O presente artigo aborda o fenômeno da alienação crescente do trabalho intelectual, seus efeitos sobre a atuação dos profissionais das chamadas ciências sociais, dentre as quais se inclui o direito, e a necessária revisão de conceitos do pensamento crítico, especialmente da escola marxista.
A ideologia que dá sustentação a “democracia burguesa” sempre concebeu como um de seus fundamentos, “o direito à livre manifestação de pensamentos”. Eric FROM, um dos ativistas intelectuais da Escola de Frankfurt, em sua monumental obra “O Medo à Liberdade”, onde busca encontrar as razões que levaram a humanidade para a tragédia “nazista”, afirma que nós, membros da sociedade moderna, menosprezamos o papel das autoridades anônimas, como a opinião pública e o “senso comum”, que são tão poderosos à nossa profunda presteza em conformar-nos com as expectativas que todos tem a nosso respeito, e nosso temor igualmente estranho de sermos diferentes.
Para FROM, na moderna sociedade, onde reina a “democracia burguesa”, em lugar da autoridade ostensiva, reina a autoridade “anônima”. Segundo ele, ela está disfarçada como senso comum, ciência, saúde mental, normalidade, opinião pública. Nada exige além do que é evidente por si mesmo. Parece não empregar pressão, mas apenas uma persuasão suave,
“(…) a autoridade anônima é mais eficaz do que a ostensiva, porquanto nunca de desconfie de que haja uma ordem que a hipótese deve-se obedecer. Na autoridade externa, está claro que há uma ordem e quem a dá; pode-se lutar contra a autoridade, e, nesta luta, desenvolve-se a independência e a coragem moral. Mas ao passo que na autoridade interiorizada o comando, se bem que interno continua visível, na autoridade anônima tanto o comando quando o mandante tornaram-se invisíveis. É como se a gente fosse alvejado por um inimigo invisível: não há nada nem ninguém contra quem se possa reagir[1].” (FROM, 1964:143)
Essa constatação de FROM, faz com que ele questione a real existência de uma liberdade de pensamento, frente à forte repressão exercida em nossa atividade mental, pela poderosa ação das autoridades anônimas. Por fim, ele conclui que
“(…) o direito de manifestar nossos pensamentos, contudo, só tem significado se somos capazes de ter pensamentos próprios.” (FROM, 1964:201)
Logo, a propalada liberdade de manifestação de pensamentos, tem um caráter muito mais ilusório, do que real.
O trabalho de Eric FROM vai encontrar reforço com a obra posterior de outro membro da Escola de Frankfurt, Hebert MARCUSE. Para o filósofo alemão, a sociedade industrial contemporânea, construída a partir das revoluções tecnológicas que povoaram os séculos XVIII e XIX, e deram luz ao capitalismo, vão encontrar no período do pós-guerra a sua manifestação mais opressiva. Ludibriados pelo aparente sucesso dos Estado de Bem-Estar, os homens deixam-se dominar por um sistema tecnocrático, que desqualifica o conteúdo da oposição, estabelecendo um modelo de “administração total”, sustentado pela criação de necessidades materiais e intelectuais, e pelo aumento do consumismo, do luxo e do desperdício das forças produtivas, o que perpetua formas obsoletas de luta pela existência:
“O progresso técnico, levado a todo um sistema de dominação e coordenação, cria formas de vida (e de poder) que parece reconciliar as forças que se opõem ao sistema e rejeitar ou refutar todo protesto em nome de perspectivas históricas de liberdade de labuta e de dominação. A sociedade contemporânea parece capaz de conter a social-transformação qualitativa que estabelecia instituições essencialmente diferentes, uma nova direção dos processos produtivos, novas formas de existência humana. Essa contenção da transformação é, talvez, a mais singular realização da sociedade industrial desenvolvida; a aceitação geral do Propósito Nacional, a política bipartidária, o declínio do pluralismo, o conluio dos negócios com o trabalho no seio do Estado forte testemunham a integração dos oponentes, que é tanto o resultado como o requisito da realização.” (MARCUSE, 1982:15-6)
Para MARCUSE, a sociedade industrial constitui um modelo “totalitário” semelhante ao nazismo e fascismo. Para ele, o termo “totalitário” não é apenas uma coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnico-econômica não terrorista que opera através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos. Impede, assim, o surgimento de uma oposição eficaz ao todo. Segundo o mestre alemão, não apenas uma forma específica de Governo ou direção partidária constitui totalitarismo, mas também um sistema específico de produção e distribuição que bem pode ser compatível com o “pluralismo” de partidos, jornais, “poderes contrabalançados”, etc.
“Sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em poderoso instrumento de dominação. O alume da escolha aberta ao indivíduo não é o fator decisivo para a determinação do grau de liberdade humana, mas o que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo indivíduo. O critério para a livre escolha jamais pode ser absoluta, mas tampouco é inteiramente relativo. A eleição dos senhores não abole os senhores ou os escravos. A livre escolha entre ampla variedade de mercadorias e serviços não significa liberdade se esses serviços e mercadorias sustem os controles sociais sobre uma vida de labuta e temor –, isto é, sustem a alienação. E a reprodução espontânea, pelo indivíduo, de necessidades superimpostas não estabelece autonomia; apenas testemunha a eficácia dos controles[2].” (MARCUSE, 1982:28 – grifos nossos)
O resultado deste processo, nas palavras de MARCUSE, é que nós nos submetemos, cada vez mais, à produção pacífica dos meios de destruição, à perfeição do desperdício, a ser educados para uma defesa que deforma os defensores e aquilo que defendem.
Hodiernamente, Boaventura de Souza SANTOS, demonstra profunda decepção com as promessas da ciência da modernidade. Primeiramente destaca a destruição do poder criativo da humanidade:
“(…) se fecharmos os olhos e os voltarmos a abrir, verificaremos com a surpresa que os grandes cientistas que estabeleceram e marcaram o campo teórico em que ainda hoje nos movemos viveram ou trabalharam entre o século XVIII e os primeiros vinte anos do século XX, (…)” (SANTOS, 1999:5)
Segundo o sociólogo português, o modelo de racionalidade que preside à ciência moderna formou-se na revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes, basicamente no domínio das ciências naturais. Apesar de tentativas esboçadas no século XVIII, é somente no século XIX que este modelo de racionalidade acaba alcançando, também, as ciências sociais, emergentes naquele momento.
“(…) A partir de então pode falar-se de um modelo global de racionalidade científica que admite variedades internas, mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento não científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (em que incluíram, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos).” (SANTOS, 1999:10)
Boaventura de Souza SANTOS afirma que a nova racionalidade científica global constitui uma lógica totalitária, semelhante ao apontado por MARCUSE em relação à sociedade industrial, que nega todas as formas que não se pautarem pelos princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. Mais do que isto, destaca o fenômeno da “industrialização da ciência”, elemento que proporcionou o compromisso da ciência com o sistema social, econômico e político dominante, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição das prioridades científicas:
“A industrialização da ciência manifestou-se tanto ao nível das aplicações da ciência como ao nível da organização da investigação científica. Quanto às aplicações, as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram um sinal trágico, a princípio visto como acidental e fortuito, mas hoje, perante a catástrofe ideológica e o perigo do holocausto nuclear, cada vez mais visto como manifestação de um modo de produção da ciência inclinado a transformar acidentes em ocorrências sistemáticas.” (SANTOS, 1999:34)
HABERMAS acaba seguindo caminho semelhante, destaca que a “racionalização” progressiva da sociedade, está ligada à institucionalização progressiva do progresso científico e técnico. Para ele, na medida em que a técnica e a ciência penetram nos setores institucionais da sociedade, transformando assim as próprias instituições, as antigas legitimações, que sustentaram os sistemas sociais, políticos e econômicos anteriores, se desmontam. Secularização e “desenfeitiçamento” das representações do mundo que orientam o agir, e toda a tradição cultural, “são a contrapartida de uma “racionalidade” crescente do agir social”. Pois é exatamente esta institucionalização progressiva da ciência é que vai determinar o modelo de “administração total” denunciado por MARCUSE:
“O crescimento das forças produtivas, institucionalizado com o progresso técnico-científico rompe com todas as proporções históricas. É isso que dá ao quadro institucional sua chance de legitimação. A idéia de que as relações de produção possam ser medidas pelo potencial das forças produtivas desenvolvidas é descartada pelo fato de que as relações de produção existentes se apresentam como a forma de organização tecnicamente necessária de uma sociedade racionalizada. A ‘racionalidade’ no sentido de Max Weber revela as suas duas faces: ela não é mais somente um padrão de crítica para o nível das forças produtivas, diante do qual a repressão objetivamente supérflua das relações de produção historicamente caducas pode ser desmascarada, mas ela é ao mesmo tempo um padrão apologético pelo qual essas mesmas relações de produção podem ser ainda justificadas como um quadro institucional funcionalmente adequado. Na verdade, com respeito à sua utilidade apologética, a “racionalidade”, enquanto padrão de crítica, perde sua força incisiva e é rebaixada a corretivo dentro do sistema: o que então se pode dizer ainda é, em todo caso, que a sociedade está “mal programada”. Ao nível do seu desenvolvimento técnico-científico, as forças produtivas parecem, portanto, entrar numa nova constelação com as relações de produção: elas agora não mais funcionam como fundamento da crítica das legitimações em vigor para os fins de um iluminismo político, mas, em vez disso, convertem-se elas próprias no fundamento de legitimação. Isso é concebido por Marcuse como uma novidade na história mundial.” (HABERMAS, 1983:315 – grifos nossos)
Segundo HABERMAS, inspirado em MARCUSE, a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas enquanto tecnologia, e esta garante a formidável legitimidade do poder político em expansão, que absorve todas as esferas da cultura. O homem, submetido a este domínio tecnológico, demonstra a impossibilidade técnica de ser ele autônomo e de determinar a sua própria vida. A racionalidade tecnológica acaba protegendo, em vez de suprimir, a legitimidade da dominação e o horizonte instrumentalista da razão se abre sobre uma sociedade racionalmente totalitária.
O avanço tecnológico inspira MARCUSE no reconhecimento de perda da validade real de uns dos elementos primários do pensamento marxista, ou seja, “a teoria do valor trabalho, e da mais-valia”. Se por um lado, o filósofo frankfurtiniano entende que o modelo capitalista gestado no pós-guerra reforça ao invés de diminuir as contradições do sistema apontado por MARX, na medida em que a corrida armamentista e o aumento da produtividade do trabalho somente conduzem para uma vasta concentração do poder econômico[3], por outro destaca que cada vez mais o peso relativo do trabalho morto (máquinas), aumenta em relação ao trabalho vivo (trabalho humano).
Segundo Hebert MARCUSE, MARX definia o proletário primordialmente como “trabalhador braçal que gasta e esgota sua energia física no processo de trabalho”, dor física e miséria do trabalho. No momento em que a tecnologia substitui a fadiga muscular pela tensão e esforço mental, a transformação de energia física em aptidões técnicas mentais é salientada para fábricas automatizadas mais desenvolvidas. Há um aumento da velocidade das máquinas, controle de seus operadores e isolamento dos trabalhadores. Pior, ocorrerá uma integração cultural do trabalhador com a empresa, o sustenta a aparente ausência de contradição na sociedade capitalista.
Para o filósofo da Escola de Frankfurt, o modelo de administração social tecnocrático (administração total), instalado depois do pós-guerra, se sustenta pela banalização dos elementos culturais, pela massificação de um modelo cultural que afasta as contradições, criando uma fórmula unidimensional. A sociedade é submetida a uma linguagem tecnicista e totalitário. O fechamento autoritário do universo de locução retira a dimensão da contradição e da transformação, transformando-as em figuras do passado (clássicos). A erotização e a banalisação da violência, das guerras e dos conflitos, assumem papel de destaque na cultura mercantilizada. A adoção de uma prática funcionalista que evita a tensão e o conflito ideológico na construção de um método científico e da verdade reforça o dogmatismo, a linguagem fechada que não demonstra e nem explica. A falsa idéia de neutralidade dos conceitos, da linguagem e da ciência legitima a dominação tecnocrática.
“(…) O método científico que levou à dominação cada vez mais eficaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos puros como os instrumentos para a dominação cada vez maior do homem pelo homem por meio da dominação da natureza. A razão teórica, permanecendo pura e neutra, entrou para o serviço da razão prática. A fusão resultou benéfica para ambos. Hoje, a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absorve todas as esferas da cultura.” (MARCUSE, 1982:155)
Logo, para MARCUSE,
“(…) a tecnologia tornou-se o grande veículo de espoliação – espoliação de sua forma mais madura e eficaz . […] O mundo tende a tornar-se o material da administração total, que absorveu até os administradores.” (MARCUSE, 1982:165)
Por fim, conforme o próprio MARCUSE havia afirmado, o aparente sucesso social do capitalismo de bem-estar era temporário, fundamentado na manutenção de um sistema produtivo cada vez mais subordinado à reprodução da obsolescência. Com a crise do capital na década de setenta, e a ascensão ideológica do modelo “liberal-conservador”[4], o sistema do Estado de bem-estar entrou em ruína.
Com a mudança da ideologia, que outrora pregava a estabilidade econômica, os limites impostos à reprodução fetichista do capital foram jogados por terra. Ocorreu uma profunda alteração na infra-estrutura econômica, e a expulsão desregrada de trabalhadores do mercado “formal” de trabalho. A liberdade alcançada pelo capital, foi acompanhada pela reprodução mundial da nova ideologia dominante, fundamentalmente reforçada pela explosão das tecnologias da informação e dos meios de comunicação de massa, o que determinou o surgimento e apologia de um movimento econômico-ideológico chamado de globalização.
Para piorar a situação, a solidariedade alcançada pela classe trabalhadora no apogeu da luta operária, tem seu poder desmantelado[5]. Ocorrerá a progressiva diminuição dos postos de trabalho, principalmente no campo “tradicional” da industria, que contraditoriamente será acompanhada pelo aumento da produtividade dos bens materiais, embora estes não sejam distribuídos de forma equilibrada, na medida em que cada vez aumentam os contrastes sociais, com a formação de verdadeiros bolsões de miséria planetários, enxugará o mercado consumidor. Toda esta situação vai reforçar o debate iniciado por MARCUSE, ou seja, a perda progressiva do papel do trabalho como instrumento formador da consciência social. Para alguns, a começar por Claus OFFE, a própria análise montada num conflito de classes por Karl MARX tornou-se obsoleta. Inspirado na obra de HABERMAS, OFFE buscará estabelecer um novo modelo crítico capaz de diagnosticar os conflitos sociais “emergentes”, e apontar soluções para a sua superação:
“Uma proposta teórica elaborada, fundamentada na história da teoria sociológica, e que poderia satisfazer essa necessidade encontra-se desenvolvida na Theorie des kemmunikativen Handelns, de Habermas. Em um importante e sempre polêmico abandono dos paradigmas teóricos clássicos. Habermas retrata a estrutura e a dinâmica das sociedades modernas não como um antagonismo enraizado na esfera da produção, mas como um choque entre os “subsistemas da ação racional intencional”[6], mediado, de um lado, pelo dinheiro e pelo poder e, por outro, por um “mundo vivido”, que “obstinadamente” resiste a esses sistemas. (…)” (OFFE, 1995:195)
Boaventura de Souza SANTOS vai mais longe, para ele, a crise social, e por conseguinte, da ciência, e mais especificamente, da ciência crítica, é uma crise paradigmática. Para o professor português, as promessas da modernidade, como as de igualdade, de liberdade e até mesmo a “paz eterna” de Kant, fracassaram, frente à explosão mundial da miséria, da fome, das doenças incuráveis, das ditaduras, políticas ou tecnocráticas, de guerras e massacres. Em face disto, ele acredita que o pensamento crítico para ser eficaz tem de assumir uma posição paradigmática, partindo de uma crítica radical do paradigma dominante tanto dos seus modelos regulatórios como dos seus modelos emancipatórios para com base nela e com recurso no imaginário dos utopistas, os primeiros a traçarem horizontes emancipatórios novos em que eventualmente se anuncia o paradigma emergente:
“A definição da transição paradigmática implica a definição das lutas paradigmáticas, ou seja, das lutas que visam aprofundar a crise do paradigma dominante e acelerar a transição para o paradigma ou paradigmas emergentes. A transição paradigmática é um objetivo de muito longo prazo. Acontece que as lutas sociais, políticas e culturais, para serem credíveis e eficazes tem de ser travadas a curto prazo, por cada uma das gerações com a capacidade e vontade para travar. Por esta razão, as lutas paradigmáticas tendem a ser travadas, em cada geração, como se fossem subparadigmáticas, ou seja, como se ainda se admitisse, por hipótese, que o paradigma dominante pudesse dar resposta adequada aos problemas para que eles chamam a atenção. A sucessão das lutas e a acumulação das frustações vão aprofundando a crise do paradigma dominante, mas em si mesmas, pouco contribuirão para a emergência de um novo paradigma. Para que isto ocorra, é necessário que se consolide a consciência de ausência das lutas paradigmáticas. Essa ausência é tornada possível pela imaginação utópica. A consciência da ausência é a presença possível das lutas paradigmáticas no seio das lutas subparadigmáticas.” (SANTOS, 2000:19)
Boaventura SANTOS afirma, também, que a crítica epistemológica da ciência moderna não pode deixar de envolver uma das mais brilhantes reflexões teóricas da modernidade, um dos seus produtos culturais e políticos mais genuínos, o “marxismo”. Já para J. Luiz MARQUES, “todo o marxista sério, e digno de respeito, contemporaneamente, deve ser um revisionista” (MARQUES, 1992:63).
Ora, neste momento em que as bases que fundam a sociedade moderna estão em profundo processo de questionamento, a própria recuperação da efetividade do pensamento marxista deve ir além da mera “crítica da economia política”, estabelecendo uma crítica radical dos fundamentos da civilização moderna. O presente trabalho tem por objetivo servir apenas como uma reflexão sobre este debate cada vez mais necessário.
1. PROMETEU E A ALIENAÇÃO DO TRABALHO
Conta a mitologia grega, retratada na obra Teogonia, de Hesíodo, que Prometeu roubou o fogo de Zeus para dá-lo aos mortais. Este fato atraiu a ira do Deus Supremo do Olimpo, que condena Prometeu à tortura de ter seu fígado permanentemente devorado por uma águia, além de ser submetido a exercer eternamente o trabalho fatigante. Aos mortais, Zeus estende a condenação eterna ao trabalho. Nenhum homem poderá furtar-se do trabalho. Segundo Hesíodo, o homem na idade do ferro está movido pelo instinto da luta (eris). É através do trabalho, que a luta pela sobrevivência torna-se emulsão fecunda e feliz; ao contrário, manifesta-se por meio de violência, acaba sendo a perdição do próprio homem. Contudo, o trabalho tem uma dimensão muito maior do que o papel moralista apresentado por Hesíodo. O trabalho é uma manifestação criativa e criadora.
Para MARX, e também para ENGELS, “o primeiro pressuposto de toda história é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos” (MARX; ENGELS, 1986:27). Mas o primeiro ato histórico destes indivíduos, pelo qual se distinguem dos animais, não é o ato de pensar, mas o de produzir seus meios de vida. Segundo MARX, o animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. “É ela”. Por outro lado, o homem faz da sua atividade vital mesma um objeto do seu querer e da sua consciência. Tem, portanto, “atividade real consciente”. “A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal” (MARX, 1989a:156). É precisamente por isso que o homem é um ser genérico, não só na medida em que teórica e praticamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto das demais coisas, o seu objeto, mas também porque se relaciona consigo mesmo como um ser universal e por isto livre. Só por isto, a sua atividade, o seu trabalho, é atividade livre. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, imediatamente, sua própria vida material.
“No engendrar prático de um mundo objetivo, no trabalhar a natureza inorgânica o homem se prova como um ser genérico consciente, isto é, um ser que se relaciona com o gênero como a sua essência própria ou //se relaciona// consigo como ser genérico. Claro que o animal também produz. Constrói um ninho, moradas para si, tal como a abelha, castor, formiga, etc. Só que produz apenas o de que precisa imediatamente para si ou seu filhote; produz unilateralmente, ao passo que o homem produz universalmente; produz apenas sob domínio da necessidade física imediata, ao passa que o homem produz mesmo livre da necessidade física e só produz verdadeiramente sendo livre da mesma; só produz a si mesmo, ao passo que o homem reproduz a natureza inteira; o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, ao passo que o homem se defronta livre com o seu produto. O animal forma só segundo a medida da necessidade //Bedürfnis// da species a qual pertence, ao passo que o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer species e sabe em toda a parte aplicar a medida inerente ao objeto; por isso o homem também forma segundo as leis da beleza.” (MARX, 1989a:156-7, grifos nossos)
O modo de produção pelo qual os homens produzem os meios necessários para sua subsistência, e conseqüentemente a sua própria reprodução, depende, antes de tudo, da natureza. O trabalhador nada pode criar sem a natureza. A natureza é o mundo exterior sensorial. “Ela é o material no qual o seu trabalho se realiza efetivamente, no qual é ativo, a partir do qual e mediante o qual produz” (MARX, 1989a:151).
“Mas assim como a natureza oferece o[s] meio[s] de vida do trabalho no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais se exerça, assim também oferece por outro lado o[s] meio[s] de vida no sentido mais estrito, a saber, o[s] meios [s] de subsistência física do trabalhador mesmo.” (MARX, 1989a:151)
Todavia, quanto mais o trabalhador se apropria do mundo exterior através do seu trabalho, deste universo concebido por MARX como “natureza sensorial”, tanto mais ele se priva de meio[s] de vida segundo um duplo aspecto, primeiro, “que cada vez mais o mundo exterior sensorial cessa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho”, um meio de vida do seu trabalho; o segundo aspecto consiste no fato de que cada vez cessa de ser meio de vida no sentido imediato, “meio para a subsistência física do trabalhador”.
“(…) Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos. Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção.” (MARX; ENGELS, 1986:27-8)
Mas como foi dito anteriormente, o homem é dotado de consciência. Contudo, não se trata de consciência pura. Segundo MARX e ENGELS, desde o início “pesa sobre o espírito a maldição de estar contaminado pela matéria”; matéria que se apresenta de diversas formas, como camadas de ar em movimento de sons, em suma, “de linguagem”.
“(…) A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem e a consciência real, prática, que existe para os outros homens e, portanto, existe também para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbio com outros homens. (…)” (MARX; ENGELS, 1986:43)
A linguagem, portanto, é uma forma de se relacionar com o ambiente, e a relação do homem com o seu ambiente é a sua consciência.
“(…) A consciência, portanto, é desde o início um produto social, e continuará sendo enquanto existirem homens. (…)” (MARX; ENGELS, 1983:43)
Os homens desenvolvem a sua consciência no interior do desenvolvimento histórico real. No exercício prático de reprodução da vida real. Logo, “não é consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. Para melhor elucidar o processo histórico, MARX inverte a dialética de HEGEL:
“Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, – que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de idéia, – é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que material transportado para a cabeça do ser humano e por ela interpretado.” (MARX, 1980:16)
A história nada mais é do que a sucessão de diferentes gerações, onde cada uma explora as condições materiais de produção geradas pelas gerações anteriores. Com a divisão social do trabalho, iniciada na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em diversas famílias opostas às outras, altera-se a relação do homem com os outros homens, do homem com a natureza, e do homem consigo próprio. Com a divisão social do trabalho, estabelece-se a distribuição desigual dos meios de produção. Dos meios de produção e reprodução da própria vida humana.
“O desenvolvimento de todos os ramos da produção – criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos – tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao mesmo tempo, aumentou a soma de trabalhos diários correspondentes a cada membro das gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra, os prisioneiros foram transformados em escravos. Dadas as condições históricas gerais de então, a primeira grande divisão social do trabalho, ao aumentar a produtividade deste, e por conseguinte a riqueza, e ao estender o campo da atividade produtora, tinha que trazer consigo – necessariamente – a escravidão. Da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados.” (ENGELS, 1985a:128)
Além disso, a divisão social do trabalho foi acompanhada da propriedade privada. Na realidade, divisão do trabalho e da propriedade, “são expressões idênticas”:
“(…) a primeira enuncia em relação à atividade, aquilo que se enuncia na segunda em relação ao produto da atividade.” (MARX; ENGELS, 1986:46)
A divisão social do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que surge, a divisão entre o trabalho material e o espiritual:
“(…) A partir deste momento, a consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da praxis existente, sem representar algo real; desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc., “puras”. (…)” (MARX; ENGELS, 1986:45)
A produção da idéias, das imagens e representações da consciência humana estão desde o início entrelaçadas com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens. São expressões da vida real. São representações da linguagem da vida real. A linguagem da política, das leis, da religião, da moral, o representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, “aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material”.
“(…) Os homens são os produtores de suas representações, de suas idéias etc., mas os homens reais, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formulações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens, é o seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico.” (MARX; ENGELS, 1986:37)
Chegamos, pois, à ideologia que, em análise preliminar, constitui-se nas falsas representações que os homens fazem da vida real e, portanto, de si mesmos. Contudo, antes de ingressarmos no debate em torno da ideologia, devemos relacionar outro ponto importante neste processo, a “alienação”.
Segundo MARX, é precisamente ao trabalhar no mundo objetivo, no “ambiente” que o cerca, que o homem se prova de maneira efetiva como um ser genérico. A sua vida genérica é produto de sua obra ativa, da sua ação enquanto produtor. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, é a sua duplicação no produto de seu trabalho:
“(…) ao se duplicar não só intelectualmente tal como na consciência, mas operativa, efetivamente e, portanto, ao se intuir a si mesmo num mundo criado por ele. (…)” (MARX, 1989a:157)
A alienação é um movimento que deve ser entendido a partir desta atividade criadora do homem, nas condições em que ela se realiza. “Deve ser entendido, sobretudo, a partir daquela atividade que distingue o homem de todos os outros animais, isto é, daquela atividade através da qual o homem produz os seus meios de vida e cria a si mesmo: o trabalho humano” (KONDER, 1967:25-6).
A alienação é um produto da objetivação do trabalho. Com a materialização no trabalho no mundo sensível, com a sua transformação em coisa, o produto do trabalho humano se transforma em algo alheio, independente do próprio homem. O homem perde o domínio da sua ação criadora. O produto do trabalho humano objetivado defronta o próprio homem de forma opressiva. Mas não é somente isto. Com o progressivo avanço da divisão social do trabalho processou uma atomização da espécie. Criou-se uma cisão entre o indivíduo como tal e o seu ser genérico, e esta cisão começou a ser manifestar com a diferenciação entre trabalho intelectual e material, entre a vida pública e privada do ser humano.
“(…) O poder social, isto é, a força produtiva multiplicada que nasce da cooperação de vários indivíduos exigida pela divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos, porque sua cooperação não é voluntária, mas natural, não como ser próprio poder unificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja origem e cujo destino ignoram, que não podem mais dominar e que, pelo contrário, percorre agora uma série particular de fases e de estágios de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que, na verdade, dirige este querer e agir.” (MARX; ENGELS, 1986:49-50)
Por fim, com o desenvolvimento do capitalismo, e fundamentalmente do capitalismo industrial, o homem definitivamente separa-se dos instrumentos de reprodução dos seus meios de vida. O produto do trabalho humano objetivado assume a forma genérica e abstrata da mercadoria. Para o trabalhador, o produto do seu trabalho acaba perdendo o significado. Surge uma classe cujo o meio de sobreviver no mundo capitalista é a vender no “mercado” a sua própria força de trabalho, na medida em que se encontra “alienada” dos meios de produção: o proletariado. O produto da ação produtiva do proletariado não mais lhe pertence, pelo contrário, massifica-se na constituição de uma coletividade de mercadorias que se opõe ao próprio trabalho proletário: o capital.
“O trabalhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em produção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral” (MARX, 1989a:148)
Assim como Prometeu, o proletariado foi condenado ao fatigante trabalho eterno. Também foi condenado a ter suas vísceras devoradas por uma ave de rapina, a burguesia. Mas como Prometeu, a condição para a sua libertação é a libertação de toda a humanidade, é a libertação do trabalho.
2. A ORIGEM DAS MERCADORIAS E DO VALOR
O capitalismo, enquanto modo de produção e reprodução social, econômico e político, não é produto, por mera causalidade, da simples atividade da classe burguesa. Nem ela, burguesia, é um produto do modo de produção capitalista. Foram os homens e grupos, “surgidos de meios diversos, tendo em comum o fato de disporem de recursos financeiros acumulados de diferentes modos (e determináveis), e de buscarem o lucro comercial máximo, que se empenharam em construir manufaturas nas quais arregimentassem os pobres das cidades e os camponeses expulsos dos campos e em montar circuitos de venda lucrativos” (CHATELET; DUHAMEL; PISIER-KIUCHNER, 1990:131). O capitalismo é um produto histórico e contraditório da divisão social do trabalho, da apropriação privada do excedente e rendas do trabalho. O capitalismo só existe como modo de produção pela existência de trabalho humano alienado. Tudo o que aparece no trabalhador como “atividade da exteriorização, da alienação”, aparece no não trabalhador como “estado de exteriorização, de alienação”.
“Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder alheio estando frente a ele, então isto só é possível por //o produto do trabalho// pertencer a um outro homem fora o trabalhador. Se a sua atividade lhe é tormento, então tem que ser fruição a um outro e a alegria de viver de um outro. Não os deuses, não a natureza, só o homem mesmo pode ser este poder alheio sobre o //s// homem //ns//.” (MARX, 1989a:159)
Mas se o homem se relaciona com o produto de seu trabalho objetivado como um objeto alheio, inimigo poderoso e independente dele, “então se relaciona com ele de maneira tal que um outro homem alheio a ele, inimigo poderoso, independente dele, é o senhor deste objeto”. Estabelece-se, portanto, um conflito no seio do modo de produção entre aquele que se apropria do trabalho humano objetivado e verdadeiro produtor, o trabalhador alienado. Na medida em que o homem se relaciona com a sua atividade como uma atividade não livre, então ele se relaciona com a atividade sob o domínio e a serviço, coerção e jugo de outro homem.
“Toda a auto-alienação do homem de si e da natureza aparece na relação que ele confere a si e à natureza com os outros homens diferentes dele. Daí que a auto-alienação religiosa apareça necessariamente na relação do leigo com o sacerdote ou também, já que aqui se trata do mundo intelectual, com um mediador, etc. No mundo efetivo prático auto-alienação só pode aparecer através da relação efetivamente real, prática com os outros homens. O meio pelo qual procede a alienação é ele mesmo um //meio// prático. Pelo trabalho alienado, portanto, o homem não engendra apenas a sua relação com o objeto e com o ato de produção enquanto poderes alheios e inimigos dele; engendra também a relação na qual outros homens estão com a produção e o produto dele e a relação na qual ele está com estes outros homens. Tal como ele //engendra// a sua própria produção para a sua desefetivação //Entwirklinchung//, para o seu castigo, tal como //engendra// o seu próprio produto para a perda, para //ser// um produto não pertencente a ele, assim ele engendra a dominação daquele que não produz sobre a produção e sobre o produto. Tal como aliena de si a sua própria atividade, assim ele apropria ao estranho a atividade não própria deste.” (MARX, 1989a:160)
O desenvolvimento histórico da divisão social do trabalho, com a cisão da atividade humana em atividade produtiva material e atividade intelectual, estabeleceu não apenas a apropriação privada dos meios de produção material, mas também a apropriação dos meios de produção das idéias. Alienados dos meios de produção da vida material, os homens são alijados, também, dos meios de produção do próprio espírito. “As idéias dominantes são a expressão ideal das relações materiais de produção concebidas como idéias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as idéias de sua dominação”, na medida em que a “classe dominante”, além dos meios de produção material, exerce também o domínio sobre os meios de produção intelectual e espiritual.
“(…) a noção de classe, segundo Marx, não é redutível nem a um atributo de que seriam portadoras as unidades individuais que a compõem, nem a soma dessas unidades. Ela é algo diferente. Uma totalidade relacional e não uma simples soma… Sua abordagem recusa que se veja a classe como uma pessoa ou como um sujeito unificado e consciente, à imagem do sujeito unificado e consciente, à imagem do sujeito relacional da psicologia clássica. Não há classe senão na relação conflitual com outras classes… A realidade dinâmica das classes não cai nunca no domínio inerte da objetividade pura. Sua coesão é irredutível à unidade formal de uma simples coleção de indivíduos.”[7] (BENSAID apud LEITE, 1999:9)
Como se vê, a luta de classes, que para MARX e ENGELS é o elemento dinâmico da história, não é um simples reflexo de uma luta na esfera econômica. As contradições do capitalismo, conforme relata ENGELS numa carta que remeteu a Ernest BLOCH em 21 de setembro de 1890, tem uma dimensão mais ampla:
“(…) Segundo a concepção materialista da história, o fator que, em última instância, determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu afirmamos, uma vez se quer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica afirmando que o fator econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida a batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurídicas, e inclusive os reflexos de teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante.” (ENGELS, 1985b:284)
Com a cisão do trabalho em material e espiritual, o trabalho humano fica reduzido a um universo de especialização profissional. No momento em que a atividade humana se atomiza, a identificação que o homem tinha com seu gênero através do trabalho, passa a ser a identificação com o espaço que ocupa na esfera de produção. Deixa de ser homem para tornar-se médico, advogado, padre, operário, rei, etc.:
“A divisão social do trabalho torna autônomas as ocupações; cada um toma seu próprio ofício como verdadeiro. Sobre a relação entre seu ofício e a realidade, têm ilusões tão necessárias quanto isto é condicionado pela própria natureza do ofício. As relações, na jurisprudência, política, etc. – convertem-se em conceitos na nossa consciência; e por eles não se situarem acima dessas relações, os conceitos das mesmas, em suas cabeças, são conceitos fixos; o juiz, por exemplo, aplica o código, e por isso, para ele, a legislação é tida como verdadeiro motor ativo. Respeito pela sua mercadoria, pois sua ocupação tem a ver com o geral.”[8] (MARX; ENGELS, 1986:134 – grifos nossos)
É a sociedade burguesa capitalista que reduz as relações humanas ao universo meramente econômico. Todas os sentidos espirituais e físicos foram substituídos pela alienação simples de todos estes sentidos, reduzidos ao sentido do ter:
“A propriedade privada nos fez tão tolos e unilaterais que um objeto só é o nosso quando o temos, logo quando existe para nós como capital ou é por nós imediatamente possuído, comido, bebido, vestido por nosso corpo, habitado por nós, etc., em suma usado. Embora a propriedade privada mesma tome todas estas realizações efetivas imediatas da posse de novo só como meio //s// de vida, a vida à qual servem de meio sendo a vida da propriedade privada trabalho e capitalização.” (MARX, 1989a:173 – grifos nossos)
Logo, a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política, e a razão porque MARX escreve “O Capital”, além de tentar corrigir eventuais erros do passado teórico, é fornecer um instrumento, uma arma, para ajudar as lutas operárias contra a opressão do poder burguês.
O Capital, considerado por muitos como a obra prima de Karl MARX, teve uma divulgação cheia de dificuldades. Constituindo-se numa crítica sobre a economia política clássica, teve a primeira edição apenas do primeiro volume em 1867. Segundo o próprio MARX, “O Capital” é a continuação de um escrito seu anterior, “Para a Crítica da Economia Política”, que havia sido publicado em 1859, obra que custou a MARX um trabalho de 15 anos, período no qual ele estudou uma imensa quantidade de literatura sócio-econômica e elaborou as bases de sua própria teoria econômica a partir da imensa quantidade de material sobre o tema encontrado na biblioteca do Museu Britânico. O segundo volume de “O Capital” só foi publicado em 1885, tratando da circulação de capitais. O terceiro, cujo objeto é a discussão do processo capitalista em sua totalidade, somente dez anos depois. Estes últimos tiveram sua elaboração constituída por Friedrich ENGELS tomando por base os manuscritos deixados por MARX. Segundo José Arthur GIANOTTI,
“somente este último volume torna possível compreender a transformação do valor em preço, da mais-valia em lucro, juros e renda da terra, completando-se assim uma explicação, cuja verificabilidade não pode ser discutida nos termos de uma lógica indutiva ou dedutiva” (GIANOTTI, 1978:XXII)
Na sua obra, MARX adota a teoria do valor, desenvolvida pelos clássicos da Economia Política como Adham SMITH, David RICARDO, Willian PETTY, Benjamin FRANKLIN, dentre outros, com base na qual o valor da mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção.
Outra estratégia adota pelo mestre da filosofia da práxis, é a inversão da dialética hegeliana, que permite demonstrar a mercadoria como uma contradição que ao mesmo tempo se apresenta como um objeto útil, valor de uso, e como um objeto útil para outrem, um valor de troca. Segundo GIANOTTI, graças a esta contradição supra mencionada, pode-se explicar o dinheiro, ou melhor, a moeda, como mercadoria que passa a ocupar uma posição muito especial dentro do sistema de troca, fazendo com que o dinheiro sirva de referência para todas as mercadorias expressando o seu valor. Na realidade, muito mais do que uma simples mercadoria, o dinheiro é uma “relação social”.
“O trabalho social tem como finalidade a produção de bens: esses se caracterizam pelo fato de possuir valor de uso, que decorre de suas propriedade empíricas. A partir do momento em que, numa sociedade, realizam-se trocas de bens, aparece um termo abstrato – comum às duas realidades trocadas – em função do qual, a tal quantidade de tecido corresponde a tal quantidade de trigo: esse termo mede o valor de troca. A moeda, quando é introduzida nesse circuito, passa logo a ser o equivalente geral graças ao qual a troca entre mercadorias se generaliza. A civilização mercantil pode ser definida como a civilização na qual a moeda se torna o principal termo da troca: não mais o ciclo mercadoria-dinheiro-mercadoria, mas sim dinheiro-mercadoria-dinheiro, no qual a segunda quantidade é superior à primeira.” (CHATELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1990:134)
O valo de uso de um bem só se realiza com a sua utilização ou consumo. “Os valores de uso constituem o conteúdo social da riqueza, qualquer que seja a forma social dela”. Os valores de uso são ao mesmo tempo veículo materiais dos valores de troca. Já o valor de troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores de uso de espécies diferentes, na produção em que se trocam, relação que muda constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor de troca parece algo casual e puramente relativo, e portanto uma contradição em termos, um valor de troca inerente, imanente à mercadoria.
“Como valores de uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores de troca, só podem diferir na quantidade, não contendo portanto nenhum átomo de valor de uso” (MARX, 1975:43)
O valor de uma mercadoria é determinado pelo de trabalho socialmente gasto durante a sua produção. Mas como forma de evitar os limites impostos pela “qualidade” do trabalho humano, expresso nas diferentes técnicas e habilidades, o trabalho é simplificado e homogeneizado, ganha um caráter abstratamente necessário à produção da mercadoria, torna-se o tempo socialmente necessário para a produção de quaisquer valores de uso, nas condições de produção socialmente normais existentes, é com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho.
“O que determina a grandeza do valor, portanto, é a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso. Cada mercadoria individual é considerada aqui exemplar médio da sua espécie. Mercadorias que contêm iguais quantidades de trabalho, ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho, possuem, conseqüentemente, valor da mesma magnitude. O valor de uma mercadoria está para qualquer outra, assim como o tempo de trabalho necessário à produção de uma está para o tempo de trabalho necessário à produção de outra. ‘Como valores, as mercadorias são apenas dimensões definidas do tempo de trabalho que nelas se cristaliza’” (MARX, 1975:44)
O valor de uso de uma mercadoria assume expressão em seu conteúdo, é um valor absoluto e concreto. Já o valor de troca, assume expressão “fora” da mercadoria, em sua forma, é um valor relativo e abstrato. Outro ponto importante, é que o valor de troca de mercadoria consiste no tempo de trabalho socialmente necessário para a sua própria reprodução, na medida em que todo ato de produção, contraditoriamente também é um ato de reprodução das condições de existência.
A relação que se trava no universo capitalista possui um caráter fetichista. Não se trava uma relação entre produtores e usuários dos bens produzidos, mas sim uma relação entre mercadorias. Para o capitalista, o valor de uso de uma mercadoria só se efetiva em seu consumo na esfera de produção, onde seu valor de troca é agregado ao valor de troca da mercadoria produzida, o que demonstra o caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias.
“A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. A impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo ótico não se apresenta como sensação subjetiva desse nervo, mas como forma sensível de uma coisa existente fora do órgão da visão. Mas, aí, a luz se projeta realmente de uma coisa, o objeto externo, para outra, o olho. Há uma relação física entre coisas físicas. Mas, a forma mercadoria e a relação de valor entre produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres humanos. E o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.” (MARX, 1975:67)
No modo de produção capitalista o trabalho também é uma mercadoria. O trabalhador não ingressa no universo capitalista como um produtor dotado de necessidades de subsistência e de capacidade criativa, mas sim como mercador de uma mercadoria abstrata em sua forma, mas assim como as outras mercadorias dotado de existência material, a sua própria força de trabalho:
“Nossa análise partiu do pressuposto de ser a força de trabalho comprada e vendida por seu valor. O valor da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, se determina pelo tempo de trabalho necessário para produzi-la. Se a produção dos meios de subsistência do trabalhador, diários e médios, custa 6 horas, tem ele de trabalhar 6 horas diárias para produzir quotidianamente, sua força de trabalho ou reproduzir o valor recebido por sua venda. A parte necessária da sua jornada de trabalho será, assim, de 6 horas, sendo uma magnitude dada desde que não se alterem as demais circunstâncias. Mas com isso não se determina a magnitude da própria jornada de trabalho.” (MARX, 1989b:260)
A jornada de trabalho não é uma grandeza constante, mas variável. É subdividida em duas partes, sendo a primeira parte o tempo de trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho do próprio trabalhador. Mas sua magnitude total, não se resume a isto, varia conforme com a duração do trabalho excedente. Segundo MARX, a jornada de trabalho é determinável, mas considerada em si mesma é indeterminável. O limite mínimo do trabalho excedente é igual a zero horas. Mas seu limite máximo corresponde a 24 horas. Numa economia capitalista, o limite mínimo não tem sentido. No mundo humano, o limite máximo é impossível. A qualidade e a destreza da força de trabalho exigem um tempo mínimo para que o trabalhador possa dormir, se alimentar, enfim, reproduzir a sua própria força de trabalho. Mesmo com a regulação da jornada de trabalho, o capitalista sempre procura aumentar a período variável da jornada de trabalho. Ora, como o consumo da mercadoria força de trabalho não pertence ao trabalhador vendedor, mas ao comprador, quanto maior o tempo da jornada de trabalho, maior o número de vezes que a força de trabalho reproduz o seu valor durante a jornada:
“Mas o que é um dia de trabalho? Será menor do que um dia natural de vida. Menor de Quanto? O capitalista tem o seu próprio ponto de vista sobre essa extrema, a fronteira necessária da jornada de trabalho. Como capitalista apenas personifica o capital. Sua alma é alma do capital. Mas o capital tem seu próprio impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais valia, de absorver com sua parte constante, com os meios de produção, a maior quantidade possível de trabalho, excedente. O capital é trabalho morto que como um vampiro se reanima sugando o trabalho vivo e quanto mais suga mais se torna. O tempo em que o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome em seu proveito o tempo disponível, furta o capitalista. O capitalista apoia-se na lei de troca de mercadorias. Como qualquer outro comprador procura extrair o maior proveito possível de valor-de-uso de sua mercadoria.” (MARX, 1989b:263)
O capitalista busca de forma desmesurada explorar o trabalhador como forma de aumentar a sua riqueza, reivindicando o seu “direito” de comprador, o seu direito de “proprietário” da força de trabalho “vendida” pelo trabalhador “livremente” no mercado capitalista:
“O capitalista afirma seu direito, como comprador, quando procura prolongar o mais possível a jornada de trabalho e transformar, sempre que possível, um dia de trabalho em dois. Por outro lado, a natureza específica da mercadoria vendida impõe um limite ao consumo pelo comprador, e o trabalhador afirma seu direito, como vendedor, quando quer limitar a jornada de trabalho a determinada magnitude normal. Ocorre assim uma antinomia, direito contra direito, ambos baseados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais e opostos decide a força. Assim, a regulação da jornada de trabalho se apresenta, na história da produção capitalista, como luta pela limitação da jornada de trabalho, um embate que se trava entre a classe capitalista e a classe trabalhadora.” (MARX, 1989b:265)
A mágica que, portanto, determina o enriquecimento cada vez maior do capitalista, consiste no fato de que ao vender a sua força de trabalho, o trabalhador a vende pelo seu valor de troca, o tempo necessário para a sua própria produção (reprodução) enquanto força de trabalho. Já o capitalista, ao comprar a força de trabalho, a compra pelo seu valor de uso. A diferença entre o valor de troca da força de trabalho, e o excedente obtido pelo capitalista na utilização da força de trabalho, cria aquilo que MARX chama de mais-valia. Mais-valia, portanto, é produto excedente obtido através do consumo da força de trabalho, que pelas leis da propriedade privada e do capitalismo, pertence ao capitalista comprador.
Qualquer avanço tecnológico, que reduza o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção da mercadoria, repercute em favor do capitalista, com o aumento da mais valia e a redução relativa do valor da força de trabalho, na medida em que o tempo necessário para a reprodução da força de trabalho e a jornada de trabalho se mantém constantes, ou seja, embora seja reduzido o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias para o qual o trabalhador foi contratado, o valor de troca da força de trabalho se mantém constante, mas o produto materialmente obtido através do uso da força de trabalho aumenta, desde que mantida a jornada de trabalho.
“Os meios de produção, o capital constante, só existem, do ponto de vista da criação da mais valia, para absorver trabalho e com cada gota de trabalho uma porção proporcional de trabalho excedente. Se não realizam isto, sua mera existência constitui pura perda para o capitalista, pois durante o tempo em que estão parados representam adiantamento inútil de capital. Essa perda se traduz também em despesas quando, em virtude dessa parada, se tornam necessários gastos adicionais para a retomada da atividade. O prolongamento do trabalho além dos limites diurnos naturais, pela noite adentro, serve apenas de paliativo para apaziguar a sede vampiresca do capital de apropriar-se do trabalho durante 24 horas do dia. Sendo fisicamente impossível, entretanto, explorar dia e noite sem parar, a mesma força de trabalho, é necessário, para superar esse obstáculo físico, revezar as forças de trabalho a serem empregadas nos períodos diurnos e noturno.” (MARX, 1989:291)
O impulso cego da burguesia pelo lucro, impõe à classe trabalhadora o pior tipo de disciplina social, como forma de aumentar a extração de mais-valia. Ao prolongar o dia de trabalho, o trabalhador tem atrofiadas as suas condições de vida, tanto física, moral e o seu próprio desenvolvimento. O trabalho excessivo ocasiona o esgotamento prematuro e morte da própria força de trabalho. Ao mesmo tempo que o trabalhador aumenta a sua produção, encurta a duração da sua vida.
3. ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E IDEOLOGIA
Na tradição do pensamento liberal “naturalista”, onde se destacam John LOCKE e Jean Jacques ROSSEAU, a sociedade civil é o reino da ordem sobre um estado de natureza. A presença do Estado é aceita apenas para proteger a liberdade. Para HEGEL, ao contrário, a sociedade civil é o reino da “dissipação”, da miséria e da corrupção física e ética, deve ter seu comportamento controlado pela capacidade “intelectual” superior do Estado, forma mais elevada da moral da ética humana.
“Instituindo o Estado-funcionário como instância suprema da decisão e como razão em ato; compreendendo a sociedade civil como domínio da luta pelo lucro e apresentando a propriedade e o trabalho como dados inelutáveis do processo histórico; prometendo para o futuro a satisfação universal como resultado da “mundialização” do Estado assim concebido, Hegel não fez mais do que hipostaziar uma situação de fato: a situação de sociedades onde a minoria da população, a burguesia industrial e mercantil e os proprietários fundiários, assenhorou-se do poder do Estado para manter sua exploração econômica e sua dominação política. Ele “esqueceu-se” do fato de que as camadas politicamente dirigentes, tanto na Prússia como na França e no Reino Unido, longe de estarem separadas da sociedade civil, ocupam nela um lugar preponderante; e de que as decisões de tais camadas, pretensamente tomadas em função do interesse geral, servem para o fortalecimento do poder delas. Hegel não viu que, em conseqüência disso, a dinâmica da sociedade civil, tal como ele a concebe, condena industriais e proprietários fundiários a buscarem o lucro máximo e exercerem uma violência incessantemente crescente sobre trabalhadores das cidades e dos campos.” (CHATELET; DUHAMEL; PISIER-KOUCHNER, 1990:125-6)
O princípio hegeliano, de que o Estado moderno encarna os ideais da Moral mais objetivos e manifesta a Razão no domínio da vida social, era tomado como apoio direto pelo Estado prussiano de Frederico Guilherme IV que, ao contrário da pregação ideológica liberal, mantinha um governo fortemente centralizado. Quando FEUERBACH, BAUER e MARX utilizaram-se da filosofia hegeliana para exercer uma crítica radical contra o Estado prussiano, o velho filósofo lhos denunciou como sonhadores e aliou-se ao governo prussiano, abençoando-o como a mais recente expressão do Absoluto, e passou a ser chamado por seus críticos de “filósofo oficial”. “Ele começou a considerar o sistema hegeliano uma parte das leis naturais do mundo; esqueceu-se de que a sua própria dialética condenava o seu pensamento à impermanência e à decadência” (DURANT, 2000:283).
Segundo MARX,
“(….) a mistificação por que passa a dialética nas mãos de Hegel não impediu de ser o primeiro a apresentar suas formas gerais do movimento, de maneira ampla e consciente. Em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância dentro do invólucro místico.” (MARX, 1980:17)
No prefácio que escreveu à sua obra “Para a Crítica da Economia Política”, MARX escreveu que as relações jurídicas, tais como as formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, como pregavam os positivistas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, como defendia a Escola Histórica, mas, pelo contrário, “elas se enraízam nas relações materiais de vida, cujo a totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’ (bürgerliche Gesellschaft), seguindo os ingleses e franceses do século XVIII”. A “sociedade civil”, portanto, é o espaço onde ocorre o intercâmbio material dos indivíduos:
“A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção existentes em todas as fases históricas anteriores e que, por sua vez, as condiciona, é a sociedade civil; esta última, como se depreende do anteriormente exposto, tem como pressuposto e fundamento a família simples e a família composta, o que se costuma chamar de tribo, cujas determinações mais precisas foram dadas anteriormente. Vê-se, já aqui, que esta sociedade é verdadeiramente fonte, o verdadeiro cenário de toda a história, e quão absurda é a concepção histórica anterior que, negligenciando as relações reais, limitava-se às ações altissonantes dos príncipes e dos Estados. A sociedade civil abrange todo intercâmbio material dos indivíduos, no interior de uma fase determinada de desenvolvimento das forças produtivas. Abrange toda a vida comercial e industrial de uma dada fase e, neste sentido, ultrapassa o Estado e a nação, se bem que, por outro lado, deve se fazer valer frente ao exterior como nacionalidade e organizar-se no interior como Estado. A ‘sociedade civil’ aparece no século XVIII, quando as relações de propriedade já se tinham desprendido da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil, como tal, desenvolve-se apenas com a burguesia; entretanto, a organização social que se desenvolve imediatamente a partir da produção e do intercâmbio e que forma em todas as épocas a base do Estado e do resto da superestrutura idealista, foi sempre designada, invariavelmente como o mesmo nome”. (MARX; ENGELS, 1986:52-3 – grifos nossos)
Como se vê, a sociedade civil é um produto da divisão social do trabalho, ela regula as relações de trocas materialmente estabelecidas pelos indivíduos. Ao mesmo tempo em que é a infra-estrutura da sociedade, é também a super estrutura. Ao mesmo tempo que é condicionada por todas as formas de produção existentes nas fases históricas anteriores, também as condiciona. Ao mesmo tempo que ultrapassa o Estado e as nacionalidades, deve fazer-se valer frente ao exterior como nação, deve-se organizar no interior como Estado. O Estado, portanto, é uma coletividade que no universo de trocas é incluído pela sociedade civil, ao mesmo tempo em que na organização externa a sociedade civil é incluída por ele:
“desde que os homens se encontram numa sociedade natural e também desde que há cisão entre o interesse particular e o interesse comum, desde que, por conseguinte, a atividade está dividida não voluntariamente, mas de modo natural, a própria ação converte-se num poder estranho a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado. Com efeito, desde o instante em que o trabalho começa a ser distribuído, cada um dispõe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual não pode sair, o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico [alusão à Bruno BAUER], e aí deve permanecer se não quiser perder seus meios de vida – ao passo que na sociedade comunista, onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, dando-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico. Esta fixação da atividade social – esta consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo superior a nós, que escapa ao nosso controle, que contraria nossas expetativas e reduz a nada nossos cálculos – é um dos momentos capitais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos. É justamente desta contradição entre o interesse particular e o interesse coletivo que o interesse coletivo toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na qualidade de uma coletividade ilusória, mas sempre sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado familiar e tribal – tais como, laços de sangue, linguagem, divisão do trabalho em maior escala e outros interesses – e sobretudo, como desenvolveremos mais adiante, baseada nas classes, já condicionados pela divisão do trabalho, que se isolam em cada um destes conglomerados humanos e entre as quais há uma que domina todas as outras. Segue-se que todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc., são apenas as formas ilusórias nas quais se desenrolam as lutas reais entre as diferentes classes. (…)” (MARX; ENGELS, 1986:47-8 – grifos nossos)
Mas com o advento da propriedade privada moderna, a existência particular, autônoma, do Estado, se submete à disciplina econômica:
“A esta propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, o qual, é comprado paulatinamente pelos proprietários privados através dos impostos, cai completamente sob o controle destes pelo sistema da dívida pública, e cuja existência, como é revelado pela alta e baixa de valores do Estado na bolsa, tornou-se completamente dependente do crédito comercial concedido pelos proprietários privados, os burgueses.” (MARX; ENGELS, 1986: 97 – grifos nossos)
O Estado transforma-se no comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia.
“Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si na comuna; aqui, cidade-república independente, ali, terceiro estado, tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluto, pedra angular das grandes monarquias; a burguesia, a partir do estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.” (MARX; ENGELS, 1988:78)
Logo, o Estado como uma forma independente e separada dos reais interesses particulares e gerais, constitui-se numa coletividade ilusória, portanto o Estado é “ideologia”. O Estado também submete-se ao universo de produção material, sua representação não é apenas ideal, ou seja, simples expressão dos acontecimentos no mundo social, ele também tem existência material além de estar inserido na lógica do capital, portanto, o Estado também é “produção”. Mas existe uma terceira dimensão do Estado, onde ele legitima e preserva as relações sociais dominantes (direito), assumindo uma forma exterior e acima da sociedade civil, onde se encontra toda a engenhosa e multifacetada maquinaria burocrática e militar repressiva, que assume uma forma extremada nos períodos de crise e instabilidade do capital, corretamente destacado em “A origem da Família, da Propriedade e do Estado” de ENGELS, e nos escritos de MARX sobre o período revolucionário na França, “A Guerra Civil na França” e “O Dezoito Brumário”, ou seja, o Estado também é “força”, dominação exercida através da “coação”[9].
Esta última característica do Estado capitalista, o papel opressor e ditatorial, vai ser super valorizado por LENIN em seu “O Estado e a Revolução”. Partindo principalmente nas obras de ENGELS sobre o tema, o grande revolucionário russo afirma que no capitalismo, o Estado está alienado da sociedade. O seu papel é atuar, é tentar conciliar o inconciliável, as contradições de classe:
“(…). A essência da doutrina de Marx acerca do Estado só foi assimilada pelos que compreenderam que a ditadura de uma só classe é necessária não só para qualquer sociedade de classes em geral, não só para proletariado que derrubou a burguesia, mas também para a totalidade do período histórico que separa o capitalismo da “sociedade sem classes”, do comunismo. As formas de Estados burgueses são extraordinariamente variadas, mas a sua essência é apenas uma: em última análise, todos estes Estados são, de uma maneira ou de outra, mas necessariamente, uma ditadura da burguesia. A transição do capitalismo para o comunismo não pode naturalmente deixar de dar uma enorme abundância e variedade de formas políticas, mas a sua essência será necessariamente uma só: a ditadura do proletariado.” (LENIN, 1980:245 – grifos nossos)
A derrota dos partidos da classe trabalhadora na Europa para o fascismo fomentou em GRAMSCI a iniciativa de trazer para debate o papel ideológico exercido, também, pela sociedade civil, principalmente nas sociedades industriais do continente europeu:
“(…) No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primordial e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação e em qualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento do caráter nacional.” (GRAMSCI, 1991:75)
Esta análise de GRAMSCI, vinha no sentido de corrigir tanto os erros da Terceira Internacional, que desprezava o papel político e ideológico exercido pela sociedade civil, quanto os da Segunda Internacional que, inspirados nos escritos de KAUSTSCH e BERNSTEIN, bem como numa interpretação de um trecho final da obra “A Origem da Família, da Propriedade e do Estado” de ENGELS, onde este atribuía ao sufrágio universal a prerrogativa de medir a “maturidade do proletariado”[10], previa a possibilidade do proletariado, da maioria da sociedade, reformar por dentro o capitalismo através da vitória eleitoral. GRAMSCI insere neste debate, precisamente na órbita da “sociedade civil”[11], um conceito anteriormente utilizado por MARX quando este se referiu no “Dezoito Brumário” na luta entre os partidos pelo “espólio” do Estado: a “hegemonia”.
“Podemos, para o momento, fixar dois grandes “níveis” superestruturais: o primeiro pode ser chamado de “sociedade civil”, isto é, o conjunto dos organismos vulgarmente denominados “privados”, e o segundo, de “sociedade política” ou de “Estado”. Esses dois níveis correspondem, de um lado, à função de “hegemonia”, que o grupo dominante exerce em toda sociedade; e, de outro lado, a “dominação direta” ou comando, que é exercido através do Estado e do governo jurídico” (GRAMSCI apud CARNOY, 1994:93)
Embora a hegemonia seja “ético-política”, ela também é “econômica”, deve ser essencialmente baseada na função decisiva da atividade econômica. GRAMSCI declara expressamente uma idéia apenas intuída em “A Ideologia Alemã”, a de que o conceito de Estado inclui a sociedade civil:
“Permanecemos sempre no terreno da identificação de Estado e de governo, identificação que não passa de uma representação da forma corporativa-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil (neste sentido, poder-se-ia dizer que Estado = sociedade política + sociedade política, isto é, hegemonia revestida de coerção). Numa doutrina que conceba o Estado como tendencialmente passível de extinção e de dissolução na sociedade regulada, o argumento é fundamental. O elemento Estado-coerção pode ser imaginado em processo de desaparecimento à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado ético ou sociedade civil).” (GRAMSCI, 1991:149)
Se o marxismo clássico, de MARX e ENGELS foi construído numa sociedade em que nem todos os direitos primários da cidadania liberal como o sufrágio universal, haviam sido conquistados pela luta organizada do proletariado, GRAMSCI teve a vantagem de desenvolver a sua teoria após o fracasso político dos partidos de massa do operariado europeu. Mesmo que mais otimista dos reformistas não acreditasse numa vitória política imediata dos partidos operários, embora acreditassem que está era uma conseqüência inevitável dos avanços da história, jamais poderiam crer que o próprio operariado fabril conduzisse a mais atroz representação do capitalismo ao poder, o “fascismo”. Nem a teoria do desenvolvimento econômico desigual, apontada por LENIN evitou a dogmatização da Terceira Internacional. No relato sobre a luta de classes na França, país que em virtude das diversas vagas revolucionárias conviveu muito mais cedo com o sufrágio universal do que a Inglaterra e a Alemanha, demonstrou que a luta pela hegemonia política eleitoral não iria solucionar os problemas da classe operária: o Estado continuava sendo o Estado burguês; o exército continuava sendo o exército burguês. Se MARX via, em uma carta que mandou a seu amigo Kulgeman a necessidade de destruir o aparelho[12] militar, GRAMSCI demonstrou que era necessário estabelecer a luta para conquistar a hegemonia na própria sociedade civil:
“(…) Um grupo social é dominante sobre os grupos inimigos, a que tende a liquidar ou submeter, mediante a força armada, é dirigente (hegemônico) com relação aos grupos afins ou aliados. Um grupo social pode, e de fato deve, ser dirigente antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das principais etapas para conquista do poder mesmo); depois, quando exerce o poder e o mantém firmemente em seu punho, se converte em dominante, porém segue sendo dirigente.[13]” (GRAMSCI apud MARQUES, 1991:33)
Antônio GRAMSCI estabelece duas estratégias táticas para a conquista do poder pelo proletariado revolucionário: a “guerra de movimento”, para as condições estabelecidas na sociedade do tipo da sociedade do “oriente” (Rússia), e a “guerra de posição”, um avanço progressivo sobre a enorme quantidade de trincheiras e casamatas que compõem a sociedade civil das sociedades do “ocidente” (Europa), antes de chegar ao Estado.
Para o Louis ALTHUSSER, numa construção teórica desenvolvida a partir do trabalho de GRAMSCI, a hegemonia é garantida através da ação de uma série de aparelhos cujo a função é reproduzir a ideologia dominante: os aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Segundo o mestre do “estruturalismo” francês, o Estado cumpre duas funções primordiais, uma repressiva, e outra de natureza ideológica, e eu acrescento também a econômica.
ALTHUSSER divide a estrutura estatal entre os aparelhos ideológicos e aparelhos repressivos. Os primeiros teriam por “função” primordial a reprodução da ideologia, e os segundos atuariam no momento em que a coesão ideológica falhasse, através da repressão. É importante destacar que as críticas que apontam o pensamento de ALTHUSSER como funcionalista estabelecem um reducionismo sobre o papel que é desempenhado pelas estruturas sociais no processo de reprodução do modo de produção dominante. Por outro lado, é inegável que ALTHUSSER prega uma interpretação mecanicista da relação entre estrutura e infra-estrutura. Para ele a ação da superestrutura não é determinada em “última instância” pela base econômica, mas sim pela eficácia da base. Partindo desta lógica, a relação dialética entre infra-estrutura e super-estrutura, tão bem demonstrada pelo trabalho dos “mestres do materialismo histórico” fica limitado à uma ação mecânica. A própria idéia de “determinação em última instância” fica reduzido a um “determinismo economicista”, e não como resultado da alienação e divisão social do trabalho, do aprisionamento do trabalho humano pela propriedade privada dos meios de produção e reprodução da vida real.
O ponto da abordagem de ALTHUSSER mais interessante encontra-se no campo de análise da ideologia, onde é inegável a sua originalidade. Para o professor francês, a ideologia não se forma a partir das relações que os indivíduos travam com as suas condições reais de existência, não é uma representação das relações reais de produção, e sim as representações que os indivíduos fazem a partir das relações que travam com as relações de produção. Portanto, a ideologia tem uma existência material, enquanto na outra forma de interpretação a ideologia teria existência meramente ideal. ALTHUSSER retira um extrato de a “A Ideologia Alemã” onde MARX e ENGELS afirmam que a ideologia não tem história. Segundo ALTHUSSER, esta assertiva deve ser interpretada não como se a ideologia não tivesse história por ser uma simples representação das relações travadas na reprodução que os homens fazem historicamente da vida real, portanto, carecendo de uma história própria. Para o mestre estruturalista, a ideologia não tem história por que ela existe materialmente enquanto ideologia independentemente da história real dos indivíduos. Para concluir, como exemplo, ele afirma que a ideologia cria os sujeito, e os sujeitos existem antes dos indivíduos. É somente através da ideologia, que sujeitos interpelam os indivíduos e os indivíduos se transformam sujeitos, assim, exemplificando, como o direito (um exemplo de materialização da ideologia) prevê a existência do nascituro antes mesmo dele existir como indivíduo, ou seja, o nascituro é sujeito antes mesmo de ser indivíduo real.
Se por um lado é inegável a originalidade da interpretação de ALTHUSSER, por outro ele demonstra realmente desconhecer a importância que a alienação do trabalho têm no processo de formação da ideologia como falsa consciência. Com a divisão social do trabalho, como já foi dito diversas vezes aqui, temos a separação entre o trabalho intelectual e o trabalho material. Logo, como a classe dominante domina não só os meios de produção materiais, mas também intelectual e espiritual, as idéias dominantes nada mais são dos que a expressão das relações sociais materialmente dominantes, são as idéias da classe dominante, que detém o monopólio dos meios de produção enquanto classe. Sendo assim, quando o trabalhador pensa estar livremente vendendo a sua força de trabalho para o capitalista, ele está iludido em relação à sua liberdade. Ele vende a sua força de trabalho por imposição das relações de produção materialmente dominantes, ação que não realizando pode significar a não subsistência do próprio trabalhador, assim como da sua família. Quando o trabalhador furta 1 metro de tecido da fábrica em que trabalha, produzido por ele mesmo, ele só pode ser considerado ladrão porque o direito burguês dominante considera o produto de seu trabalho, e a sua própria força de trabalho, como pertencentes ao industrial, e não o verdadeiro roubo denunciado por Proudhon, o direito de propriedade.
Todavia, ALTHUSSER não deixa de ter razão quando afirma que a ideologia tem uma existência material, muito embora a existência material da ideologia não seja a existência da ideologia enquanto materialidade metafísica, mas sim como uma estrutura social realmente existente, os próprios aparelhos ideológicos e repressivos de ALTHUSSER.
O direito não existe nos livros, nos papéis e códigos jurídicos, estes são apenas fontes para a constatação do direito. Não existe como um “dever ser” abstrato contido numa norma igualmente abstrata como pregam os teóricos do formalismo, mas sim no mundo do ser, como uma estrutura social que somente tem razão de existir no mundo real, como uma estrutura material inter-relacionada com o Estado e suas estruturas repressivas, mas, diferentemente do que pregava LASSALE, não se resume a eles. A escola não é o prédio, livros, cadeiras e mesas, mas sim uma estrutura materialmente constituída que incluí suas regras, suas instalações, professores, alunos, e os próprios rituais de professores e alunos. Assim como GRAMSCI afirma que o proletariado alemão é o herdeiro da filosofia clássica alemã, e que as realizações de hegemonia de LENIN são um grande acontecimento metafísico, a escola, o direito, o Estado, a sociedade civil, ao mesmo tempo em que são expressões ideológicas, são estruturas sociais realmente existentes.
Todavia, este mundo objetivo não é estático, ele se inter-relaciona com a subjetividade humana, que por sua vez não se resume ao universo individual, é também coletiva. É somente por causa destas trocas, entre objetividade e subjetividade, que o devir histórico é real e dinâmico.
O inter-relacionamento entre o pensamento coletivo e individual promove as alterações na concepção de mundo dominante. Nos escritos de GRAMSCI no período em que esteve preso no cárcere de Mussolini, o marxista italiano cita o exemplo da escola onde o professor e o aluno estabelecem relações recíprocas e não meramente “escolásticas” de simples transferência de conhecimentos, de experiências de gerações passadas, como forma de amadurecimento das gerações mais jovens.
“Este problema pode e deve ser relacionado com a colocação moderna da doutrina e da prática pedagógicas, segundo as quais a relações entre professor e aluno é uma relação ativa, de vinculações recíprocas, e que, portanto, todo professor é sempre aluno e todo aluno professor. Mas a relação pedagógica não pode ser limitada às relações especificamente “escolásticas”, através das quais as novas gerações entram em contato com as antigas e absorvem as suas experiências e os seus valores historicamente necessários, “amadurecendo” e desenvolvendo uma personalidade própria, histórica e culturalmente superior. Esta relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército. Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais.” (GRAMSCI, 1995:37)
Cada Estado, assim como todas as instituições da sociedade civil, possui uma função educativa e formativa, ou seja, de adequar as massas populares aos conceitos de civilização necessários ao desenvolvimento continuado do aparelho econômico, social e político, nas palavras de GRAMSCI, de “elaborar também fisicamente novos tipos de humanidade”.
4. OS INTELECTUAIS E A PROLETARIZAÇÃO
O filósofo holandês Baruch SPINOZA, em meados do século XVII, afirmou que “só o conhecimento é liberdade” e que “a única felicidade permanente é a busca do conhecimento e a alegria da compreensão”. Para ele “embora os homens se achem livres porque têm volições e desejos”, “ignoram as causas pelas quais são levados a desejar e querer”. A resposta para esta dúvida, tomando como ponto de partida o trabalho de MARX e ENGELS, só pode encontrar explicação na “alienação” e na “ideologia”.
Com a divisão social do trabalho, o trabalho intelectual e trabalho manual foram separados. Para a burguesia, são trabalhos totalmente distintos quanto à técnica e à substância, a ponto de Taylor classificar o trabalhador manual como “gorila amestrado”.
A divisão social do trabalho, conforme destacam MARX e ENGELS, entre trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais, atingem a própria classe dominante, no caso do capitalismo a burguesia. Segundo estes autores, aparecem nesta classe os seus pensadores (ideólogos ativos, conceptivos, que fazem da formação de ilusões desta classe a respeito de si mesma seu modo de subsistência enquanto classe dominante), e outros que se relacionam de maneira passiva e receptiva com as idéias criadas pelos primeiros, os quais na realidade são os membros ativos desta classe e têm pouco tempo para produzir idéias e ilusões acerca de si próprios:
“(…) No interior desta classe, essa cisão pode mesmo conduzir até a uma certa oposição e hostilidade entre ambas as partes, mas esta hostilidade, entretanto, desaparece por si mesma logo que surge qualquer colisão prática capaz de colocar em perigo a própria classe, ocasião em que desaparece também a aparência de que as idéias da classe dominante não são idéias da classe dominante e têm um poder diferente do poder desta classe. (…)” (MARX; ENGELS, 1986:73)
Ao desenvolver a sua sociologia do conhecimento, o húngaro Karl MANNHEIM afirma que, não obstante ser verdade que só o indivíduo é capaz de pensar, “seria falso daí deduzir que todas as idéias e sentimentos que motivam o indivíduo tenham origem apenas nele, e que possam ser adequadamente explicados tomando-se unicamente por base sua experiência de vida”.
“(…), é incorreto dizer-lhe que um indivíduo isolado pensa. Antes, é incorreto insistir em que ele participa no pensar acrescentando-se ao que outros homens pensaram antes dele. O indivíduo se encontra em uma situação herdada, com padrões de pensamento a ela apropriados, tentando reelaborar os modos de reação herdados, ou substituindo-os por outros, a fim de lidar mais adequadamente com os novos desafios surgidos das variações e mudanças em sua situação. (…)” (MANNHEIM, 1986:31)
Para MANNHEIM, com a derrocada da organização medieval, os intelectuais que outrora estavam compelidos a pensar conforme a rigorosa organização da igreja, foram libertados e tiveram reconhecidas, cada vez mais, outras formas de interpretar o mundo.
“A emergência do problema da multiplicidade de estilos de pensamento surgida no decorrer do desenvolvimento científico e a percetibilidade de motivações do inconsciente coletivo, anteriormente veladas, é apenas um dos aspectos da preponderância da inquietação intelectual que caracteriza nossa época. Apesar da difusão democrática do conhecimento, os problemas filosóficos, psicológicos e sociológicos por nós apresentados têm sido confinados a uma minoria intelectual relativamente pequena. Esta inquietação intelectual veio gradativamente sendo encarada, por tal minoria, como um seu privilégio profissional, e seria considerada como preocupação privada destes grupos se todos os estratos não tivessem, com o crescimento da democracia, sido atraídos à discussão política e filosófica.” (MANNHEIM, 1986:60)
Segundo Karl MANNHEIM, num momento social e político como o contemporâneo, onde cada vez mais as pessoas tendem a tomar consciência de sua situação de classe, os intelectuais assumem uma posição especial. Não que se possa considerar os intelectuais politicamente em termos independentes, mas sim pela possibilidade da descoberta de uma perspectiva total de interpretação da sociedade:
“O ponto de vista político de um grupo, cuja posição de classe esteja mais ou menos definitivamente fixada, já se encontra por tal posição definido. Quando isso não sucede, como no caso dos intelectuais, existe uma área mais ampla de escolha e uma correspondente necessidade de orientação total e de síntese. Esta última tendência, oriunda da posição dos intelectuais, existe, ainda que a relação entre os vários grupos não conduza à formação de um partido integrado. Analogamente, os intelectuais permanecem capazes de chegar a uma orientação total mesmo depois de ingressarem em um partido. A capacidade de adquirir um ponto de vista mais amplo deveria ser considerada meramente um ônus? Não se trataria, pelo contrário, de uma missão? Só aquele que realmente pode escolher é que tem interesse em perceber o conjunto da estrutura social e política. Somente no período de tempo e no estágio de investigação que é dedicado a deliberação é que se poderá encontrar a localização sociológica e lógica do desenvolvimento de uma perspectiva sintética. A elaboração de uma decisão só é verdadeiramente possível sob condições de liberdade baseadas numa possibilidade de escolha que continue a existir, mesmo depois de tomada a decisão. Devemos a possibilidade de interpenetração mútua e compreensão das correntes de pensamento existentes à presença deste extrato médio relativamente desvinculado das mais diversas classes e grupos sociais, com todos os pontos de vista possíveis. Só nessas condições pode surgir a síntese incessantemente nova e ampla a que nos referimos.” (MANNHEIM, 1986:186)
O marxista italiano Antônio GRAMSCI, em seus manuscritos escritos no cárcere, estabelece uma distinção entre dois tipos de intelectuais: os intelectuais orgânicos, vinculados às classes sociais e que lhes dão homogeneidade e consciência de sua função na sociedade[14]; e os intelectuais tradicionais herdados dos períodos históricos anteriores[15]. A trajetória histórica, a “qualificação” técnica, cria uma espécie de “espírito de grupo” entre estes intelectuais e a aparência de que são independentes e autônomos do grupo social dominante. GRAMSCI alerta que há um erro metodológico constantemente difundido que busca encontrar um critério de distinção intrínseco às atividades intelectuais, ao invés de buscá-los no conjunto do sistema de relações no qual estas atividades se encontram inseridas, ou seja, “das relações sociais”.
Antônio GRAMSCI recupera a idéia de que todos os homens são intelectuais, mas com a divisão social do trabalho e a especialização técnica, nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais.
“Quando se distingue entre intelectuais e não-intelectuais, faz-se referência, na realidade, tão-somente à imediata função social da categoria profissional dos intelectuais, isto é, leva-se em conta a direção sobre a qual incide o peso maior da atividade profissional específica, se na elaboração intelectual ou se no esforço muscular nervoso.(…)” (GRAMSCI, 1979:7 – grifos nossos)
Segundo o marxista italiano, as mais marcantes características de todo o grupo social que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista ideológica dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborara simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos. Toda classe que pretende ser hegemônica (ou dominante), necessita criar seus próprios intelectuais orgânicos, tarefa na qual os partidos ocupam um papel fundamental:
“Que todos os membros de um partido devam ser considerados como intelectuais, eis uma afirmação que se pode prestar à ironia e à caricatura; contudo, se pensarmos bem, veremos que nada é mais exato. Dever-se-á fazer distinção de graus; um partido poderá ter uma maior ou menor composição do grau mais alto ou mais baixo, mas não é isto que importa: importa, sim, a função, que é diretiva e organizativa, isto é, educativa, intelectual. (…)” (GRAMSCI, 1979:15).
GRAMSCI destaca que o enorme desenvolvimento alcançado pela atividade educacional nas sociedades que surgiram do mundo medieval indica a importância assumida no mundo moderno pelas categorias e funções intelectuais. Buscou-se aprofundar e ampliar a intelectualidade de cada indivíduo, aperfeiçoá-la e especializá-la. Numa sociedade vertical e hierarquizada como a medieval e a burguesa, a escola acaba sendo o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis, formando a dicotomia entre a chamada “alta cultura” e a “baixa cultura”, em todos os campos da técnica e da ciência.
“A mais refinada especialização técnico-cultural, não pode deixar de corresponder a maior ampliação possível da difusão da instrução primária e a maior solicitude no favorecimento dos graus intermediários ao maior número. Naturalmente, esta necessidade de criar a mais ampla base possível para a seleção e elaboração das mais altas qualificações intelectuais – ou seja, de dar à alta cultura e à técnica superior uma estrutura democrática – não deixa de ter inconvenientes: cria-se, deste modo, a possibilidade de vastas crises de desemprego nas camadas médias intelectuais, tal como realmente ocorre em todas as sociedades modernas.” (GRAMSCI, 1979:9-10)
Numa busca mais aprofundada no trabalho de Karl MARX, podemos encontrar mais um elemento que amplia a assertiva de GRAMSCI. Os modernos profissionais, intelectuais e artistas, também ocupam espaço no universo do proletariado, na medida em que também estão subordinados à alienação do trabalho e ao modo de produção capitalista. Os intelectuais sobrevivem somente enquanto trabalham, e só encontram trabalho enquanto este colabora para a incrementação do capital. O seu trabalho possui valor de troca e valor de uso, mas diferentememte da maioria dos trabalhadores, como destaca MARX, os intelectuais se envolvem pessoalmente com o seu trabalho. Tais trabalhadores, que precisam vender-se peça por peça, constituem uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio e estão, conseqüentemente, sujeitos a todas as vicissitudes da competição e a todas as flutuações do mercado:
“Por que Marx se refere, em primeiro lugar, ao halo que circunda as cabeças dos modernos profissionais e intelectuais? Para trazer à luz um dos paradoxos de seu papel histórico: não obstante se orgulhem da natureza emancipada de seus espíritos, através dos séculos, eles vêm a ser os únicos modernos a de fato acreditar que atendem ao chamado de suas vocações e que seu trabalho é sagrado. É óbvio para qualquer leitor de Marx que ele partilha essa mesma fé, em seu compromisso com o trabalho intelectual. No entanto, ele sugere aí que, de algum modo, trata-se de uma fé negativa, uma auto-ilusão. Essa passagem é especialmente interessante porque à medida que vemos Marx se identificando com a força e o discernimento crítico da burguesia, tentando despir os halos das cabeças dos modernos intelectuais, percebemos que, de um modo ou de outro, é a sua própria cabeça que ele pretende ver despida.
O fato básico da vida para esses intelectuais, como Marx os vê, é que eles são “trabalhadores assalariados” da burguesia, membros da “moderna classe trabalhadora, o proletariado”. Eles talvez neguem essa identidade – afinal, quem deseja pertencer ao proletariado? –, mas são lançados à classe trabalhadora pelas condições historicamente definidas sob as quais são forçados a trabalhar. Quando descreve os intelectuais como assalariados, Marx está tentando fazer-nos ver a cultura moderna como parte da moderna indústria. Arte, ciências físicas, teoria social (como a do próprio Marx), tudo isso são modos de produção; a burguesia controla os meios de produção na cultura, como em tudo o mais, e quem quer que pretenda criar deve operar em sua órbita de poder.” (BERMAN, 1997:113)
Foi exatamente este ponto analítico que proporcionou ao marxista belga Ernest MANDEL superar MARCUSE na interpretação das vicissitudes da sociedade industrial. Diferentemente do que pensavam os social-democratas da Segunda Internacional, a proletarização progressiva da sociedade capitalista, intuída por MARX, não se deu pela incorporação dos intelectuais aos quadros do operariado fabril, senão pela própria “proletarização” do trabalho intelectual. Esta variável empírica, não foi observada pelos líderes da Revolução Cultural Chinesa, nem por boa parte dos intelectuais da esquerda, incluindo os teóricos da Escola de Frankfurt, na medida em que viam o proletariado com os olhos do século XIX[16].
“Um processo de proletarização do trabalho intelectual está, pois, em marcha. A proletarização não significa essencialmente (e em certos casos de modo nenhum) um consumo limitado ou um baixo nível de vida, mas uma alienação crescente, a perda de acesso aos meios de trabalho e de controle das condições de trabalho, uma subordinação crescente do trabalhador a exigências que não tem mais nenhuma ligação com as suas capacidades ou as suas necessidades próprias […] A superespecialização, a instrumentalização e a proletarização do trabalho intelectual são as manifestações objetivas da alienação crescente do trabalho e conduzem inevitavelmente a uma consciência subjetiva crescente dessa alienação. A sensação de perda de todo o controle sobre o conteúdo e o desenrolar do seu próprio trabalho está tão difundido nos nossos dias nos chamados especialistas, incluindo aqueles que saem da Universidade, como entre os trabalhadores manuais.” (MANDEL, 1979:43-4)
Segundo MANDEL, o capitalismo da terceira fase do desenvolvimento do modo de produção capitalista, baseia-se numa revolução tecnológica, tal qual as duas fases que o precederam. O eixo desta revolução é a automação, a eletrônica, a energia nuclear, e eu acrescento a telemática e a biotecnologia. Enquanto a primeira revolução girava em torno do motor a vapor e a Segunda em torno do motor elétrico,
“o neocapitalismo, apareceu assim como uma fase do modo de produção caracterizada por uma corrida permanente na obtenção de rendimentos tecnológicos. O que provocou uma aceleração da inovação tecnológica, a partir dos anos 40 nos Estados Unidos e, depois de 1948, no resto dos países imperialistas. Dois aspectos importante do neocapitalismo surgem com a aceleração da inovação tecnológica, tanto ao nível econômico como social. […] Por um lado essa aceleração conduz a uma obsolescência rápida das máquinas e dos equipamentos. […] Por outro lado, a corrida ao rendimento tecnológico implica um crescimento colossal das despesas de pesquisa e de desenvolvimento (…)” (MANDEL, 1979:57-8)
Além destas, uma terceira conseqüência implica numa integração em larga escala do trabalho intelectual no processo de produção. Se nas fases anteriores do capitalismo o trabalho intelectual estava em larga medida limitado à esfera da superestrutura social, revela-se hoje cada vez mais inserido na infra-estrutura. Eu acrescentaria que com a difusão da telemática e dos meios de comunicação, o que antes era considerado uma simples manifestação ideológica, notícias, por exemplo, hoje inegavelmente consiste numa mercadoria. Longe de ser uma sociedade pós-industrial, o capitalismo após a terceira revolução industrial consiste na industrialização sempre mais acabada de todas as atividades humanas, e com o desenvolvimento da biotecnologia, do próprio ser humano.
“A proletarização do trabalho intelectual implica a sua especialização, veja-se a sua parcelarização, a sua atomização em extremo. Na época da glorificação dos peritos, adquirir uma tal qualificação apenas é possível em domínios cada vez mais reduzidos do saber. Conhecer a fundo um minúsculo setor de um ramo científico possuindo apenas vagos dados sobre o conjunto desse mesmo ramo e desconhecer totalmente outros domínios científicos, tal é o destino a que está condenado o trabalhador intelectual. Um trabalho intelectual desse tipo, parcelar, fragmentado, tendo perdido toda a visão de conjunto das atividades sociais em que se insere, não pode deixar de ser um trabalho alienado. A proletarização do trabalho intelectual nas condições do salariato conduz inevitavelmente à sua alienação.” (MANDEL, 1979:63)
A reificação das relações humanas que se depreende da produção mercantil, tem como efeito considerar-se a atividade parcial e fragmentada como um objeto em si mesmo, que toda a dialética inerente às ações sociais humanas, entre os objetivos e os meios, está falseada.
“Não é por acaso que o neocapitalismo atribui tanta importância aos problemas de manipulação das massas e a organização totalitária da vida social. É essa a sua maneira de desconhecer a justeza da fórmula de Trotsky segundo a qual o fator decisivo da história, na época da decadência do capitalismo, é o fator subjetivo” (MANDEL, 1979:69)
Entretanto, se TROTSKY defendia que a “dialética não é imaginação nem misticismo e sim uma ciência”, com o advento da mercantilização totalitária da ciência, promovida pelo capitalismo, o limite entre verdade e misticismo assume parâmetros medievais. Talvez os intelectuais estejam condenados à realização da tarefa apontada por FOULCALT, de não simplesmente mudar a consciência das pessoas, aquilo que elas têm na cabeça, “mas de libertá-las do próprio regime institucional de produção da verdade”, e nesta tarefa a ação dialética é fundamental.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sociólogo Boaventura de Souza SANTOS toma emprestada a frase do grego Epicarmo onde “os mortais deveriam ter pensamentos mortais”, para anunciar a morte do paradigma da modernidade. Segundo o mestre português, no limiar do terceiro milênio estamos assistindo o nascimento de um novo paradigma científico, originado da degradação da eterna tensão entre regulação e emancipação social, elementos dinâmicos do paradigma moderno.
“(….) O paradigma cultural da modernidade constituiu-se antes de o modo de produção capitalista se ter tornado dominante e extingue-se antes de este último deixar de ser dominante. A sua extinção é complexa porque é em parte um processo de superação e em parte um processo de obsolescência. É superação na medida em que a modernidade cumpriu algumas das suas promessas e, de resto, cumpriu-as em excesso. É obsolescência na medida em que a modernidade está irremediavelmente incapacitada de cumprir outras das suas promessas. Tanto o excesso no cumprimento de algumas das promessas como o deficet no cumprimento de outras são responsáveis pela situação presente, que se apresenta superficialmente como um de vazio ou crise, mas que é, a nível mais profundo, uma situação de transição. Como todas as transições são simultaneamente semicegas e semi-invisíveis, não é possível nomear adequadamente a presente situação. Por esta razão lhe tem sido dado o nome inadequado de pós-modernidade. Mas à falta de melhor, é um nome autêntico na sua inadequação.” (SANTOS, 1996:77)
Embora o professor português acredite que a crítica da ciência moderna não pode deixar de atingir o marxismo, entende que esta escola teórica é essencial para compreender as contradições da sociedade contemporânea. Entende que a crítica que MARX desenvolve sobre a exploração do trabalho nas sociedades capitalistas continua a ser genericamente válida.
“Um dos maiores méritos de Marx foi o de tentar articular uma análise exigente da sociedade capitalistas com a construção de uma vontade política radical de a transformar e superar numa sociedade mais livre, mais igual, mais justa e afinal mais humana. Referi já que a coerência entre a análise do presente e a construção da vontade do futuro não é um ato científico, dado que os dois procedimentos têm lugar em planos gneseológicos distintos. É um ato político que articula a analise científica com o pensamento utópico. Referi também que Marx atribuiu a construção da vontade de transformação à classe operária em que também via a capacidade para tal e que a história se recusou a confirmar a expectativa de Marx. Em vista disto, trata-se agora de saber se , uma vez que o sujeito histórico de Marx falhou à história, pelo menos até agora, falhou com ele a utopia de transformação que lhe era atribuída. Trata-se além disso, e ainda mais radicalmente, de saber se esta averiguação tem hoje algum interesse.” (SANTOS, 1996:42)
É inegável que Boaventura de Souza SANTOS está absolutamente correto em afirmar que a solidez do pensamento marxista está em colocarmos em suspeição os seus próprios conceitos e estabelecer o que deve “ser desfeito no ar”. Nem MARX, nem ENGELS, eram profetas, e muito menos o materialismo histórico uma doutrina religiosa como alguns dos apóstolos, hermeneutas do Manifesto do Partido Comunista, pregavam. Por outro lado, se conseguimos ver o conteúdo do documento histórico-político de 1848 como se fosse um reflexo no espelho do nosso mundo atual, é porque o capitalismo, com suas mudanças de forma, continua sendo o sistema econômico-social oficial, com sua natureza opressiva e pretensões totalitárias de mercantilizar o universo.
MARX já afirmará em “O Capital” que a acumulação do capitalismo que originalmente apareceu com sua ampliação quantitativa da acumulação, realiza-se em continua mudança qualitativa de sua composição, em constante acréscimo de sua parte constante (capital) às custas de sua parte variável (capital). É somente por isso que podemos encontrara situações como a atual, onde a acumulação de capital é cada vez maior, e um maior número de pessoas tem sido “jogada fora” do sistema produtivo. A relação de crescimento entre capital e trabalho é inversamente proporcional, e não paralela como pregam os profetas do livre mercado.
Na outra ponta, quando apontamos neste trabalho o entendimento de que o trabalho intelectual tem sofrido um constante processo de proletarização, em momento algum estamos falando numa simplificação da luta de classes. A situação é bem diferente da apontada por MARX e ENGELS no Manifesto onde demonstravam acreditar que os membros das classes médias e da pequena burguesia seriam jogadas na grande indústria burguesa, local onde trabalhariam juntamente com os demais membros do proletariado, superariam os seus preconceitos e lutariam pela emancipação do trabalho, muito embora a classe média esteja desaparecendo e as pequenas burguesias tenham se tornado mera subsidiárias do grande capital.
O proletariado, tanto industrial, como intelectual encontra-se numa situação de distanciamento semelhante à que viviam os camponeses franceses durante Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, apesar de às vezes fisicamente estarem lado à lado, situação na qual a industria de comunicação de massa tem uma contribuição vital:
“A indústria de massas hoje contribui ideologicamente para propagar esses procedimentos de um contra todos. De maneira indireta e involuntária revelando a sujeição dos indivíduos em que uma sociedade inóspita e reproduzindo a “consciência infeliz” (o ser alienado), sob a aparência de uma “auto-realização” medida pelo poder de consumo supérfluo e pelo poder de decisão acumulado nos marcos do status quo. A indústria da informação e do entretenimento, assim, inculca nos indivíduos desejos unilaterais e compulsivos, heterônomos, e reforça nos consumidores o véu nebuloso que encobre a atividade dos produtores. Mas a conclamação da mídia na direção de uma auto-satisfação é mistificadora.” (MARQUES, 1992:45)
A velha prática de tratar proletários e operários como sinônimos deve ser revista, ou pelo menos questionada. A moderna indústria capitalista escancarou a dimensão ideológica das mercadorias e a dimensão mercadológica da ideologia. A alienação do trabalho, e a clareza de ocupar espaço num exército de reserva no futuro, já faz parte da vida dos trabalhadores intelectuais. Por outro lado, os próprios operários, com a automação e informatização da indústria, não podem mais ser considerados simples operários manuais. Ao lado deste universo, cresce diariamente um grande exército de excluídos do sistema social, constituídos por aqueles que sonham em um dia poder vender a sua força de trabalho no mercado capitalista. O trabalhador intelectual cada vez menos se identifica com o produto de seu trabalho, lho produz desde o processo educacional como uma mercadoria quantificável, a ponto do professor José Arthur GIANOTTI afirmar que se Kant tivesse que se submeter à lógica do “paper”não teria tido tempo para escrever a sua “Crítica da Razão Pura”. Ao operário cada vez mais é exigido formação em um nível educacional superior ao das gerações anteriores, além dos conhecimentos na área da telemática (ou teleinformática). Some-se neste cenário a tentativa progressiva de estabelecer oposição entre interesses do novo proletariado; o nacionalismo e o misticismo religiosa; a própria crença preconceituosa dos intelectuais de se considerarem uma classe intermediária entre a burguesia e o operariado fabril, embora às vezes, com a moderna indústria, as condições de subsistência do operário sejam melhores do que a do intelectual tradicional. Neste universo o próprio Estado torna-se empresa e os seus funcionários são submetidos à lógica de eficiência mercantil, tendo seus salários achatados para permitir a acumulação do mercado financeiro.
Como cada vez mais o proletariado é uma figura dispersa e heterogênea, a primeira tarefa revolucionária consiste em romper com os guetos que se formaram por décadas de mediação do Estado, na ilusória crença da Segunda Internacional em construir um mundo de classes médias, ao invés de romper com a estratificação em classes sociais. Por outro lado, a tragédia burocratico-stalinista demonstrou que a tentativa de impor uma ditadura do proletariado com a exclusão política a diferença, somente aprisiona a própria essência dialética força viva no pensamento marxista.
Se MARX falava que cada sociedade só se coloca em cada época diante de problemas que pode resolver, a nossa tarefa consiste em romper com o individualismo, combater o desastre ecológico, o patenteamento de seres vivos, a proliferação de armas químicas, biológicas, sem falar das nucleares, a alienação da humanidade, as moléstias incuráveis, a miséria e a fome que assolam o planeta, a violência da guerra civil que aprisiona a sociedade, a desertificação das terras aráveis, a falta de água potável, a poluição, o racismo, o sexismo, a xenofobia, a exploração do homem pelo homem, enfim, a tarefa revolucionário onde solidariamente todos encontrem razão na frase de Eric FROM:
“Só há um sentido para a vida: o próprio ato de viver”
Informações Sobre o Autor
Sandro Ari Andrade de Miranda.
Advogado em Pelotas/RS Mestre em Ciências Sociais