Resumo[1]: Com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção passou a proteger o interesse da criança e do adolescente prevalecendo os direitos destes acima de qualquer outro. Os menores, vítimas de maus tratos ou em situação de abandono, serão desvinculados de sua família natural a fim de serem protegidos sendo, a partir disso, passíveis de adoção e colocação em família substituta. Demonstra-se nesta pesquisa que a proteção integral do menor preconizada pelos ditames legais acerca da adoção são incompatíveis com a determinação do inciso III do art. 10 do Novo Código Civil, o qual determina a averbação das sentenças constitutivas de adoção, gerando assim, o desrespeito ao princípio da igualdade entre os filhos previsto pela Carta Magna. Além disso, o presente trabalho, utilizando-se do método dedutivo de pesquisa, demonstra a evolução do direito de família e seus institutos relacionados à adoção frente ao ordenamento jurídico estabelecido pela Constituição, pelo Novo Código Civil e pela evolução da sociedade. A adoção visa a proteção do melhor interesse do menor e, a decisão de revelar ou não a origem da filiação deve ser resguardada aos adotantes a fim de que sejam evitados diversos inconvenientes de ordem prática e moral.
Palavras-chave: adoção, família, menores, responsabilidade parental, registro civil.
Sumário: Introdução. 1. Instituto da adoção; 1.1. Breve histórico acerca da evolução das relações familiares e do instituto da adoção; 1.2. Instituto da adoção no direito brasileiro, evolução e conceitos; 1.3 Procedimentos práticos do processo judicial e registro da adoção; 2. A constitucionalização do direito civil frente à adoção; 2.1. A igualdade de filiação; 2.2 Paternidade socioafetiva; 2.3 Os princípios da proteção integral da criança e do adolescente; 3. A igualdade de filiação e o art. 10 do novo código civil; 3.1 A supremacia do interesse do menor no conflito de interesses pertinentes aos casos de adoção; 3.2 O conflito de normas ocasionado pelo advento do art. 10, III do novo Código Civil; Conclusão; Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A adoção é instituto do direito civil, que visa a proteção dos menores a fim de lhes conceder o direito de ter uma família que suprirá suas necessidades, tanto materiais quanto morais, indispensáveis ao seu bom desenvolvimento.
Não há nada mais relevante em termos sociais do que a proteção dos menores. A criança e o adolescente são indivíduos em desenvolvimento e requerem proteção integral dos mecanismos sociais no sentido de garantir esta formação de maneira plena.
O interesse do menor, amplamente abordado neste trabalho, é o grande pilar no qual o ordenamento jurídico deve se apoiar para dirimir os conflitos de interesses oriundos do instituto da adoção. Esta pesquisa tem por objetivo demonstrar a adoção no Novo Código Civil e suas mudanças e inovações em relação ao Código Civil de 1916, bem como alguns temas polêmicos em torno do assunto, destacando-se, por sua vez, o polêmico inciso III, do art. 10 do Novo Código Civil e sua incompatibilidade com os preceitos constitucionais de proteção aos menores e à não discriminação dos filhos pela origem da filiação.
Esta pesquisa pretende demonstrar o conflito de normas imposto pelo preceito constante do novo diploma civil pátrio e suas desvantagens em relação à teoria de proteção integral do menor adotada pela legislação pátria.
É, portanto, tema da presente pesquisa a inconstitucionalidade do inciso III do art.10 do novo Código Civil que fere o princípio da igualdade da filiação impondo a averbação no registro de nascimento do adotado a vista da sentença constitutiva de adoção o que, por sua vez, gera um conflito de normas, vez que as demais legislações acerca do tema, todas favoráveis ao melhor interesse do menor, impõe um procedimento diferente.
A metodologia utilizada para a elaboração do presente trabalho é o da pesquisa bibliográfica, servindo-se de doutrinas, artigos, leis e demais publicações. Também foi usado como método de abordagem o dedutivo, partindo-se do um princípio geral do melhor interesse do menor.
Fez-se necessária explicação sobre a importância do tema, o bem jurídico a ser protegido que é o ser humano em formação, a evolução das relações familiares e algumas considerações sobre o instituto da adoção.
Outro tema relacionado com a adoção destacado foi o interesse do menor que é aspecto relevante e demonstra o porquê do conflito ora abordado. Nesse passo, o interesse do menor, é a regra das regras que sempre há de vigorar para a determinação da adoção.
O problema jurídico é polêmico e relevante vez que, em se tratando de crianças e adolescentes, há que se ter sempre a máxima cautela a fim de que em qualquer situação seja lhes possibilitada a integral proteção e as condições básicas para que possam tornar-se cidadão exemplos de uma saudável formação.
1 O INSTITUTO DA ADOÇÃO
Neste capítulo pretende-se apresentar a adoção como instituto, caracterizado por um conjunto de regras que norteiam este fenômeno social, fazendo uma retrospectiva histórica sobre a evolução da família e da filiação adotiva. Pretende-se também neste capítulo relatar a posição que tinham os filhos na concepção contemporânea de família. Demonstrar-se-á ainda neste capítulo a adoção no direito brasileiro, sua evolução e generalidades. Finalmente, neste capítulo tratar-se-á do registro de nascimento e a adoção.
1.1 Breve histórico acerca da evolução das relações familiares e do instituto da adoção
A família compreendida pelo Código Civil brasileiro de 1916, contemplava a “família-instituição”, diretamente ligada ao casamento, conforme depreende-se da seguinte definição: “Direito de Família é o conjunto de regras aplicáveis às relações entre pessoas ligadas pelo casamento ou pelo parentesco.” [2]
É relevante destacar que, a sociedade vem se modificando ao longo do tempo e que estas mudanças influenciaram para a formação do novo modelo familiar. O rompimento do modelo patriarcal de família, a revolução feminista e as revoluções tecnológicas contribuíram para esta realidade em que vivemos hoje. Nesta nova estrutura os integrantes que compõem a família tiveram seus papéis redefinidos. Fala-se atualmente na “crise da família”. Segundo Tânia Pereira da Silva, a família, “é o primeiro agente socializador do ser humano. Neste momento de equívocos e contradições que marcam flagrante desvio ético nas instituições públicas e privadas, a desagregação familiar lidera os incontáveis problemas que caracterizam a sociedade brasileira”.[3]
A família delineada pelo Código Civil de 1916 já não mais perdura. Aquela família patriarcal, hierarquizada, instituída e centralizada no casamento, transformou-se, atualmente, numa comunidade fundada no afeto, cujos integrantes se unem por um sentimento comum de solidariedade, é o que se denomina hoje em dia de família sociológica. [4]
Ainda sobre a família baseada nos laços de afeto e, sobre a diminuição do número de integrantes da família, uma das características das novas relações familiares, a autora Julie Delinski, denota que, “A família sociológica vem a substituir a “grande família”; desloca-se a primazia exercida pelo parentesco para a sociedade conjugal. Perde-se em quantidade de membros, mas ganha-se em qualidade de afeto entre o reduzido círculo da família conjugal”. [5]
As relações familiares, portanto, têm suas funções constituídas em razão da dignidade de cada membro da família. Nas palavras de Julie Cristine Delinski:
A família herdada do século XIX, nuclear, heterossexual, monógama e patriarcal vem sofrendo inúmeras transformações. As rupturas que hoje se observam são resultados de um processo de dissociação que se iniciou há muito tempo, impulsionado por um movimento que considera o indivíduo na busca da felicidade dos membros que compõem a família. [6]
A família moderna nasce sob a concepção eudemonista[7], centrada nas relações de sentimento entre seus membros e baseada em uma comunhão de afeto recíproco. Enquanto a família ditada pelo Código Civil de 1916 se define como hierarquizada e de feição transpessoal, em outro momento e contexto político-econômico, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto definições que consagram a pluralidade familiar, a igualdade substancial e a direção diárquica.
Hoje, não se pode ter dúvida quanto ao papel da instituição familiar para o desenvolvimento da personalidade de seus membros, devendo a comunidade familiar ser preservada como instrumento de tutela da dignidade da pessoa humana.
Traçado o perfil de evolução da família e das relações entre seus integrantes, importa, então, conhecer a evolução da adoção ao longo da história, conforme o breve histórico a seguir exposto.
Nos tempos antigos, a adoção tinha significado diferente do atual. Atualmente vislumbra-se o aspecto social da adoção que visa proporcionar a crianças e adolescentes, que não tiveram oportunidades de conviver em condições ideais no âmbito familiar, um novo lar em uma família substituta. Na antigüidade a adoção era tida como um instrumento para perpetuar os costumes e práticas religiosas e bélicas de uma família que não tivesse tido filhos naturais.
A grande preocupação familiar em relação à continuidade era a transmissão do culto religioso e do culto aos mortos. “A religião só podia propagar-se pela geração. O pai transmitia a vida ao filho e, ao mesmo tempo, a sua crença, o seu culto, o direito de manter o lar de oferecer o respasto fúnebre, de pronunciar as fórmulas da oração”. [8]
Dessa forma, aqueles que não tivessem filhos biológicos encontravam na adoção a solução para que a família não se extinguisse. Adotar filho era, portanto, a garantia da perpetuidade da religião praticada pela família no âmbito doméstico; a adoção era considerada uma verdadeira salvação do lar pela continuidade das oferendas e culto aos mortos que eram essenciais ao repouso e à paz dos antepassados já falecidos.
A Bíblia traz indicações seguras da existência da adoção entre os hebreus, segundo as escrituras sagradas, Moisés, quando salvo das águas do Nilo, foi adotado por Térmulus, filha do Faraó. Ainda há o caso de Ester, que foi adotada por Mardoqueu. [9]
A adoção também era praticada nas civilizações do Egito onde determinados jovens eram escolhidos na “Escola da Vida” para serem adotados pelo faraó e, posteriormente, um deles poderia sucedê-lo no trono”.[10]
Em Atenas havia uma boa regulamentação da adoção e, sua finalidade era, como na quase totalidade das civilizações antigas, de cunho religioso, visando garantir a continuidade do culto doméstico e evitar a extinção da família.[11]
As Leis de Manu já previam para os hindus: “aquele a quem a natureza não deu filhos, pode adotar um, para que as cerimônias fúnebres não cessem” concedendo igualmente à adoção o caráter de perpetuar o culto familiar. [12]
Ainda na mesma conotação de perpetuação dos costumes da família, agora em relação aos feitos bélicos, os germanos praticavam a adoção para que suas honrarias e lutas heróicas se perpetuassem no tempo. [13]
Dentre os povos antigos, foi nas sociedades romanas que a adoção mais se desenvolveu e onde mais foi praticada. Além da necessidade de se perpetuar o culto doméstico e dar continuidade à família, em Roma, particularmente, a adoção adquiriu, também, uma finalidade política, permitindo que plebeus se transformassem em patrícios e vice-versa, como Tibério e Nero, que foram adotados por Augusto e Cláudio, ingressando no tribunado. [14]
Denota-se, portanto que a evolução do instituto da adoção se deu através do tempo. No direito primitivo, a adoção constituiu um meio eficaz de perpetuar a família e a religião doméstica, transferindo-se os bens familiares, numa época em que ainda não existia o testamento. No direito romano o instituto se solidificou, primeiramente vinculado ao culto dos mortos, mas adquirindo, em seguida, importância política. A adoção desapareceu quase completamente na Idade Média, esclarecendo os autores franceses que, no século XVI, ela se limitava a conferir direitos sucessórios. O direito canônico desconheceu a adoção em relação à qual a Igreja manifestava importantes reservas. Coube à França ressuscitar o instituto, regulamentando-o no Código Napoleão no início do século XIX. A adoção, pouco praticada em Portugal, não foi regulada sistematicamente nas Ordenações, esta é a lição de Arnoldo Wald.[15]
1.2 Instituto da adoção no direito brasileiro, evolução e conceitos
A adoção entrou para o direito brasileiro ainda arraigada com as características que apresentava no direito português, que, por sua vez, resistia aos dogmas do direito romano. Foi somente o Código Civil Brasileiro, instituído pela Lei 3.071 de 01.01.1916, que entrou em vigor um ano depois, que sistematizou o instituto da adoção, na sua Parte Especial, Livro I (Direito de Família), Capítulo V, Título V, em dez artigos (arts. 368 a 378).
Pelo Código de 1916 a adoção não tinha o intuito assistencial que possui atualmente, o objetivo do instituto era dar filho a quem na época não tivesse condições físicas, por esse motivo, um dos requisitos era que o adotante deveria ter mais de 50 anos de idade e diferença mínima de 18 anos do adotado. [16]
A Lei 3.133/57 trouxe significantes alterações às regras do Código Civil então vigente, demonstrando o legislador a intenção de incentivar a prática da adoção que tinha como principal oposição o limite de idade. A autora Eunice Ferreira Rodrigues Granato atesta que:
Foi esse diploma legal, quarenta anos depois da entrada em vigor do Código Civil, que entre os requisitos relativos aos adotantes reduziu a idade mínima de cinqüenta para trinta anos de idade. Eliminava assim, a maior barreira na prática da adoção. Casais jovens puderam então tornar realidade o sonho de adotar um filho. [17]
Novidade importante no instituto da adoção ocorreu com a criação da legitimação adotiva pela Lei 4.655, de 02.06.1965. De acordo com o citado diploma legal, foi introduzida no Brasil a legitimação, sem extinguir a adoção simples do Código Civil. A Lei 4.655/65 manteve a idade mínima de 30 anos para os casais interessados na legitimação, autorizou o procedimento antes desta idade desde que o matrimônio tivesse mais de cinco anos e provada a esterilidade e estabilidade conjugal, pela legitimação cessava por completo o parentesco com toda a família natural. [18]
A legitimação adotiva foi precursora da Adoção Plena, depois consagrada pelo Código de Menores, em relação aos requisitos da legitimação, a lição de Granato:
Segundo esse diploma legal, a legitimação adotiva só podia ser deferida quando o menor até sete anos de idade fosse abandonado, ou órfão não reclamado por qualquer parente por mais de um ano, ou cujos pais tivessem sido destituídos do pátrio poder, ou ainda na hipótese do filho natural reconhecido apenas pela mãe, impossibilitada de prover a sua criação. [19]
Denota-se que a intenção do legislador de integrar completamente o menor na nova família, também se manifesta no art. 10, que estabelece a possibilidade de ao menor ser conferido o nome do legitimante e, ainda mais, modificar o seu prenome. Assim, podiam os pais adotivos dar ao menor o prenome que escolhessem, acrescentando os apelidos de família que eles próprios ostentavam.
A Lei 6.697 de 10.10.1979 instituiu o Código de Menores que introduziu a adoção plena, substituindo a legitimação adotiva da Lei 4.655/65 que foi expressamente revogada e também admitia a adoção simples, regulada pelo Código Civil. Essa lei se destinava à proteção dos menores até dezoito anos de idade que se encontrassem em situação irregular, tendo em vista que os menores em situação regular poderiam ser adotados nos termos do Código Civil, independente de autorização judicial. [20]
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 igualou os direitos de todos os filhos, ao tratar da Ordem Social, no Título VIII, Capítulo VII, Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso (arts. 226 a 230), estabelecendo no § 6º do art. 227: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
A Carta Magna em seu artigo 227, quando determina e assegura os direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer tipo adotou a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente. São direitos fundamentais assegurados aos menores, uma vez que além do Brasil ser signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ou seja, esta norma é considerada parte de “tratado internacional”, como também por terem sido garantidos na convenção e recebidos pelo § 2º do art. 5º, ganhando, portanto, o status de direitos fundamentais, embora não estejam expressamente elencados pelo art. 5º e seus 77 incisos da Constituição, o qual dispõe acerca dos direitos fundamentais.[21]
A partir da vigência da Constituição Federal de 1988 foi afastada a nefasta discriminação antes existente entre os filhos, não mais é possível utilizar as denominações discriminatória de filho “ilegítimo”.
ECA ao substituir o Código de Menores de 1979, introduz uma série de transformações na política de atendimento à infância e à adolescência brasileira, dando ênfase ao processo de descentralização e municipalização da política de atendimento direto e destaca a participação da sociedade civil através de seus Conselhos e Fóruns. Tal diploma legal estabelece uma nova concepção do que seja a criança e o adolescente, conceito este dirigido a um universo de pessoas independentemente de uma suposta “situação irregular”, que os menorizava, passando a contemplar a Proteção Integral e, portanto, a criança e o adolescente são concebidos como cidadãos o que equivale dizer: sujeito de direitos. [22]
Passa-se agora a conceituação do instituto da adoção e algumas de suas características e requisitos. De acordo com o autor Belmiro Pedro Welter, a adoção “é um ato jurídico e um ato de vontade que se prova e se estabelece através de um contrato ou de um julgamento (ato de vontade do juiz, mas que supõe previamente a vontade do(s) interessado(s))”.[23]
Já para Arnold Wald a adoção “é uma ficção jurídica que cria o parentesco civil. É um ato jurídico bilateral que gera laços de paternidade e filiação entre pessoas para as quais tal relação inexiste naturalmente”.[24]
A autora Regina de Fátima Marques Fernandes tece breves e elucidativas considerações sobre o conceito e regulamentação da adoção:
Há o estabelecimento de um novo vínculo parental, denominado parentesco civil, sendo elevado pela Constituição Federal de 1988 ao mesmo plano de igualdade dos filhos biológicos, como o reconhecimento da completa igualdade, com total vedação ao tratamento discriminatório. A adoção de criança e adolescente regia-se inteiramente pelo Estatuto da Criança e Adolescente – ECA (arts. 39 a 52 da Lei 8.069/90) onde encontrávamos os requisitos permissivos para a adoção. Atualmente a adoção passou a ser regulamentada pelo novo Código Civil (art. 1.618 e seguintes). [25]
Em se tratando de conceito do instituto da adoção a partir da vigência da Constituição Federal de 1988 que consagrou o princípio da família baseada nos laços afetivos, a sábia definição de Julie Cristine Delinski:
Ainda, tendo em foco a nova concepção de família, percebe-se que a efetiva relação paterno-filial requer mais que a natural descendência genética atribuindo relevância aos laços afetivos. Nessa concepção, a família extrapola sua composição meramente biológica, deparando-se com outros valores, afetivos, emotivos e até mesmo psicológicos. Surge a noção endemonista de família, dando relevo a paternidade de afeto. [26]
Do exposto denota-se que a evolução legislativa do instituto abordado nessa pesquisa vem ao encontro da evolução das relações familiares que buscam o melhor interesse do menor, princípio este já consagrado desde a Lei 6.515/77 (Lei do Divórcio) e corroborado por toda a legislação subseqüente acerca do tema.
A evolução das relações familiares foi fator determinante para a atual concepção da adoção. A família retratada como “comunidade de sangue” tinha como fonte exclusiva o casamento, e somente os filhos provenientes dessas uniões matrimonializadas eram considerados legítimos. Havendo situações que ameaçassem a segurança da família, eram elas ignoradas pelo ordenamento jurídico (como exemplo, os filhos extramatrimoniais), prevalecendo um único interesse: a família matrimonializada. Hoje em dia, tanto o reconhecimento dos filhos como a adoção estão inseridas em novo contexto que prevê a proteção desses menores proibindo qualquer discriminação pela origem da filiação. [27]
1.3 Considerações sobre os procedimentos práticos do processo judicial e registro da adoção
A lei confere personalidade civil às pessoas naturais a partir de seu nascimento com vida, resguardando, desde a concepção, os direitos do nascituro, nos termos do que prevê o artigo 2º do Código Civil Brasileiro. Diante disso, o registro de nascimento é importante ato da vida civil que atribui ao ser humano uma identificação familiar, social e jurídica através de seu registro civil.
Todo nascimento que ocorrer no território nacional deverá ser dado a registro, no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar de residência dos pais, dentro do prazo de 15 dias, ampliando para três meses para os lugares distantes mais de 30 quilômetros da sede do cartório. [28]
Como já foi referido, o registro de nascimento é o meio pelo qual identifica-se a pessoa através de determinados elementos como o nome, a data de nascimento, constituindo-se a certidão de nascimento em documento probatório da existência da pessoa. Dentre os elementos identificadores constantes do registro de nascimento, sem dúvida a filiação ocupa lugar de destaque.
Em sua obra acerca do Registro Civil das pessoas naturais a autora Regina de Fátima Marques Fernandes denota que:
Todas as regras sobre parentesco consangüíneo estruturam-se a partir da filiação, fato jurídico do qual decorrem vários efeitos e que exprime a relação entre os filhos e seus pais, parentes em primeiro grau e em linha reta. Verifica-se por meio da filiação o liame entre os filhos e seus pais que os geraram ou adotaram (parentesco natural ou civil). [29]
Há ainda a questão da declaração obrigatória, a qual, segundo estabelecido por Lei (Lei dos Registros Públicos – 6.015/73) enumera a ordem das pessoas obrigadas a declaração de nascimento, tratando-se de obrigação sucessiva, ou seja, na falta de um o outro seguinte o sucede na mesma obrigação. Prevê o art. 52 que os obrigados a declarar o nascimento são, pela ordem: 1º) o pai; 2º) em falta ou impedimento do pai, a mãe; 3º) no impedimento de ambos, o parente mais próximo, sendo maior e achando-se presente; 4º) em falta do último os administradores de hospitais, médicos ou parteiras que tenham assistido o parto; 5º) pessoa idônea da casa em que ocorrer, em não sendo na residência da mãe; 6º) e, finalmente, as pessoas encarregadas da guarda do menor. [30]
Para o registro de nascimento são necessários os seguintes documentos: “Declaração de Nascido Vivo”, fornecida aos pais do recém-nascido pelas maternidades e pelos hospitais; ou, ainda, fornecida pelo médico que tenha assistido o parto que tenha ocorrido fora de estabelecimento de saúde. Também se faz necessária a apresentação da Cédula de identidade da pessoa que comparecer ao cartório para declarar o nascimento. Caso os pais sejam casados entre si, apresentar certidão de casamento.
Sendo os pais menores de idade, caso o pai ou mãe, maior de 16 e menor de 18 anos, pode declarar o nascimento de seu filho, sem assistência dos pais. Os menores de 16 anos deverão ser representados pelos pais ou responsáveis legais. Quando a mãe for menor de 16 anos, deverá comparecer para registro, seu representante legal. No caso do pai menor, o mesmo não poderá reconhecer o filho no momento do registro de nascimento.
As regras e procedimentos acima expostos acerca do registro civil de nascimento devem ser observadas pelos registradores que obedecem à Lei dos Registros Públicos, porém, quando no ato de registro de adotivos tem ocorrido certas práticas que acabam ficando em desacordo com o que determina a CF/88. Ademais, como a lei não permite qualquer distinção entre o filho legítimo e o adotado e como da certidão não deve constar nada que indique diferenciação (art. 227, § 6.° da CF, art. 47 do ECA).
No mesmo sentido J. Cretella Júnior, em seus Comentários à Constituição 1998, volume VIII, leciona da seguinte forma: “Os filhos, quer nascidos ou não da relação matrimonial, quer havidos por adoção, terão os mesmo direitos mesmas qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias e as relativas à filiação.” [31]
Ainda sobre a proibição de designações discriminatórias, a lição de Fernandes: “nas certidões do registro, não poderá constar nenhuma observação sobre a origem do ato, exceto para salvaguardar direitos, mediante autorização judicial”. [32]
No aspecto prático, até o advento da Lei nº 10.406, que instituiu o Código Civil de 2002, estavam consolidados dois entendimentos quanto aos procedimentos registrais realizados para a constituição da adoção, sendo o primeiro relativo aos menores de 18 anos de idade, exigindo o cancelamento do registro primitivo e a realização de um novo na comarca do domicílio dos adotantes, e o segundo, referente às adoções de maiores de idade, exigindo escritura pública e averbação no Registro Civil das Pessoas Naturais. Porém, em virtude da entrada em vigor na novel legislação, muitas indagações têm aflorado, no sentido de se saber se foi ou não revogada a adoção extrajudicial (por Escritura Pública), quais os casos de incidência das normas previstas no CC e se o procedimento registral adotado será o mesmo do até então estabelecido. [33]
Tânia Maria da Silva Pereira elucida, acerca da questão acima suscitada:
Destaque-se, no entanto, o parágrafo único do mesmo artigo 1.623 ao indicar que “a adoção para os maiores de 18 anos dependerá, igualmente, “da assistência efetiva do Poder Público e de sentença constitutiva”. Diante dessa determinação legal, caberá ao Código de Organização Judiciária dos Estados indicar o Juízo competente e promover as adaptações necessárias. [34]
Em relação ao procedimento judicial de adoção é relevante ressaltar que o art. 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê normas similares às da Lei nº 4.655/65 e da Lei nº 6.697/79 no que se refere a judicialização da adoção, em consonância com o artigo 227 da CF que determina “o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão”. Ou seja, somente há adoção após processo judicial devidamente instruído, sendo o registro de adoção determinado por mandado judicial proveniente de sentença de mérito definitiva.
Também o Código Civil prevê tal obrigatoriedade determinando, em seu art. 1.627 que o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, passando a constar o nome dos adotantes como pais, bem como de seus ascendentes como avós paternos e maternos. Será conferido ao adotado o sobrenome do adotante, podendo, a pedido, ser modificado o prenome do adotado, se menor.[35]
A Consolidação Normativa Notarial e Registral orienta aos oficiais do Registro Civil das pessoas naturais que a adoção será inscrita no Registro Civil do adotado conforme as determinações do mandado judicial. Deste mandado que ordenar a adoção não se dará certidão, cancela-se o registro original e nenhuma observação sobre a origem do ato poderá constar na certidão de registro do adotado. A certidão de nascimento do adotado contará os nomes dos pais do adotante como avós do adotado, como fosse um registro original. Pela orientação da Consolidação, pelo que se denota, há o respeito ao princípio da igualdade de filiação que protege a paternidade sócio-afetiva e igualmente obedece ao princípio do melhor interesse do menor.
2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL FRENTE À ADOÇÃO
Neste capítulo serão abordados dois aspectos relevantes para a elucidação do tema ora proposto. O primeiro item fará referência ao princípio da igualdade de filiação, segundo o qual, não há discriminação de nenhuma natureza entre os filhos, independente da origem da filiação, princípio este que é o principal preceito legislativo que afronta o inciso III do art. 10 do novo Código Civil. Também será abordada a nova posição dos filhos na concepção contemporânea da família, tendo em vista que, acredita-se que a referência feita pelo artigo do diploma civil pátrio é totalmente contrária às premissas da nova concepção de família baseada nos laços de afeto existente entre seus membros.
2.1 Princípio da igualdade de filiação
O direito de família e o sistema de filiação brasileiros foram regulados inteiramente pelo Código Civil Brasileiro de 1916, com vigência a partir de 1917. A noção de família retratada pelo Código refletia essencialmente uma comunidade de sangue fundada no casamento (art.229 do Código Civil de 1916). [36]
Para o autor Orlando Gomes:
O Código refletia ao tempo de sua elaboração, a imagem da família patriarcal entronizada num país essencialmente agrícola, com insignificantes deformações provenientes das disparidades da estratificação social. Sob permanente vigilância da Igreja, estendia às mais íntimas relações conjugais e ao comportamento religioso, funcionava como um grupo altamente hierarquizado, no qual o chefe exercia os seus poderes sem qualquer objeção ou resistência, a tal extremo que se chegou a descreve-la como um agregado social constituído por um marido déspota, uma mulher submissa e filhos aterrados.[37]
Nesse diapasão, de família baseada na hierarquia e submissão, a filiação também era considerada de modo diferente do que é hoje, ou seja, baseada totalmente no princípio da igualdade. Uma das características dessa época era a discriminação dos filhos havidos fora da relação de matrimônio. Como observa Julie Cristine Delinski:
[…] a distinção criada pelo sistema de filiação codificado repercutia no estabelecimento da filiação. O nascimento do filho fora do matrimônio (v.g. filiação adulterina a patre) o colocava numa situação social marginalizada, impedido de ser reconhecido pelo pai e excluído da linha familiar paterna, em favor da maior estabilidade e garantia da organização familiar, ou seja, para garantir a “paz familiar” do lar formado pelo casamento do pai, fazendo prevalecer os interesses da instituição “matrimônio” sobre os interesses dos membros que a compunham. [38]
A espécie de família era estritamente patriarcal e hierarquizada, onde o pai exercia o papel principal, em razão de crenças e até mesmo da força física. Silvio de Sálvio Venosa afirma “a monogamia desempenhou um papel de impulso social em benefício da prole, ensejando o exercício do poder paterno”.[39]
A família retratada como “comunidade de sangue” tinha como fonte exclusiva o casamento, e somente os filhos provenientes dessas uniões matrimonializadas eram considerados legítimos. Havendo situações que ameaçassem a segurança da família, eram elas ignoradas pelo ordenamento jurídico (como exemplo, os filhos extramatrimoniais), prevalecendo um único interesse: a família matrimonializada.[40]
Nos últimos anos, especificamente após o surgimento da Constituição da República de 1988, o direito de família codificado vem sofrendo profundas alterações. Conforme tem-se demonstrado no decorrer deste estudo, a família está se transformando radicalmente. A reforma do instituto jurídico da filiação, com a adoção do sistema unificado de filiação, trouxe novo enfoque à paternidade, considerada como um direito de todos os filhos.
Com fundamento em vários princípios do Código de Menores, a Constituição Federal de 1988 eliminou a classificação doutrinária que havia sobre a filiação, consagrando o princípio da igualdade entre os filhos, por força do que estabeleceu o §6º, do artigo 227, conforme segue: ”Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. [41]
De modo que o sistema de filiação adotado pelo atual Código Civil foi alterado pela Constituição da República de 1988 (art.227, §6º), já não havendo a discriminação entre filhos “legítimos” e “ilegítimos”, atribuindo-se ao filho havido fora do casamento o status do filho concebido ou tido na constância do casamento. [42]
Neste sentido, referiu-se Pedro Belmiro Welter:
– a primeira, a Constituição Cidadã de 1988, ao reconhecer a igualdade da filiação, não discrimina os filhos havidos, ou não, na constância do casamento, da união estável ou da comunidade formada entre o pai e/ou a mãe e o filho, pelo que os filhos têm o direito constitucional à paternidade e a maternidade biológica ou socioafetiva. [43]
Comentando sobre a igualdade jurídica dos filhos em relação à origem, especificamente sobre a adoção, a lição de Sérgio Gischkow Pereira:
A adoção é instituto por demais sublime e grandioso para amesquinhar com exegeses restritivas alicerçadas no fechamento egoístico da família consangüínea, em estranhas concepções sobre meias filiações e o aceitar de uma desigualdade que só provocará traumas psíquicos ao adotado, tudo em nome de interesses menores, porque puramente patrimoniais, ou seja, vinculado à herança. [44]
Com a adoção do sistema unificado de filiação começa a alterar a estrutura da família, a verdade jurídica – que até então impunha a alguns uma paternidade fictícia e a outros impedia que se lhes declarasse a verdadeira paternidade – passa a ser contestada em favor da verdade biológica. A busca pela paternidade fez surgir nesse novo Direito um problema de valoração do instituto da paternidade. Chegou-se a um ponto em que existem três espécies de paternidade: uma jurídica, uma biológica e uma sócio-afetiva. [45]
Atualmente, os progressos científicos no âmbito da genética permitem maior transparência nas relações de filiação, possibilitando a identificação consangüínea do genitor e atribuindo-lhe a responsabilidade da paternidade. Dessa forma, busca-se amparar as pretensões de declaração da paternidade na justiça brasileira atual. Como garantia, a Constituição Federal ordena um tratamento igualitário a qualquer tipo de filiação, assegurando o direito, a toda criança, de conhecer suas origens, sua identidade biológica e civil e seus parentes consangüíneos.
A atividade probatória que se realizava nos processos desencadeados pelas ações de estado, até a bem pouco tempo, resumia-se a indícios, oitiva de testemunhas e exames de sangue, nem sempre confiáveis. O DNA trouxe um elevado grau de cientificidade ao juízo probatório. Aquilo que, antes, se julgava com base em aparências, passou a ser diagnosticado e solucionado com pequena margem de erro. [46]
O conceito de igualdade acolhido, inclusive como princípio de interpretação às normas infraconstitucionais em matéria de família buscou resgatar a idéia jurídica de isonomia, ou seja, só existe a proibição legal de que o essencialmente igual seja tratado de forma diferente. É também a isonomia que se busca na identificação dos filhos de uma mesma mãe ou de um mesmo pai. É ainda a isonomia que protege o patrimônio entre personagens que disponham do mesmo status familiae.[47]
A igualdade de filiação é premissa que deve ser respeitada eis que elevada a categoria de princípio constitucional pela Carta Magna brasileira e, diga-se, é fator preponderante para a elucidação do conflito de normas ora abordado nessa pesquisa.
2.2 Paternidade socioafetiva
Quando falamos em paternidade socioafetiva, cabe mencionar uma passagem bíblica que envolve a disputa de duas mães. Tais considerações históricas já demonstram que o vínculo de afeto nas relações entre pais e filhos superaram o tempo: Ocorreu o seguinte:
“16. Então vieram duas prostitutas ao rei, e se puseram perante ele. 17. Disse-lhe uma das mulheres: Ah! Senhor meu, eu e esta mulher moramos na mesma casa, onde dei à luz um filho. 18. No terceiro dia depois do meu parto, também esta mulher teve um filho. Estávamos juntas; nenhuma outra pessoa se achava conosco na casa, somente nós ambas estávamos ali. 19. De noite morreu o filho desta mulher, porquanto se deitara sobre ele. 20. Levantou-se à meia-noite, e, enquanto dormia a tua serva, tirou-me a meu filho do meu lado, e o deitou nos seus braços; e a seu filho morto deitou-o nos meus. 21. Levantando-se de madrugada para dar de mamar a meu filho, eis que estava morto; mas, reparando nele pela manhã, eis que não era o filho que eu dera à luz. 22. Então disse a outra mulher: Não, mas o vivo é meu filho, o teu é o morto. Porém esta disse: Não, o morto é teu filho, o meu é o vivo. Assim falaram perante o rei. 23. Então disse o rei: Esta diz: Este que vive é meu filho, e teu filho é o morto; e esta outra diz: Não, o morto é teu filho, o meu filho é o vivo. 24. Disse mais o rei: Trazei-me uma espada. Trouxeram uma espada diante do rei. 25. Disse o rei: Dividi em duas partes o menino vivo, e daí metade a uma, e metade a outra. 26. Então a mulher, cujo filho era vivo, falou ao rei (porque o amor materno se aguçou por seu filho), e disse: Ah! Senhor meu, dai-lhe o menino vivo, e por modo nenhum o mateis. Porém a outra dizia: Nem meu nem teu; seja dividido. 27. Então respondeu o rei: Dai à primeira o menino vivo; não o mateis, porque esta é sua mãe”. [48]
Esta história revela um acontecimento histórico marcante quando é abordado o tema da paternidade sócio-afetiva, a qual será objeto de item próprio no decorrer da pesquisa. Foi uma situação difícil de ser julgada, onde o rei sem ter conhecimento da verdade quanto àquela filiação, julgou baseado no afeto, no carinho, no amor demonstrado pela mãe em relação à criança. Na verdade, não se teve naquele momento uma certeza da maternidade biológica, mas, predominou na decisão do rei o vínculo afetivo que existia entre a mãe e a criança. Este vínculo afetivo que esteve tão distante na legislação brasileira, voltou a ser fator determinante nas decisões envolvendo paternidade, com a promulgação da Constituição Federal e legislações posteriores.
Conforme já foi anteriormente explanado as relações familiares, atualmente, baseiam-se em valores que enaltecem o afeto em detrimento do simples vínculo biológico.
A família, conforme Pedro Belmiro Welter, “não é a base natural, e sim cultural da sociedade, não se constituindo apenas por um homem, mulher e filhos, mas, sim, de uma edificação psíquica, em que cada membro ocupa um lugar/função de pai, de mãe, de filho, sem que haja necessidade de vínculo biológico”. [49] Ainda de acordo com o autor acima citado, já é hora de ser relativizado o dogma da paternidade e da maternidade biológico, porque o filho precisa da figura de um pai, e não tão-somente de um genitor biológico, para contribuir no desenvolvimento emocional e material, uma vês que “faz parte da natureza humana o desejo de ser amado e protegido”.[50]
Nestes tempos de busca de maior autenticidade das relações, toma forma a noção de filiação através do afeto, reconhecendo-se o que se denomina de filiação sociológica. Essa nova concepção, conforme ensina Julie C. Delinski:
Ademais, na família sociológica, a concepção de paternidade não se restringe ao ato da procriação ou revelação dos laços de sangue: há necessidade de outro elemento, caracterizado pelos laços de afeto. A noção de paternidade, anteriormente estruturada sobre aspectos meramente biológicos, ou presumidamente biológicos, extrapola agora o terreno do ato físico, para adentrar com força e veemência na área afetiva. A paternidade passa a ser não só ato físico, mas, principalmente, ato de opção. Nessa linha de pensamento, pode se dizer que o novo texto constitucional, não obriga, quem quer que seja, a assumir uma paternidade que não deseja. Isso seria mesmo impossível faze-lo, sem violentar, nem tanto a pessoa, mas a própria idéia de paternidade, assim entendida como intensa relação amorosa, autodoação, gratuidade, engajamento íntimo, independente de imposição coativa. [51]
Conclui-se, dessa forma que existem três tipos de paternidade, a jurídica, a biológica e a sócioafetiva. A falta de coincidência entre essas três formas de vínculo familiar pode ocasionar alguns conflitos de ordem jurídica. A dúvida reside na prevalência da consangüinidade, da afetividade ou da definição legal. Em uma análise constitucional das três verdades da filiação, deduz-se que “modernamente, diante das reformas do Direito de Família, não mais se admite o estabelecimento da filiação legal, denominada ficção jurídica ou ficta, restando apenas a verdade genética e a socioafetiva” .[52]
Amor, dedicação e assistência são elementos tão importantes na identificação da real paternidade quanto o vínculo biológico entre pais e filhos naturais, denota-se crescimento da dimensão da chamada posse do estado de filho, devido à que a desbiologização da paternidade encontra respaldo exatamente no fortalecimento dessa noção: “O elo que une pais e filhos é, acima de tudo, socioafetivo, moldado pelos laços de amor e solidariedade, cujo significado é muito mais profundo do que o do elo biológico”. [53]
A legislação brasileira estabelece a paternidade com o registro de nascimento efetuado em cartório. Através de um ato declaratório, uma paternidade é estabelecida. Mas esta paternidade, criada por um vínculo biológico, pode ocorrer também por um vínculo afetivo, onde a criança toma posse do estado de filho, embora não seja imprescindível o chamamento de filho, mas os cuidados na alimentação, na instrução, o carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, revelam no comportamento a base da paternidade. [54]
A Carta Magna redefiniu a noção de família com base em valores que consagram a paternidade sócioafetiva. Por conseqüência, se faz necessária a substituição dos fundamentos axiológicos rigidamente normativos, que até há pouco norteavam o Direito de Família, por critérios interpretativos humanizados. Nessa linha, destaca-se a família nuclear, que se distingue de todos os outros padrões familiares pelo seu peculiar sentido de solidariedade que une os membros da unidade doméstica pela espontânea vontade:
O afeto e a família são dois conceitos com características muito parecidas e se encontram intimamente ligados. Ambos são comumente referidos como dados, como fatos, embora sejam abstrações de difícil determinação. Ambos estão presentes em todos os momentos de nossa vida, e, especificamente com relação ao afeto, é preciso lembrar que não diz respeito apenas àquilo que denominamos de “amor”, mas, sim, a todos os sentimentos que nos unem. [55]
A nova ordem constitucional elevou valores ao ápice do ordenamento jurídico, que vieram a determinar três premissas a caracterizar a matéria da filiação: a funcionalização das entidades familiares à realização da personalidade de seus membros; a despatrimonialização das relações entre pais e filhos, que passaram a ser subordinadas a outros valores, sobretudo ao fundamento da dignidade da pessoa humana, e a desvinculação entre os relacionamentos dos genitores e a proteção conferida aos filhos. Estes fatores implicam na “repersonalização” das relações de família e objetivam a realização sentimental da pessoa no grupo familiar.
Apontam as autoras Leila Maria Torraca de Brito e Lygia Santa Maria Ayres, em seu artigo sobre a destituição do poder familiar que, “a filiação transcende a singularidade do vínculo afetivo ou biológico, demonstrando a importância de as montagens jurídicas, dispostas nas distintas sociedades, garantirem o lugar do sujeito em suas corrente genealógica”.[56]
Quando se observa o Código Civil antigo, as legislações anteriores à Constituição Federal e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, os fatores históricos que delineavam as regras da adoção, percebe-se uma tendência totalmente voltada a questão jurídica e biológica da paternidade. Pode-se, dessa forma, concluir que, a atual legislação inovou na questão da adoção, trazendo a esta uma característica totalmente diferenciada da legislação anterior, ou seja, primou-se pela questão sócio-afetiva, pela questão do vínculo amoroso que deve predominar nas decisões sobre adoção.
2.3 Os princípios da proteção integral da criança e do adolescente
A Constituição Federal de 1988 trouxe a noção de Estado Social de Direito, buscando a realização dos direitos fundamentais no plano material. Alguns destes estão localizados fora do seu Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. É o que ocorre com o direito de proteção integral à família, que, em que pese fora dos princípios ali elencados, é considerado fundamental dada a importância que exerce no desenvolvimento da sociedade, e sua característica de efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, própria dos direitos fundamentais.
Destarte, a Carta Magna, em seu art. 226, garante especial proteção do Estado à família, elevando-a à base da sociedade. A constitucionalização das relações familiares trouxe a repersonalização do Direito de Família, e, agora, dadas relações são intersubjetivas, e não mais individuais, objetivando a realização do indivíduo. Portanto, para a concretização desse direito fundamental deve ser considerada família seja a união legalizada pelo casamento ou aquela sedimentada por duradouro tempo de convivência – união estável, bem como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes – família monoparental. Constitucionalmente, todas são merecedoras de proteção do Estado Social democrático de Direito como núcleo familiar, assim entendido o agrupamento de pessoas envolvidas por laços de sangue, vínculos afetivos e comunhão de interesses. [57]
A família eudemonista, busca a felicidade individual, vivendo um processo de emancipação de seus membros. Os direitos fundamentais, como, por exemplo, a filiação sócioafetiva, pela sua importância material e formal, foram consagrados no Texto Constitucional, sendo retirados da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos. “Lutar pelos direitos fundamentais significa ter como meta a permanente e plena realização do princípio da dignidade da pessoa humana”. [58]
Já, no art. 227, a Carta Federal busca a eficácia máxima de outros direitos fundamentais fora do rol, os Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente, proclamando a Doutrina da Proteção Integral. Para isso, é acompanhada na sua concretização pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que organizou toda a matéria relativa à proteção da infância e da adolescência, tratou o direito ao estabelecimento da filiação, enfatizando a igualdade entre os filhos e a necessidade de garantir-se o interesse da criança. Eis os principais dispositivos constitucionais a esse respeito, segundo Pedro Belmiro Welter:
O Pacto Constitucional de 1988, nos arts. 1º, incisos II a IV, 3º, incisos I e IV, 4º, inciso II, e art. 170, apenas para citar alguns exemplos, valorizou a família e a pessoa humana, alçando a cidadania e a dignidade a fundamento do Estado Democrático de Direito e da República Federativa do Brasil. E nos arts. 226 a 230, quando tratou da família, da criança, do adolescente e do idoso, o Constituinte revogou todos os dispositivos legais do Código Civil de 1916, ainda arraigados ao Direito Romano, em que prevalecia a hierarquia e os interesses da família em detrimento do bem-estar de seus membros. Pelo Texto Constitucional brasileiro, a família é que deve ter como objetivo a felicidade de seus integrantes, pelo que está constitucionalizado o afeto, o carinho, o desvelo, a solidariedade.[59]
Dessa forma, qualquer norma jurídica em Direito de Família exige a presença de fundamento de validade constitucional, com base na combinação dos princípios constitucionais da isonomia dos filhos, do pluralismo dos modelos familiares com o fundamento da República Federativa do Brasil e da dignidade da pessoa humana.[60] Ou seja, a filiação socioafetiva compreende a relação jurídica de afeto, como o chamado “filho de criação”, a adoção judicial, o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade e a conhecida “adoção à brasileira”.[61]
Por sua vez, além da proteção dada pela Constituição à família, os menores têm diploma jurídico próprio que lhes assegura proteção integral, qual seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente.
No art. 1º da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) é acalentada a incidência dos princípios da proteção integral à criança e ao adolescente, demonstrando, com isso, que “se o século XX foi das mulheres, o século XXI será indiscutivelmente das crianças”.[62]
Em relação à adoção, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 48, prevê especial proteção no sentido de considerá-la irrevogável. Nesse sentido, Pedro Belmiro Welter tece os seguintes ensinamentos:
Considerando que a Constituição Federal engendrou a unidade da filiação, assim como a irrevogabilidade da adoção, que é uma forma de filiação socioafetiva (em suas várias modalidades, conforme consta do início deste capítulo), conclui-se que a filiação sociológica também é irrevogável. Isso porque, além de ter assento constitucional (arts. 226, §§ 4º e 7º, e 227, §6º), devem ser observados os princípios da prioridade e da prevalência absoluta dos interesses da criança e do adolescente, conforme art. 227, cabeço, da Carta Magna, e arts. 1º, 6º, 15 e 19, entre outros, do estatuto da Criança e do Adolescente.[63]
O Estatuto reproduz o dispositivo constitucional, desmembrando-o nos artigos 3º, 4º e 5º, em que ficam evidentes as garantias de direitos da população infanto-juvenil. Assim, garante-lhes o gozo de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana com prioridade absoluta, impondo a primazia para as políticas sociais públicas como dever da família, da sociedade civil e do Poder Público. Isto deve-se às crianças e adolescentes possuírem características específicas devido a sua peculiar condição de pessoas em vias de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social.
Dentre os Direitos Fundamentais reproduzidos pelo Estatuto, em seu artigo 19 dispôs que “toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família”, procurando ressaltar a importância da vida em família como ambiente natural para o desenvolvimento daqueles que ainda não atingiram a vida adulta, valorizando esta convivência quer na família natural, quer na substituta.
Buscando a concretização do Direito Fundamental à convivência familiar, o Estado garante a proteção à família sob suas diversas formas de constituição e ampara a figura da substitutiva finalizando ao bem-estar da infanto-juventude. A proteção integral da família apresenta-se como um meio de alcance e garantia da Doutrina da Proteção Integral dos menores.
Mais especificamente sobre o tema, como já foi visto ao longo deste trabalho, o art. 227 [64] da Constituição Federal de 1988, prioriza a proteção do menor e ao colocá-lo no Título VIII, da Ordem Social, em seu Capítulo VII, as normas reguladoras da família, da criança e do adolescente e do idoso, analisando o texto constitucional sistematicamente, tem-se que a ordem social é um dos fundamentos da República Federativa, já que assim se encontra disposto no art. 3º, I, da mesma Constituição, as normas referentes à família erigiram ao status de Direito Constitucional.[65]
No sistema codificado os filhos do matrimônio desfrutavam de uma situação privilegiada, pois a presunção de paternidade permitia determinar a identidade do pai, desde o nascimento, gerando assim os direitos de filho e os deveres de pai que consistiam num complexo de obrigações de sustento, educação, atribuição do nome e exercício pleno do pátrio poder.
Na contemporaneidade, somos levados a constatar que família não é apenas um conjunto de pessoas em que uma parceria entre os cônjuges como pais biológicos esteja configurada, mas uma relação de valorização entre seus membros, pois “Não é um espermatozóide que define o que é um pai e nem o fato de uma mãe gestar um filho em seu ventre que garante a maternidade. Também não veremos brotar da letra fria da lei, um pai, uma mãe, ou uma família para um filho.” [66] Os deveres de pai, portanto, no ideal de família nuclear, decorrem de vontade e não de uma ficção posta pela lei.
Infelizmente, à época de uma legislação abolicionista de preconceitos, desigualdades e discriminações, ainda sim vicejam os conflitos e proliferam os dissídios entre homem e mulher e pais e filhos, exteriorizando-se na violência doméstica, no abandono material, na ruptura de compromissos e na incessante necessidade de intervenção judicial para a minimização dos confrontos, o que lamentavelmente é determinante na formação moral da criança, pois no futuro não há muito jeito de se desvencilhar da ordem simbólica que a precedeu, ordenação marcada pela relação de seus pais.
Por isso, torna-se necessário que os operadores do Direito de Família compreendam a dimensão constitucional atribuída a este ramo, buscando interpretá-lo à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade e, ainda, das disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente, sempre buscando a melhor solução para a criança, resguardando seus direitos e respeitando suas peculiaridades, justamente, porque a criança encontra-se em fase de desenvolvimento de suas potencialidades, merecendo, desse modo, proteção e assistência especiais.
3 A IGUALDADE DE FILIAÇÃO E O ART. 10 DO NOVO CÓDIGO CIVIL
Neste capítulo passa-se a abordar especificamente o tema desta pesquisa, eis que, após as considerações feitas nos itens anteriores, é possível aduzir algumas conclusões acerca do tema ora proposto. A igualdade de filiação é que restou prejudicada pelo art. 10 do novo Código Civil é o princípio fundamental a ser invocado na solução dos conflitos envolvendo o tema, além do interesse do menor e demais premissas do direito pátrio que vão ao encontro da proteção integral dos menores inseridos em situação que requerem tais cuidados.
3.1 A supremacia do interesse do menor no conflito de interesses pertinentes aos casos de adoção e as disposições constitucionais e princípios relativos à adoção
O Estatuto da Criança e do Adolescente adotou a doutrina da Proteção Integral como princípio a fim de dar ampla proteção aos menores que merecem e necessitam tratamento diferenciado, pois, sujeitos de direito em situação peculiar de hipossuficiência.
A Constituição Federal de 1988 adotou a premissa da Proteção Integral, constituindo-se em um avanço legislativo muito importante para o ordenamento jurídico pátrio. A Carta Magna, em seu artigo 227, proclama essa proteção integral, determinando e assegurando os direitos fundamentais relativos aos menores, proclamando, sobretudo, a igualdade e a supremacia do interesse do menor.
É dever da família, do Estado e da sociedade, no cumprimento de suas obrigações constitucionais, promover a assistência integral dos menores, através de programas que viabilizem o acesso de crianças e adolescentes à saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura e convivência familiar. [67]
Sobre o posicionamento da Constituição Federal ao adotar a doutrina da Proteção Integra, a lição de Maria Regina F. de Azambuja:
Não há como deixar de mencionar, dentro do contexto histórico, a postura de vanguarda assumida pelo Brasil, em 1988, ao introduzir a doutrina da Proteção Integral em seu sistema jurídico, através do art. 227 da Constituição Federal. Portanto, mesmo antes da aprovação do texto que deu origem à Convenção, nosso país já assumira um compromisso com a infância. [68]
São direitos fundamentais assegurados aos sujeitos da norma acima citada, uma vez que, além do Brasil ser signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ou seja, esta norma é considerada parte de “tratado internacional”, como também por terem sido garantidos na convenção e recebidos pelo § 2º do art. 5º, ganhando, portanto, o status de direitos fundamentais, embora não estejam expressamente elencados pelo art. 5º e seus 77 incisos de nossa Constituição, o qual dispõe acerca dos direitos fundamentais.[69]
O artigo 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente praticamente transcreve o artigo 227 da carta magna, que determinam que, primeiro, a família e, supletivamente, o estado e a sociedade, têm o dever de assegurar por todos os meios, de todas as formas e com absoluta prioridade, todos os direitos inerentes à constituição de um homem civilizado.
A jurisprudência em relação a este tema é vasta e os tribunais do país, em seus acórdãos, têm demonstrado que o interesse do menor sempre está acima do interesse de seus pais. Embora, como bem denota Tânia da Silva Pereira, “desafia-nos a identificação no Direito Brasileiro, deste princípio, por meio das regras de interpretação e das normas de Direito Positivo”. [70]
O interesse do menor é soberano e está acima de qualquer questão patrimonial ou interesse pessoal dos pais, deverá ser adotado em qualquer conflito de interesses entre os sujeitos de direito participantes do procedimento judicial de adoção, pois, legalmente previsto pelo art. 1.625 do Novo Código Civil, o qual somente admite a adoção que constituir em efetivo benefício para o adotando.
O melhor interesse da criança se constitui nos cuidados básicos e essenciais para que os menores vivam com saúde física, intelectual e emocional, cuja obrigação de assegurá-los é, em princípio dos pais, mas, em estes negligenciando-os cabe ao Estado intervir para garanti-los. [71]
Em havendo conflitos de interesses em processos de adoção, a verificação do juiz deverá ser a respeito das vantagens para o menor, de forma a garantir o seu desenvolvimento, consoante disposto no art. 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente. [72]
O princípio do melhor interesse da criança, como direito fundamental constitucionalmente previsto é parâmetro a ser respeitado pelo legislador ordinário. Nas palavras de Tânia da Silva Pereira:
Destacamos especialmente, o princípio do “melhor interesse da criança”, indicado no artigo 3. da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) ao declarar que “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”. [73]
Conclui-se que o objetivo da lei é proteger de uma maneira geral o interesse do menor, facultando ao juiz decidir o que for mais conveniente ao bom desenvolvimento do menor. Por esta razão a jurisprudência nacional sempre se mostra favorável a decidir em favor dos filhos e a bem destes em detrimento dos interesses dos adultos.
Esta preocupação da legislação e dos operadores do direito em dar ampla proteção aos menores deve-se ao fato de a adoção não existir apenas para promover a satisfação daqueles que adotam, mas, sobretudo, visar à constituição de família substituta ao menor, para que possa desenvolver-se e realizar-se como ser humano.
Ainda nesse sentido de proteção ao melhor interesse do menor a lição de Tânia da Silva Pereira em seu artigo sobre a adoção:
Portanto, os direitos fundamentais da criança e do adolescente, inseridos dispersamente no texto constitucional, ou ainda os consagrados pela ratificação dos diplomas acima relacionados constituem um limite mínimo a ser respeitado pelo legislador ordinário. […] Destacamos, especialmente, o princípio do “melhor interesse da criança” indicado no artigo 3º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (ONU – 1989) ao declarar que “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais e autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.[74]
O Estatuto da Criança e do Adolescente incorporou os princípios constitucionais e tratados internacionais que prevêem a doutrina da Proteção Integral e, constitui-se numa norma de extremo valor, pois significa a introdução na ordem jurídica de avanços que ocorreram na ordem social, deixando para trás uma legislação ultrapassada, que não supria a necessidade que a maioria das crianças tinha, que era uma relação de afeto, onde os seus interesses deveriam predominar.
É sempre oportuno lembrar que permanecem em vigor os princípios constitucionais nunca revogados por leis ordinárias e aqueles adotados por documentos internacionais ratificados pelo Brasil.
3.2 O conflito de normas e o art. 10, III, do novo Código Civil
Como já foi amplamente abordado nessa pesquisa são proibidas quaisquer designações discriminatórias nos assentos de registro de nascimento, tanto é que a Consolidação Normativa Notarial e Registral editada pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul determina quais são as características proibidas de constar no registro de nascimento: a cor de quem está sendo registrado, a natureza e a origem da filiação, o lugar do casamento dos pais e o estado civil destes, bem como qualquer indício de não ser a criança fruto do casamento.
Tal orientação é em face do disposto no art. 47, § 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente. As crianças e adolescentes adotados têm um registro de nascimento igual ao dos filhos naturais, sem nenhuma menção de que a criança é adotada. A justificativa de se observar esta conduta é por que a adoção é feita por sentença do Juízo da Infância e da Juventude, que será inscrita no Registro Civil das Pessoas Naturais, mediante mandado, do qual não se fornecerá certidão. Ela só saberá de sua condição se os pais adotivos quiserem contar. O seu registro primitivo é cancelado, como se nunca tivesse existido.
A orientação é de que o registro original do adotado deverá ser cancelado, para constar, na nova certidão de nascimento, os dados dos pais adotantes, sem qualquer referência à adoção, ou seja, “nas certidões do registro, não poderá constar nenhuma observação sobre a origem do ato, exceto para salvaguardar direitos, mediante autorização judicial (art. 47 do ECA)”.[75]
Contudo, o Novo Código Civil trouxe à luz a questão da polêmica do inciso III, do art. 10 do citado diploma legal. Leia-se, in verbis o teor do art. 10 do novo Código Civil: Art. 10. Far-se-á averbação em registro público: I – das sentenças que decretarem a nulidade ou anulação do casamento, o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal; II – dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação; III – dos atos judiciais ou extrajudiciais de adoção.
Desta forma, percebe-se que o Código Civil trouxe mais dúvidas do que respostas no que se refere à adoção, as quais precisam ser solucionadas. Porém, primeiramente, relacionar-se-ão as premissas irrefutáveis, conforme segue: os filhos originários através da adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibida qualquer designação discriminatória. A adoção ocorrerá, sempre, por processo judicial (sentença constitutiva) e somente será possível se o adotante for maior de 18 (dezoito) anos e possuir, no mínimo, 16 (dezesseis) anos de diferença do adotado (arts. 1.618, 1.619 e 1.623).[76]
Destarte, conforme anteriormente explicitado, as dúvidas que surgiu é se deve ser utilizada a orientação da CNNR, a qual foi adotada pela Vara de Registros Públicos de Porto Alegre, ou, deve ser seguido o Código Civil e proceder-se à averbação das sentenças constitutivas de adoção.
A partir da vigência do novo diploma civil os procedimentos de registro de adoção tornaram-se uma questão polêmica entre os registradores, os quais envolveram-se na dúvida entre continuar com o procedimento de cancelar o antigo registro, ou, simplesmente seguir a orientação do novo código e averbar o mandado que determina o registro de nascimento do adotado.
Sobre o tema, a autora Regina de Fátima Marques Fernandes elucida com a seguinte opinião:
Embora o artigo 10, inciso III, do CCB traga a adoção elencada como ato de averbação, no Estado do Rio Grande do Sul, no I Encontro Estadual de Juízes da Infância e da Juventude, realizado na cidade de Bento Gonçalves, no mês de dezembro de 2002, foi concluído e aprovado, por unanimidade, que continua em vigor o artigo 47 do ECA, em virtude do princípio constitucional de proteção à criança, entendendo haver flagrante equívoco de redação no artigo 10, incisos II e III do CCB, devendo ser mantido o procedimento de cancelamento do registro original do adotado e lavratura de novo assento de nascimento.[77]
Também relevante citar o entendimento de Giovane Guimarães Serra Azul:
Além de correr o processo de adoção em segredo de justiça, como todos os que tramitam na justiça da infância e da juventude, há vedação legal ao fornecimento de certidão, que somente será fornecida a critério da autoridade judiciária, e para a salvaguarda de direitos, nos termos do ª 4º, do art. 47 do ECA. [78]
A título de curiosidade informe-se ainda que há um projeto de lei João Matos do PMDB de Santa Catarina, o qual visa regulamentar a adoção na legislação pátria nacional. A intenção do legislador, com o projeto acima citado, é dar aos pais a faculdade de revelar ou não aos filhos a condição de adotado, a fim de respeitar as premissas constitucionais e infraconstitucionais (Estatuto da Criança e do Adolescente) acerca da igualdade da filiação, paternidade sócio-afetiva e melhor interesse do menor. [79]
Como se observa, a linha que norteou a elaboração desse Projeto de Lei não foi, jamais, o confronto com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90), mas, ao contrário, o resgate dos seus princípios norteadores que, na área da adoção, foram duramente golpeados com a entrada em vigor do Novo Código Civil.
Contudo, merece menção a posição do Registrador João Pedro Lamana Paiva que possui entendimento diverso, senão vejamos:
Salvo entendimento diverso, entende-se que em todos os casos a sentença constitutiva deveria ser averbada no registro original. No entanto, ainda continua sendo aplicável o artigo 47 do ECA para as adoções de menores de 12 anos. Nos demais casos, entende-se que deverá ser averbada a adoção no assento primitivo. Pessoalmente, consideramos que o entendimento exposto não tem razão de se estabelecer, pois as certidões do Registro Civil das Pessoas Naturais nada informarão sobre a adoção, salvo por solicitação judicial. Também, no caso de adoção de maiores de 18 anos, não haverá prejuízo algum em manter o registro existente, averbando-se a adoção, porque exige-se o consentimento do adotado. Ademais, o sigilo quanto à adoção foi relativizado quando o adotado contar com mais de 12 (doze) anos de idade, uma vez que o mesmo deverá concordar com o pedido de adoção (art. 1.621 do CC). Ademais, o fato de ser adotado hoje não representa o estigma considerado em outra época. A sociedade evoluiu e o caráter preponderante para ser valorizado hodiernamente é o sócio-afetivo. [80]
Enquanto ainda perduram divergências e continua em trâmite o projeto de lei do deputado João Matos no Congresso Nacional, para a solução da polêmica sobre o registro de adoção no Brasil os registradores, em sua maioria, continuam obedecendo as orientações da Consolidação Normativa Registral e Notarial, cancelando o registro original do adotado e registrando-o em novo assento de nascimento sem qualquer menção à origem do ato.
CONCLUSÃO
Os desafios e paradoxos contemporâneos que emergem dos fatos e assombram o direito de filiação no âmbito do Direito de Família no Brasil merecem adequado tratamento a fim de preservar o melhor interesse do menor.
A vida impõe avanços na estrutura das velhas e, porque não dizer, das novas leis para que se estruturem de acordo com os princípios basilares do Direito.
O direito de família é um direito dinâmico, complexo, em permanente alteração o que lhe impõe constantes adaptações. E isso se reflete nas mudanças porque passou a família.
Numa análise histórica do conceito de família vimos primeiramente uma sociedade patriarcal e parental, na qual se criou um casamento indissolúvel, tornou-se a mulher relativamente capaz ao casar e reconheceu-se os filhos havidos dentro de um casamento como filhos do pai, impedindo-se qualquer possibilidade de reconhecimento dos descendentes que excepcionassem tal regra, com a única finalidade de preservar a família. A presunção pater is est expulsou-os do convívio social e do mundo jurídico existente a sua volta.
No entanto, o que preservou a família não foi, com certeza, a lei civil, mas a sua própria evolução, com o movimento de mulheres, com a queda de preconceitos, com a ascendência da dignidade da pessoa humana, que derrubou tabus e vivificou a entidade familiar.
No caso abordado nessa pesquisa o que ocorre é, sem dúvida, um distanciamento entre o conteúdo da norma (in casu o art. 10 do novo diploma civil) e os princípios gerais que informam o direito.
No tocante à adoção o que há de prevalecer é o melhor interesse do menor em detrimento de qualquer outro, concluindo-se, por sua vez que a malfadada regra legal infringe, além do melhor interesse, o princípio de igualdade de filiação podendo ocasionar transtornos práticos e futuramente também morais ao adotado.
As crianças e adolescentes, por possuírem características específicas devido à sua peculiar condição de pessoas em vias de desenvolvimento, tiveram seus cuidados priorizados na Carta Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Para tanto, foi-lhes assegurada a vida em família, garantindo-lhes o gozo de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, através da Doutrina de Proteção Integral à infanto-juventude.
Subsistindo, por ocasião dos princípios constitucionais, apenas duas verdades em matéria de filiação, em que pese sejam ambas meios para buscar-se o respeito aos interesses da criança, em certas situações, uma delas poderá ser desconsiderada em favor da outra, no intuito de protegê-la, sobretudo porque a decisão a ser tomada terá reflexos diretos sobre sua situação fática, comprometendo, conseqüentemente, sua identidade.
O objetivo da Lei Maior é tutelar primeiramente o indivíduo enquanto ser. Neste diapasão, buscará um sentido de justiça na elaboração e aplicação das leis protetivas da família. Por isso, torna-se necessário que os operadores do Direito de Família compreendam a dimensão constitucional atribuída a este ramo, buscando interpretá-lo à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade e, ainda, das disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Salvo melhor juízo é acertada a posição do Juiz da Vara de Registros Públicos de Porto Alegre que orientou os cartórios daquela comarca de continuarem procedendo conforme a CNNR a fim de preservar os adotados de qualquer espécie de designação discriminatória em seus registros de nascimento.
Contudo, a decisão mais acertada seria a adequação da legislação civil acerca do tema determinando que os casos de adoção regidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente devem ser registrados conforme prevê a CNNR e os demais casos, a fim de preservar a paternidade biológica, entre outras implicações, deve ser averbada a adoção no registro do adotado, conforme prevê o Código Civil brasileiro, ressaltando sempre e mais uma vez que os casos de adoção devem ser analisados particularmente a fim de preservar o melhor interesse do adotado.
Informações Sobre o Autor
Sidnei Hofer Birmann
formado em Direito pela Faculdade de Direito de Santo Angelo, Especialista em Direito Notarial e Registral pela Universidade de Passo Fundo-RS, foi Tabelião e Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais na cidade de São Pedro do Butiá-RS, Oficial de Registros Públicos na cidade de Chiapetta-RS e atualmente é Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais da cidade de Uruguaiana-RS