Sumário: 1. Introdução; 2. A representação; 3. O autocontrato ou contrato consigo mesmo; 4. A representação nos atos notariais celebrados consigo mesmo; 5. Da permissão para celebrar negócio jurídico consigo mesmo; 6. Da ausência de conflito de interesses; 7. Das vedações legais; 8. Contrato consigo mesmo e procuração em causa própria; 9. Do substabelecimento. 10. Conclusão; 11. Referências bibliográficas.
Resumo: O artigo trata da representação nos atos notariais celebrados consigo mesmo. Inicialmente, apresenta-se o conceito do instituto da representação e a sua classificação. Em seguida, abordamos o autocontrato ou contrato consigo mesmo e a representação nos atos notariais celebrados consigo mesmo. Com o advento do novo Código Civil, o autocontrato passou a ter previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro (art. 117). De acordo com o referido dispositivo, para que o ato notarial seja válido, deve haver permissão do representado. Além disso, não poderá haver conflito de interesses entre representante e representado, nem vedação legal. Após a análise da autocontratação, examina-se a procuração em causa própria e o substabelecimento, para, ao final, concluir que os atos notariais celebrados consigo mesmo podem ser normalmente formalizados pelos tabeliães e escreventes no desempenho do seu mister, desde que obedecidos os preceitos legais.
Palavras chaves: Representação. Atos notariais. Autocontrato; Contrato consigo mesmo. Procuração em causa própria. Substabelecimento.
1. Introdução
A declaração de vontade destinada à constituição, modificação ou extinção de direitos normalmente é feita pela própria pessoa interessada na realização do negócio jurídico. No entanto, às vezes, o interessado atribui a alguém a prática do ato em seu nome. Neste caso, ocorre a representação, ou seja, o representante celebra o negócio jurídico em nome do representado.
Em determinadas situações, ambas as partes são representadas pela mesma pessoa, caracterizando a hipótese de dupla representação. Noutras, além de representar um dos contratantes, o próprio representante figura na relação jurídica como parte. Nestes casos, o agente celebra autocontrato ou contrato consigo mesmo.
Com o advento do novo Código Civil (Lei Federal n.º 10.406, de 10/01/2002), o instituto passou a ter previsão expressa no ordenamento jurídico nacional (art. 117), o que por si só justifica a sua discussão quanto às inovações veiculadas, bem como quantos aos pontos que permaneceram inalterados.
O presente trabalho tem como objetivo contribuir para o aprofundamento do estudo da representação nos atos notariais celebrados consigo mesmo, oferecendo elementos que ampliem a discussão do instituto, permitindo a sua melhor compreensão. A importância da matéria está diretamente relacionada à correta formalização dos atos notariais, suprindo eventuais dificuldades dos notários e escreventes.
2. A representação
A declaração de vontade destinada à formação da relação jurídica é normalmente emitida pela própria pessoa interessada em sua formação. No entanto, pode acontecer que em determinado negócio jurídico possa intervir terceira pessoa que não seja o interessado direto e imediato. Neste caso, ocorre a representação. Esta, segundo Francisco Amaral, caracteriza-se pela “atuação jurídica em nome de outrem.” O poder atribuído a alguém de praticar determinado negócio jurídico em nome de outrem.[1]
Quem pratica o ato é o representante, ao passo que a pessoa cujo negócio jurídico é praticado em seu nome chama-se representado.
A essência da representação, conforme assinala Orlando Gomes, “reside na atuação em nome de outro, por necessidade ou conveniência”.[2]
O poder de representação se funda na lei (representação legal), ou na autonomia da vontade (representação voluntária). É legal quando instituída por lei, em virtude de relevante interesse jurídico, como no caso dos incapazes. É voluntária quando resultante da autonomia da vontade.
Quando o representante age emitindo a declaração de vontade, a representação classifica-se como ativa. A proposta negocial é realizada pelo representante. Quanto o representante recebe a manifestação emitida por outrem, como no recebimento ou aceitação de proposta negocial, a representação é passiva.
Ocorre a representação própria ou direta quando o representante age em nome do representado. O negócio jurídico se concretiza por meio de manifestação de vontade do representante, mas produz efeitos perante o representado. Na representação direta ocorre a contemplacio domini, ou seja, a contraparte tem conhecimento da atividade representativa do representante.
Na representação imprópria ou indireta não ocorre a contemplacio domini, isto é, o contratante não tem conhecimento da atividade representativa do representante. O negócio jurídico é realizado em nome próprio, mas no interesse de outrem. Age em nome próprio, mas por conta alheia. São exemplos de representação indireta a comissão mercantil e o mandato sem representação (art. 663, segunda parte, do Código Civil).
A representação funciona como instrumento de cooperação para conclusão dos negócios jurídicos, possibilitando a realização de negócios sem a presença física dos respectivos agentes. Conforme assinala Francisco Amaral, a representação consiste na “prática de um ato por pessoa diversa do titular, que é parte substancial da relação jurídica. O representante, embora praticando o ato, não assume a titularidade da relação, nem é, de regra, o destinatário de seus efeitos, nem responsável por sua execução.”[3]
O fundamento da representação é a liberdade jurídica das pessoas, a autonomia privada, que permite ao representante a atuação em nome do representado. Por isso, tem como pressupostos a substituição de uma pessoa (representado) por outra (representante), a atuação deste em nome daquele (contemplacio domini), dentro dos limites dos poderes outorgados.[4]
A representação não se confunde com o mandato. Este é contrato bilateral, ao passo que aquela é ato jurídico unilateral, outorga de poderes. Segundo Pontes de Miranda, coube a Laband mostrar a autonomia e independência entre a representação e o mandato. Informa o tratadista que os juristas por muito tempo confundiram o poder e o mandato, até que P. Laband precisou os dois conceitos. “O mandato é contrato; a outorga de poder, negócio jurídico unilateral.”[5]
Segundo Mairan Maia, “consagrando a autonomia e independência reconhecidas doutrinariamente, a legislação civil vem tratando os institutos em separado, como é o caso, por exemplo, dos Códigos Civis alemão e italiano, os quais disciplinam a representação na parte geral e o contrato de mandato ao regulamentarem os contratos em espécie, bem como do atual Código Civil Brasileiro.”[6]
3. O autocontrato ou contrato consigo mesmo
Conforme assinala Díez-Picazo, “o denominado contrato consigo mesmo originou-se nas antigas cidades italianas e alemãs, de intenso tráfico mercantil, pela prática comum de banqueiros e comissionistas considerarem-se autorizados por seus clientes para contratar em nome de dois clientes, ou de um deles consigo mesmo, especialmente quando se tratava da comercialização de produto com preço fixado em bolsa.”[7]
Na verdade, não se trata de contrato consigo mesmo, posto que o contrato, por definição legal, requer o acordo de vontades. Ademais, os representantes apenas celebraram o negócio jurídico. Seus efeitos são produzidos na esfera dos representados. Portanto, não há que se falar em contrato consigo mesmo.
Nesse sentido salienta Orlando Gomes que “sob o nome de autocontrato ou contrato consigo mesmo conhece o Direito moderno figura curiosa de negócio jurídico bilateral. Tomada ao pé da letra seria absurda. Ninguém pode constituir relação jurídica na qual figure, ao mesmo tempo, como sujeito ativo e passivo. Contratar consigo próprio é, logicamente, impossível. O contrato é, por definição, o acordo de duas ou mais vontades, não se podendo formar intuitivamente, pela declaração de uma só vontade. Tais reparos provêm, entretanto, de manifesta confusão. A primeira, devida à denominação. Em verdade, não há contrato consigo mesmo, porque a figura assim chamada só se torna possível em função do mecanismo da representação. Podendo o contrato ser concluído por meio de representante, este, em vez de o estipular com terceiro, celebra consigo próprio. Por força da sua condição, reúne, assim, em sua pessoa, dois centros de interesses diversos, ocupando as posições opostas de proponente e aceitante. No fundo, não realiza contrato consigo mesmo, senão com a pessoa a quem representa. A outra confusão decorre da suposição de que a regra da dualidade pessoal de partes não comporta exceção. É certo que, para quem não admite a natureza unilateral do autocontrato, há duas partes. A figura do autocontrato é equívoca, porque violenta o princípio da duplicidade de declarações de vontade, o que levou alguns tratadistas a considerá-lo negócio unilateral. Se o contrato é o encontro e a integração de duas vontades, pressupõe duas declarações, não sendo possível admitir-se que resulte de uma só. A essa objeção responde-se dizendo-se que o essencial para a formação do contrato é a integração de declarações animadas por interesses contrapostos. (Galvão Teles, Dos contratos em Geral, p. 275; José Paulo Cavalcanti, O autocontrato.) Na formação do autocontrato, o representante emite duas declarações distintas que consubstanciam os interesses dos quais se tornou o ponto de convergência.”[8]
Não obstante à crítica que se faz a esta terminologia, foi ela adotada pelos códigos alemão, italiano, português.[9] O Código nacional, na esteira dos Diplomas italiano e português, também adotou a mesma terminologia.
4. A representação nos negócios jurídicos celebrados consigo mesmo
Regra geral, nos negócios jurídicos, o representante atua apenas em nome de uma das partes. Pode acontecer, no entanto, que ambas as partes sejam representadas pela mesma pessoa, caracterizando a dupla representação: “as vontades são expressas por um único emitente, apesar de pertencerem a titulares distintos.”[10]
Em determinadas situações, além de representar um dos contratantes, como representante, atuando em nome do dominus negotii, pode acontecer que o próprio representante figure na relação jurídica, como parte.
Em ambos os casos, tanto na hipótese de dupla representação, quando representa um e outro, como no caso de representar uma das partes e participar da relação jurídica como contratante, configura-se o negócio jurídico designado autocontrato ou contrato consigo mesmo, figura sui generis de negócio jurídico bilateral.
Na vigência do Código Beviláqua (Código Civil de 1916) era vedado ao mandatário a aquisição de bens de cuja administração ou alienação estivesse encarregado, por força do art. 1.133, inc. II. Com o advento do novo Código Civil (Lei Federal n.º 10.406, de 10/01/2002), o instituto passou a ser permitido no ordenamento jurídico pátrio, constando expressamente do art. 117, que diz que “salvo se o permitir a lei ou o representante, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo.”
Conforme assinala Pontes de Miranda afirma, “não há princípio, a priori, que se oponha a existência, validade e eficácia de tais negócios jurídicos; nem é contra a natureza dos negócios jurídicos que o manifestante da vontade, em nome de outro, a receba em seu próprio nome, ou em nome de outro representado, nem que o manifestante da vontade, em nome próprio, a receba de outrem, nem há contra-indicações que possam ser mais do que sugestões, em certas espécies de negócios jurídicos, e assaz atendíveis de iure condendo.”[11]
No mesmo sentido, salienta Francisco Amaral que “embora teoricamente possível na teoria geral do direito, e praticamente utilizada, a figura da autocontratação sofre restrições por parte de alguns setores doutrinários que não a aceitam, dada a possibilidade de conflito entre os interesses do representado e os do representante. Se impossível tal conflito – e não se ponha em risco a imparcialidade do representante ou ainda, se existir autorização do dominus negoti – não há razão para se inadmitir tal figura. O autocontrato é válido, portanto, sempre que exista concordância do representado, ou não haja conflito de seus interesses com os do representante, sendo impossível o abuso da confiança neste depositada. É o consagrado nos mais recentes Códigos Civis, como o italiano, art. 1.395, e o português, art. 261º. A concordância do representado pode ser anterior ou posterior ao ato (ratificação). Inexiste possibilidade de conflito quando o representante, realizando o autocontrato, segue as recomendações do representado quanto às condições contratuais, designadamente, a forma, o preço e as condições de pagamento, o prazo contratual etc. Neste caso, o representante, adquirindo a coisa do representado, fá-lo nas mesmas condições que qualquer outra pessoa.”[12]
O professor Caio Mário da Silva Pereira leciona que “casos há, contudo, em que a autocontratação é lícita. Em primeiro lugar quando a lei a permitir. Em segundo lugar quando for autorizada pelo representado. Neste caso, considera-se que o ato negocial contém duas manifestações de vontade: a do representante, contida no negócio, e a do representado, expressa na autorização. O negócio jurídico celebrado consigo mesmo não é ato unilateral. É bilateral, uma vez que nele estão presentes duas declarações de vontade.”[13]
No mesmo sentido Washington de Barros Monteiro, segundo o qual “se a lei permitir, ou o representado admitir essa hipótese nos poderes outorgados ao representante, desaparece qualquer vício que pudesse contaminar o ato.”[14]
A mesma opinião comunga Sílvio de Salvo Venosa ao afirmar que a “proibição cai por terra, no entanto, como diz inclusive o atual estatuto, quando o próprio interessado, ou seja, o representado, autoriza a autocontratação; supera-se aí o incoveniente da inexistência de duas vontades, pois passam elas a existir ex radice, isto é, desde o nascedouro do negócio.”[15]
Mesmo na vigência do código anterior, o Supremo Tribunal Federal já havia se posicionado favoravelmente ao instituto, merecendo destaque o voto do Ministro Octavio Gallotti:
“A tese em debate está intimamente ligada à admissibilidade, no ordenamento jurídico, do chamado “contrato consigo mesmo”, porquanto a Companhia Real de Valores, ao mesmo tempo em que é instituída mandatária dos devedores, participa do grupo creditício a que pertence o credor.
“O ‘contrato consigo mesmo’ não encontra vedação expressa em nosso direito positivo, nem objeção teórica de monta, pois, na representação, a vontade que se obriga é a do representado, cujo patrimônio é distinto do pertencente ao representante.
Como esclarece Carvalho de Mendonça, apoiado em Chironi e Windscheid, ‘desde que um indivíduo pode agir ao mesmo tempo por si e como representante de outrem, desde que é possível conceber-se que alguém obre como representante de uma pessoa jurídica e de outra física, há, na realidade, dois patrimônios colocados um defronte do outro e desde então é sempre possível entre estes um vínculo obrigacional, tanto e com tanta extensão como entre duas individualidades diferentes’ (Contratos no direito civil brasileiro, vol. I, p. 267).
Por isso, a validade do mandato, em tais circunstâncias, há de ser apreciada em razão de regras de moralidade, ficando, então, na dependência, sobretudo, da extensão dos poderes do mandatário:
Se há, de regra, colisão de interesses quando o representante contrata consigo mesmo, não se pode afirmar (…); depende da maior ou menor extensão dos poderes, depende de circunstâncias que apontam não se ter preocupado com a pessoa do figurante o representado.” [16]
O professor Mairan Maia leciona que a matéria é tratada de forma diversa pelos Códigos Civis da Alemanha, Itália e Portugal. O Código alemão veda o instituto (§ 181), enquanto os Diplomas italiano e português dispõem, em seus artigos 1.395 e 261, respectivamente, que é anulável o contrato celebrado consigo mesmo, a menos que o representado tenha autorizado especificamente sobre o conteúdo do contrato, de modo a excluir a possibilidade do conflito de interesses.[17]
O Código Civil brasileiro de 1916 não disciplinou o autocontrato, o que faz crer que o mesmo era vedado, por força do art. 1.133, inc. II, que proíbe a aquisição pelo mandatário de bens cuja administração ou alienação estivesse encarregado. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o instituto passou a ter previsão expressa no direito positivo. Dessa forma, não há dúvidas acerca da possibilidade de celebração do contrato consigo mesmo. No entanto, conforme determina o art. 117, o representado deve permitir a realização do negócio. Ademais, para validade do ato, não deve haver conflito de interesses entre representante e representado, nem vedação legal.
5. Da permissão para celebrar negócio jurídico consigo mesmo
Dispõe o art. 117 do novo Código Civil que “salvo se permitir a lei ou o interessado”, é anulável o negócio jurídico celebrado consigo mesmo. Repare que o negócio somente será anulável se não houver permissão legal ou do representado. A permissão legal é aquela estabelecida na lei e não merece maiores cogitações, ao passo que, nos negócios jurídicos, o representado deve autorizar, expressamente, a realização do negócio consigo mesmo.
Assim, na procuração deve constar expressamente a autorização para celebração do contrato consigo mesmo, ou seja, o outorgante deve autorizar expressamente o outorgado a transferir “para si” o objeto da transação.
Além disso, torna-se necessário definir com clareza os elementos essenciais do negócio jurídico para que não haja conflito de interesses entre representante e representado.
6. Da ausência de conflito de interesses
Dispõe art.119 do Código Civil que é anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou. O seu parágrafo único estabelece o prazo de 180 (cento e oitenta dias) o prazo de decadência para pleitear-se a anulação, contados da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade.
Assim, além da permissão do representado, para que o negócio seja válido mister que não haja conflitos de interesses entre representante e representado. Como sabiamente observou Mairan Maia, melhor seria se o legislador brasileiro tivesse condicionado a realização do negócio consigo mesmo à ausência de conflito de interesses, à semelhança dos Códigos português e italiano nos quais se inspirou.[18]
Embora não haja referência legal expressa ao conflito de interesses, no art. 117, que cuida do autocontrato, doutrina e jurisprudência são unânimes em afirmar que para validade do negócio impõe-se a ausência de conflito de interesses. Nesse sentido salienta Nelson Nery Júnior que “o contrato consigo mesmo, portanto, só é admissível pelo mandatário quando não houver conflito de interesses entre os seus e os do mandante. Do contrário é inválido.”[19]
Segundo o referido autor, “não há necessidade de que o conflito de interesses seja real. Basta a possibilidade de existir. Assim, havendo o perigo da existência do conflito, no momento da conclusão do negócio, portanto pré-existente ao contrato, isso já seria suficiente para a caracterização do conflito, e, por conseqüência, a causa de invalidade do negócio jurídico celebrado sob essa representação.”[20]
Nesse sentido, têm decido o Superior Tribunal de Justiça[21], cujo entendimento foi consagrado na Súmula 60 que diz que “é nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusive interesse deste.” A razão da edição desta súmula é presunção de conflito de interesses entre representante e representado. No mesmo sentido tem decidido o Supremo Tribunal Federal.[22]
Ressalte-se que, de acordo com a nova sistemática do Código Civil de 2002, conforme adverte Carlos Roberto Gonçalves, a obrigação cambial não é mais nula, mas apenas anulável.[23] Uma vez autorizado, e não havendo conflito de interesses, o negócio jurídico celebrado consigo mesmo é válido, desde que não haja vedação legal.
7. Das vedações legais
Em determinados casos o próprio legislador proibiu a realização do negócio jurídico celebrado consigo mesmo. Nessas hipóteses, o ato não poderá ser praticado, sob pena de nulidade. Assim, por força do art. 497 do novo Código Civil, não podem ser adquiridos pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, ainda que hasta pública, os bens confiados a sua guarda ou administração. O art. 1.749, do mesmo Diploma Legal, fulmina de nulidade, mesmo com autorização judicial, a aquisição pelo tutor, por si, ou interposta pessoa, de bens pertencentes ao menor.
Da mesma forma, os servidores públicos em geral não podem adquirir os bens ou direitos das pessoas jurídicas a que servirem, ou que estejam sob sua administração direita ou indireta.
Os juízes, secretários de tribunais, arbitradores, peritos e outros serventuários ou auxiliares da justiça, também não podem adquirir os bens ou direitos sobre que se litigar em tribunal, juízo ou conselho, no lugar onde servirem, ou a que se estender a sua autoridade.
Por derradeiro, os leiloeiros e seus prepostos não podem adquirir os bens de cuja venda estejam encarregados.
O Código de Processo Civil (art. 690, § 1º, inc. II), também veda a arrematação pelos mandatários dos bens de cuja administração ou alienação estejam encarregados. A referida vedação encontrava seu fundamento no inc. II, do art. 1.133, do Código Beviláqua. No entanto, esta disposição legal não foi mantida no Código Civil de 2002. Este, conforme já salientado, em seu art. 117 permitiu expressamente a realização do negócio. Assim, no nosso entendimento, a proibição imposta ao arrematante se restringe àquelas expressamente vedadas pela lei.
8. Contrato consigo mesmo e procuração em causa própria
A procuração em causa própria não se confunde com o contrato consigo mesmo. Este refere-se a negócio jurídico que se torna possível em função do mecanismo da representação. Podendo o representante celebrar negócio jurídico com terceiro, atuando em nome do dominus negotii, se o faz consigo mesmo, configura-se o chamado autocontrato ou contrato consigo mesmo. Já a procuração em causa própria, de procuração tem apenas o nome, pois trata-se, a rigor, de alienação gratuita ou onerosa.[24]
Segundo Orlando Gomes, “a cláusula in rem suam desnatura a procuração, porque o ato deixa de ser autorização representativa. Transmitido o direito ao procurador em causa própria, passa este a agir em seu próprio nome, no seu próprio interesse e por sua própria conta.
Sendo o negócio traslativo há de preencher os requisitos necessários à validade dos atos de liberalidade ou de venda. Transfere crédito, mas não a propriedade. Será, pois, em relação a esta, um título de transmissão, a ser transcrito para que se opere a translação. Quando tem por objeto o bem imóvel, a procuração em causa própria exige a forma de escritura pública.
Intuitivamente, a procuração em causa própria é irrevogável não porque constitua exceção à revogabilidade do mandato, mas porque implica transferência de direitos.”[25]
A procuração em causa própria não se confunde com a procuração específica para celebração de contrato consigo mesmo. Esta é revogável, se extingue com a morte e é outorgada em benefício do mandante, ao passo que aquela é irrevogável, não se extingue com a morte e é outorgada em benefício do mandatário.
9. Do substabelecimento
Após o caput do art. 117 do novo Código Civil dispor que é anulável o negócio jurídico celebrado consigo mesmo, o parágrafo único do referido dispositivo diz que “para esse efeito, tem-se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes houverem sido substabelecidos.”
Na vigência do Código Civil de 1916, era comum nos tabelionatos de notas o substabelecimento para se evitar o autocontrato. Com a entrada em vigor do novo Codex, o instituto perdeu esta finalidade, pois a lei considera celebrado pelo representante o negócio realizado “por aquele em quem os poderes foram substabelecidos” (parágrafo único do art. 117).
Com a nova sistemática, não mais adianta o representante substabelecer os poderes que lhe foram outorgados, posto que, embora o substabelecido pratique o ato, o negócio é considerado celebrado pelo representante. “O negócio jurídico resultante contém dupla emissão de vontade apenas formalmente, pois na essência, o representante comparece duas vezes, como parte interessada, e na pessoa de terceiro, em quem sub-roga os poderes recebidos.”[26] Nesse sentido, assinala Maria Helena Diniz:
“Se, em caso de representação voluntária, houve substabelecimento de poderes, o ato praticado pelo substabelecido reputar-se-á como se tivesse sido celebrado pelo substabelecente (representante), pois não houve transmissão do poder, mas mera outorga do poder de representação. Ter-se-á, indiretamente, contrato consigo mesmo se, ensina Renan Lotufo, ‘o representante atuar sozinho declarando duas vontades, mas, por meio de terceira pessoa, substabelecendo-a (ato pelo qual o representante transfere a outrem os poderes concedidos pelo representado a terceira pessoa) para futuramente celebrar negócio com o antigo representante. Ocorrendo este fenômeno, tem-se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em que os poderes houverem sido substabelecidos.” [27]
Assim, louvável o parágrafo único do art. 117, pois ao determinar que se considera praticado pelo representante o negócio realizado pelo substabelecido, evita-se prática condenável dos tabelionatos de notas que de forma alguma evita a autocontratação, pois o ato notarial contém dupla emissão de vontade apenas na forma, posto que, na essência, o representante comparece duas vezes: como parte interessada e na pessoa do terceiro, em quem os poderes foram substabelecidos.
10. Conclusão
O contrato consigo mesmo não encontra vedação no direito positivo brasileiro. Aliás, muito pelo contrário, com o advento do Código Civil de 2002, o instituto passou a ter previsão expressa (art. 117), não existindo óbice a sua realização. No entanto, para sua validade, mister que o representado autorize a realização do negócio jurídico, definindo o seu conteúdo, de forma que não haja conflito de interesses entre representante e representado. Além disso, não deve haver vedação legal.
Com a nova sistemática do art. 117 do novo Código Civil, os atos notariais que contenham negócios jurídicos celebrados consigo mesmo poderão ser normalmente formalizados pelos tabeliães e escreventes no desempenho de sua função. Assim, são perfeitamente possíveis, dentre outras, as hipóteses seguintes: A, representado por B, celebra negócio com C, também representado por B; A, representado por B, celebra negócio com B; A celebra negócio com B, sendo este representado por A.
11. Referência bibliográfica
Notas:
Informações Sobre o Autor
Luiz Carlos Alvarenga