INTRODUÇÃO
O instituto da inelegibilidade, por impor certas condições que devam ser preenchidas pelo candidato, gera, para aqueles que não a alcançaram, uma presunção relativa de que devam ser considerados impassíveis de exercerem um dos direitos políticos protegidos em sede constitucional, qual seja, o direito de serem votados. As causas geradoras de inelegibilidade estão descritas ou elencadas em sede de nossa Lei Maior, ao longo do artigo 14. Além das inelegibilidades decorrentes da vontade constitucional, outras são encontradas em lei complementar, na conformidade do § 9º, art. 14 da CF. Trata-se da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Com base nesta lei, bem como na legislação decorrente e correlata, é que estudar-se-á, neste sucinto trabalho, uma das causas mais importantes de inelegibilidade, que é a decorrente da interpretação do art. 1º, inciso I, alínea “g”, da LC nº 64/90, o qual prevê a declaração de inelegibilidade daqueles candidatos (ou pretensos candidatos) que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargo ou função pública rejeitadas pelos Tribunais de Contas. Desta forma, analisar-se-á a legislação comprometida com o processamento de contas públicas (em especial pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte), a Lei das Inelegibilidades (no tocante à específica do art. 1º, I, “g”), bem como os ditames de ordem constitucional federal e estadual, para que, assim, e finalmente, possa-se delinear o panorama do tema ora proposto, chegando-se a algumas conclusões de relevância para o estudo desta área do Direito Eleitoral, tão importante e, ao mesmo tempo, tão esquecida pela doutrina.
2. O CONTROLE DE CONTAS MUNICIPAIS NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
2.1. DA TUTELA CONSTITUCIONAL
Reza a Constituição Federal de 1988:
“Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.
§ 1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.
§ 2º O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal”.
A Constituição Estadual do Rio Grande do Norte, por sua vez, apenas repetiu os ditames da Constituição da Federação, fazendo-o no texto do art. 22, § § 1º e 2º. O controle externo a que se refere a Constituição Estadual, executado pelo Legislativo com o auxílio dos Tribunais de Contas, tem por função primordial a guarda da moralidade e legalidade administrativa, de forma a verificar casos de improbidade administrativa no decorrer do mandato exercido pelo político responsável. Este é o sentido empregado por norma antiga, mas recepcionada pela Constituição, qual seja a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que em seu art. 81 disciplina os objetivos do controle externo:
“Art. 81 O controle da execução orçamentária, pelo Poder Legislativo, terá por objetivo verificar a probidade da administração, a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos e o cumprimento da Lei de Orçamento”.
Trata-se, portanto, do controle político, executado pelo Legislativo, com o auxílio de um órgão técnico, que é o Tribunal de Contas.
Além deste controle político, possuem as Cortes de Contas competência exclusiva, a ser utilizada conforme o teor do art. 70, II, da CF/88, que diz:
“II- julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;”
Este comando é repetido na Constituição Estadual do Rio Grande do Norte, em seu art.53, II.
2.2. DA LEI ORGÂNICA DO TRIBUNAL DE CONTAS ESTADUAL (LC Nº 121/94), DAS FORMAS DE JULGAMENTO DAS CONTAS PÚBLICAS MUNICIPAIS E DA EFICÁCIA DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS
Tratando do TCE, a Constituição potiguar, por meio do art. 56, impôs a necessidade de o legislador criar lei que complementasse o seu texto, de forma a otimizar as atividades de controle externo inerente à Corte de Contas, o que se fez pela edição da Lei Complementar Estadual nº 121, de 20 de abril de 1994, a qual instituiu a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte (LOTCERN). Após o advento da Lei Orgânica, entrou em vigor a Resolução nº 012/94, aprovando o Regimento Interno do TCE, consolidando, deste modo, conceitos e procedimentos já abarcados pela Lei Orgânica, dispondo, inclusive, sobre a estrutura, jurisdição, competência e funcionamento da Corte de Contas.
O processamento do controle de contas dos municípios potiguares está regulamentado nos arts. 164 e seguintes do RI do TCE, e a competência para tanto encontra-se fixada na LOTCERN, art. 34, I, “b”. Tais contas serão integradas e demonstradas por meio de balancetes mensais, anuais e documentos que porventura venham a ser solicitados, para fins de análise e posterior emissão de parecer prévio pelo TCE, submetendo-se o resultado (se aprovadas as contas ou não), em seguida, à votação pelas respectivas Câmaras Municipais, as quais podem, por meio de votação de mais de 2/3 (dois terços) dos vereadores, manter ou confirmar a peça técnica emitida, julgando, por fim, regulares ou irregulares as contas das Prefeituras (RI, art. 171 e Lei Orgânica, art. 57, § 3º). Duas são as formas de se tornar definitivo o parecer emitido previamente pelo TCE: uma no caso de julgamento favorável pelos vereadores das respectivas Câmaras (conforme já demonstrada), e outra de acordo com o disposto no art. 56, § 4º da Lei Orgânica (LC nº 121/94), que diz:
“§ 4º. Publicado o parecer no Diário Oficial do Estado, suas conclusões prevalecem, como julgamento definitivo, se a Assembléia Legislativa não julgar as contas no curso da sessão legislativa em que foram apresentadas”.
O comando desta norma, aparentemente direcionado apenas para o parecer relativo às contas estaduais, é utilizado em analogia às contas municipais, por permissivo da própria LC nº 121/94:
“Art. 57. Ao parecer prévio sobre as contas dos Prefeitos Municipais aplicam-se, no que couber, as disposições do artigo anterior”.
Vale ainda ressaltar que o parecer prévio deve indicar, havendo rejeição das contas, as parcelas ou rubricas impugnadas (LOTCERN, art. 56, § 3º e RI, art. 166) para que, assim, respeitem-se os direitos à ampla defesa e ao contraditório daquele administrador que queira contestar os dados constantes da peça, por meio de remédio jurídico cabível (no caso, o “pedido de reexame”, constante do RI do TCE, art. 170, parágrafo único, a ser interposto no prazo de 20 – vinte – dias contados da publicação no Diário Oficial do Estado).
A outra forma de controle das contas municipais se dá não por meio de submissão de conclusões do Tribunal ao crivo das Câmaras de Vereadores, mas, sim, pelo julgamento realizado pela própria Corte de Contas, considerando-as regulares, aprovadas com ressalva ou irregulares.
São regulares as contas que expressam com clareza e objetividade a boa utilização do erário público pelas administrações, sem contornos de ilegalidade ou ilegitimidade de atos de ingestão econômica.
Consideram-se aprovadas com ressalva aquelas contas que , sem prejuízo da quitação do responsável, apenas apresentam impropriedade técnica ou outra falha de natureza formal, sem qualquer indício de má-fé ou negligência grave ou lesiva ao erário.
Já as contas irregulares, que são as que nos interessa neste estudo, são aquelas em que se constata as seguintes ocorrências, na conformidade do art. 305 do Regimento Interno:
“I- Omissão do dever de prestá-las, no prazo legal ou regulamentar, ou inobservância da forma exigida, indispensável ao conhecimento do mérito;
II- Prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo ou antieconômico, ou de infração a norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial, que comprometa o desempenho da administração com injustificado dano ao erário;
III- Alcançe ou desvio de dinheiro, bens ou valores públicos;
IV- Dano ao erário, em algum dos casos dos incisos anteriores ou de responsabilidade por perda, extravio ou outra irregularidade”.
São estas as causas que podem, portanto, motivar uma decisão desfavorável para os Prefeitos, acarretando, como conseqüência, a decretação de irregularidade das contas municipais, gerando ou não, conforme se verá a seguir, a inelegibilidade do responsável.
Quanto à eficácia das decisões dos Tribunais de Contas, têm-se entendido que as mesmas não afastam o exame dos casos pelo Poder Judiciário, ante o princípio constitucional da inafastabilidade, ficando a ressalva, porém, da impossibilidade de manifestação jurisdicional quando não sobrevier ilegalidade manifesta ou vício de aspecto formal. Neste sentido encontra-se balizada decisão do Superior Tribunal de Justiça, relatada pelo Min. Gomes de Barros:
“É logicamente impossível desconstituir ato administrativo aprovado pelo Tribunal de Contas, sem rescindir a decisão do colegiado que o aprovou; e para rescindi-la é necessário que nela constatem irregularidades formais ou ilegalidades manifestas (Revista STJ, nº 30, fevereiro de 1992, p. 379)”.
3. DA INELEGIBILIDADE PREVISTA NO ART. 1º, I, “G”, DA LEI COMPLEMENTAR FEDERAL Nº 64/90
Elegibilidade é a capacidade de o cidadão poder vir a exercer atos que impliquem ou culminem na sua eleição, pelo povo, mediante o exercício do voto direto e secreto, nos termos do caput do art. 14 da CF/88. Segundo Antônio Carlos Mendes (Introdução à Teoria das Inelegibilidades, p.102), “significa o direito de ser votado”. É capacidade eleitoral passiva, portanto.
O art. 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar Federal nº 64, de 18 de maio de 1990 (Lei das Inelegibilidades) impõe causa de inelegibilidade ao gestor público:
“Art. 1º São inelegíveis:
I- para qualquer cargo:
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados da data da decisão;”
Tendo, portanto, um Prefeito, rejeitadas suas contas, em decisão irrecorrível por parte de exame anual de contas efetuado pelas Câmaras Municipais (mediante exame e votação acerca de parecer prévio, conforme visto) ou mesmo por decisão de competência exclusiva do Tribunal de Contas, poderá ser tornado inelegível mediante impugnação a ser interposta na Justiça Eleitoral pelo Ministério Público, ou outro legitimado.
Pode o agente público que teve suas contas rejeitadas, porém, recorrer ao Poder Judiciário para levantar questionamentos acerca da decisão oriunda do Tribunal de Contas ou Casas Legislativas. Neste sentido a Súmula nº 1 do Tribunal Superior Eleitoral, relatada pelo Ministro Paulo Brossard, com publicação no Diário Oficial da União em 23, 24 e 25 de setembro de 1992:
“Proposta a ação para desconstituir a decisão que rejeitou as contas, anteriormente à impugnação, fica suspensa a inelegibilidade (Lei Complementar nº 64/90, art. 1º, I, g)”.
No Rio Grande do Norte, a matéria também já se encontra pacificada:
“Registro de candidato. Interpretação do art. 1º, inciso I, letra “g”, da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Não se pode considerar inelegível o candidato Orlando Florêncio Queiroz, por haver tido suas contas referentes ao exercício de 1982, quando exercia o cargo de prefeito municipal do município de Lagoa Salgada, rejeitadas pelo Tribunal de Contas e pela Câmara Municipal, uma vez que as referidas contas estão sendo objeto de apreciação pelo Judiciário, através de Ação Declaratória ajuizada no chamado tempo útil, ou seja, em data antes da impugnação. Recurso conhecido e provido. (RO nº 868/92 – T.R.E/RN – Decisão em 21.08.92 – Rel. Otacílio Pessoa da Cunha Lima)”.
E ainda:
“Recurso. Impugnações de registro de candidatura. Argüição de inelegibilidade, com fundamento no art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar nº 64/90. Rejeição de Contas pela Câmara Municipal. Ajuizamento de ação anulatória em tempo útil. Manutenção da sentença proferida pelo juízo a quo. A inelegibilidade prevista no art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar nº 64/90, não alcança os casos em que se comprove o ajuizamento de ação anulatória da decisão que rejeitou as contas. Improvimento do recurso (RO nº 495/96 – T.R.E/RN – Decisão em 30.07.96 – Rel. Lauro Molina)”.
4. CONCLUSÕES
Diante do exposto, pode-se chegar às seguintes conclusões:
a) o controle externo das contas municipais tem por fundamento a necessidade de proteção ao erário público contra a ação furtiva e irresponsável de administradores improbos, bem como visa a fiel execução da Lei Orçamentária;
b) o controle externo é realizado por meio das Casas Legislativas correspondentes, sendo, no âmbito municipal, efetuado por meio das Câmaras Municipais de Vereadores, com auxílio do Tribunal de Contas Estadual competindo a este, também, o exame de contas e regularidade da execução orçamentária por meio de decisões exclusivas, conforme ditames constitucionais e infraconstitucionais;
c) as decisões dos Tribunais de Contas possuem eficácia própria, conferida por via constitucional e reconhecida pela doutrina e jurisprudência, salvo os casos de ilegalidade manifesta ou irregularidade formal;
d) rejeitadas as contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível, pode o administrador público ver sua inelegibilidade declarada, por 5 (cinco) anos seguintes à data da decisão, nos termos da LC nº 64/90, art. 1º, I, “g”;
e) caso haja recurso da decisão perante o órgão competente para julgamento (Tribunal de Contas), ou interposição de ação anulatória ou desconstitutiva, perante o Poder Judiciário, para discussão acerca da rejeição de contas, fica suspensa a decretação da inelegibilidade do administrador responsabilizado, podendo o mesmo exercer sua capacidade política passiva, ou seja, ser votado.
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Informações Sobre o Autor
Felipe Luiz Machado Barros
Juiz de Direito em Florânia/RN
Mestrando em Direito Constitucional – UFRN
Membro do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e do IHJ (Instituto de Hermenêutica Jurídica)