A Jurisdição eclesiástica aparece primeiro como um instrumento para defender os interesses da Igreja e subtrair dos Clérigos a Jurisdição secular. Depois torna-se em atributo de influência e dominação, para menoscabo da própria autoridade real, em virtude de uma paulatina multiplicação dos fatos que se consideram lesivos a tais interesses. O fundamento religioso que a sustentou no começo se fortificou com o político. É certo que, em um primeiro momento, o próprio monarca fomentou o poder da Igreja (como fez com os Municípios), com a esperança de que as armas espirituais do Papa se sujeitassem aos nobres e favorecessem assim a sua estabilidade (os homens ricos chegaram a competir em poder com o Rei, e este necessitou coligar-se com o povo, que desejava, por sua vez, sacudir o jogo pesado a que o tinham sujeito uma aristocracia turbulenta e ambiciosa); mas mais tarde se observa, ante a desmedida ingerência daqueles, uma verdadeira luta entre os três poderes que disputavam a preeminência: Real, Senhoril e Eclesiástica.
I- As cortes da Igreja, nessa época, podiam reformar as sentenças definitivas proferidas depois de um procedimento carente de garantias formais. Era como se os próprios Juizes tivessem pouca confiança nas decisões adotadas pelo sistema.
No curso do século XIII se instituiu e consolidou paulatinamente o "Tribunal da Inquisição" ou "Santo Ofício", para reprimir a heresia, o sortilégio, a adivinhação etc. No começo esta repressão foi uma conseqüência da visita canônica dos "Obispos" às Paróquias de suas dioceses, e tinha por objetivo informar-se da religião e da moral. Tinham ordem para escolher em cada lugar sete ou mais pessoas muito íntegras para que depusessem sob juramento sobre as desordens de que tivessem notícia. Posteriormente estabeleceram-se comissões mistas encarregadas desta missão que traçavam ainda o procedimento a seguir. Esta é a origem dos inquisidores, que já existiam em meados do século XIII. Foi um Tribunal temido pela gravidade das penas que impunha, pelo secreto do procedimento isento de garantias para o acusado e pela inapelabilidade das suas sentenças.
II- Ainda que estejamos longe das regras imutáveis, pois mudaram segundo maior ou menor influência do poder Papal, a competência se determinava ratione personae e ratione materiae.
De foro eclesiástico gozavam desde antigamente os clérigos (pertencentes ao Clero), se bem que se limitava a delitos leves; posteriormente se estendeu a todas as infrações, ao mesmo tempo que aos "Depilados", "Cruzados" e outras pessoas que eram incluídas entre aquelas, a fim de que gozassem do privilégio jurisdicional. E sem ter em conta os fatos de significação puramente espiritual, o foro surgia quando se afetavam os interesses de fé, qualquer que fosse o infrator. Delitos exclusivamente eclesiásticos eram a Heresia (doutrina contrária ao que era definido pela Igreja em matéria de fé) e a simonia (tráfico de coisas sagradas ou espirituais), enquanto o sacrilégio (uso profano de pessoa, lugar ou objeto sagrado) a usura (juro de capital exorbitante), o rapto e o adultério constituíam mixti fori, o que explica os inumeráveis conflitos jurisdicionais que se discutiam.
Durante a expansão da Justiça Eclesiástica se recorre a diversos subterfúgios, seja para outorgar um título Clérigo a quem não era, seja para reconhecer em muitos delitos, um ataque direto aos interesses da Igreja.
III- Sem se importar com as sanções em que se impunham, o processo penal canônico oferece a evolução mais radical que se possa conceber, só comparável com a do romano. A prisão nasceu no direito canônico (devia resultar realmente apropriada para o logro da penitência e emenda do culpável), que também autorizou a admoestação, a reparação da honra, a proibição de reincidir, a multa e a reparação dos danos. Mas as armas mais poderosas dos juizes eclesiásticos foram espirituais: A ex-comunhão, que implicava a separação da sociedade dos fiéis, suspensão das funções, despojo de privilégios e honras, confisco de bens, privação dos direitos civis e a proteção jurisdicional (o condenado não podia geralmente demandar nem atuar como testemunha) e a interdição que era a suspensão dos ofícios sagrados a uma cidade ou vila.
a) Nos primeiros tempos, até o século XII, o processo era do tipo acusatório, semalhante ao secular. Salvo casos excepcionais (como se se trata de um delito em flagrante ou se a vítima não deixa herdeiros), não havia processo sem acusador legítimo e idôneo; este devia apresentar a acusação por escrito, e oferecer a prova dos fatos que atribuía; era responsável em caso de calúnia; não podia atuar contra o acusado ausente.
b) As transformações se produzem desde o século XII até o século XIV, abandonando-se paulatinamente o tipo acusatório para estabelecer o inquisitivo
As práticas do processo romano imperial influenciaram os fins da justiça eclesiástica, que quer punir enérgica e eficazmente o pecado sem se importar com a sorte do presumido pecador. Os princípios daquele são colhidos e aperfeiçoados pelo alto escalão da igreja, preocupados por defender a fé e temerosos de que ela se perca na tormenta dos costumes dissolvidos. E assim como o Crimen majestatis deu vida em Roma ao procedimento extraordinário, o Crimen majestatis Divina determinou que a inquisitio se convertesse em instrumento de dominação política.
O primeiro passo dessa evolução é o abandono do princípio básico acusatório de que "não há processo sem acusação": No começo excepcionalmente, mas depois em todos os casos, se autoriza a denúncia (Um christiano escandalizado com a conduta de outro christiano, primeiro o admoesta e depois, se persiste no mal, o denunciava, ainda que anonimamente, como ato idôneo para iniciar a causa. Mais que uma denúncia, era uma delação, pois o nome do informante ficava sempre em segredo, de modo que a este não se expunha nem sequer o sentimento de vingança do denunciado. O novo sistema se preocupa assim, exclusivamente, em punir o pecado à causa de uma concepção unilateral do processo; baseado no interesse superior de defender a fé, se fomenta a indignidade e a covardia; desaparece a garantia que oferece uma acusação formal.
Ante a necessidade de investigar em segredo e sem nenhuma deferência à conduta desregrada dos clérigos, essa reforma se fortifica com o procedimento de ofício, que assinala a derrubada do regime acusatório. Ao final, bastava o rumor público para iniciar um processo, pois Inocêncio III consagrou de que Tribus modis procesit possit: per acusationem, per denuntiationem et per inquisitionem. Para dar ao seu procedimento criminal uma força que não havia tido jamais, a Igreja deveria introduzir amplamente nele a persecução de ofício. Esta necessidade dá nascimento ao procedimento per inquisitionem. Anteriormente esta forma se permitia somente excepcionalmente, em caso de flagrante. As três formas foram teoricamente possíveis, mas na prática se propagou a última (que no começo se regia somente para as causas de heresia, usura e sinomia), que se converteu na comum.
Abolida a acusação e a publicidade do processo, o Juiz atuava de ofício e em segredo, assentando por escrito os depoimentos das testemunhas. Ainda que estas eram notificadas posteriormente ao réu, e se lhe ocultavam os nomes das testemunhas. (inqusitio significa pesquisa que se realiza por escrito e secretamente, e ao término da qual se dá sentença).
Desde então, o processo mudou fundamentalmente de fisionomia. O que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado. Armados de iguais poderes, torna-se em luta desigual entre Juiz e acusado. O primeiro abandona a posição de árbitro e assume a ativa de inquisidor, atuando desde o primeiro momento também como acusador, é dizer, se confundem as atividades do Juiz e do Acusador, por sua parte, o acusado perde a condição de verdadeiro sujeito processual e se converte em objeto de uma dura persecução.
E então, como "o verdadeiro objetivo da batalha era a consciência do indivíduo", assim como o delito era o seu pecado e a sanção a sua penitência, "sua confissão representava para a inquisição o preço da vitória". Nada podia opor-se à consecução deste fim, que era a defesa dos interesses vulnerados, e justificava todos os meios que então se praticavam: os interrogatórios capciosos, o desamparo, a vigilância do acusado nas prisões, para surpreender suas imprudentes confidências, e finalmente a tortura. Tudo era lícito para arrancar a confissão.
Como conseqüência desta patente de legitimidade, só registrada novamente, a tortura é objeto de especial regulamentação: Deve cessar quando o processado expresse sua vontade de confessar; se confessa durante os tormentos, para que seja válida deve ser confirmada no dia seguinte; e, ainda isto não é necessário se confessava três vezes nessa situação. Naturalmente, a pena do delito era às vezes menos grave do que a tortura.
Assim posta a sorte do processo na integridade do inquirido, a quem se privava toda a defesa pelo temor de que esta fosse um obstáculo ao descubrimento da verdade e, em conseqüência, ao logro da finalidade que se tinha em conta, a investigação se realizava exclusivamente em condições para assegurar a condenação, e prevalecia o conceito de que mesmo o inocente deveria morrer sempre – para que o culpado não ficasse impune.
Informações Sobre o Autor
Marcelo Batlouni Mendroni
Promotor de Justiça/SP – GEDEC, Doutor em Processo Penal pela Universidad de Madrid, Pós-Doutorado na Università di Bologna/Italia