que apresenta narrativa que se ajusta ao modelo da conduta proibida não é inepta porquanto permite a ampla defesa. II – Em sede de habeas corpus, a tese da falta de justa causa deve ser passível de imediata verificação sem recurso ao vedado minucioso cotejo analítico das provas. Precedentes. Recurso desprovido.” (STJ; RHC 13068/SP; Recurso Ordinário em Habeas Corpus 2002/0076053-8; Rel. Min. Felix Fischer; DJ 05/05/2003 PG:314). “INQUÉRITO. CONSELHEIRO DE TRIBUNAL DE CONTAS. ART. 299 DO CÓDIGO PENAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA. DOCUMENTO PÚBLICO. AQUISIÇÃO DE TERRAS. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. Narrando a peça acusatória fato típico e estando presentes indícios quanto à materialidade e à autoria, recebe-se a denúncia.” (STJ; INQ 341/RR; Inquérito 2002/0048196-0; Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito; DJ 09/06/2003 PG:163).
[63] Evidentemente que esta decisão de recebimento não deve ser lacônica, como sói acontecer. Sendo uma decisão que irá instaurar a relação processual, evidentemente deve ser fundamentada nos termos, aliás, do art. 93, IX da Constituição Federal. A bem da verdade, não se justifica, qualquer que seja o procedimento, que o recebimento de uma peça acusatória seja feito por um mero e despretensioso despacho. Infelizmente esta é a práxis (odiosa), respaldada, inclusive, pela grande maioria dos nossos Tribunais, até pelo Supremo, guardião da Constituição Federal…
[64] Na verdade, como o assistente somente intervém após o recebimento da denúncia (art. 268, CPP), dificilmente já haveria assistente habilitado, donde a impossibilidade de sua notificação desde já.
[65] Sobre o assunto, conferir o nosso “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[66] Aliás, exatamente em virtude do bem jurídico tutelado é que se mostra “inadmissível a punição da posse de drogas para uso pessoal, seja pela inafetação do bem jurídico protegido (a saúde pública), seja por sua contrariedade com um ordenamento jurídico garantidor da não intervenção do Direito em condutas que não afetem a terceiros”, como explica Maria Lúcia Karam, em sua excelente obra “De Crimes, Penas e Fantasias”, Rio de Janeiro: LUAM, 1991. Karam complementa afirmando com absoluta propriedade que a “aquisição ou posse de drogas para uso pessoal, da mesma forma que a autolesão ou a tentativa de suicídio, situa-se na esfera de privacidade de cada um, não podendo o Direito nela intervir.” (pp. 60 e 128)
[67] Comentando a Lei de Tóxicos anterior, Vicente Greco Filho afirma textualmente que “não se admite assistente de acusação em ações penais pelos delitos desta lei”, por entender que, no máximo, poder-se-ia “determinar-se a figura de um prejudicado, como por exemplo na hipótese de alguém ministrar entorpecente a um menor inimputável”, alertando que no sentido técnico não se pode confundir prejudicado com ofendido (Tóxicos, São Paulo: Saraiva, 9ª. ed., 1993, p. 84).   
[68] Sobre o assunto, conferir o nosso Direito Processual Penal, já referido.
[69] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. II, Campinas: Bookseller, 1998, p. 265.
[70] Lei de Lavagem de Capitais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 366.
[71] Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 2001, p. 393.
[72] Processo Penal, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 22ª. ed., 2000, p. 215.

Informações Sobre o Autor

Rômulo de Andrade Moreira

Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.


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