“[…] Em todo o mundo… Minorias étnicas continuam a ser desproporcionalmente pobres, desproporcionalmente afetadas pelo desemprego e desproporcionalmente menos escolarizadas que os grupos dominantes. Estão sub-representadas nas estruturas políticas e super-representadas nas prisões. Têm menos acesso a serviços de saúde de qualidade e, conseqüentemente, menor expectativa de vida. Estas, e outras formas de injustiça racial, são a cruel realidade do nosso tempo; mas não precisam ser inevitáveis no nosso futuro.” (Kofi Annan, Secretário Geral da ONU, março, 2001.)
Resumo: Este trabalho tem como finalidade estudar, brevemente, as políticas de ação afirmativa em relação ao ordenamento jurídico no Brasil, com especial enfoque nas políticas mínimas de quotas buscando analisar as implicações jurídicas e sociais do tema. Observamos que as ações afirmativas surgiram a partir do momento em que se verificou que não bastava apenas ao Estado se portar com neutralidade para o combate da discriminação, mas agir positivamente a fim de restringir as desigualdades sociais, de forma a atingir determinados grupos de cidadãos socialmente inferiorizados, e, assim, promover uma transformação no comportamento da sociedade. Concluiu-se que as ações afirmativas, baseadas nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, encontram amparo no ordenamento constitucional brasileiro, sendo que, na prática de suas políticas deverão ser observados também os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de qualquer abuso denotar violação à ordem constitucional.
Palavras-chave: Ações Afirmativas. Princípio da Igualdade. Política de Quotas.
Resumen: Este trabajo tiene como propósito de estudiar, brevemente, las políticas de acción afirmativa en relación con el sistema jurídico en Brasil, con especial atención a la política de cuota mínima de tratar de analizar las consecuencias jurídicas y sociales del tema. Hemos observado que las acciones afirmativas habían aparecido a partir del momento donde si verificó que no fuera bastante solamente al estado si llevar con la neutralidaen la lucha contra la discriminación, sino a adoptar medidas positivas para limitar las desigualdades sociales a fin de llegar a determinados grupos de ciudadanos socialmente inferiorizados, y, por ende, promover una mejora en la conducta de la sociedad. Se concluyó que la acción afirmativa, sobre la base de los principios de igualdad y dignidad de la persona humana, encontraron refugio en el Brasil constitucional, y que en la práctica, sus políticas también deben observarse los principios de razonabilidad y proporcionalidad, bajo pena de cualquier denotar el abuso violaciónes a la orden constitucional.
Palabras clave: Acción Afirmativa. Principio de Igualdad. Política de acciones.
Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito formal e conceito material do princípio da igualdade. 3. Ações afirmativas. 3.1. Conceito. 3.2. Delineamento histórico. 3.3. Origens no brasil e no mundo. 3.4. Fundamentos constitucionais. 4. Quota: espécie mais polêmica de ação afirmativa. 4.1. Argumentos favoráveis à política de cotas. 4.2. Temporalidade das medidas. 4.3. Das quotas para negros. Considerações finais. Referências
1 INTRODUÇÃO
Este estudo focaliza as políticas de ação afirmativa. Tratam-se de ações que visam favorecer grupos que não conseguiram alcançar padrões sociais relevantes, por meio da adoção de programas e planos que ofereçam acesso a empregos, cargos e oportunidades econômicas, sociais e políticas.
Em um primeiro momento, analisaremos o princípio da igualdade, considerando a visão formal e a material do referido princípio, aplicado como referencial constitucional de todos os países de caráter democrático.
A posteriori, trataremos de conceituar e apontar os principais fundamentos e objetivos das ações afirmativas estudando brevemente a origem das ações afirmativas no direito norte-americano que contribuiu sensivelmente para o desenvolvimento do instituto em estudo, servindo também de influencia para sua utilização no Brasil.
Em seguida, examinaremos a compatibilidade existente entre as ações afirmativas e o ordenamento constitucional brasileiro, especialmente em relação aos princípios e objetivos sobre os quais está fundada a República Federativa do Brasil.
Enfim, trataremos da política de quotas mínimas, considerada a mais controvertida e habitual espécie de ação afirmativa, analisaremos mais especificamente o problema das cotas para os alunos provenientes da rede pública no acesso às instituições de ensino superior, apresentando argumentos favoráveis e contrários à adoção desta classe de política e tecer breves comentários a respeito da política de quotas para negros.
Nosso objetivo é, depois de discutir algumas noções de justiça e igualdade, no tocante à sua vinculação à natureza das políticas públicas, apontar certos critérios que justificam a prática das cotas como medidas de ações afirmativas.
Em relação ao método utilizado, nos utilizamos de pesquisa bibliográfica por meio da coleta da visão de doutrinadores já elaborada em livros, e artigos científicos em revistas e sites jurídicos, tendo como base a natureza do objeto do estudo, e a análise doutrinaria do tema.
2 CONCEITO FORMAL E CONCEITO MATERIAL DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Na história do Estado de Direito, duas visões do princípio da igualdade têm sido recorrentes nos textos constitucionais. Uma, a visão de igualdade em sentido formal e outra, igualdade material ou substancial.
Os textos constitucionais consagrados pelas experiências revolucionárias que marcaram a independência Norte-Americana e que culminaram com a supremacia da burguesia no comando da Revolução Francesa, elaboraram o conceito de igualdade perante a lei, que em um primeiro momento, foi marcado pela preocupação jurídico-formal de que a lei devia ser genérica e abstrata, tratando a todos sem distinções.
Observe-se que, naquele primeiro momento, não havia uma preocupação com a igualdade material, isto é, em dar a todos as mesmas condições, isso porque financeiramente falando, a burguesia já havia atingido o mesmo patamar que a nobreza, pelo que lhe bastava abolir os privilégios que ela possuía. Momento em que ficou positivado o princípio da igualdade na sua definição formal.
A igualdade formal é direcionada ao Estado, com o fito de proibir tratamento diferenciado aos indivíduos com base em critérios como suas convicções políticas, morais, filosóficas ou religiosas, sua raça, sexo ou classe social.
Nesta acepção, o princípio em comento adquiriu uma função de defesa contra atos do poder público, sendo proibida qualquer discriminação como forma de evitar a instituição de privilégios conflitantes com a razão humana. Essa espécie de defesa do ser humano apregoa um comando constitucional geral impeditivo da atividade do legislador e do aplicador do direito, exigindo deles quase sempre um não fazer. Esta visão do princípio da igualdade, criada no Estado Liberal, fundamenta-se na noção de que se todos somos seres humanos, nascemos iguais e desta forma devemos ter as mesmas oportunidades, por isso é vedado ao Estado qualquer tratamento discriminatório negativo, ou seja, qualquer ato administrativo, judicial ou expediente normativo que vise à privação do gozo das liberdades públicas fundamentais do indivíduo, sendo-lhe vedado também, interferir na sociedade, mas deve permitir que esta, por seus próprios meios, construa condições de crescimento econômico, profissional e/ou cultural.
Assim sendo, durante muito tempo, baseando-se na exigência de neutralidade estatal, o princípio da igualdade perante a lei foi tido como garantia da concretização da liberdade. Para os pensadores e teóricos da escola liberal, era suficiente incluir-se o referido princípio entre os direitos fundamentais para se garantir a isonomia que o sistema constitucional buscava efetivamente assegurar.
Contudo, pouco a pouco a percepção de uma igualdade meramente formal, presente no princípio geral da igualdade perante a lei, passou a ser discutida, pois a história foi mostrando que a igualdade de direitos e a mera abstenção estatal, não eram suficientes para alcançar as pessoas desprivilegiadas socialmente, dando-lhe as mesmas oportunidades que tinham as socialmente favorecidas. Era necessário, que, além disso, elas possuíssem as mesmas condições. Neste sentido, Canotilho (1993, p.567) assevera que o principio da igualdade é não apenas um princípio de Estado de direito mas também um princípio de Estado social. [1]
O conceito clássico de igualdade mostra-se em descompasso com o emergente Estado Social, marcado pelo avanço dos movimentos a favor da diminuição das injustiças sociais e combate às desigualdades. A idéia de que a igualdade resume-se a uma dimensão formal, manifestada na vedação de privilégios pessoais mostra-se insuficiente para realizar a igualdade em todas as suas potencialidades, denunciando a falência da visão liberal do princípio isonômico.
Passa então a existir a concepção de que, além de não discriminar arbitrariamente, o Estado precisa gerar a igualdade material de oportunidades, lançando mão de políticas públicas e leis que levem em conta as peculiaridades dos grupos menos favorecidos, compensando, dessa maneira, as disparidades derivadas do processo histórico e da sedimentação cultural.
Abandonou-se, assim, o conceito jurídico de igualdade meramente passiva passando a existir também um conceito jurídico de igualdade positiva que culmina com o surgimento das ações afirmativas. Assim, paralelamente, a igualdade formal e a igualdade material, a primeira se consubstancia em uma proibição ao Estado de tratar desigualmente os indivíduos a fim de não desigualá-los e, posteriormente, na segunda visão, uma obrigação de tratá-los desigualmente com o intuito de igualá-los. Desta feita, o princípio da igualdade, sob o prisma jurídico-constitucional, assume destaque enquanto princípio de igualdade de oportunidades e de condições reais de vida.
No que concerne ao conceito de igualdade material, é pertinente citarmos o entendimento de Gomes (2001, p.131):
“Da transição da ultrapassada noção de igualdade “estática” ou “formal” ao novo conceito de igualdade “substancial” surge a idéia de “igualdade de oportunidades” noção justificadora de diversos experimentos constitucionais pautados na necessidade de se extinguir ou de pelos menos mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e, conseqüentemente, de promover a justiça social”.[2]
O emprego da visão material da igualdade protesta por uma cuidadosa atenção do Estado na criação de políticas públicas, pois as particularidades de grupos e comunidades devem ser sopesadas, com o fito de impedir que o conceito formal de igualdade dificulte o amparo das pessoas fragilizadas socialmente.
Em resumo, para este novo modelo de organização dos poderes públicos, conhecido como Estado Social, sucessor do Estado Liberal, não basta que o Estado seja neutro. É necessário que a lei e outros instrumentos de políticas públicas, ofereçam igualdade de oportunidades.
O sentido material da igualdade surgiu, portanto, para complementar o sentido formal. Pois, não é suficiente a lei declarar que todos são iguais, deve fornecer meios eficazes para se efetivação da igualdade. Como bem salienta Silva (1996, p. 466), “a Constituição procura aproximar os dois tipos de isonomia, na medida em que não se limitara ao simples enunciado da igualdade perante a lei”.[3]
Surge deste modo, a par da discriminação negativa, presente no Estado liberal, a noção de discriminação positiva, ou seja, ações destinadas a preencher as discriminações impostas historicamente a pessoas em razão de sua raça, religião, nacionalidade ou sexo, por exemplo. Assunto a ser detalhadamente explanado no capítulo seguinte.
3 AÇÕES AFIRMATIVAS
Aristóteles já afirmava que “Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais.” (2001, p. 109)[4], com esta citação, o jus filósofo, nada mais quis dizer senão que devemos tratar os desiguais de forma diferenciada para que possamos, enfim, alcançar a almejada isonomia.
As experiências constitucionais do século XX no ocidente evidenciaram que algumas pessoas nunca chegaram a alcançar oportunidades ou posições relevantes sustentados apenas pelo princípio de que não seriam discriminados pela lei. Por isso o Estado Social, posterior ao liberal-burguês, procurou reduzir desigualdades incrustadas na sociedade. O constitucionalismo com relação ao princípio da igualdade não se prende à igualdade perante a lei, mas em oferecer iguais oportunidades para a realização dos objetivos de cada cidadão.
3.1 Conceito
Citamos o conceito do Ministro Gomes (2001 pp. 40-41) por considerá-lo um dos mais completos:
“Atualmente, as ações afirmativas, podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitiva, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária, e visam a evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito”.[5]
Já Villas-Bôas (2003), define Ações Afirmativas como sendo um conjunto de medidas especiais e temporárias tomadas ou determinadas pelo Estado com o objetivo específico de eliminar as desigualdades que foram acumuladas no decorrer da história da sociedade. [6]
Bergmann (1996, p. 7), por sua vez, entende que:
“Ação afirmativa é planejar e atuar no sentido de promover a representação de certos tipos de pessoas – aquelas pertencentes a grupos que têm sido subordinados ou excluídos – em determinados empregos ou escolas. É uma companhia de seguros tomando decisões para romper com sua tradição de promover a posições executivas unicamente homens brancos. É a comissão de admissão da Universidade da Califórnia em Berkeley buscando elevar o número de negros nas classes iniciais […]. Ações Afirmativas podem ser um programa formal e escrito, um plano envolvendo múltiplas partes e com funcionários dele encarregados, ou pode ser a atividade de um empresário que consultou sua consciência e decidiu fazer as coisas de uma maneira diferente”.[7]
Portanto, Ações afirmativas dizem respeito a medidas tomadas pelos Estados, como o objetivo de resgatar a própria cidadania de indivíduos que se encontram à margem da sociedade e do sistema como um todo em razão de discriminações, sejam de natureza racial, religiosa, econômica ou política. Constitui, outrossim, um instrumento para corrigir o próprio preconceito, a partir da oferta de oportunidades para isonomia entre os seres humanos.
3.2 Delineamento histórico
Os Estados Unidos contribuíram sensivelmente para o desenvolvimento das Ações Afirmativas, utilizando-as nos mais variados campos da atividade humana. Para grade parte dos doutrinadores, foi lá que o termo Ação Afirmativa, em inglês, affirmative action, foi utilizado pela primeira vez.
Os presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson desempenharam papeis de importância fundamental para o progresso da política de ação afirmativa. Sua idéia surgiu em um período no qual o país vivia constantes movimentos em prol da democracia e dos direitos civis, que bramavam pela extensão da igualdade de oportunidades a todos.
O Presidente Kennedy fez da questão plano de governo, empenhando-se pessoalmente para que fossem aprovadas leis no sentido de acabar com a discriminação racial. Foi assim que, em 06 de março de 1961, assinou a Executive Order nº. 10.925, que obrigava os empregadores a adotar a ação afirmativa para assegurar que os empregados fossem contratados sem consideração de raça, credo, cor ou nacionalidade. Menezes (2001, p.29) destaca que:
“A ‘Executive Order’ n. 10.925, que, afora criar um órgão para fiscalizar e reprimir a discriminação existente no mercado de trabalho (‘President’s Comittee on Equal Employment Opportunity’), empregou pela primeira vez em um texto oficial, ainda que com uma conotação restrita, o termo ‘affirmative action’. De acordo com essa ‘Executive Order’, nos contratos celebrados com o governo federal, ‘o contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego devido a raça, credo, cor ou nacionalidade. O contratante adotará ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, seu credo, sua nacionalidade. Essa ação incluirá, sem limitação, o seguinte: emprego; promoção; rebaixamento ou transferência; recrutamento ou anúncio de recrutamento, dispensa ou término; índice de pagamento ou outras formas de remuneração; e seleção para treinamento, inclusive aprendizado’.” [8]
Após a morte de Kennedy, o presidente Lyndon Johnson foi quem mais se destacou no combate às desigualdades. A Ordem Executiva 11246, assinada por ele, proibia a discriminação e orientava os órgãos governamentais a somente contratar com empresas que fizessem uso da ação afirmativa para contratar e promover os empregados que fossem membros das minorias. É dele o famoso discurso proferido na Howard University em junho de 1965, citado pelo ministro em sua obra:
“Você não pega uma pessoa que durante anos foi impedida por estar presa e a liberta, trazendo-a para o começo da linha de uma corrida e então diz: “você está livre para competir com todos os outros” e, ainda acredita que você foi completamente justo. Isto não é o bastante para abrir as portas da oportunidade. Todos os nossos cidadãos têm que ter capacidades para atravessar aquelas portas. Este é o próximo e o mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Nós não procuramos somente liberdade, mas oportunidades. Nós não procuramos somente por eqüidade legal, mas por capacidade humana, não somente igualdade como uma teoria e um direito, mas igualdade como um fato e igualdade como um resultado. (GOMES, 2001, p.57).”[9]
3.3 ORIGENS NO BRASIL E NO MUNDO.
A ação afirmativa não se restringiu aos Estados Unidos. Outras experiências aconteceram em diversos países. Dentre eles, destacamos a Índia, pois, após sua independência em 1947, adotou com êxito medidas para garantir assento no Parlamento a representantes das castas ditas inferiores (intocáveis). Na Europa, as primeiras orientações nessa direção foram elaboradas em 1976, utilizando-se freqüentemente a expressão “ação ou discriminação positiva”. Em 1982, a “discriminação positiva” foi inserida no primeiro “Programa de Ação para a Igualdade de Oportunidades” da Comunidade Econômica Européia (Centro Feminista de Estudos e Assessoria, 1995, Estudos Feministas, 1996).
O britânico Robert Owen compelido pela depressão econômica sofrida pela Grã-Bretanha no início do século XIX, propôs várias modificações nos modelos de produção, para que as pessoas afetados negativamente pelo capitalismo da sociedade britânica da época pudessem ter possibilidades de consumo, o que indiretamente provocaria o reaquecimento da economia. A partir daí as idéias cooperativistas de Charles Fourier, Saint-Simon e do próprio Owen ocasionaram uma série de experimentos em diversos lugares.
No Brasil, a primeira utilização de que se tem notícia, é a oferta de apoio à chegada de europeus ao Brasil doando-se terras. Mas ainda mais específica, temos uma modalidade, que é segundo Gomes “bem brasileira” ela estaria prevista na lei 5.465/1968 que assim prescrevia:
“Os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de agricultura e veterinária, mantidas pela União, reservarão, anualmente, de preferência, cinqüenta por cento de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural, e trinta por cento a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimento de ensino médio”.[10]
A Constituição Federal estréia na era moderna das Ações Afirmativas no Brasil ao prever expressamente incentivos ao mercado de trabalho da mulher, como parte dos direitos sociais, e a reserva percentual de cargos e empregos públicos para deficientes.
3.4 Fundamentos constitucionais
A despeito do princípio da isonomia estar presente nas constituições brasileiras desde 1824, durante muito tempo ela permaneceu apenas no campo formal. Na apreciação de Sérgio Martins (1996), com relação ao princípio da igualdade, a Constituição de 1988 inaugurou na tradição constitucional brasileira o reconhecimento da condição de desigualdade material vivida por alguns setores e propõe medidas de proteção, que implicam a presença positiva do Estado.[11]
O princípio da dignidade da pessoa humana, positivado pelo art. 1º, III e também no art. 3º da Constituição Federal serve de base para as ações afirmativas principalmente, quando traça os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos, de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Os debates e ensaios históricos dos países onde as ações afirmativas se desenvolveram serviram para fazer com que no Brasil este instituto assumisse diversas facetas. Historicamente, as políticas públicas brasileiras se caracterizam pela adoção de uma perspectiva social, com medidas assistencialistas contra a pobreza, sejam elas concebidas por políticos de esquerda ou direita. Atualmente alguns movimentos sociais passaram a exigir uma mudança de postura diante de questões sociais, étnicas, econômicas e regionais, e a adoção de medidas específicas para sua solução, tais quais as ações afirmativas. A este respeito Melo assim se pronuncia:
“Passou-se, assim, de uma igualização estática negativa – no que se proibia a discriminação -, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” denotam ação. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar as mesmas oportunidades. Há de ter-se como ultrapassado o sistema simplesmente principiológico. A postura, mormente dos legisladores, deve ser, sobretudo afirmativa (…) Falta-nos, então, para afastarmos do cenário as discriminações, uma mudança cultural, uma conscientização maior dos brasileiros; urge a compreensão de que não se pode falar em Constituição sem levar em conta a igualdade, sem assumir o dever cívico de buscar o tratamento igualitário, de modo a saldar dívidas históricas para com as impropriamente chamadas “minorias, ônus que é de toda a sociedade (MELLO, 2001).”[12]
Sustenta ainda o eminente doutrinador, que só artigo 3º da Constituição Federal, já apóia juridicamente as ações afirmativas. Segundo ele,
“E, aí, a Lei Maior é aberta com o artigo que lhe revela o alcance: constam como fundamentos da República Brasileira a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e não nos esqueçamos jamais de que os homens não são feitos para as leis; as leis é que são feitas para os homens. Do art. 3º vem-nos luz suficiente ao agasalho de uma ação afirmativa, a percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual.” (idem).
Ao nosso ver o Ministro Gomes, compartilha da mesma opinião:
“No plano estritamente jurídico (que se subordina, a nosso sentir, à tomada de consciência assinalada nas linhas anteriores), o Direito Constitucional vigente no Brasil, é perfeitamente compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor dizendo, o Direito brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa, inclusive em sede constitucional.” (Gomes, Op. Cit. p. 43)
Vilas-Bôas, a seu turno, afirma que a partir do momento que a constituição aplica em seu texto hipóteses de diferenciações para determinado grupo, autoriza que outros grupos, também discriminados, busquem ser tratados de forma individualizada, a citada autoria diz ainda:
“Não somente temos a possibilidade de criarmos ações afirmativas plenamente autorizadas por nossa Lei Maior, com o objetivo de reduzir as desigualdades sociais e de promover o bem de todos, como ainda podemos localizar em seu próprio corpo situações características das discriminações positivas”. (VILAS-BÔAS, 2003, Op. Cit. p. 54).
Pelo exposto, entendemos, portanto, que as Ações Afirmativas não só são autorizadas pelo sistema constitucional brasileiro, mas também são necessárias para se alcançar os direitos fundamentais descritos no artigo 3º de nossa Carta Magna, pois na sua redação temos o emprego de verbos como “erradicar, reduzir e promover”, que exigem do Estado um comportamento ativo, positivo.
Todavia, não podemos olvidar que muitos consideram as ações afirmativas uma discriminação ao avesso, da feita que favoreceriam um grupo em detrimento de outro tendo assim, um caráter inconstitucional.
Mas para aqueles que as entendem como um direito, sua constitucionalidade assenta-se no fato de que visam corrigir situações reais de discriminação, porque seu objetivo é justamente atingir uma igualdade de fato e não fictícia.
Robert Alexy, um dos mais influentes jus-filósofos alemães contemporâneos, (apud Sell, 2003), afirma que o que a máxima da igualdade proíbe são os tratamentos arbitrariamente desiguais. Valendo-se dos critérios freqüentemente utilizados pelo Tribunal Constitucional Alemão, diz que a arbitrariedade ocorre quando não há uma razão suficiente para justificar a desigualação operada. Assim, toda distinção que não é razoável, atinente à natureza das coisas ou concretamente compreensível estaria vedada. Pode-se operar discriminações, não se pode é operá-las a partir de critérios bizarros ou irrazoáveis. Essa é, para Alexy a versão atenuada do princípio da igualdade, porque permite a desigualdade desde que haja razões suficientes para promovê-la. Mas Alexy vai além: sustenta um dever do Estado em tratar desigualmente os cidadãos desde que haja razão suficiente para isso. Nesse sentido, os cidadãos têm um direito prima facie a serem tratados de forma juridicamente desigual com vistas a seu benefício, desde que as razões que apresentem para que se opere tal diferença a justifiquem. E tal justificativa deve ser suficientemente forte a ponto de permitir, para o caso, a quebra da igualdade formal de todos.[13]
4. Quota: espécie mais polêmica de ação afirmativa
Existem muitas formas de ação afirmativa, o sistema de cotas (ou quotas) é uma delas, considerada por muitos a mais radical e polemica, uma vez que, exclui o direito de indivíduos que não pertencem a determinados grupos, a fim de favorecer aqueles que fazem parte daquele grupo inserindo-o em espaços onde antes não lhes era acessível.
O Congresso Nacional ainda não aprovou a lei que estabelece em todas as universidades, a cota que será destinada às minorias étnicas e aos alunos de escolas públicas. Algumas Universidades, entretanto, já adotam o sistema. Surgiram propostas de implementação de quotas raciais em vestibulares, sendo a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) a instituição pioneira na aplicação dessa política, posteriormente adotada em instituições como Universidade de Brasília (UnB), Universidade de Campinas (Unicamp), dentre outras.
Conforme Martins da Silva, outra iniciativa pioneira, mas pouco comentada, teve origem do Poder Judiciário. Provocado pelo Ministério Público Federal (Procuradoria da República) no Estado do Ceará, por meio de uma Ação Civil Pública[14] (ACP no 990017917-0.), o MM. Juízo da 6a Vara Federal, determinou, em 15 de setembro de 1999, que a Universidade Federal do Estado do Ceará, “em nome do princípio da isonomia”, “doravante e até ulterior deliberação”, reservasse “cinqüenta por cento (50%) das vagas de todos os seus cursos para estudantes egressos da rede pública de ensino”.
4.1 Argumentos favoráveis à política de cotas
Dentre Professores, Operadores e Pesquisadores da área jurídica e a sociedade de forma geral as opiniões se dividem, e as críticas são inúmeras pelos mais variados motivos, dentre eles: que a medida é inócua visto que ataca os sintomas e não as causas e ignora que o verdadeiro problema é a falta de qualidade do ensino público; que contraria o princípio da igualdade, do mérito acadêmico por premiar os menos preparados, da proporcionalidade, da autonomia universitária, e até mesmo que seriam prejudiciais para seus próprios beneficiários posto que seriam discriminados e taxados de incapazes e não merecedores de sua vaga na universidade.
Essas argumentações não causam surpresa se levarmos em consideração que grande parte das medidas implantadas e executadas no Brasil assim são feitas sem o menor planejamento, o que, como afirma Brito (2007), além de reduzir sua eficácia, ainda produz um sentimento negativo na sociedade, embora em parte amplificado pelos que negam a possibilidade de sua utilização. [15]
Entretanto, data vênia as respeitáveis opiniões contrarias, nosso objetivo é demonstrar que as ações afirmativas que criam condições de acesso são benéficas, pois ao contrario de violarem o principio da igualdade, buscam atingir seu sentido material.
Em uma reportagem publicada pelo jornal Folha de S. Paulo em 04 de abril de 2008 afirmava-se o seguinte “… no ENEM do último ano a pior escola
particular do Brasil supera 75% das estaduais”. A noticia serve para provar que os
alunos de escolas estaduais se deparam com maiores dificuldades de
acesso às faculdades públicas ao concorrer com alunos provenientes das
escolas privadas.
Não se pode duvidar que a maior parte daqueles que negam a necessidade de um programa de política de cotas são pessoas que seguramente não necessitam delas para ingressar em uma boa faculdade. Muitos alunos saem das escolas estaduais preocupados na dificuldade que terão de conseguir uma vaga em qualquer faculdade pública; sabe-se que nesta fase as posições se invertem: os alunos cujos pais ou responsáveis puderam pagar por um bom ensino fundamental, conseguem com menor dificuldade a aprovação na Universidade pública e gratuita, ao passo que aqueles que não tiveram outra alternativa senão estudar nos colégios públicos, com a qualidade de ensino, de longe inferior a dos colégios particulares, ainda que consigam conquistar em universidades particulares a tão sonhada vaga no curso superior, não terão como custeá-la a não ser em alguns casos com grande sacrifício à sua renda e de seus familiares.
O Brasil defende o “direito de igualdade para todos”, mas infelizmente ele não é pratica, este direito não é levado em conta para as classes menos
privilegiadas. Como já ficou demonstrado anteriormente, a igualdade formal não é bastante para a conquista da igualdade de fato. Por isso, atualmente, utilizar-se da igualdade formal para apontar uma suposta inconstitucionalidade das quotas, é debater a questão de forma superficial, é mostrar-se insensível às necessidades dos grupos desfavorecidos.
Segundo o professor José Afonso da Silva (1998, Op. Cit. Pag, 197) “Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os ‘iguais’ podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador” .
Não quero defender que as políticas de cotas, são suficientes para sozinhas, reverter o atual quadro de desigualdade, mas, ao se pensar que a outra alternativa é esperar por uma reforma completa do ensino público do país que só produziria efeitos a longo prazo adiando a correção das desigualdades, não duvido que elas se tratam de um primeiro passo, servindo de complementação de outras ações a serem exercidas pelo Estado. Uma pesquisa feita pelo Laboratório de Políticas Públicas da UERJ apontou que é um grande erro pensar que, no campo das políticas públicas democráticas, os avanços se produzem por etapas seqüenciais: primeiro melhora a educação básica e depois se democratiza a universidade. Ambos os desafios são urgentes e precisam ser assumidos enfaticamente de forma simultânea.
A implementação das medidas não subverte o mérito acadêmico, mas o aperfeiçoa na medida em que coloca candidatos que tiveram iguais condições e oportunidades para disputar pelas vagas entre si. Para os que se preocupam com essa questão pergunto: Quem tem mais mérito? Como declarou Santos (2001 p 113-114):
“Serão os estudantes que tiveram todas as condições normais para cursar os ensinos fundamental e médio e passaram no vestibular ou aqueles que apesar das barreiras raciais e de outras adversidades em sua trajetória, conseguiram concluir o ensino médio e também estão aptos para cursar uma universidade?”[16].
Assim, que “mérito acadêmico” é esse que se apresenta como o resultado de avaliações objetivas que não levam em conta a profunda desigualdade social existente? Longe de ser uma prova justa que classifica os alunos conforme sua inteligência, o vestibular está mais relacionado à possibilidade de dedicar-se exclusivamente a um cursinho de preparação, em regra bem caro, que realmente ser bem sucedido na faculdade.
Oferecer a todos iguais instrumentos, sem qualquer forma de compensação, apesar da enorme diferença na formação escolar por deficiência do ensino, é convalidar e perpetuar a desigualdade. Como defendeu o ministro Ayres Britto na ADI 3.330/DF ao proferir seu voto:
“Não se pode rebaixar os favorecidos. O que se pode é elevar os desfavorecidos. O que ela (a lei) não pode é incidir no “preconceito” ou fazer “discriminações”, que nesse preciso sentido é que se deve interpretar o comando constitucional de que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. O vocábulo “distinção” a significar discriminação (que é proibida), e não enquanto simples diferenciação (que é inerente às determinações legais)”.[17]
Outro argumento a ser refutado é o que se refere à possibilidade de queda do nível acadêmico posto que diversos estudos nas universidades onde as cotas foram implementadas (como a UERJ, Unb, Uneb e UFBA), indicam que o desempenho acadêmico entre cotistas e não cotistas é igual, não se encontram havendo diferenças consideráveis. E nos EUA num acompanhamento dos calouros de Harvard que durou três décadas concluiu-se que os “estudantes com baixos resultados na prova do SAT (Teste Padrão de Aptidão), vindos da classe trabalhadora, tiveram maior sucesso que seus colegas de classe média, principalmente por terem mais iniciativa” (idem).
Desta feita, as cotas não baixariam a qualidade do ensino no país, mas pelo contrario, a motivação é de suma importância para um bom desempenho nos estudos, e não seria diferente já que as oportunidades sociais ampliam e multiplicam as oportunidades educacionais.
Isso porque elevando o grau de instrução dos indivíduos historicamente prejudicados pelas dificuldades econômicas e pela baixa qualidade do ensino público a que tem acesso nos primeiros graus de estudo, se está, não só corrigindo desigualdades em relação a eles, como também beneficiando a comunidade onde eles vivem.
4.2 TEMPORALIDADE DAS MEDIDAS.
Algo importante a ser observado a respeito das ações afirmativas é a temporalidade de suas medidas como uma característica sua. O uso da cota tende a cessar à medida que surtir efeitos modificadores da distorção, igualando os desiguais. Sendo uma situação passageira deve-se saber que o momento certo de descontinuar o uso da cota, Segundo Martins da Silva (2007), é quando passar a igualar os desiguais, pois uma vez atingida uma situação de igualdade entre a aioria privilegiada e a minoria excluída, não haverá necessidade de ação afirmativa.[18]
O texto da Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968), ressaltou que “essas medidas não deverão, em caso algum, ter a finalidade de manter direitos desiguais ou distintos para os diversos grupos raciais, depois de alcançados os objetivos, em razão dos quais foram tomadas.” (cf. art. 2º, §2º)[19].
Compartilho da opinião do filósofo Renato Janine Ribeiro (2000, p.29), que entende que se as medidas forem temporárias e bem orientadas como correção de rota, são “um dos melhores meios, mas não necessariamente o único, ou sequer o melhor em si – apenas o melhor num arsenal de meios não revolucionários”.[20] Acrescento que, conforme como já citei anteriormente, entendo que por mais que as cotas sejam consideradas constitucionais, as ações afirmativas não se resumem a elas, e tampouco serão suficientes para resolver sozinhas os problemas sociais comentados até aqui. Desta forma, é de extrema importância que o governo ponha em prática outras ações que também contribuirão para redução das desigualdades, como por exemplo, ampliação de bolsas de estudo, criação de cursos preparatórios para os vestibulares e concursos públicos, medidas de incentivos fiscais para empresas privadas que desenvolvam políticas de ações afirmativas, entre outras.
4.3 DAS QUOTAS PARA NEGROS
Varias opiniões tem se levantado contra e a favor da implementação de cotas para afro descendentes. A esse respeito admito, com pesar, que realmente em nossa sociedade o negro é bastante discriminado. Dados estatísticos do IBGE (síntese de indicadores sociais de 2004) mostram que os brancos correspondem a 52,1% da população nacional, enquanto que os negros e pardos correspondem a 47,3%, entretanto, quando se trata da distribuição percentual por cor entre os estudantes de 18 e 24 anos no ensino superior, verifica-se uma profunda diferença, dos brancos 46,4% estão no ensino superior, ao passo que entre negros e pardos, apenas 14,1% (Brasil, 2005).
Sem dúvida isso decorre do longo histórico de escravidão vivido pelos negros em nosso país, pois com a edição da Lei Áurea nenhuma outra lei foi sancionada a fim de inserir os ex-escravos na sociedade, por isso mesmo, os negros no Brasil, passam por sérios problemas de exclusão, são eles que apresentam os piores indicadores sociais. Ainda assim, ouso opinar que o preconceito que existe talvez não seja o único elemento que prejudica a participação dos negros nas classes sociais mais abastadas. Isso é resultado da precária situação econômica a que foram relegados ao serem historicamente obrigados a aceitar os trabalhos considerados inferiores, o que gerou uma situação cíclica: com os piores trabalhos, a ficou impossível investir nos estudos, sem acesso à educação, impossível competir no mercado de trabalho, o que o impede de transformar a própria realidade e ascender socialmente.
Longe de nós minimizar a situação da discriminação do negro, mas a maior exclusão que se nota no Brasil é a sócio-econômica, e não a racial, fundamentalmente nos exames de vestibular das Universidade, porque um negro rico é aceito na sociedade, mas um negro pobre não. Nos dizeres da procuradora do Distrito Federal e Mestre em direito Roberta Fragoso Menezes Kaufmann (2007):
“No Brasil, muitas vezes a ascendência africana pode ser suavizada, outras vezes esquecida, seja por questões econômicas – a assertiva de que no Brasil negro rico vira branco e pobre branco vira preto, seja pelo fenótipo apresentado, a chamada válvula de escape do mulato. Por outro lado, não há dúvidas de que a falta de preparo adequado pode ser associada às precárias condições econômicas dos negros e à necessidade de estudar em escolas públicas, nas quais o ensino fundamental e médio, na maioria das vezes, é de qualidade inferior à do ensino privado. Reconhecer esse ciclo vicioso — escolaridade insuficiente ou precária, falta de preparo para ingressar em uma boa instituição de ensino superior e ausência de oportunidades para conquistar melhores empregos é desmistificar a cor da pele como a única ou a principal causa da exclusão social no Brasil. Despiciendo se torna demonstrar a relação entre a quantidade e a qualidade dos anos de estudos com os salários percebidos. Em um mercado de trabalho extremamente competitivo, quem não possui as qualificações necessárias, simplesmente tem de aceitar trabalhos menos qualificados, cujos salários são menores”.[21]
Não se trata de limitar o problema racial à questão econômica. Entretanto concordando com Roberta Fragoso sou a favor de que medidas de quotas a serem praticadas no Brasil utilizem-se do binômio: raça e pobreza. “Seria justificável um programa que beneficiasse negros ricos, por exemplo, em um País em que brancos pobres também não têm a igualdade de oportunidades? Acreditamos que não. Além do que, a união do critério racial com o social, traria maior legitimidade ao debate, na medida em que o programa receberia maior apoio popular, diminuindo os focos de tensões que a implementação dos programas afirmativos poderia gerar. E, de qualquer modo, se a maioria dos pobres são negros — 70% — apenas uma pequena parcela deles não estaria sujeita ao programa.[22]
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se buscou demonstrar, a noção atual do principio da igualdade não se contenta com a atitude de neutralidade do Estado, mas este deve buscar promover a igualdade de oportunidades. E um dos meios eficazes para isso é a utilização de medidas que promovam e apóiem os grupos socialmente prejudicados.
As ações afirmativas estão amparada pela Constituição, e sua utilização, ao nosso ver, é não só possível, mas além disso, uma necessidade. Entretanto, sua implementação deve levar em conta as nossas peculiaridades. Defendemos que o maior abismo que existe em nossa sociedade é o que afasta os mais pobres dos mais abastados, e esta desigualdade exige que o poder público atue de forma não somente compensatória, mas também estrutural e voltada para o futuro da nação.
Reafirmamos que o sistema de cotas ainda que seja polêmico, converge com os objetivos fundamentais do Estado, e busca ver concretizado auxílio eficaz aos menos favorecidos, para que estes superem as barreiras que os impedem de atingir determinados níveis, entre os quais, o nível acadêmico.
A propagação da educação é o caminho que nos leva a reduzir todo o gênero de desigualdades pois entendemos que elevando o grau de instrução dos indivíduos historicamente prejudicados pelas dificuldades econômicas e pela baixa qualidade do ensino público a que tem acesso nos primeiros graus de estudo, se está, não só corrigindo desigualdades em relação a eles, como também beneficiando a comunidade onde vivem, atingindo assim, o objetivo constitucional de se materializar o princípio da igualdade, e proporcionando a todos iguais oportunidades de ascensão social.
Para concluir esse trabalho, invoco as palavras de Buarque (2006) nas quais se vê: “Um país justo não precisa de cotas. Mas um país que nega cotas é mais do que injusto. É um país que quer esconder a própria injustiça.”[23]
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio de igualdade. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984.
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002.
reserva de bolsas de estudo – PróUni. Após o voto proferido pelo Ministro Carlos Britto, relator, o Ministro Joaquim Barbosa pediu vistas do processo, tendo o julgamento sido interrompido. Lembro que os Ministros Marco Aurélio Mello, Joaquim Barbosa e Carmen Lúcia Antunes Rocha possuem trabalhos escritos a favor das ações afirmativas, inclusive citados ao longo deste artigo, razão pela qual acredita-se que os demais ministros do Supremo seguirão a linha de raciocínio exposta pelo relator.
Informações Sobre o Autor
Gerliane Cabral Moreira
Formada em Direito pela UFPA. Analista do TJPA. Especialista em Direito Público e Pós graduanda em Direito Civil.