O ambiente sintético da ciência

“Tenho, portanto, o prazer de solicitar aqui a meus descendentes que não acreditem jamais naquilo que lhes disserem como tendo partido de mim, sem que eu mesmo tenha divulgado”              René Descartes

O AMBIENTE SINTÉTICO DA CIÊNCIA

Este trabalho decorre de reflexões feitas no curso de dois anos, a partir de leituras da Introdução da Crítica da Razão Pura de Kant e do Discurso do Método de Descartes, tão-somente.

Também resulta de provocações do Doutor Pedro Osório, um verdadeiro mestre, que aos oitenta anos, não teve dúvidas em ser o primeiro a incentivar a criação do grupo de estudos kantianos que se reúne no Sebo Café, em Santo Ângelo.

Tudo fica fácil quando inicia assim, especialmente ao sermos chamados a examinar o mundo do ombro de gigantes. Doutor Pedro Osório é um gigante, assim como poucos foram tão gigantes quanto Kant e Descartes.

O estudo é apenas um ensaio em torno de idéias que ainda precisam ser melhor explicitadas, mas como todo e qualquer ensaio somente tem sentido quando ousa, toda a ousadia deve ser submetida ao crivo da crítica. Se não for possível dar um passo adiante em problemas que transcendem os nossos dias, pelo menos serve de consolo a constatação de Edmund Husserl, há cento e cinqüenta anos, de que a ausência de verdadeiros debates filosóficos eram decorrentes da existência de tantas filosofias quantos eram os filósofos de sua época.

Se as provocações a seguir não servirem para o debate, então que sejam mais uma prova de quanto continua válida essa sentença.

1. O entendimento como característica do ser vivo

A aptidão natural de entender o meio em que vivem constitui o elemento distintivo entre seres e coisas, pois de que outra forma seria possível aos vegetais entenderem a existência da luz para o fototropismo, a ameba do alimento para a fagocitose e os animais do mundo natural para agirem de acordo com as necessidades inatas ao estágio de desenvolvimento biológico, senão uma aptidão natural denominada entendimento?!

Se observarmos atentamente os seres vivos, facilmente perceberemos a existência de uma característica distintiva dos seres como sendo a capacidade natural de processar impressões, que embora não sendo possível precisar o momento em que é adquirida, fundamenta a vida e decorre de aptidão própria de agirem segundo entendimento natural.

2. Conhecer e ignorar

Não é possível delimitar o âmbito da teoria do conhecimento sem antes explicitar de forma clara suas fontes, ou seja, os meios pelos quais podemos afirmar que nos referimos a uma coisa e não à outra, bem como quando não nos referimos à coisa alguma.

Aparentemente, isso parece simples, mas não obstante o vertiginoso avanço no mundo da ciência, ainda hoje, o mais despreparado dos céticos consegue fulminar, com poucos argumentos, qualquer tentativa de expor uma teoria nesse sentido, o que nos convence ser mais fácil explicitar o que ignoramos daquilo que conhecemos, pois como poderíamos discorrer sobre coisas quando sabemos que as impressões recebidas pelos sentidos são sempre parciais e que, embora muitas vezes imperceptíveis, vêm desatualizadas pelo tempo, não significando a realidade objetiva representada pela “idéia” ou pelo discurso?!

3. Os instrumentos do juízo

Esse problema que sempre atormentou a filosofia é facilmente resolvido quando se consegue expor, de maneira clara, os meios utilizados pelo juízo, ou seja, de que forma as impressões do mundo são recebidas e como são tratadas entre os seres vivos.

Não resta dúvida alguma que a sensibilidade é o meio pelo qual os seres se relacionam com a natureza, sendo ela a responsável pela introdução de dados e informações necessárias à atividade biológica, sem a qual não haveria vida, pois lhes faltaria o instrumento para entendimento do ambiente natural, muitas vezes hostil à existência do ser.

Todavia, a sensibilidade não fornece juízo algum. Apenas impressões fenomênicas que são entendidas por mecanismos naturais e necessários ao cumprimento dos desígnios biológicos decorrentes do grau evolutivo de cada espécie.

4. As impressões dos sentidos e os “juízos” analíticos

Os sentidos não fornecem juízos, mas impressões, tendo restado fracassadas todas as tentativas de elaboração de uma ciência fundada neles. E não poderia ser diferente, pois os sentidos fornecem apenas impressões parciais dos objetos, que nem de longe podem ser confundidas com eles, visto se tratar de coisas completamente diferentes.

A falta de clareza a respeito dessa questão fundamental da filosofia acabou induzindo os pensadores a buscar, no transcendente, as respostas para o que, nesse local, jamais poderiam ser encontradas. Ora, no transcendente não há nada além daquilo que foi introduzido pela síntese.

Quaisquer coisas que venham a ser encontradas no transcendente pela análise serão falsas impressões, decorrentes de um longo hábito da filosofia de reduzir o mundo a um sistema construído unicamente a partir de modelos extraídos das manifestações sensíveis da natureza.

5. Os juízos sintéticos

Por estarmos acostumados a pensar tomando impressão por juízo e estabelecendo relações, inclusive em locais onde elas não existem[1], não há tarefa mais difícil do que expor, de forma clara, o ambiente em que estão situados os juízos sintéticos.

E isso não é obra do acaso. É que o homem somente conseguiu evoluir na construção daquilo que hoje chamamos de ciência na medida em que passou a fazer uso de fenômenos naturais como modelos constitutivos de sua inteligência[2].

Foram os fenômenos naturais os primeiros a fornecer dados que permitiram estabelecer relações espaciais e temporais entre tudo o que a capacidade analítica fornecia.

Com o passar do tempo e com o refinamento das investigações a respeito das coisas, percebendo que sua capacidade analítica era limitada, o homem começou a fazer uso de invenções para ir adiante. Agora não mais diretamente, mas com a interposição de instrumentos que o colocaram diante de fenômenos tão extraordinários que jamais conseguirá explicá-los[3], fundamentando-os na análise.

A capacidade sintética[4] é característica distintiva dos seres humanos e, por situar-se em no ambiente metafísico, é constitutiva de toda e qualquer ciência.

A impressão analítica tem origem fenomenológica e o juízo sintético, produção metafísica, e não podem ser confundidos um com o outro sob pena do estabelecimento de uma confusão tal que tornará impossível estruturar de um conhecimento minimamente organizado.

A falta de clareza com relação a isso impediu que a filosofia pudesse responder adequadamente às razões do avanço das ciências naturais, mesmo diante das objeções categóricas dos céticos.

6. Correspondência entre juízo e objeto

Embora situados em planos completamente distintos, a toda impressão analítica há um correspondente juízo, mas todo e qualquer juízo é sempre metafísico e, como tal, sintético, não sendo possível, sem grave equívoco, falar-se em juízo analítico, por confundir conseqüência com causa. A matéria da analítica é apenas impressão fenomênica cuja finalidade é fornecer matéria ao juízo sintético, mas que com ele não se confunde.

A característica distintiva dos seres vivos é a capacidade analítica, sem a qual não haveria vida. Todo o ser vivo tem capacidade analítica e conseqüentemente de entender o meio e de relacionar-se com ele em cumprimento de suas necessidades vitais.

Mas isso não autoriza a ninguém concluir que a capacidade analítica possa fornecer juízos, uma vez que estes, pela natureza metafísica, encontram-se em ambiente completamente distinto do fenomenológico, produtor de impressões sensíveis.

Nem todo o juízo é derivado de impressão sensível. A matemática e parte da geometria são provas da existência de um ambiente puramente sintético em que os juízos não estão referidos a nenhuma impressão, apenas a outro juízo.

7. O espaço fenomenológico

Uma teoria do conhecimento que se preze não pode deixar de explicitar claramente suas bases e a primeira delas é delimitar, com precisão, o espaço fenomenológico do metafísico.

Os fenômenos são manifestações analiticamente perceptíveis pelos seres vivos. A percepção analítica pode derivar de relações diretas entre os seres e as coisas ou pode ser deduzida, indiretamente, com o auxilio de equipamentos.

A eletrônica é a prova de que não obstante a inexistência de capacidade para a percepção de elétrons, o ser humano descobriu a sua existência e construiu instrumentos que lhe permitiram manipulá-los pela ação, transformando-os em manifestações sensíveis.

No entanto, a falta de capacidade analítica direta do fenômeno não afasta a sua existência e provavelmente ainda estão para serem descobertas tantas manifestações fenomênicas no Universo que somente especular sobre isso seria uma tarefa infindável.

A ciência da natureza avança na mesma medida em que o homem consegue, com sua Inteligência e ação, desenvolver equipamentos que ampliam sua capacidade analítica, o que lhe permite hoje freqüentar ambientes jamais sonhados pelos gênios da antiguidade.

Com certeza, a inteligência humana ainda engatinha nessas descobertas e não será nenhum exagero afirmar a possibilidade da existência de outras capacidades entre os seres além daquelas conhecidas, bastando examinar determinados animais que se deslocam com tanta precisão em ambientes tão deficientes de referências que somente alguma aptidão analítica ainda não conhecida pelos humanos, poderia explicar esse comportamento.

8. O espaço metafísico

O espaço metafísico é o espaço da síntese. Nele, não existe nada que possa ser considerado verdadeiro ou falso, mas apenas ambiente em desordem ou em ordem. É o espaço que tenta representar, através de referências às manifestações fenomênicas, os dados do “mundo” do entendimento.

A analítica responde pelos dados e a síntese pelas referências. Um se encontra no plano do fenômeno e outro no da metafísica. Não é possível pensar o mundo sem referências, embora se possa, perfeitamente, pensar sem coisas.

O certo é que a falta de delimitação entre esses dois ambientes constitui o principal entrave para que se possa expor, de forma clara, como foi possível o avanço tecnológico, não obstante a já enfadonha objeção quanto à possibilidade de se conhecer algo.

9. A correspondência entre o fenômeno e a síntese

A toda impressão analítica há um correspondente juízo sintético que é verdadeiro em si mesmo e não está sujeito a variações culturais. Todo e qualquer objeto sensível produz exatamente o mesmo juízo sintético entre seres da mesma espécie[5].

O ser humano, no entanto, carente de parâmetros analíticos naturais, acaba encontrando dificuldade para estabelecer correspondência entre impressões espaciais ou temporalmente diferentes. O refinamento no exame analítico pela inteligência humana, proporcionado pelo uso de instrumentos, tem demonstrado que, mesmo quando aparentemente isso ocorre, o acúmulo de informações ainda não é suficiente para se ter certeza da coincidência de ambos.

Nada parece mais evidente nessa realidade do que o exame da noção temporal. Do critério inicialmente representado pelo movimento da terra em relação ao sol, no decorrer de um dia, ao do movimento de elétrons, na medida em que se acumulam novos conhecimentos no campo da realidade natural, o homem se vê obrigado a alterar os critérios que definem a noção de tempo.

Mas isso não significa que a falta de certeza quanto à coincidência entre fenômenos constitua obstáculo à construção da ciência, pois na medida em que o desenvolvimento tecnológico permite ao homem a ampliação de seu horizonte analítico, reformula-se o juízo sintético, agora referido à nova impressão. Nesse caso, não há falsidade do juízo anterior, mas novo juízo, construído a partir dos dados apreendidos na realidade natural.

As impressões e juízos são sempre coincidentes e se manifestam da mesma forma entre seres da mesma espécie, bastando examinar o comportamento dos animais em relação ao movimento ou ao uso de suas habilidades diante de obstáculos para perceber-se que, salvo em caso de grave trauma no processo evolutivo, o comportamento diante de situações semelhantes será o mesmo.

Por óbvio que estamos falando, aqui, de aptidão inata, razão pela qual é necessário registrar que, no caso da introdução de juízos sintéticos mediante processo de adestramento ou trauma, é possível alterar essas relações de tal forma a induzir a comportamentos diversos em situações semelhantes entre seres da mesma espécie.

Mas esse é um assunto que precisa ser examinado não sob o ângulo da filosofia, mas da psicologia, a qual haverá de identificar a correspondência entre juízos sintéticos e comportamentos, agora tendo o ser (inclusive o homem) como fenômeno complexo, levado a agir a partir de relações que estabelece entre impressões e juízos.

 

Notas:
[1] Os juízos matemáticos são puramente sintéticos. No entanto, quase sempre estão representados por coisas. Somar laranjas ou qualquer outro objeto pode constituir recurso para introduzir os iniciantes no estudo da matemática, mas basta acompanhar o aparecimento dos primeiros problemas para se constatar que eles dificultam a exposição das idéias e corrompem espíritos de tal forma que muitos jamais conseguem recuperar a capacidade de compreendê-la corretamente.
[2] O uso de modelos como recurso teórico é revelado pelo sucesso de recentes estudos que tentam explicar a sociedade humana a partir do exame de estruturas celulares.
[3] Se as explicações dos astrônomos sobre as estrelas estiverem corretas, o que vemos hoje no fimamento são apenas impressões enviadas por elas há milhões de anos. As estrelas de hoje, no atual estágio da ciência, analiticamente, jamais serão conhecidas.
[4] Não é objetivo deste ensaio examinar o tema sob esse ângulo, mas parece possível existir essa capacidade, em maior ou menor grau, em todos os seres vivos.
[5] Somente uma visão esquizofrênica do mundo pode sustentar a existência de diferentes juízos sintéticos para idênticas impressões analíticas.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Paulo J. B. Leal

 

Advogado e Professor

 


 

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