A leniência das autoridades e dos órgãos responsáveis permitiu a acumulação da fantástica dívida pública superior a R$ 100 bilhões por conta de precatórios descumpridos pelos sucessivos governantes estaduais e municipais, enquanto que na esfera da União dívidas externas foram resgatadas até com antecipação, na época em que era Ministro da Fazenda o Deputado Antonio Palocci.
A maior parte dessa dívida assustadora, para não dizer macabra, refere-se a precatórios alimentares decorrentes da prática sistemática de atos de improbidade pelos governantes que deixaram de cumprir as leis salariais, caloteando os reajustes legais, preterindo promoções, suprimindo vantagens pessoais, glosando ilegalmente vencimentos, pensões e aposentadorias a pretexto de cumprir o teto salarial, enfim, usando de todas as artimanhas imorais redirecionando os recursos financeiros para setores que lhes dão IBOPE.
Contando com a inoperância do Poder Judiciário, no que diz a efetividade da jurisdição, esses maus governantes não fazem segredo em aconselhar seus servidores insatisfeitos a procurarem o caminho da Justiça para reclamar os direitos que lhes são espezinhados costumeiramente. São os maiores interessados no emperramento do Judiciário, cuja cúpula vem se notabilizando pelas cassações imediatas de liminares concedidas contra a Fazenda, contribuído para gerar precatórios impagáveis.
Com essas atitudes, o princípio da moralidade pública, que está inserto no art. 37 da Carta Política, vai para o brejo, da mesma forma que o princípio da eficiência no serviço público fica seriamente comprometido.
Os políticos mantêm um diabólico pacto secreto de não tocar nesse assunto que os prejudicariam em termos eleitorais, pois viriam à tona práticas de atos de improbidade administrativa, às vezes, até práticas criminosas, como no caso de sonegação de inclusão orçamentária de verbas requisitadas pelo Judiciário.
Sandra Cavalcanti, professora, jornalista, ex Deputada Federal, teve a coragem de tocar nessa ferida pútrida em artigo intitulado “A raposa e o galinheiro”, denunciando esse abominável “crime” perpetuado por governantes e ex-governantes, agora, candidatos nas próximas eleições municipais, contra mais de meio milhão de cidadãos, que se vêm frustrados em seu direito, após terem logrado seu reconhecimento em penosas ações judiciais que se arrastaram por mais de dez anos (O Estado de São Paulo, 29-7-2008, p. A2). Dados estatísticos revelam que mais de 50 mil credores já morreram na fila de precatórios. A sociedade não pode continuar indiferente contra essa atrocidade oficial.
Tivéssemos dez pessoas de projeção como Sandra Cavalcanti, com acesso à grande mídia para denunciar esse cancro terrível que se instalou sorrateiramente no seio da burocracia brasileira, acredito que seria possível alterar essa cultura da impunidade do calote de precatórios, que fere de morte o Poder Judiciário, incumbido de administrar a Justiça no país em regime de monopólio estatal.
É preciso que a cidadania reaja, elegendo como lema da campanha eleitoral que se aproxima, o “pagamento de precatórios”. A mídia tem o dever de chamar a atenção dos pretendentes a cargos eletivos para essa gravíssima doença, aparentemente incurável, a fim de que a Justiça seja preservada para que o Estado de Direito não pereça.
O item referente a planos para pagamento de precatórios deveria ser obrigatoriamente introduzido nos programas de debates entre os candidatos. Jornalistas, apresentadores ou coordenadores de debates devem isso à sociedade, cujos membros atingidos pelos calotes de precatórios crescem vertiginosa e assustadoramente com a reeleição ou eleição de candidatos avessos ao cumprimento de ordens judiciais.
Importante, também, a cobertura da mídia em torno das propostas de instituições jurídicas como a OAB, por exemplo, no sentido de inserir na Pec 12, também conhecida como obra de Satanás, em discussão no Congresso Nacional, melhor explicitação das penalidades cabíveis aos governantes que desrespeitam a ordem judicial, de um lado, e de outro lado, conferir poder liberatório aos precatórios vencidos e não pagos, a fim de possibilitar a quitação de tributos da entidade política devedora.
Esse poder liberatório específico para quitar débitos tributários não atentaria contra normas orçamentárias, porque os valores requisitados pelo Judiciário até 1º de julho de cada ano constam do orçamento do exercício seguinte, que prevê a montante das receitas públicas, dentre elas as de natureza tributária) em valor equivalente ao total das despesas do exercício. E mais, serviria de um poderoso instrumento de reeducação de políticos ímprobos, que elegeram a conduta imoral e indecorosa como regra geral, só porque ela não é visível aos olhos de população em geral. Cabe à mídia remover esse manto negro que impede a transparência.
SP, 29-7-08.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.