Resumo. Na esteira do “Pacto do Estado em Favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano”, o Congresso Nacional aprovou uma série de leis federais que, inaugurando um novo ciclo de mini-reformas processuais, pretendeu conferir maior celeridade ao processo civil e maior efetividade à jurisdição. Dentre essas leis, ganham evidência, pela relevância contextual, as Leis n. 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006. Para o operador do processo laboral, às voltas com uma legislação processual serôdia, põe-se o desafio de aproveitar a verve da inovação processual civil para atualizar, pela via hermenêutica, o seu próprio instrumento de trabalho.
Palavras-chave. 1. Processo civil: pacote republicano. 2. Processo civil: aplicação subsidiária ao processo do trabalho. 3. Princípio da efetividade. 4. Princípio da celeridade processual. 5. Lei n. 11.187/2005. 6. Lei n. 11.232/2005. 7. Lei n. 11.276/2006. 8. Lei n. 11.277/2006. 9. Lei n. 11.280/2006.
Sumário: I. Introdução. Elementos do “novíssimo” processo civil brasileiro, II. Contratos preliminares de trabalho: artigos 466-A e 466-B do CPC, III. O art. 219, §5º, do CPC: pronunciamento “ex officio” da prescrição. Aplicabilidade ao processo do trabalho, IV. O art. 285-A do CPC e a sentença “inaudita altera parte” no processo do trabalho, V. Súmula impeditiva de recurso (art. 518, § 1º, do CPC), VI. A nova execução civil (Lei n. 11.232/2005) e seus reflexos na execução trabalhista, VII. Ritos processuais nos novos litígios sujeitos à competência material da Justiça do Trabalho, VIII. Conclusões, IX. Bibliografia
I. INTRODUÇÃO. ELEMENTOS DO “NOVÍSSIMO” PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
A expressão «novíssimo processo civil», que dá título a este trabalho, poderia suscitar a perplexidade do leitor já no primeiro contato. Isso porque tal expressão não vem sendo empregada pela doutrina autorizada (seja a processual civil, seja a processual trabalhista). Nada obstante, tomamos a liberdade de empregá-la. Não para dizer que as leis ordinárias federais doravante em comento ― Leis n. 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006 ― romperam com o modelo ou paradigma processual anterior, mas tão-só para dizer que pretenderam imprimir-lhe uma nova tônica, ajustada ao teor do novo inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal[1] (introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/2004) e a um conceito programático ideologicamente marcado. Da mesma forma, aliás, como se falou em um “novo” processo civil ao advento do Código Buzaid, conquanto se soubesse que
“Vista pela perspectiva deste fim de século, não se mostra substancialmente grandiosa a reforma operada mediante a edição do vigente Código de Processo Civil, no ano de 1.973. […] A reforma de 1.973 não se caracterizou como repúdio a uma velha estrutura, ou aos seus pressupostos, com opção por uma nova, inspirada em novas e substanciais conquistas. Mesmo tendo sido elaborado com o declarado intuito de se constituir efetivamente em um novo estatuto e não em meros retoques à lei velha, […] foi ainda o retrato do pensamento jurídico-processual tradicional e, nesse plano, não havia tanto a modificar então como em 1.939.”[2]
Agora, como antes, remanescem a processualística e as estruturas conceituais que deitam raízes em um modelo pensado para a tutela jurídica de interesses individuais deduzidos perante uma autoridade judicial “inerte” e “neutra”. Mas, se não há implosão paradigmática, há decerto uma intensa erosão. Introduzem-se, aos poucos, novos institutos e novas técnicas processuais que erodem paulatinamente o modelo processual de paradigma liberal, tendendo a uma tutela mais coletiva e inquisitorial. É o que se vê ultimamente, à mercê de um pacote legislativo de inspiração uniforme (a sedizente “política republicana”), focada sobretudo no objetivo de ampliar o acesso à jurisdição célere e efetiva.
Nesse diapasão, pode-se falar em um novíssimo processo civil, ao menos na perspectiva da política judiciária que informou, na origem, grande parte das alterações introduzidas no CPC entre 2005 e 2006. Vejamos.
Gestadas na Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, ao ensejo do “Pacto do Estado em Favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano”, as Leis n. 11.187/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006 foram endossadas por representantes dos três Poderes da República e integraram o chamado «pacote republicano», apresentado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional em 15.12.2004. Já a Lei n. 11.232/2005 baseou-se em projeto de lei elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), que foi encampado pelo Poder Executivo e se agregou aos demais. O «pacote republicano» foi, no halo infraconstitucional, a pedra angular da chamada Reforma do Judiciário, encabeçada pela Emenda Constitucional n. 45/2004.
Como dito supra, uma preocupação recorrente do «pacote» foi emprestar concreção legal ao princípio constitucional da duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, CRFB), assim como ao princípio da efetividade da tutela jurisdicional. Esse último, não-expresso, é um princípio constitucional implícito da Constituição de 1988 (da espécie dos princípios-garantia[3]), imanente às normas do inciso XXXV (inafastabilidade do Poder Judiciário) e do inciso LIV («procedural due process of law»). ambos do artigo 5º da CRFB[4]. Eles são, em grande medida, o “leit motiv” das cinco leis federais em testilha.
Tendo-se em conta que o processo do trabalho é, por excelência, o processo da celeridade ― tanto que, desde a origem, primava por um procedimento simples[5], oral (em grande medida[6]) e concentradíssimo[7] ― e da efetividade ― a ponto de não se exigir provocação da parte para o início dos atos de execução[8] ―, põe-se de imediato a questão dos reflexos desse novo processo civil, mais «republicano», nos lindes do Direito Processual do Trabalho. As novidades ser-nos-ão de algum proveito, ex vi do artigo 769 da CLT? Devem entrar na ordem do dia das discussões doutrinais ou são, ao contrário, invencionices inúteis que nada acrescentam ao modelo celetário, menos liberal e mais pleno de cidadania? Quid iuris?
II. ARTIGOS 466-A E 466-B DO CPC. CONTRATOS PRELIMINARES DE TRABALHO
Iniciemos pelas alterações que a Lei n. 11.232/2005 introduziu em matéria de tutela processual do direito à declaração ou a um ato jurídico qualquer. Não estamos, aqui, tratando de autêntica obrigação de dar, porque nesse caso o objeto da prestação é um ato material (amiúde, a tradição). Pensamos, “in casu”, nas hipótese em que o contraente se obriga a celebrar, no futuro, um contrato definitivo (os chamados pré-contratos, também conhecidos como contratos preliminares ou contratos-promessa); ou, ainda, nas hipóteses em que o contraente assume o compromisso de transferir, mediante atos jurídicos competentes (e.g., escritura pública e inscrição registral, em se tratando de imóveis), a propriedade de um certo bem patrimonial. A esse propósito, vêm à baila os novos artigos 466-A e 466-B do CPC, que na verdade se limitaram a reproduz as normas antes constantes dos artigos 639 a 641 do CPC. Assim:
“Art. 466-A. Condenado o devedor a emitir declaração de vontade, a sentença, uma vez transitada em julgado, produzirá todos os efeitos da declaração não emitida.
Art. 466-B. Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado.
Art. 466-C. Tratando-se de contrato que tenha por objeto a transferência da propriedade de coisa determinada, ou de outro direito, a ação não será acolhida se a parte que a intentou não cumprir a sua prestação, nem a oferecer, nos casos e formas legais, salvo se ainda não exigível.”
Uma vez que não se inovou substancialmente, a matéria sequer mereceria cuidados. Afinal, dir-se-ia que os artigos em questão não poderiam justificar qualquer exegese que já não pudesse ser extraída dos antigos artigos 639, 640 e 641 do CPC. Há, todavia, um aspecto que recomenda a menção, aproveitando a nova topologia dos preceitos para afirmar a sua importância contextual em uma específica matéria: a dos pré-contratos de trabalho, ainda pouco conhecidos da Justiça do Trabalho brasileira, mas largamente empregados em alguns nichos do mercado de trabalho (como, p. ex., no desporto profissional; ou, ainda, nos mercados de altos executivos, que são espaços privilegiados de atuação de headhunters).
Não me estenderei sobre essa temática, tendo em vista o propósito de analisá-la mais detidamente noutro trabalho, ainda inédito, e que por ora deve conservar seu ineditismo. Mas é curial perceber que, após a Lei n. 11.232/2005, as normas em apreço passaram a compor a Seção I do Capítulo VIII do Título VIII do Livro I do Código de Processo Civil ― ou seja, cuida-se de meros efeitos da sentença condenatória no procedimento ordinário do processo de conhecimento. Antes, essas mesmas normas compunham a Seção I do Capítulo III do Título II do Livro II ― i.e., cuidava-se de hipóteses específicas de execução de obrigação de fazer e de não-fazer. Está claro, portanto, que a “mens legislatoris” encaminhou-se no sentido de descaracterizá-las como normas de execução, para reposicioná-las entre os efeitos inerentes à sentença condenatória, que são por elas definidos. Nessa condição, tais efeitos não admitem impugnações quaisquer (como seriam os embargos do artigo 884 da CLT) e, quanto à exeqüibilidade, sujeitam-se tão somente ao efeito suspensivo de um eventual recurso (inclusive no caso do artigo 466-A, desde que ao conteúdo da sentença condenatória se aduza um comando sentencial de tutela antecipatória, nos termos do artigo 273 ou do artigo 461 do CPC, em se tratando, respectivamente, de antecipação de pagamento ou excussão ou de antecipação do objeto de uma obrigação de fazer ou não-fazer).
E para que servem, no Direito do Trabalho?
É que as partes sociológicas de uma relação de emprego (o trabalhador e o empresário) podem firmar entre si um contrato preliminar, pelo qual se obriguem a celebrar, no futuro, um contrato definitivo de trabalho, ajustando desde logo a espécie de trabalho a prestar e a respectiva retribuição. Há previsão expressa dessa figura no Direito comparado (como, e.g., no artigo 94º do Código do Trabalho português). Inadimplentes, porém, o trabalhador ou o empresário, o que resta fazer à parte prejudicada? Poderia recorrer à norma do artigo 466-A, ou àquela do artigo 466-B do CPC, para obter uma sentença que consumasse, “de per se” e “ex lege”, a vinculação empregatícia?
Em princípio, não. No caso do contrato preliminar de trabalho, a natureza do objeto do contrato (= prestação de serviços subordinados) implica a impossibilidade jurídica da prolação de sentença que produza os efeitos do contrato definitivo, o que significaria “obrigar” o trabalhador a prestar serviços com pessoalidade e subordinação. Significaria, noutras palavras, violentar a dimensão negativa da liberdade de trabalho, insculpida no artigo 5º, XIII, da CRFB, e também nas convenções internacionais que o Brasil se obrigou a observar (artigo 5º, §2º, da CRFB), como, p. ex., o disposto no artigo 23º, 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (10.12.1948). Em um juízo objetivo de ponderação, essa liberdade fundamental prevalece sobre o princípio do “pacta sunt servanda”, que não é mais que uma emanação do direito fundamental de propriedade. A questão resolve-se, portanto, em perdas e danos a favor do empregador, considerando-se desfeito o contrato preliminar (artigo 465/NCC, abrangendo os lucros cessantes e os danos emergentes: artigos 402 e 403 do NCC).
E se, porém, o empregador se recusa a dar cumprimento ao pré-contrato? EDILTON MEIRELLES sustenta que tampouco se poderia dar exeqüibilidade específica ao pré-contrato de emprego, pois,
“da mesma forma como o juiz não pode obrigar o trabalhador a prestar serviços, não tem como interferir na vontade diretiva do empregador de modo a lhe impor a obrigação de dar trabalho ao empregado com indicação das tarefas a serem cumpridas por este. Essa atribuição é exclusiva do empregador, pois somente a este cabe definir quais as atividades que pretende explorar através dos serviços prestados pelo empregado.”[9]
Dir-se-ia da própria garantia fundamental ao direito de propriedade (que, nesse aspecto, seria inviolável, à vista do artigo 5º, XXII, CRFB).
Temos, porém, uma visão ligeiramente diversa. Não estão em xeque, nessas circunstâncias, liberdades ou direitos fundamentais do cidadão, porque ― em se obrigando o promitente-empregador a receber, em sua empresa, o promitente-empregado ― não há malferimento ao conteúdo essencial do direito de propriedade, mas apenas a restrição de alguns direitos de fruição que podem ser dimensionados pelo legislador ordinário (vide artigos 1228 a 1368 do NCC), desde que não se configure o confisco (como veda, e.g., o artigo 150, IV, da CRFB). Esses direitos de fruição usualmente não podem ser opostos às garantias sociais do trabalhador. Vejam-se os casos de reintegração no emprego (como, p. ex., na hipótese da estabilidade sindical do artigo 8º, VIII, da CRFB, que autoriza o procedimento dos artigos 853-855 da CLT, com os possíveis efeitos do artigo 495 da mesma Consolidação). Em tais casos, admite-se que o juiz expeça mandado judicial para conduzir o trabalhador até o posto de trabalho, inclusive sob força policial; nem por isso, há violação à garantia fundamental do direito de propriedade. Na União Européia, essa premissa é ainda mais verdadeira, tendo em vista a regra geral de invalidade das dispensas individuais imotivadas. Conclui-se, portanto, que ― no que diz com o promitente-empregador inadimplente ― a possibilidade da execução específica de um pré-contrato de trabalho, com a aplicação dos artigos 466-a e 466-B do CPC (o que significa que não se trata, a rigor, de processo de execução, mas de mero efeito da sentença), depende basicamente da opção legislativa de um país.
No Brasil, à míngua de legislação específica que regule os pré-contratos de trabalho, o intérprete experimentará certa perplexidade. Não há uma “opção legislativa” evidente. O que fazer? Uma engenhosa saída passa pelo recurso às fontes alternativas do artigo 8º da CLT e, a partir dele, ao Direito comparado (nomeadamente, o Código do Trabalho português ― Lei n. 99/2003). Mas, como antecipado, sobre isso discorremos noutro texto, ainda inédito.
III. O ART. 219, §5º, DO CPC: PRONUNCIAMENTO “EX OFFICIO” DA PRESCRIÇÃO. APLICABILIDADE AO PROCESSO DO TRABALHO
Neste tópico, examina-se o novel parágrafo 5º do artigo 219 do CPC, que introduziu a figura do pronunciamento “ex officio” da prescrição. Será ela aplicável ao processo do trabalho? Vozes altivas na doutrina processual-trabalhista já avisam que não. Cremos, porém, que o problema mereça abordagem algo mais abrangente, a envolver um conflito de princípios que implica o princípio da duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, da CRFB), o princípio da efetividade da tutela jurisdicional e o próprio princípio da proteção (que ― dissemo-lo noutro trabalho ― tem também status constitucional, à conta de princípio implícito[10]).
Reza o novo par. 5º do artigo 219/CPC, com a redação da Lei n. 11.280/2006:
“Art. 219. A citação válida torna prevento o juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda quando ordenada por juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição. […]
§ 5o O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.”
Há dois fundamentos para essa inovação, que se descobrem nos próprios motivos que acompanharam o projeto de lei correspondente. São princípios jurídicos que, nesse particular, cumpriram a sua função normogenética.
O primeiro deles é o princípio da celeridade processual. Com efeito, o reconhecimento oficial da prescrição abrevia processos que poderiam ter continuidade até a prolação da sentença, para serem extintos somente em segunda instância quando, em grau de recurso, a parte favorecida atinasse para a prescrição não argüida; afinal, o fenômeno da preclusão não alcança essa matéria (ut artigo 193 do NCC). Além disso, aquele reconhecimento pode simplificar processos com cúmulo objetivo, reduzindo-lhes o universo litigioso: poderá o juiz, em decisão interlocutória, pronunciar desde logo a prescrição de pretensões que tenham sido formalmente deduzidas como pedidos. Desse modo, tornam-se dispensáveis as provas orais que digam com a pretensão prescrita, por desnecessárias.
Note-se que o princípio da celeridade, com recente status constitucional (artigo 5º, LXXVIII, 2ª parte, CRFB), não se confunde com o princípio da duração razoável do processo (constante da 1ª parte do inciso LXXVIII). O primeiro diz com a brevidade cronológica do procedimento (dado objetivo), enquanto o segundo diz com a razoabilidade do tempo processual e com a racionalidade processualística (dado axiológico)[11].
O segundo princípio que informa o novo parágrafo 5º do artigo 219 do CPC é o próprio princípio da efetividade da tutela jurisdicional, que implica, na sua dimensão negativa, a dispensa de atos processuais inúteis ou inefetivos. É este princípio que justifica a decisão judicial de não proceder a certa penhora, a despeito do requerimento do exeqüente, quando se trate de bens sem qualquer valor de mercado ou possibilidade de venda em hasta pública[12]. Da mesma maneira, o processo terá pouca efetividade, nos aspectos cronológico e funcional, se o magistrado dedicar o seu tempo à prática de atos processuais que, ao final, não terão qualquer serventia concreta (como se via, em idos tempos, na funesta prática do «diga, diga» em matéria de perícias técnicas: permitia-se, a pretexto da ampla defesa e do contraditório, que as partes perdessem meses a fio em duelos puramente retóricos, sem qualquer utilidade para o processo, quando já estavam nos autos elementos bastantes para uma decisão a respeito).
Conhecidas, pois, as origens ideológicas da nova norma ― que, aliás, levou à revogação expressa do artigo 194 do NCC ― e o seu nexo lógico com o «pacote republicano», resta discutir os seus eventuais reflexos na Justiça do Trabalho. Afinal, tal norma aplica-se ao processo do trabalho?
Em recente esforço da Escola da Magistratura do Tribunal Regional da Décima Quinta Região (EMATRA-XV), por ocasião do Seminário «As Recentes Mudanças do CPC e suas Implicações no Processo do Trabalho» (04.08.2006), debateu-se, em quatro grupos de discussão, uma série de questões polêmicas relacionadas com as Leis n. 11.280/06, 11.232/05, 11.276/06 e 11.277/06. O evento, para o qual foram convidados todos os juízes do Trabalho da Décima Quinta Região, reuniu oitenta e oito magistrados; seus resultados servem, portanto, como dado indiciário e tendencial do pensamento jurídico regionalmente dominante. No Grupo I, coordenado pelo Juiz LUIZ CARLOS CÂNDIDO MARTINS SOTERO DA SILVA, discutiu-se a aplicabilidade, ao processo do trabalho, do artigo 219, §5º, do CPC. Eis a tese vencedora, votada em plenário:
“Aplica-se ao processo do trabalho o disposto no parágrafo 5º do artigo 219 do CPC, devendo o juiz, de ofício, pronunciar a prescrição tanto da pretensão quanto da execução [g.n.].”
Essa tende a ser, a meu juízo, a posição dominante na jurisprudência (a médio e longo prazos). Parte-se de dois pressupostos, a saber: (a) a legislação processual trabalhista ― especialmente a CLT ― silenciou a respeito do pronunciamento da prescrição “in judicio” (premissa pacífica); (b) o parágrafo 5º do artigo 219 do CPC é compatível com o processo trabalhista (premissa problemática). Diante disso, aplicar-se-ia o artigo 219, §5º, do CPC com fundamento no artigo 769 da CLT (omissão + compatibilidade).
O segundo pressuposto, todavia, tem sido rechaçado pelas primeiras manifestações doutrinárias, especialmente por aquelas socialmente engajadas. Nesse sentido, confiram-se os escólios de ARION SAYÃO ROMITA[13], JORGE LUIZ SOUTO MAIOR[14] e MANOEL CARLOS TOLEDO FILHO[15]. Ambos sustentam a incompatibilidade do multicitado parágrafo 5º com o processo do trabalho, não por antagonismo literal (i.e., conflito de regras), mas por contradição principiológica. O princípio da proteção, que compõe a base axiológica do Direito do Trabalho (material), interage com o processo do trabalho e, em alguma medida, condiciona-o, pelo seu papel de instrumento de viabilização do próprio direito material[16]. Já por isso, influencia-o; e, por força dessa influência, repudia quaisquer normas processuais comuns que representem um retrocesso para a condição jurídica do hipossuficiente econômico no processo “in abstracto”. Na dicção de SAYÃO ROMITA,
“O novel preceito legal é incompatível com a norma constitucional que promove a melhoria da condição social dos trabalhadores e, assim, por força do princípio da subsidiariedade, não tem aplicação ao processo do trabalho.”[17]
No mesmo sentido, leia-se em SOUTO MAIOR:
“A Justiça do Trabalho tem a função precípua de fazer valer esses direitos [sociais]. Sua celeridade, sem essa perspectiva, não é nada. Não há […] nenhum sentido em se transformar o juiz trabalhista em sujeito cuja atividade, por iniciativa própria, sirva para aniquilar os direitos trabalhistas.”[18]
Conquanto bem formulada, essa idéia enfrenta, em nossa opinião, dificuldades incontornáveis na perspectiva das novas competências da Justiça do Trabalho (após a Emenda Constitucional n. 45/2004). Veja-se.
A teor do artigo 114, I, da CRFB, passaram a ser da competência da Justiça do Trabalho as “ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. A Justiça do Trabalho deixou de ser a “Justiça dos empregados” (ou, como revelava o dado sociológico, a Justiça dos desempregados) e tornou-se genuinamente uma Justiça do Trabalho, competente para o processo e julgamento de todas as ações relativas a litígios oriundos da prestação pessoal de trabalho humano. A nova competência alcança, portanto, toda prestação de trabalho de fundo consensual, aspecto tendencialmente pessoal e caráter continuativo ou coordenado[19]. Passam a ser da competência da Justiça do Trabalho ações alusivas a relações de trabalho não subordinado, como aquelas em que litigam sobre questões de trabalho e/ou remuneração os representantes comerciais autônomos (Lei n. 4.886/65), os trabalhadores eventuais, os profissionais liberais[20], os prestadores de trabalho voluntário (Lei n. 9.608/98), os sócios cooperados (Lei n. 5.764/71 e artigos 1093 a 1096 do NCC), etc. Não são relações sujeitas às regras e princípios do Direito do Trabalho, já que não se trata de relações de emprego; logo, àquelas relações não se aplica o princípio da proteção ― a não ser que se pretenda construir um Direito do Trabalho “soft”, de feitio orbital, que estenda a esses casos uma rede de proteção mais frágil, se bem que mais humana e menos patrimonialista. Ocorre que a doutrina nacional não tem manifestado qualquer simpatia por essa construção, temendo catapultar a precarização do verdadeiro Direito do Trabalho (dir-se-ia “hard”) pela via do nivelamento “por baixo”.
Diante disso, chega-se a uma curiosa situação. Pacificou-se o entendimento de que os procedimentos celetários (tanto o ordinário, dos artigos 837 a 852 da CLT, quanto o sumaríssimo, dos artigos 852-H a 852-I da CLT[21]) devem ser aplicados, na Justiça do Trabalho, mesmo em ações oriundas de relações de trabalho não subordinado (como as referidas supra). Volveremos a isso no tópico VII, infra; mas, por ora, importa observar que, ao cabo das contas, não haveria, após a EC n. 45/04, solução mais adequada de política judiciária. Assim, passamos a ter, sujeitas ao mesmo rito processual, ações oriundas de relações materiais regidas pelo princípio da proteção e de relações materiais não regidas por ele. A vingar a tese da inaplicabilidade do artigo 219, §5º, do CPC (contradição principiológica), engendrar-se-ia um estado de coisas no mínimo perturbador: dois cidadãos, autores em duas ações reclamatórias com objetos semelhantes (pagamento de remuneração) e tramitação à revelia, ambos com pretensões prescritas, receberiam, na mesma Justiça e sob o mesmo procedimento, tratamentos díspares: o primeiro, trabalhador autônomo, veria seu processo extinto antecipadamente, com julgamento de mérito, nos termos do artigo 269, IV, c.c. artigo 219, §5º, do CPC; já o segundo, trabalhador subordinado, veria os seus pedidos acolhidos em sentença de procedência, total ou parcial, prolatada nos termos do artigo 269, I, do CPC, dada a inaplicabilidade, em tese, do artigo 219, §5º. Em suma: um mesmo rito, dois tratamentos processuais. Eis um quadro aparente de violação ao princípio constitucional da isonomia (artigo 5º, caput, da CRFB), ao menos no plano processual (o artigo 125, I, do CPC regula não só as posições das partes concretas entre si ― efeito endoprocessual ―, mas também as posições das partes “in abstracto” perante a lei ― efeito ultraprocessual ―, pressupondo uma isonomia mínima). A alternativa seria não reconhecer de ofício a prescrição nos ritos trabalhistas, independentemente da condição sociojurídica do reclamante (i.e., se trabalhador subordinado ou não-subordinado); mas, nesse caso, haveria a repulsão injustificada da norma do artigo 219, §5º, CPC, que está em vigor, em casos que não envolvem direitos sociais “stricto sensu” e nem oferecem, em tese, contradições principiológicas ― vulnerando-se, nesse caso, o princípio da legalidade (artigo 5º, II, da CRFB).
Além disso, a tese da inaplicabilidade por incompatibilidade principiológica parece-nos incoerente do ponto de vista histórico. É que, ao aduzir o parágrafo 5º do artigo 219 do CPC, a Lei n. 11.280/2006 cuidou de revogar expressamente, por seu artigo 11, o artigo 194 do NCC, que dispunha:
“O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz.”
Conseqüentemente, a alteração legislativa não pretendeu afetar apenas o direito processual, mas o próprio direito material. O que dizer sobre isso? Também a revogação do artigo 194 do NCC haveria de ser ignorada na Justiça do Trabalho, apesar do que dispõe o artigo 8º, par. único, da CLT (que, sobre o regime de oponibilidade da prescrição, foi por tudo silente)? Tal artigo continuaria “em vigor” para efeitos trabalhistas, por ser a revogação incompatível com o princípio da proteção? E, se é esse o caso, por que não se entender, também, que o próprio artigo 193 do NCC é incompatível com o princípio da proteção? Afinal, a possibilidade de que a prescrição seja alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita, não faz mais que reduzir as chances de o trabalhador reclamante aproveitar um “lapso” do reclamado em sede de contestação. Por que não entender que, à hipótese, aplicar-se-iam tão só os artigos 300 e 303 do CPC, operando-se a preclusão temporal após a apresentação da contestação? Não foi esse o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho ao editar, em 1982, a Súmula n. 153[22] (entendimento que, aliás, não se sustenta mais, ex vi do artigo 219, §5º, do CPC: o que pode ser reconhecido “ex officio” em qualquer grau de jurisdição, também pode ser argüido em qualquer grau de jurisdição ― inclusive em sede de recurso de revista ou extraordinário).
Neste ponto, precisamente, reside a incoerência histórica. Nunca se alegou, nem se alega agora, que a especial oponibilidade da prescrição, ora prevista no artigo 193 do NCC e outrora no artigo 162 do CC/1916, seria contrária aos princípios que informam direta ou indiretamente o processo do trabalho. Ao permitir que o juiz conheça de ofício dessa matéria, o legislador foi ― agora sim ― coerente: afinal, o próprio artigo 303 do CPC já dizia que, depois da contestação, não é lícito deduzir novas alegações, exceto as relativas a direito superveniente e aquelas que poderiam ser conhecidas “ex officio” pelo juiz (caso, agora, da prescrição). Noutras palavras, o novo parágrafo 5º do artigo 219/CPC terminou por adequar a norma do artigo 193 do NCC àquela do artigo 303, II, do CPC. A partir da Lei n. 11.280/2006, a oponibilidade da prescrição (a qualquer tempo processual, antes do trânsito em julgado) deixa de ser «especial», uma vez que se insere na hipótese geral do artigo 303, II, do CPC. A se sustentar, pois, que o pronunciamento de ofício da prescrição não se aplica ao processo do trabalho, seria de inteiro rigor sustentar, “a fortiori”, a inaplicabilidade da norma do artigo 193 do NCC, por traduzir uma oponibilidade especial incompatível com o princípio da proteção. O que jamais se sustentou.
Na verdade, ao pronunciar de ofício a prescrição, o juiz não está “fulminando” direitos do trabalhador. Está apenas reconhecendo uma situação jurídica consumada (cuja cognoscibilidade, antes, era “pendente condicione”, sujeitando-se à alegação ritual da parte). Será melhor fazê-lo, como quer a lei, e julgar apenas as pretensões viáveis, do que não fazer e instaurar um estado de desigualdade nas regras de rito, permitindo que a “sorte” seja uma variável hipertrofiada no processo do trabalho. O cidadão deve depositar suas esperanças na justiça de seu caso (dimensão ética) e no direito material aplicável (dimensão técnica), não nos lapsos ou na incompetência técnico-processual do “ex adverso” (dimensão aleatória). Não se trata ― parafraseando certos futebolistas ― de «jogar no erro do adversário».
Por conseguinte, a solução mais equânime está mesmo em aplicar a norma do artigo 219, §5º, CPC no processo laboral, em todos os casos, com sensível proveito para a segurança jurídica, para a celeridade processual e para a própria dimensão ética do processo. É como pensamos.
III. O ART. 285-A DO CPC E A SENTENÇA «INAUDITA ALTERA PARTE» NO PROCESSO DO TRABALHO
Reza o artigo 285-A do CPC, aduzido pela Lei n. 11.277/2006:
“Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.
§ 1o Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de 5 (cinco) dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.
§ 2o Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.”
Discorrendo acerca do novel dispositivo, RODRIGUES PINTO[23] sugeriu tratar-se da instituição da «súmula vinculante de primeiro grau», porque o magistrado passa a poder extinguir o processo com julgamento de mérito (artigo 269, I, do CPC), “in limine litis” e “inaudita altera parte”, fiando-se em teses dominantes na própria vara ou juízo (sejam elas de sua lavra ou de outrem), desde que estejam presentes os seguintes requisitos: (a) matéria exclusiva de direito; (b) tese de improcedência; (c) aplicação iterativa da tese (o que significa, em interpretação literal do texto, ao menos duas decisões no mesmo sentido, mas em “casos idênticos” ― o que, veremos, não significa necessária identidade de “petitum” e “causa petendi”). Em suma: tese jurídica iterativa de improcedência.
Como bem pontua o jurista baiano, as «súmulas vinculantes de primeiro grau», a serem assim entendidas, não padecem dos mesmos males das súmulas vinculantes “stricto sensu”, tal como previstas no artigo 103-A da CRFB (EC n. 45/04). Essas últimas, como se sabe, poderão ser aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços de seus membros, após reiteradas decisões sobre certa matéria constitucional; uma vez publicadas, terão efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e também em relação aos órgãos de Administração Pública federal, estadual e municipal (artigo 103-A, caput). O Excelso Pretório não terá liberdade absoluta quanto à definição das oportunidades ou das matérias a serem sumuladas: o objeto das súmulas vinculantes deverá ser a declaração da validade, da interpretação e/ou da eficácia de determinadas normas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração, com geração de grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica (artigo 104-A, §1º). Nada obstante, mesmo se adstritas a tais condicionamentos, é certo que essas súmulas serão um duro golpe na capacidade criativa das instâncias de base (especialmente a primeira), engessando a jurisprudência dos tribunais e dificultando a renovação de teses sensíveis para a sociedade brasileira.
Não é assim, porém, com o instituto do artigo 285-A do CPC (que preferimos denominar de julgamento superantecipado da lide, por inspiração do artigo 330 do CPC). Isso porque, no caso do artigo 285-A, as teses não são impostas pela cúpula judiciária, mas são antes gestadas no cadinho do Direito vivo e dinâmico, i.e., na primeira instância. Outrossim, as decisões correspondentes não espraiam quaisquer efeitos vinculantes para outros órgãos do Poder Judiciário. Valoriza-se a liberdade de convicção das instâncias de base, sem comprometimento do princípio do livre convencimento motivado e da persuasão racional.
Não tardou para que a norma em testilha fosse acoimada de inconstitucional. Com efeito, a Ordem dos Advogados do Brasil (Seção São Paulo), secundada pelo Instituto Nacional de Direito Processual (na condição de “amicus curiae”), ajuizou ação direta de inconstitucionalidade que tramita no STF sob n. 3.965/2006. Para argüir a tal inconstitucionalidade, divisou-se violação aos seguintes princípios constitucionais do processo: (a) acesso ao Judiciário (artigo 5º, XXXV, CRFB); (b) simetria de tratamento processual (uma vez que o instituto favorece, em tese, apenas os réus e, mais raramente, os reconvindos); (c) ampla defesa e contraditório (artigo 5º, LV, CRFB); (d) devido processo legal (artigo 5º, LIV, CRFB ― i.e., o chamado “procedural due process”). Não comungamos dessa percepção. Institutos como o julgamento superantecipado da lide, a antecipação dos efeitos da tutela de mérito ou mesmo as liminares cautelares “inaudita altera parte” não ferem quaisquer princípios constitucionais, embora não se alinhem “ex perfecto” com o modelo liberal-formal de processo civil, que herdamos das revoluções liberais e do positivismo jurídico[24]. São técnicas processuais mais afinadas com a pós-modernidade, que acentuam a presteza e a efetividade da tutela jurisdicional (dimensões inalienáveis do “due process of law”); mas, nem por isso, vilipendiam garantias de defesa. Quando muito, postergam-nas[25]. Acompanhamos, assim, ADA PELLEGRINI GRINOVER[26], NELSON NERY JÚNIOR[27], JOSÉ AUGUSTO RODRIGUES PINTO[28] e outros autores que não divisaram, no artigo 285-A do CPC, qualquer inconstitucionalidade. Segundo GRINOVER,
“A nova disposição não infringe nem o devido processo legal nem o contraditório, sendo este apenas diferido para o momento posterior à prolação da sentença antecipada, quando o autor pode recorrer e até o juiz pode rever sua decisão [retratabilidade = §1º]. Quanto ao réu, ele é beneficiado pela decisão e poderá contra-arrazoar o recurso e, se não houver recurso, será normalmente cientificado da decisão favorável.”[29]
É como pensamos. E, no mesmo sentido, pronunciaram-se, por maioria, os juízes participantes do Seminário «As Recentes Mudanças do CPC e suas Implicações no Processo do Trabalho» (TRT/15ª, 04.08.2006), já referido supra: a partir das teses aprovadas no Grupo III, coordenado pelo Juiz LUIZ ROBERTO NUNES, firmaram posição pela aplicabilidade da figura ao processo do trabalho e, ainda, pela sua constitucionalidade incondicional: “O artigo 285-A do CPC não fere os princípios do contraditório e da ampla defesa”.
Aliás, se o preceito em comento fosse inconstitucional, sê-lo-ia, com mesma razão, aquele do artigo 295, IV, do CPC, que prevê outra hipótese ― mais simples, é certo ― de sentença meritória “inaudita altera parte” em favor do réu: se o juiz verificar, desde logo, a decadência ou a prescrição (de direitos patrimoniais ou não-patrimoniais, a partir da Lei n. 11.280/2006), pode indeferir liminarmente a petição inicial, sem antes citar ou sequer notificar o réu. A sentença, porém, é de mérito (artigo 269, IV, do CPC). Se apelada, admite juízo de retratação (artigo 296 do CPC), embora em prazo diverso (quarenta e oito horas, contra os cinco dias previstos no artigo 285-A, §1º, do CPC). Só pode beneficiar o réu ou o reconvindo. Previa-se a citação do réu para acompanhar o recurso (artigo 296, caput, na redação da Lei n. 5.925/73); mas a Lei n. 8.952/94 alterou o texto legal, determinando a remessa imediata dos autos ao tribunal competente (artigo 296, par. único), sem citar ou intimar o réu (diversamente do que prevê o artigo 285-A, §2º). E, nada obstante, o novo artigo 296 jamais foi acoimado de inconstitucional, como tampouco se contestou a recepção do artigo 295, IV, do CPC pela Constituição de 1988.
E quanto à aplicação no processo trabalhista?
A esse propósito, RODRIGUES PINTO pondera ― com todo acerto ― que a CLT não foi verdadeiramente “omissa”. Sabe-se que a aplicação subsidiária da legislação processual civil pressupõe, a teor do artigo 769 da CLT, omissão e compatibilidade. A compatibilidade aqui é indiscutível, já que o artigo 285-A “encaixa-se perfeitamente no contexto de modernidade, simplicidade, celeridade e efetividade que toda a marcha revisora iniciada com a Lei n. 8.455/92 procura alcançar”[30]. Mas a omissão, em acepção estrita, dar-se-ia apenas se o instituto do julgamento superantecipado da lide fosse figura já conhecida do ordenamento jurídico brasileiro, nos moldes da Lei n. 11.277/2006. Não era. Jamais esteve prevista, em tais moldes, na CLT ou no próprio CPC, porque ambos os diplomas seguiram as doutrinas ortodoxas do procedimento (tão caras à “ordinariedade”, na expressão de OVÍDIO BAPTISTA[31]). No entanto, PINTO pugna pela aplicação processual-trabalhista do artigo 285-A/CPC, advogando que se enfatize o segundo parâmetro do artigo 769/CLT (compatibilidade). Com isso, atenta-se “para a plasticidade do Direito, que o distancia progressivamente da rigidez ortodoxa do pensamento jurídico”, e apressa-se “a atualização da norma trabalhista”[32].
Dir-se-ia haver, na espécie, interpretação “contra legem”, já que o artigo 769 da CLT não se exaure no pressuposto da compatibilidade. A crítica é, porém, superável, se providenciarmos um ligeiro reparo na tese de RODRIGUES PINTO. Há que buscar, outra vez, a atualização hermenêutica da norma, que não se confunde com a sua obliteração. Deixa-se de perquirir a omissão formal da lei processual trabalhista, numa perspectiva estática, para considerar bastante à aplicação do artigo 769/CLT a mera imprevisão histórica, tomada em perspectiva dinâmica. Se o processo do trabalho, outrora vanguardeiro, obsolesce a olhos vistos, deixado para trás pelo processo civil, é papel do intérprete juslaboralista atualizá-lo, mesmo quando a “omissão” processual-laboral deve-se ao dinamismo das instituições (= imprevisão) e não a algum lapso do legislador histórico. Passa-se, portanto, pela renovação do paradigma hermenêutico, especialmente naquilo que está afeto ao artigo 769/CLT, privilegiando-se um modelo de interpretação mais fiel ao princípio da efetividade da tutela jurisdicional (dimensões positiva e negativa), inspiração maior da processualística hodierna.
Mas esse entendimento não elimina os nossos problemas. Para a aplicação do artigo 285-A do CPC é mister, antes, interpretá-lo. De se questionar, entrementes, o que sejam «casos idênticos» (artigo 285-A, caput, 2ª parte) para efeito de julgamento superantecipado.
A primeira impressão é óbvia: dois casos são idênticos quando tudo neles é igual, exceto o que não poderia ser: as partes (do contrário, seria o mesmo caso). Daí porque, no Seminário «As Recentes Mudanças do CPC e suas Implicações no Processo do Trabalho» (TRT/15ª, 04.08.2006), aprovou-se a tese de que “[…] basta a cumulação dos requisitos identidade de causa de pedir e de pedido”. Discordamos. A ser assim, tratar-se-ia de saber se há conexão ou litispendência (artigos 103 e artigo 301, §1º, 1ª parte, ambos do CPC, respectivamente). Ora, essas figuras só servem às hipóteses em que ainda não há julgamento, diversamente do que disciplina o artigo 285-A/CPC, que pressupõe casos julgados anteriores, recorríveis ou não. «Casos idênticos» são, portanto, aqueles que reclamam unidade de convicção; logo, não se trata de identidade de pedido e/ou causa de pedir, mas de identidade de teses jurídicas, como obtempera RODRIGUES PINTO[33]. A noção de “identidade de teses jurídicas” é mais abrangente e pode vingar ainda quando não haja estrita identidade de pedido ou de “causa petendi”.
Na verdade, a possibilidade de se extinguir liminarmente um processo com julgamento de mérito, a partir de uma simples tese jurídica e antes mesmo de serem julgados quaisquer “casos idênticos”, já existe no sistema processual brasileiro. Mencionamo-la há pouco. Pense-se, e.g., no caso da prescrição para a reparação de danos materiais (que, nos termos do artigo 206, §3º, V, do NCC, é de três anos): a se admitir que o prazo civil se aplica incondicionalmente às reparações de danos sofridos na relação de emprego[34], a mesma tese serve às reclamatórias que pedem indenização ressarcitória e àquelas que pedem pensão civil por invalidez (pedidos diversos); ou, ainda, àquelas cuja causa de pedir seja um acidente de percurso ou uma moléstia profissional (causas de pedir diversas). Poderia ensejar, assim, o indeferimento liminar das petições iniciais, em todas as hipóteses, ut artigo 295, IV, do CPC.
Agora, o mesmo ocorrerá no caso de se entender, v.g., que o artigo 4º da recente Lei n. 11.324, de 19.07.2006, ao conferir garantia de emprego à doméstica gestante, fere a Constituição em seus artigos 7º, I e par. único, “a contrario sensu”[35]: a tese poderá ensejar sentenças de improcedência “inaudita altera parte”, por força do artigo 285-A do CPC, independentemente da identidade de pedidos e/ou causas de pedir (p. ex., servirá igualmente para a hipótese de pedido de reintegração e para a hipótese de indenização do período correspondente ― i.e., pedidos diversos). A diferença é que, para tanto, exigir-se-á o julgamento prévio de dois ou mais “casos idênticos”. Argumentar-se-ia, aqui, que uma tese de tal natureza, mesmo se “vencedora” numa determinada vara do trabalho, contrariaria jurisprudência pacificada no Tribunal Superior do Trabalho, de que estabilidades provisórias especiais, como essa, não precisam ser instituídas por lei complementar (vide, e.g., a Súmula n. 378 do TST); logo, seria no mínimo injusto admitir, a aboná-la, sentenças de improcedência “in limine litis”. Parece-nos, porém, que se é esse o convencimento irredutível do magistrado ― e nem a contestação, nem uma eventual instrução fá-lo-ão mudar de idéia ―, melhor será mesmo a antecipação do julgamento, para que a sentença seja, o quanto antes, reformada em segunda instância. A solução alvitrada atende bem aos interesses do próprio reclamante, que do contrário teria de amargar semanas ou meses de atos processuais inúteis, até lhe vir às mãos a sentença de improcedência.
Indagar-se-ia, ainda, se o artigo 285-A do CPC aproveita apenas aos casos do artigo 269, I, 2ª parte, do CPC (“quando o juiz […] rejeitar o pedido do autor”). A resposta é afirmativa. Na verdade, uma interpretação teleológica do texto permitiria reconhecer ao instituto uma mesma função processual sempre que o processo puder ser extinto liminarmente, com julgamento de mérito, sem sucumbência (sequer parcial) do réu. Na prática, porém, sua aplicação cingir-se-á mesmo aos casos de improcedência do artigo 269, I, 2ª parte, do CPC. Isso porque os incisos II e III não tratam de improcedência, mas de situações que vinculam ou oneram o réu; o inciso V pressupõe manifestação “ex post” do autor nos autos (logo, geralmente não admitirá decisão “in limine litis”, i.e., antes da citação do réu[36]); e para as hipóteses do inciso IV já havia a norma do artigo 295, IV, do CPC, admitindo o indeferimento liminar da petição inicial, com extinção de mérito, mesmo sem o julgamento anterior de “casos idênticos”.
Diga-se, por fim, que o julgamento superantecipado da lide tanto pode aproveitar ao empregado-réu ou ao empregado-reconvindo, como também ao empregador-réu (como sugerem os exemplos supra) e ao empregador-reconvindo. A se cogitar do instituto apenas para favorecer os empregados na posição de réus ou reconvindos (alegando-se, p. ex., um suposto efeito repulsivo do princípio da proteção nos demais casos), incorre-se nos mesmos vícios já apontados supra (tópico III).
IV. A SÚMULA IMPEDITIVA DE RECURSO (ART. 518, §1º, DO CPC)
Reza o artigo 518, §1º, do CPC, com a redação e a renumeração da Lei n. 11.276/2006:
“Art. 518. Interposta a apelação, o juiz, declarando os efeitos em que a recebe, mandará dar vista ao apelado para responder.
§ 1o O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.
§ 2o Apresentada a resposta, é facultado ao juiz, em cinco dias, o reexame dos pressupostos de admissibilidade do recurso.”
Trata-se da súmula impeditiva de recurso, aprovada por lei ordinária com amplitude menor que a auspiciada nos primeiros tempos. Daí a observação de COUCE DE MENEZES e TENÓRIO DA CUNHA, no sentido de que “a súmula obstativa do seguimento da apelação não se confunde com a súmula impeditiva de recursos, que não foi aprovada na Reforma do Judiciário. O objetivo desta era bem mais amplo, porque impedia quaisquer recursos ou quaisquer outros meios de impugnação se contrários ao entendimento sumulado”[37]. Mas nem por isso se justifica criar uma nova denominação para o instituto (“súmula obstativa do seguimento da apelação”), que mantém as mesmas características ontológicas e funcionais do seu “modelo”, variando apenas no alcance.
Observa-se, “ab initio”, que o par. 1º não faz menção ao Tribunal Superior do Trabalho. Tampouco faz menção ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Superior Tribunal Militar, que também editam súmulas de jurisprudência; mas, nesse último caso, as súmulas tratam exclusivamente de matéria penal e processual penal, donde a inaplicabilidade do Código de Processo Civil. Quanto à Justiça do Trabalho[38], porém, põe-se a questão: tratando-se jurisdição civil “lato sensu” (i.e., não-penal), aplicar-se-ia o artigo 518, §1º, do CPC, para que não se receba o recurso ordinário quando a sentença estiver em conformidade com súmula do STF ou do STJ? Aplicar-se-ia, outrossim, na conformidade com a súmula do próprio TST?
No Seminário «As Recentes Mudanças do CPC e suas Implicações no Processo do Trabalho» (TRT/15ª, 04.08.2006), a plenária, por maioria, respondeu sim a ambas as perguntas, aprovando a tese formulada pelo Grupo III, sob a coordenação da Juíza ANA MARIA VASCONCELLOS. Firmou-se a convicção de que “o juiz [do Trabalho] poderá denegar seguimento a recurso, por entender que a matéria constante da sentença se encontra na conformidade das súmulas do TST, STJ e STF (art. 518, parágrafo 1º do CPC)”.
É, de fato, o melhor entendimento. Novamente, não há omissão em acepção técnica (artigo 769/CLT), porque a figura da súmula impeditiva de recursos não existia; foi introduzida no ordenamento processual civil brasileiro pela Lei n. 11.276/2006. Houve, portanto, mera imprevisão histórica. Mas a “lex nova” atende aos princípios da celeridade, da simplicidade e da efetividade da tutela jurisdicional. Logo, a sua compatibilidade com o processo laboral é inconteste ― tanto que as providências do artigo 557 do CPC, análogas a essa, já vinham sendo aceitas sem resistências pelos Tribunais Regionais do Trabalho[39] (denegação, pelo relator, de seguimento de recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do STF ou do STJ). Não seria razoável, portanto, rechaçar a novidade ao argumento de que a CLT não foi “omissa”. Outra vez, incumbe ao intérprete atualizar a norma processual trabalhista, equiparando à omissão formal (dimensão estática) a imprevisão histórica (dimensão dinâmica)[40]. E tampouco seria razoável limitar a figura às súmulas do STF e do STJ, se é o TST quem uniformiza a jurisprudência nacional em matéria trabalhista, assim como o STJ uniformiza a jurisprudência dos tribunais regionais federais e dos tribunais de justiça em matéria de lei federal. Para insistir em um lugar-comum de nossos textos, diríamos: “ubi eadem ratio ibi idem ius”.
Na opinião de COUCE DE MENEZES e TENÓRIO DA CUNHA[41], nem todos os entendimentos sumulados ensejariam a denegação do recurso. As súmulas superadas pela iterativa jurisprudência das Cortes não teriam o condão de obstar o seguimento da apelação ou do recurso ordinário, por não servirem ao propósito do artigo 518, §1º. Essa interpretação, sobre atrair alguma insegurança jurídica, tem o mérito de evitar denegações radicadas na inércia dos tribunais superiores em atualizarem suas súmulas de jurisprudência.
Ressalte-se que a denegação não é mera “faculdade” do juiz de primeiro grau, mas um seu dever processual. Criou-se, a partir da Lei n. 11.276/2006, um novo pressuposto recursal objetivo (positivo), específico para as apelações e recursos ordinários[42]: a desconformidade do conteúdo sentencial com a súmula de jurisprudência dos tribunais superiores (ou ― o que é o mesmo ― um curioso pressuposto recursal negativo: a convicção convergente entre a 1ª Instância e a Súmula de Jurisprudência dos Tribunais Superiores[43]).
O não-recebimento do recurso ordinário tanto poderá prejudicar o empregado quanto o empregador sucumbente. Uma vez mais não se justificaria discriminá-los, ao argumento de que o processo do trabalho é informado ― direta ou indiretamente ― pelo princípio da proteção.
Caso o recurso ordinário verse sobre matéria sumulada, a respeito da qual haja convicção convergente, mas também fira matéria diversa e não-convergente, o juiz do Trabalho deverá admitir o recurso e processá-lo, abrindo-se à Turma do Regional a possibilidade de apreciação integral do recurso, inclusive quanto à tese convergente. Chega-se a essa solução por “analogia iuris”, com fundamento na Súmula n. 285 do TST[44]. Trata-se, ademais, de salutar medida de economia processual, a prevenir desnecessários agravos de instrumento para “destrancar” matérias.
E quais são os poderes do Tribunal no julgamento de agravo de instrumento (artigo 897, “b”, da CLT) que acaso se interponha da denegação fundada no artigo 518, §1º, do CPC? Mesma dúvida exsurge no processo civil, ut artigo 522 do CPC. Há duas posições aprioristicamente defensáveis: (a) o juízo “ad quem” teria o poder de reformar a sentença, no mérito, por não acompanhar o entendimento sumulado; (b) o juízo “ad quem” teria o poder de tão-só avaliar a adequação da sentença e/ou do caso concreto à súmula de jurisprudência, dando ou não seguimento ao recurso, sem jamais impor suas próprias teses. Optamos pela segunda posição, acompanhando a tese aprovada no Seminário «As Recentes Mudanças…»[45] (supra). Uma interpretação teleológica do preceito permite reconhecer, como “mens legis” do novo texto, a otimização da celeridade processual e da estabilidade judiciária, mas pelo caminho da valorização das decisões de primeira instância, quando convergirem para a Súmula de Jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF, STJ, TST). Admitir que os tribunais possam contrariar a tese de convergência, reformando a decisão para impor outras teses quaisquer que lhes pareçam mais acertadas, equivale a desatender o espírito do artigo 518, §1º, perenizar divergências e desprestigiar as decisões convergentes dos juízos de base. O juízo “ad quem” somente poderá ingressar no mérito recursal se concluir que a sentença atacada não está em conformidade com a súmula, ou se entender que o caso concreto não se subsume à hipótese sumulada. Mas, antes, deverá determinar o processamento do recurso, com vistas à intimação do “ex adverso” para contra-arrazoá-lo (artigo 5º, LV, CRFB), exceção feita à possibilidade de julgamento imediato do mérito do recurso denegado, nos termos do artigo 897, §7º, da CLT (redação da Lei n. 9.756/98)[46].
Convém examinar, enfim, se o novel par. 1º do artigo 518 viola o princípio do duplo grau de jurisdição. À partida, é preciso dizer que existe séria celeuma doutrinária a propósito da natureza e mesmo da existência desse princípio processual. Decerto não é um princípio constitucional explícito, já que não está entre as garantias processuais do artigo 5º. Há quem o derive do Capítulo III (“Do Poder Judiciário”) do Título IV (“Da Organização dos Poderes”) da Constituição Federal, porque a estrutura judiciária em vigor geralmente pressupõe a distribuição orgânica de competências originárias e recursais. Logo, o direito de recorrer seria inerente à estrutura do Judiciário brasileiro. Mas, mesmo para os que admitem um princípio constitucional do duplo grau de jurisdição, o artigo 518, §1º forra-se à pecha de inconstitucionalidade, na medida em que a garantia absoluta do duplo grau (i.e., garantia de sempre recorrer das sentenças nas instâncias ordinárias) só existiu na vigência da Constituição do Império (1824), por força de seu artigo 158. Referindo-se ao descabimento de apelação nos casos do artigo 34 da Lei n. 6.830/80 e do artigo 4º da Lei n. 6.825/80 e, para mais, à irrecorribilidade dos despachos (artigo 504 do CPC), NELSON NERY JR. anota que “esses artigos não são inconstitucionais justamente em face da ausência de «garantia» [absoluta] do duplo grau de jurisdição. Entretanto, não poderá haver limitação ao cabimento do recurso especial ou extraordinário, como era permitido no sistema revogado (art. 119, §1º, CF de 1969), porque a atual Constituição Federal não estipulou nenhuma restrição”[47]. Mesma lição se aplica ao artigo 518, §1º, do CPC: não há inconstitucionalidade, porque inexiste limitação de acesso às instâncias extraordinárias (i.e., recurso especial e/ou recurso extraordinário), em caso de violação da Constituição ou da lei federal, ou ainda para uniformização de jurisprudência; no âmbito do processo do trabalho, tal acesso esgota-se na possibilidade de recurso extraordinário, diante do que dispõe, “a contrario”, o artigo 105, III, da CRFB (“julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios […]” — g.n.). Observe-se que, no Brasil, o duplo grau de jurisdição só persiste, como garantia processual absoluta, em seara processual penal, ut artigo 8º, 2, “h”, do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos), c.c. artigo 5º, §2º, da CRFB. Não existe, com tal amplitude, no processo civil ou trabalhista.
V. A NOVA EXECUÇÃO CIVIL (LEI N. 11.232/2005) E SEUS REFLEXOS NA LIQUIDAÇÃO E NA EXECUÇÃO TRABALHISTA
A Lei n. 11.232/2005 tratou, entre outros assuntos, da liquidação e do cumprimento das sentenças judiciais. Nesse último aspecto, operou uma verdadeira revolução. Mas principiemos pela liquidação. Dispõem os atuais artigos 475-A a 475-H do CPC:
“Art. 475-A. Quando a sentença não determinar o valor devido, procede-se à sua liquidação.
§ 1o Do requerimento de liquidação de sentença será a parte intimada, na pessoa de seu advogado.
§ 2o A liquidação poderá ser requerida na pendência de recurso, processando-se em autos apartados, no juízo de origem, cumprindo ao liquidante instruir o pedido com cópias das peças processuais pertinentes.
§ 3o Nos processos sob procedimento comum sumário, referidos no art. 275, inciso II, alíneas ‘d’ e ‘e’ desta Lei, é defesa a sentença ilíquida, cumprindo ao juiz, se for o caso, fixar de plano, a seu prudente critério, o valor devido.
Art. 475-B. Quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo aritmético, o credor requererá o cumprimento da sentença, na forma do art. 475-J desta Lei, instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo.
§ 1o Quando a elaboração da memória do cálculo depender de dados existentes em poder do devedor ou de terceiro, o juiz, a requerimento do credor, poderá requisitá-los, fixando prazo de até trinta dias para o cumprimento da diligência.
§ 2o Se os dados não forem, injustificadamente, apresentados pelo devedor, reputar-se-ão corretos os cálculos apresentados pelo credor, e, se não o forem pelo terceiro, configurar-se-á a situação prevista no art. 362.
§ 3o Poderá o juiz valer-se do contador do juízo, quando a memória apresentada pelo credor aparentemente exceder os limites da decisão exeqüenda e, ainda, nos casos de assistência judiciária.
§ 4o Se o credor não concordar com os cálculos feitos nos termos do § 3o deste artigo, far-se-á a execução pelo valor originariamente pretendido, mas a penhora terá por base o valor encontrado pelo contador.
Art. 475-C. Far-se-á a liquidação por arbitramento quando:
I – determinado pela sentença ou convencionado pelas partes;
II – o exigir a natureza do objeto da liquidação.
Art. 475-D. Requerida a liquidação por arbitramento, o juiz nomeará o perito e fixará o prazo para a entrega do laudo.
Parágrafo único. Apresentado o laudo, sobre o qual poderão as partes manifestar-se no prazo de dez dias, o juiz proferirá decisão ou designará, se necessário, audiência.
Art. 475-E. Far-se-á a liquidação por artigos, quando, para determinar o valor da condenação, houver necessidade de alegar e provar fato novo.
Art. 475-F. Na liquidação por artigos, observar-se-á, no que couber, o procedimento comum (art. 272).
Art. 475-G. É defeso, na liquidação, discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou.
Art. 475-H. Da decisão de liquidação caberá agravo de instrumento.”
Como se sabe, a CLT pouco diz quanto à fase de liquidação. No artigo 879, caput, prevê as figuras da liquidação por cálculo, por arbitramento e por artigos (sem, todavia, especificá-las quanto à função, finalidade ou procedimento); dispõe que a decisão liquidatária não poderá modificar ou inovar a sentença liquidante, nem tampouco discutir matéria pertinente à causa principal (artigo 879, §1º, com a redação da Lei n. 8.432/92); e manda incluir, nas contas de liquidação, o cálculo das contribuições sociais devidas (artigo 879, §1º-A, com a redação da Lei n. 10.035/2000), instrumentalizando o procedimento para o exercício da competência prevista no artigo 114, VIII, da CRFB. Quanto ao mais, é silente.
Já por isso, admite-se, há muito, a compatibilidade “in genere” entre o modelo processual civil de liquidação e o processo do trabalho[48]. Esse estado de coisas não se altera com a Lei n. 11.232/2005. Todos os dispositivos supra aplicam-se à liquidação no processo do trabalho, exceção feita àqueles flagrantemente incompatíveis. As incompatibilidades são pontuais e quase sempre evidentes. Assim, e.g., não se aplica à liquidação trabalhista o artigo 475-H/CPC, que prevê agravo de instrumento para atacar a decisão de liquidação (evidenciando, aliás a natureza da decisão liquidatária: decisão interlocutória, ut artigo 162, §2º, do CPC); isso porque no processo do trabalho vige o princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias (artigo 893, §1º, da CLT); outrossim, o agravo de instrumento só tem lugar, no processo do trabalho, dos despachos (rectius: decisões) que denegam a interposição de recursos (artigo 897, “b”, da CLT). Ainda que se admitisse a recorribilidade da decisão de liquidação (que alguns autores, em minoria, tendem a admitir, em alguns casos, considerando-se os efeitos prováveis na execução[49]), o recurso cabível seria o agravo de petição, jamais o de instrumento.
Embora já estivessem presentes no Código de Processo Civil desde a Lei n. 10.444/2002, merecem menção as normas constantes do artigo 475-B, §§ 1º e 2º, relativas à liquidação por cálculos. Se a elaboração da memória de cálculos depender do conhecimento de informações existentes em poder do devedor ou de terceiros (o que é muito comum no processo do trabalho, como, p. ex., quando os cálculos pressupõem a aferição de média de comissões percebidas nos últimos doze meses), o juiz poderá requisitá-los (i.e., requisitar os documentos impressos da empresa, o seu disco rígido, os extratos bancários etc.), estipulando prazo de até trinta dias para a entrega. Conquanto se fale em “requerimento do credor”, é pacífico que, no processo do trabalho, a requisição pode se dar “ex officio”, diante do que dispõe o artigo 878, caput (execução de ofício), e 879, caput (“… ordenar-se-á, previamente, a sua liquidação…”), ambos da CLT. Havendo recusa injustificada, o juiz reputará corretos os cálculos apresentados pelo credor, se os dados estiverem em poder do devedor (art. 475-B, §2o, 1a parte, CPC); ou aplicará a norma do artigo 362 do CPC (diligência de busca e apreensão de coisas e/ou documentos, associada à responsabilização criminal do sujeito recalcitrante por crime de desobediência ― artigo 330 do Código Penal), se os dados estiverem em poder de terceiro (art. 475-B, §2o, 2a parte, CPC). Observe-se, porém, que a segunda solução não autoriza a prisão em flagrante do terceiro recalcitrante, uma vez que o crime de desobediência é de pequeno potencial ofensivo (cfr. artigo 61 da Lei n. 9.099/95 e artigo 3º da Lei n. 10.259/2001). Ao magistrado restará determinar, se o caso, a condução “sub vara” do terceiro à delegacia de polícia (preferencialmente a uma unidade da Polícia Federal, em se tratando de magistrado trabalhista ou federal comum), e bem assim a lavratura de termo circunstanciado (artigo 69 da Lei n. 9.099/95), para que o conduzido assuma compromisso de comparecimento perante a autoridade judicial competente. Apenas se não o fizer, impor-se-á a prisão em flagrante e/ou a imposição de fiança (artigo 69, par. único, 1ª parte, da Lei n. 9.099/95). Solução melhor, a nosso ver, seria instituir a figura da prisão processual por descumprimento grave e injustificado de ordem judicial, à maneira do que se vê nos países de tradição anglo-saxônica (“contempts of court”)[50].
É na execução, porém, que a Lei n. 11.232/2005 introduziu as mais profundas alterações no modelo processual civil em vigor.
O «processo de execução», como entidade conceitual autônoma, desapareceu quando se trata de obrigação por quantia certa (artigo 475-I, caput, do CPC). O Título VIII (“Do procedimento ordinário”) do Livro I (“Do processo de conhecimento”) do CPC passa a ter um Capítulo IX (sobre liquidação de sentença, supra) e, na seqüência, um Capítulo X (“Do cumprimento da sentença” ― g.n.). O que era a execução, com foros de autonomia procedimental e científica (a ponto de se falar, em Teoria Geral do Processo, na “ação de execução”), passa a ser uma fase ― a última ― do processo de conhecimento. Essa concepção é bem conhecida dos cultores do processo do trabalho. Nesse nicho, há tempos já se sustentava que a execução não seria um processo autônomo, mas uma fase do processo cognitivo[51], notadamente em face dos artigos 832, 835 (“cumprimento do acordo ou da decisão”) e 878 (execução de ofício), todos da CLT ― apesar da citação na fase de execução (artigo 880), que parecia indicar o sentido oposto. Afinal, como explicar a oficialidade da execução trabalhista, a se supor uma ação autônoma de execução e o princípio da inércia jurisdicional? Estaria o juiz a “propor” a ação, em proveito do credor-exeqüente? A saída mais confortável passava, indiscutivelmente, pela negação daquela autonomia.
Aplicando o novo modelo executivo ao processo do trabalho e advogando uma “leitura atualizada” do artigo 880 da CLT, SOUTO MAIOR[52] sugere bastar a intimação postal do devedor, por carta registrada, para que pague a dívida constante do título no prazo de quinze dias, sob pena de multa de 10% (artigo 475-J/CPC). Propõe, além disso, que o regime do artigo 880/CLT não se aplique aos acordos descumpridos (valendo a própria ata de audiência, na qual se formalizou a homologação do acordo, como documento comprobatório de uma “citação” prévia e bastante, feita verbalmente ao devedor). Quanto à primeira tese (“ler” o artigo 880/CLT como mero comando de intimação postal), trata-se de interpretação flagrantemente “contra legem”, uma vez que o preceito diz, textualmente, que o juiz “…mandará expedir mandado de citação…”. A idéia mereceria ser repensada, de molde a prevenir a insegurança jurídica ou a própria vulneração de direitos processuais fundamentais do réu (como, e.g., o de ser executado segundo o procedimento legal e não ao inteiro alvitre do juiz). De nada adianta uma execução mais expedida que, adiante, veja-se fulminada por nulidades e anulabilidades. A segunda tese, porém, atende bem às garantias inerentes ao artigo 880/CLT, na medida em que o devedor, transigindo, é pessoalmente citado, por agente público (o juiz), de que o acordo deve ser cumprido no prazo, pelo modo e sob as cominações estabelecidas, sob pena de penhora; tudo isso, ademais, é sacramentado em termo, com a assinatura do devedor. O princípio da instrumentalidade dos atos processuais permite afirmar, nessa hipótese, que a “citação prévia do devedor em audiência” faz as vezes do mandado de citação ao executado (artigo 880) e não compromete seus direitos de defesa.
A par disso, importa observar, ainda com SOUTO MAIOR, que a nova configuração da execução por quantia certa (na verdade, “cumprimento da sentença”) trouxe duas conseqüências relevantes para o regime jurídico das ações condenatórias correspondentes.
A uma, impõe-se reconhecer que as ações condenatórias de obrigação por quantia certa não são mais meramente condenatórias, mas condenatórias e executivas “lato sensu” [53] (a par da carga declaratória que toda sentença possui), na expressão celebrizada por PONTES DE MIRANDA[54]. Isso porque tais ações, à maneira das ações possessórias e das ações de despejo, passam a dispensar a instauração de um processo autônomo de execução, uma vez que a satisfação das obrigações terá lugar na mesma relação jurídico-processual instaurada inicialmente, com a distribuição ou o despacho do juiz (artigo 263/CPC). Noutras palavras, ao ajuizar-se uma ação condenatória de obrigação por quantia certa, pede-se ao juiz ― explícita ou implicitamente ― mais que a condenação do réu; pede-se a efetividade da tutela, i.e., a satisfação do direito mediante os meios coercivos necessários.
A duas, a transformação da execução por quantia certa em fase de cumprimento da sentença compromete sensivelmente a tese da prescrição intercorrente[55], na esteira do que já dispunha a Súmula n. 114 do TST (contra a Súmula n. 327 do STF). Com efeito, assim como a demora na promoção dos atos e diligências do processo de conhecimento pode, quando muito, gerar a extinção do processo (art. 267, III, do CPC), ou quiçá a perempção (artigo 268, par. único, 1ª parte, do CPC), mas sempre sem afetação das pretensões de direito material (tanto que, mesmo nas perempções, o direito pode ser alegado como defesa: artigo 268, par. único, 2ª parte), igual inteligência tende a informar a “fase executiva” (cumprimento da sentença), agora considerada uma parte da ação plenária. Afinal, um mesmo tipo de omissão não poderia surtir efeitos diversos no bojo do mesmo procedimento, ao ensejo da mesma ação. Pois bem: a síntese dessa tese, a espancar qualquer dúvida sobre o descabimento, em regra, da prescrição intercorrente nas ações trabalhistas, está no recente artigo 475-J, §5º, do CPC:
“Art. 475-J. […] “§ 5o Não sendo requerida a execução no prazo de seis meses, o juiz mandará arquivar os autos, sem prejuízo de seu desarquivamento a pedido da parte.” [g.n.]
Os efeitos são, portanto, de cunho estritamente processual; não afetam o direito material “a se” (fenômeno da decadência) e tampouco a pretensão material que lhe corresponde (fenômeno da prescrição). Ademais, no processo laboral (e era esse o argumento utilizado antes da Lei n. 11.232/2005), o impulso executivo é “ex officio”. Logo, por se tratar da mesma relação jurídico-processual, a conseqüência da inércia da parte interessada na fase liquidatária ou executiva, como já era na fase de conhecimento (antes mesmo das alterações em comento), tem de ser meramente processual; e, nos processos trabalhistas, só terá lugar quando o juiz do Trabalho não puder atuar “ex officio” (como, e.g., nas liquidações por artigos).
Para essa regra, divisa-se uma única exceção, pela via do artigo 889 da CLT: a prescrição intercorrente, pelo biênio (artigo 7º, XXIX, da CRFB[56]), em caso de aplicação subsidiária do artigo 40 da Lei de Executivos Fiscais (Lei n. 6.830/80). É que, com a edição da Lei n. 11.051/2004, esse artigo 40 ― que trata da suspensão do curso da execução quando não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora (sem curso prescricional) e, após um ano, do arquivamento dos autos respectivos (§2º) ― passou a ter um quarto parágrafo, com a seguinte redação:
“§ 4o. Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato” [g.n.].
Dado o silêncio da CLT a esse propósito, não divisamos razões bastantes para que essa norma subsidiária seja repelida[57]. A bem da segurança jurídica (que é valor republicano inserido no próprio Preâmbulo da Constituição), não pode o indivíduo permanecer por toda a vida à mercê de uma decisão judicial que o desfavoreça, quando o próprio credor não demonstra mais qualquer interesse em ver satisfeito o crédito. Se isso vale até mesmo para a Fazenda Pública ― cujos créditos são, como os trabalhistas, essencialmente indisponíveis e irrenunciáveis ―, fere o bom senso que não valha para o empregado (ou, na via oposta, para o empregador). Aliás, não fosse assim, a CLT não poderia ter eleito a “prescrição da dívida” como uma das poucas matérias alegáveis em sede de embargos à execução (artigo 884, §1º): a não ser a prescrição intercorrente, que outra poderia ser alegada somente em fase executiva (amiúde após o trânsito em julgado, que impede o reconhecimento de prescrição existente à época da propositura da ação e não alegada anteriormente)?
Assim, caberá mesmo ao credor provocar o juízo, na iminência do prazo fatal, requerendo diligências úteis para a localização do devedor e/ou dos bens (artigo 40, §3º, da LEF), de molde a interromper o curso prescricional. Observe-se que, nesse extremo, o juiz já terá exaurido sua atividade persecutória, dando cumprimento ao mandado de impulso oficial; não obstante, as diligências ter-se-ão revelado infrutíferas. A alternativa seria impor ao juízo o dever de perenizar “ad eternum” a persecução patrimonial, valendo-se de rastreamentos on-line (sistema BACENJUD) ou mandados de penhora, sem nem ao menos saber se o interessado ainda vive ou tem sucessores para os fins da Lei n 6.858/80… Pode-se até sustentar essa alternativa; mas seria uma sustentação retórica, por ser certo que, passados os anos, um processo com tais características ― carência de movimentação processual pela parte e exaurimento da atividade oficial de persecução patrimonial ― será simplesmente esquecido nalguma prateleira.
Feitas essas considerações, convém pontuar que a aplicação «em bloco» da nova execução civil no processo do trabalho é, “concessa venia”, impraticável. Isso porque, conquanto modesta, há regulação expressa da matéria na CLT e na Lei n. 5.584/70 (artigos 12 e 13), além da remissão preferencial, em caráter subsidiário, à Lei n. 6.830/80 (ut artigo 889 da CLT). Logo, só têm aplicação ao processo trabalhista aqueles preceitos do CPC que não têm correspondência na Consolidação, na Lei n. 5.584/70 ou na Lei de Executivos Fiscais.
Não é esse, e.g., o caso da dispensa de citação do artigo 475-J, caput, do CPC, como antecipamos supra. No processo civil, o devedor condenado a pagar quantia certa não é mais «citado» para pagar ou nomear bens à penhora; incumbe-lhe efetuar o pagamento do “quantum” da condenação em quinze dias, contados a partir do momento em que se lhe dá ciência da quantia exata a pagar. No processo do trabalho, porém, remanesce em vigor o artigo 880 da CLT, que ainda prevê a citação do executado. Sustentar o contrário seria supor que a Lei n. 11.232/2005 teria revogado, nessa parte, a CLT, o que violentaria o modelo legal da execução trabalhista e carrearia à legislação processual civil uma primazia que ela não tem. Conquanto se possa alegar que a “abolição” do mandado de citação do art. 880 esteja de acordo com o espírito do inciso LXXVIII do artigo 5º da CRFB (o que é verdadeiro), deve-se refletir, também, se estaria de acordo com a norma do inciso LIV do mesmo artigo[58]. O que é, afinal, o “procedural due process” (= devido processo legal formal)? Não é ― entre outras coisas ― garantir ao cidadão que a sua execução, civil (“lato sensu”) ou penal, faça-se conforme a lei vigente para o seu caso? Nessa linha, o “efeito-surpresa” da supressão do mandado de citação do executado poderia ser, num primeiro momento, devastador. Volta à baila, outrossim, o problema da segurança jurídica: tal supressão significaria a possibilidade de o juiz do Trabalho escolher, dentre três procedimentos-padrão (CLT, LEF, CPC), os atos processuais que fossem mais “efetivos”, i.e., os que mais abreviassem a execução. Não se trataria mais de “aplicação subsidiária” dessa ou daquela norma, mas de mera escolha. Discricionária escolha. E, num Estado Democrático de Direito, os fins ― por mais justos e louváveis ― nem sempre justificam os meios. Afinal, amanhã um juiz hipotético poderia também “escolher”, dentre os procedimentos em vigor, os atos processuais que mais favorecessem o empregador-executado, pelo custo ou pela demora, propondo alguma “releitura” adequada aos princípios que julgasse mais valiosos (e.g., a livre iniciativa e o direito de propriedade). O que diríamos?
Só nos resta lamentar, nessa parte, o evidente descompasso histórico. O processo do trabalho outra vez é superado pelo processo comum, ao manter a figura do mandado de citação em execução (que, portanto, não pode ser “carta” ou “intimação”) como elemento integrante do devido processo legal de execução trabalhista[59].
Há, porém, vários preceitos que podem ― e devem ― ser aproveitados na Justiça do Trabalho.
“Ad exemplum”, a norma do artigo 475-J, §3o, do CPC[60] não é incompatível com a norma do artigo 880 da CLT e tampouco com a do artigo 882, pela qual o executado poderá garantir a execução mediante depósito da mesma, atualizada e acrescida de despesas processuais, ou nomeando bens à penhora, “observada a ordem preferencial estabelecida no art. 655 do Código Processual Civil”. Dir-se-ia que a penhora só poderia vir depois (artigo 883), caso o devedor não garantisse a execução nos termos do artigo 882. Não mais. Isso porque a ordem preferencial do artigo 655 do CPC, à qual expressamente reenvia o artigo 882 (logo, não se trata de aplicação subsidiária, mas direta), não é mais impositiva nas ações condenatórias de obrigação, podendo o credor desde logo indicar bens à penhora, se o devedor não cumpriu voluntariamente a obrigação de pagar no prazo de quinze dias (artigo 475-J, caput). E, tratando-se de processo do trabalho, no qual a execução tem iniciativa e impulso oficiais (artigo 878, caput, da CLT), fica evidente que o próprio juiz pode deliberar sobre os bens e valores a serem penhorados, independentemente da nomeação pelo devedor ou da indicação pelo credor; assim como pode expedir o mandado de penhora e avaliação (que incluirá também a citação, ut artigo 880/CLT, exceção feita aos acordos em que a citação pessoal foi documentada em termo), independentemente do “requerimento do credor” mencionado no caput do artigo 475-J. Com isso, justifica-se, do ponto de vista procedimental, a praxe instituída em muitas varas de proceder “ex officio” ao rastreamento e penhora de contas correntes via BACENJUD, antes mesmo de penhorar qualquer bem nomeado pelo devedor ou indicado pelo devedor (se já não a justificassem, como sempre pensamos, o artigo 655, I, do CPC, c.c. artigo 882 da CLT, e o artigo 11, I, da Lei n. 6.830/80, c.c. artigo 889 da CLT).
O mesmo se diga da multa do artigo 475-J do CPC e da execução provisória nos termos do artigo 475-O do CPC. No Seminário «As Recentes Mudanças do CPC e suas Implicações no Processo do Trabalho» (TRT/15ª, 04.08.2006), os juízes presentes aprovaram, por maioria, as seguintes teses: (1) a multa prevista no artigo 475-J, caput, do CPC (dez por cento) é aplicável ao processo trabalhista; (2) o artigo 475-O do CPC aplica-se ao processo do trabalho e, além de afirmar que a execução provisória far-se-á de modo idêntico à definitiva, ainda possibilita, mediante caução, o levantamento de depósitos em dinheiro (pense-se, e.g., nos depósitos recursais ou nas penhoras on-line), a alienação de propriedade (hastas públicas) e outros atos de executivos que causem gravame ao executado.
Quanto à multa de dez por cento sobre o “quantum debeatur”, MANOEL ANTÔNIO TEIXEIRA FILHO[61], JOSÉ AUGUSTO RODRIGUES PINTO[62] e ANTONIO NICACIO[63] concluíram pela sua inaplicabilidade ao processo do trabalho, dada a regulação própria da CLT, e também por se tratar de norma impositiva de coerção econômica (= norma penal “lato sensu”) que desafiaria interpretação restritiva, nos estritos lindes do processo civil. Divergimos. Parece-nos que a multa do artigo 475-J é perfeitamente compatível com o processo do trabalho, desde que ultimada fora do contexto do artigo 880, caput, da CLT, ou então adaptada à sua forma. Não há, outrossim, nenhum óbice hermenêutico, assim como jamais houve para a aplicação subsidiária da multa por ato atentatório ao exercício da jurisidição (CPC, art. 14, par. único), da multa por litigância de má-fé (CPC, arts. 17 e 18), da multa por embargos protelatórios (CPC, artigo 538, par. único), da multa por ato atentatório à dignidade da justiça (CPC, art. 601) e das próprias “astreintes” (CPC, 461 e 461-A)[64]. Eis outro ensejo de imprevisão histórica que, para os fins do artigo 769 da CLT, faz as vezes de omissão.
Interessa indagar, contudo, qual o termo “a quo” do prazo de quinze dias para a imposição dessa multa. No caso de acordos descumpridos, feita e consignada a “citação prévia” do devedor no próprio termo (supra), bastará intimá-lo, por via postal, para que pague em quinze dias o importe remanescente acrescido da cláusula penal. Em não o fazendo, seguem-se os atos de penhora sobre o montante devido (inclusa a cláusula penal), acrescido da multa do artigo 475-J, caput, do CPC. Dada a norma do artigo 475-J, §3º, lida em cotejo com o artigo 878 da CLT, e bem assim as normas dos artigos 655, I, do CPC, e 11, I, da LEF, pode-se proceder de imediato à constrição on-line (BACENJUD), pela totalidade. Nem se diga haver “bis in idem” no cúmulo de multas: enquanto a cláusula penal do acordo firmado em juízo tem natureza convencional (é parte integrante de um negócio jurídico processual) e caráter dispositivo, a multa do artigo 475-J tem natureza processual e caráter cogente.
Já se tivermos uma típica sentença condenatória de obrigação de pagar quantia certa, haverá dois caminhos. Quando a sentença prolatada for líquida, deve-se fazer constar, do dispositivo, a cominação do artigo 475-J, caput, do CPC (quanto à multa), de modo que a ciência da sentença (seja por intimação, seja na forma da Súmula 197 do TST) projetará, para o dia seguinte (artigo 184, caput, do CPC), o termo “a quo” do prazo de quinze dias. Essa é a solução ideal, porque o “momentum” da multa em questão não é o da fase de execução, mas o da fase de conhecimento e acertamento (condenação/liquidação). O próprio artigo 475-J, caput, refere o mandado de penhora e avaliação como um ato subseqüente; logo, não estamos falando da fase do artigo 880 da CLT.
Se, porém, a sentença for ilíquida (como é mais encontradiço), haveria que se a liquidar e, em seguida, intimar o devedor para pagar em quinze dias, sob as penas do artigo 475-J, caput, do CPC[65]. Mas, tendo em conta a praxe generalizada de não se dar ciência autônoma das decisões liquidatárias, a solução será inserir expressamente, no texto do mandado de citação, avaliação e penhora (artigo 880 da CLT), a cominação de multa de 10% sobre o “quantum” exeqüendo, para o caso de não se pagar (quitação direta) e nem se depositar o valor em quinze dias, a contar do ato de citação[66]; isso, sem prejuízo da obrigação de garantir o juízo em 48 horas (mediante o próprio depósito ou a nomeação de bens à penhora ― que, como vimos, passa a ser meramente indicativa, não vinculando o credor ou o juiz). Adiante, quando se iniciarem os atos de constrição (e.g., o rastreamento via BACENJUD para penhora on-line), o montante exeqüendo será atualizado pela Secretaria, incluindo-se a multa processual de 10%. Evidentemente que, se os embargos à execução forem mais tarde acolhidos em qualquer instância, a referida multa só poderá incidir sobre o montante exeqüendo tido por correto à época do vencimento do prazo de quinze dias; parcelas ou títulos que tenham sido expurgados daquele montante não poderão servir de base de cálculo para a multa. Nesse sentido, será de rigor recalculá-la, para fazê-la incidir apenas sobre o “restante”, analogamente ao que diz o parágrafo 4º do artigo 475-J. O mesmo raciocínio vale em sede de execução provisória, para o caso de sobrevir acórdão, em recurso ordinário ou de revista, que modifique a sentença e reduza o objeto original da execução.
E por falar em execução provisória, o novo artigo 475-O do CPC dispõe:
“Art. 475-O. A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo modo que a definitiva, observadas as seguintes normas:
I – corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exeqüente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido;
II – fica sem efeito, sobrevindo acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento;
III – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos.
§ 1o No caso do inciso II do caput deste artigo, se a sentença provisória for modificada ou anulada apenas em parte, somente nesta ficará sem efeito a execução.
§ 2o A caução a que se refere o inciso III do caput deste artigo poderá ser dispensada:
I – quando, nos casos de crédito de natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito, até o limite de sessenta vezes o valor do salário-mínimo, o exeqüente demonstrar situação de necessidade;
II – nos casos de execução provisória em que penda agravo de instrumento junto ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça (art. 544), salvo quando da dispensa possa manifestamente resultar risco de grave dano, de difícil ou incerta reparação.
§ 3o Ao requerer a execução provisória, o exeqüente instruirá a petição com cópias autenticadas das seguintes peças do processo, podendo o advogado valer-se do disposto na parte final do art. 544, § 1o:
I – sentença ou acórdão exeqüendo;
II – certidão de interposição do recurso não dotado de efeito suspensivo;
III – procurações outorgadas pelas partes;
IV – decisão de habilitação, se for o caso;
V – facultativamente, outras peças processuais que o exeqüente considere necessárias.”
Outra vez, a aplicabilidade subsidiária da norma processual comum baseia-se na compatibilidade lógico-sistemática com o processo do trabalho e no silêncio da CLT, que não trata da execução provisória, exceto pelo artigo 899, caput (a autorizar execução provisória “até a penhora”). Por força do artigo 475-O do CPC, a execução provisória faz-se de modo idêntico à definitiva (como já dizia o artigo 588 do CPC), em autos apartados (carta de sentença ou autos suplementares), admitindo-se inclusive os atos de alienação dominial e os levantamentos de depósitos, mas sempre “por iniciativa, conta e responsabilidade do exeqüente”. Três são as hipóteses em que esses atos executivos, e outros de que possam resultar graves danos ao executado, tornam-se lícitos em execução provisória: (a) se houver, por parte do exeqüente, caução suficiente e idônea, arbitrada pelo juiz e prestada nos próprios autos (artigo 475-O, III); (b) em casos de créditos com natureza alimentar (como são, em geral, os créditos trabalhistas de natureza salarial) ou decorrentes de ato ilícito (como, e.g., as indenizações e/ou pensões relativas a danos materiais e morais decorrentes de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais), até o limite de sessenta salários mínimos (hoje, em novembro de 2006[67], R$ 350,00 x 60 = R$ 21.000,00), desde que o exeqüente demonstre situação de necessidade (para o que bastará, as mais das vezes, mera declaração firmada pelo trabalhador ou, se analfabeto, a seu rogo); e (c) quando se tratar de execução em que penda tão-só agravo de instrumento junto ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça (ressalva feita aos casos em que da dispensa possa resultar manifestamente ― a critério do juiz, diga-se ― risco de grave dano, de difícil ou incerta reparação). Nas situações “b” e “c”, a caução é inexigível. E a derradeira hipótese (“c”) pode ser estendida, por analogia e subsidiariedade, à execução trabalhista, para os casos de agravos de instrumento pendentes junto ao TST para destrancamento de recurso de revista ou agravo de petição. Atente-se: não estamos dizendo que o agravo de instrumento não tranca a execução, porque seria dizer o óbvio (artigos 897, §2º, e 899, caput, da CLT); estamos dizendo mais: em se tratando de agravo de instrumento interposto perante o TST, são possíveis atos de alienação dominial, levantamentos de depósito e outros similares, independentemente de caução. Caberá ao juiz do Trabalho analisar se esses atos, não caucionados, ensejam ou não risco desproporcional de grave dano, de difícil ou incerta reparação, para o executado. Do ponto de vista da efetividade do processo, o artigo 475-O do CPC introduz alvissareiras novidades; mas há que ter a coragem de experimentá-las.
E quanto ao artigo 899 da CLT, que parece proibir a execução provisória para além da penhora (o que inclui o próprio julgamento dos embargos)? Não torna o artigo 475-O do CPC, especialmente em seu parágrafo 2º, incompatível com o rito celetário? Cremos que não. Mas a discussão é velha e precede as próprias mini-reformas do processo civil, que se iniciaram na década de noventa. Acompanhamos, agora como antes, o pensamento de RODRIGUES PINTO:
“[…] atentando-se, sobretudo, para a circunstância de que o processo do trabalho, graças à regra do art. 884, § 3º, da Consolidação, estende os atos de acertamento até o terreno dos atos de constrição, pela possibilidade que abre de discutir-se a sentença de liquidação com os embargos à penhora, não se compreende que tais embargos não possam ser, de logo, levantados, discutidos e julgados na execução provisória trabalhista, com claro repúdio ao princípio da celeridade processual, que é a viga-mestra de todo seu sistema. […] Portanto, sustentamos que, por aplicação subsidiária da lei formal comum, inteiramente compatível com a índole da trabalhista, também na execução provisória de sentenças proferidas em dissídios individuais se deve ir até o último dos atos de constrição, a sentença que julga a execução, vedada apenas a prática de atos processuais de alienação do patrimônio do devedor” [g.n.][68].
Nesse sentido, aliás, confira-se, “ad exemplum”, o Ac. TRT 3ª Reg., AP-3166/98, Seção Especializada, rel. Juíza ALICE MONTEIRO DE BARROS, j. 30.03.1999[69]. É de se entender, portanto, que a expressão “até a penhora” significa «até o julgamento e/ou destinação do objeto da penhora», ou seja, até a fase da penhora, de efetiva satisfação do crédito exeqüendo, que pressupõe constrição e excussão. Excetuam-se, em princípio, os atos processuais de alienação (RODRIGUES PINTO, supra); mas, consoante a norma do artigo 475-O do CPC, até mesmo esses atos poderão ser praticados, se houver caução bastante e idônea, se a natureza do crédito assim determinar ou se o grau de provisoriedade da execução for residual (agravos de instrumento em tribunais superiores).
Enfim, no que atine aos embargos de execução, o fato de a Lei n. 11.232/2005 tê-los suprimido como ação autônoma nas execuções de quantia certa, introduzindo como sucedâneo a figura da impugnação (artigos 475-J, §1º, e 475-L do CPC), não interfere com o processo do trabalho. A impugnação do artigo 475-L é, sim, um mero incidente de execução; mas, quanto a isso, não há sobressaltos em seara processual-laboral, já que há muito o exeqüente trabalhista pode apresentar impugnação após a garantia da execução ou a penhora, discutindo os próprios cálculos de liquidação (artigo 884, caput, in fine, do CPC). Quanto ao executado, porém, prevalece o artigo 884, §1o, da CLT, ainda em vigor: a CLT não é, nessa parte, formalmente omissa, nem se trata de imprevisão histórica[70]. Os embargos do artigo 884 da CLT continuam, portanto, a existir, com a sua natureza de ação incidental na qual o executado figura como autor[71] (tanto mais agora, quando se passa a entender, no cível como no trabalhista, que a “execução” nas ações de condenação em quantia certa não é uma ação autônoma, mas uma fase de cumprimento sentencial; logo, os embargos não podem ser, como alguém disse outrora, a defesa ou contestação no processo de execução). As matérias que o executado trabalhista pode argüir são, em princípio, aquelas do artigo 884, §§ 1º e 5º, da CLT, e não aquelas do artigo 475-L, I a VI, do CPC (embora algumas dessas matérias sejam de ordem pública, cognoscíveis “ex officio” e, por isso, passíveis de discussão até mesmo nas impropriamente chamadas «exceções de pré-executividade»). Quanto ao fenômeno da relativização da coisa julgada em sede de embargos do devedor (que já havia sido incorporado à CLT, no seu artigo 884, §5º, pela MP n. 2.180/2001), é importante dizer que a sua configuração induz à inexigibilidade do título executivo judicial (veja-se, agora, o §1º do artigo 475-L do CPC, em cotejo com o inciso II do caput); e, desse modo, tem o condão de paralisar a execução. Logo, a inexigibilidade do título, por essa via, acabou se tornando mais uma matéria alegável nos embargos do artigo 884/CLT. Mas a relativização da coisa julgada não pode ser, em absoluto, uma panacéia do calote. Deve-se admiti-la apenas nas hipóteses de decisões proferidas em controle concentrado (i.e., em ações diretas de inconstitucionalidade ou declaratórias de constitucionalidade), sob pena de vulneração à garantia constitucional da coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, “in fine”). SOUTO MAIOR[72] vai além e exige, para o efeito de paralisia executiva, o malferimento a direitos fundamentais consagrados, seja na CRFB, seja na “órbita dos direitos humanos”. A tese é interessante, especialmente na perspectiva do princípio da proporcionalidade.
VI. RITOS PROCESSUAIS NAS NOVOS LITÍGIOS SUJEITOS À COMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO (EC n. 45/2004)
O presente tópico não diz respeito às implicações do «pacote republicano» no plano infraconstitucional (Leis ns. 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006, 11.280/2006, etc.), mas a algumas de suas implicações no plano constitucional (EC n. 45/2004), especialmente quanto à nova redação do artigo 114 da CRFB, que estendeu a competência material da Justiça do Trabalho para uma série de litígios que antes estavam afetos a outras jurisdições. Qual seria o procedimento aplicável ao processamento de tais litígios, que não são tipicamente trabalhistas porque não contrapõem, individual ou coletivamente, empregadores e trabalhadores?
Considerando-se que o rito da CLT serve originalmente “aos dissídios, oriundos das relações entre empregados e empregadores, bem como de trabalhadores avulsos e seus tomadores de serviços, em atividades reguladas na legislação social” (artigo 643, caput, da CLT), seria de se supor que, aos demais casos ― que não têm índole trabalhista “stricto sensu” ―, aplicar-se-ia o processo civil “in integrum” (e não subsidiariamente). O rito da CLT não teria, nesses casos, qualquer serventia.
Historicamente, porém, os juízes do Trabalho vinham estendendo o procedimento celetário ― notadamente o ordinário, dos artigos 837 a 852 ― às novas ações que foram se agregando à sua atividade judiciária, como, p. ex., as ações cautelares, as ações consignatórias em pagamento e as ações civis públicas. Assim é que, em todas essas ações, é hábito a contestação ser recebida em audiência, quando também se realizam atos de instrução (artigo 847 da CLT) e se colhem razões finais (artigo 850, caput, da CLT), ressalvados os casos de maior complexidade; e não é esse, consabidamente, o rito previsto no CPC e na Lei n. 7.347/85 para aquelas ações. O mesmo ocorreu com os litígios atípicos que passaram à competência da Justiça do Trabalho antes da EC n. 45/2004, como as ações entre portuários (trabalhadores vs. operadores ou Órgão de Gestão de Mão de Obra ― OGMO), nos termos do artigo 643, §3º, e 652, V, da CLT (ut MP n. 2.164-41/2001); e, bem antes isso, já era assim com as ações resultantes de contratos de empreitada de empreiteiro operário ou artífice (artigo 652, III, da CLT): o procedimento aplicável sempre foi o celetário, a despeito do silêncio do artigo 643 da CLT.
Revendo posição anterior, cremos hoje que essa interpretação justifica-se plenamente, sobretudo na perspectiva de uma abordagem garantista do processo, uma vez que os procedimentos celetários são mais céleres e atendem melhor aos princípios da imediatidade, da oralidade, da simplicidade e da celeridade (esse, agora, com dimensão constitucional). Preferirão, nesse aspecto, ao procedimento civil ordinário, sumário ou mesmo sumariíssimo, se não pela própria celeridade, também pelos instrumentos que dispõem à efetividade da jurisdição (pense-se, aqui, no instituto do depósito recursal, que poderia otimizar o cumprimento de sentenças em ações de reparação civil por danos decorrentes de relações de trabalho não-subordinado). Pela adoção dos ritos trabalhistas realizam-se melhor, dessarte, tanto o princípio da efetividade da tutela jurisdicional, já várias vezes citado, quando o princípio da celeridade; e, sendo ambos princípios constitucionais (aquele implícito ― cfr., supra, o tópico I ― e esse explícito, ut artigo 5º, LXXVIII, 2ª parte, CRFB), tratar-se-á, indelevelmente, de uma interpretação conforme a Constituição (“verfassungskonforme Auslegung”), por atender ao princípio hermenêutico da máxima efetividade das normas constitucionais, consoante os escólios de KONRAD HESSE e de GOMES CANOTILHO[74], entre outros. Preserva-se, outrossim, a identidade da Justiça do Trabalho; afinal, como bem pontuou MANOEL ANTONIO TEIXEIRA FILHO, admitir como regra a dualidade de ritos
“acabaria por afrontar a própria tradição histórica da Justiça do Trabalho, que se veria convertida em uma espécie de departamento heterotópico da Justiça Comum, e, deste modo, revitalizando a idéia, há muito vogante, de extinção da Justiça do Trabalho, transferindo sua competência para a Justiça Comum que, para esse efeito, especializaria Varas e Câmaras”[75].pico da Justiça Comum, e, deste modo, revitalizando a iduma espvulsos e seus tomadores de serviços, em atividades reguladas na
Conseqüentemente, fazemos coro com os tribunais quanto à aplicação dos procedimentos trabalhistas (o ordinário, o sumário ― artigo 2º da Lei n. 5.584/70 ― e o «sumaríssimo» dos artigos 852-A a 852-I da CLT) às novas causas de competência da Justiça do Trabalho (EC n. 45/2004). Mas esse coro é, diga-se, relativo. A “relatividade” deve-se aos condicionamentos que nos parecem indispensáveis e que, na verdade, vão ao encontro das exceções previstas na parte final do artigo 1º da IN n. 27/2005. É de se admitir o emprego dos procedimentos trabalhistas nos litígios atípicos subordinados à competência material da Justiça do Trabalho, desde que sejam sucedâneos rituais objetivos dos correspondentes procedimentos comuns cíveis antes aplicáveis à espécie (o ordinário, dos artigos 282 a 331 do CPC; o sumário, dos artigos 275 a 281 do CPC; ou o «sumaríssimo», da Lei n. 9.099/95); ou, excepcionalmente, quando realizarem melhor as garantias do processo justo (notadamente o princípio da efetividade da tutela jurisdicional), em comparação com os procedimentos especiais cíveis que lhes estão normalmente afetos. Esse critério exclui, a nosso ver, todos os remédios constitucionais (“habeas corpus”, “habeas data”, mandados de segurança, mandados de injunção), que possuem ritos mais céleres e garantistas; e, a par disso, fornece um balizamento científico para uma opção que, até agora, tem se pautado indevidamente no pressuposto da hierarquia judiciária.
VI. CONCLUSÕES
Poderíamos aproveitar este epílogo para abusar da paciência do leitor e repisar, item por item, todos os posicionamentos incorporados ao nosso texto. Não seria, então, uma verdadeira “conclusão”, mas um resumo tópico, como tantas vezes fizemos.
Dessa vez, porém, não o faremos. Preferimos exortar, e somente exortar.
Exortar os operadores jurídicos, e especialmente os juízes do Trabalho, a reconhecerem nas normas processuais e nos procedimentos um instrumento para a realização dos direitos materiais postos em causa. Mas exortá-los também a reconhecer que o legislador democraticamente eleito tem um papel a cumprir, legitimando o regime político republicano e compondo a alma desse nosso “Estado Democrático de Direito” ― expressão que amiúde gostamos de repetir, altaneiros, nas sentenças, entrevistas e artigos. Já por isso, o conteúdo da lei processual deve merecer, por princípio, o respeito e o acatamento daqueles mesmos operadores; e não porque esse é também o Estado da “lei” («dura lex, sed lex»), ou da tecnoburocracia, mas porque é direito fundamental do réu somente ser privado de sua liberdade ou de seu patrimônio ao ensejo de um devido processo… legal.
Nem sempre o processo “legal” será constitucional; e, nesse caso, abre-se ao intérprete a ocasião de adaptá-lo, aperfeiçoá-lo ou mesmo repudiá-lo, até para servir-se de outro que pareça mais adequado. Não se pode, contudo, banalizar essa condição, sob pena de criar insegurança jurídica e engendrar argumentos retóricos que erodem as próprias bases do sistema republicano ― e, como tais, podem ser apropriados por qualquer ideologia. Há que argumentar, sim; mas argumentar convincentemente, sempre na perspectiva jusfundamental (ALEXY), fazendo valer, por juízos sérios de ponderação, os princípios maiores a cuja primazia o intérprete se rendeu. E tendo-se em conta, que, à argumentação sólida, retidão e medida são essenciais.
O processo do trabalho tem sido negligenciado pelo Poder Legislativo Federal. Mas, a despeito disso, continua sendo um instrumento formidável de realização de Justiça social. A ele não renunciemos simplesmente, mesmo que o “novíssimo” processo civil nos pareça, hoje, o caminho mais curto para a satisfação dos interesses alimentares dos reclamantes. Talvez não o seja; nem sempre o será. Sobre isso ― e agora falo em primeira pessoa ― arrisco-me a transcrever estrofe de uma canção punk que me acompanhou em idos tempos e há dias voltou-me à memória, quando refletia sobre esse tema. Diz a letra:
Informações Sobre o Autor
Guilherme Guimarães Feliciano
Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (Estado de São Paulo, Brasil), é Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Doutorando em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade (Clássica) de Lisboa. Professor Assistente Doutor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade de Taubaté (admitido por concurso público de provas e títulos). Extensão Universitária em Economia Social e do Trabalho (Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP). Diretor Cultural da AMATRA-XV (Associação dos Magistrados do Trabalho da Décima Quinta Região), gestão 2005-2007. Diretor para Assuntos Legislativos da AMATRA-XV, gestão 2003-2005. Membro do Conselho Editorial da Revista ANAMATRA-FORENSE “Direito e Processo”. Membro da Subcomissão de Doutrina Internacional do Conselho Técnico da EMATRA-XV (Escola da Magistratura do TRT da 15a Região) para a Revista do Tribunal Regional do Trabalho da Décima Quinta Região. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e do Instituto Manoel Pedro Pimentel (órgão científico vinculado ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), de cujo Boletim foi editor-chefe entre 1997 e 2002. Autor de teses e monografias jurídicas (Tópicos Avançados de Direito Material do Trabalho, v. I e II, Editora Damásio de Jesus, 2006; Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal Ambiental brasileiro, Editora LTr, 2005; Informática e Criminalidade, Editora Nacional de Direito, 2001; Execução das Contribuições Sociais na Justiça do Trabalho, Editora LTr, 2001; Tratado de Alienação Fiduciária em Garantia, Editora LTr, 2000). Palestrante e articulista em Direito Penal e Direito e Processo do Trabalho. Ex-membro das Comissões Legislativa e de Prerrogativas da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA). Diretor Científico do Núcleo de Estudantes Luso-Brasileiro (NELB), anexo à Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, gestão 2004-2005. Membro da Academia Taubateana de Letras (cadeira n. 18).