Breves considerações sobre o registro civil dos transexuais

Sumário: 1. Introdução; 2. O transexualismo; 3. A mudança de sexo; 4. A questão do Registro Civil; 5. Projetos de Lei; 6. Conclusão.

Resumo: O presente artigo trata de questão polêmica: a mudança de sexo. Com a aprovação da cirurgia de transgenitalização pelo Conselho Federal de Medicina, várias pessoas já se submeteram à mudança de sexo no Brasil. Após o procedimento cirúrgico, os transexuais passam a ter uma vida em conformidade com o novo sexo biológico, inclusive no que tange às relações sexuais. Porém, não há respaldo no direito positivo brasileiro sobre a mudança do sexo e do prenome no Registro Civil. Os transexuais, vítimas de preconceito, são excluídos do convívio social. Vários precedentes judiciais autorizaram a mudança de sexo e do prenome no Registro Civil. Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional poderão resolver o problema dos transexuais.

Palavras chaves: Transexualismo. Mudança de sexo. Mudança de prenome. Registro Civil. Projetos de Lei.

1. Introdução

A dignidade da pessoa humana constitui fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, CF), sendo assegurado a todos a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da intimidade das pessoas (art. 5º, inc. X, CF). A identificação sexual, direito da personalidade, é irrenunciável e intransmissível e não pode ser objeto de ameaça ou lesão (arts. 11 e ss. do Código Civil).

Mesmo com este arcabouço jurídico destinado à proteção das pessoas, determinados grupos são excluídos do convívio social, vítimas de preconceito, sofrendo abusos de toda sorte. A intolerância ainda é maior quando o assunto é relativo à mudança de sexo. Segundo Berenice Bento, “A sociedade estabelece modelos muitos rígidos, nos quais o mundo é dividido entre homens e mulheres.”[1] Se a pessoa não se encaixa numa dessas categorias, está sujeita à exclusão social. [2] Os transexuais, pessoas que se sujeitaram à alteração sexual, estão sujeitos a estas intempéries. “São pessoas que passam por grande drama existencial, muitos sequer conseguem tocar na genitália e outros chegam a cometer a mutilação.”[3] .

Com efeito, há muito preconceito quando se fala em transexualidade. A existência de indivíduos que não se identificam com o próprio corpo e se submetem à cirurgia modificadora geralmente choca as pessoas. Esta aversão se dá, sobretudo, pela falta de conhecimento. Embora a lei não estabeleça discriminações, estas advêm da própria sociedade, por meio de valores morais e éticos ultrapassados.

A saída para estas pessoas, cujo sexo físico não corresponde ao psíquico, seria, inicialmente, a adequação psíquica aos atributos físicos. No entanto, na maioria das vezes, isto não funciona, não restando outra alternativa a não ser o caminho reverso, ou seja, adequar o corpo à mente, alterando o sexo físico. O procedimento cirúrgico não é simples. Também não é barato, custa cerca de vinte mil reais, mas pode ser custeado pelo SUS.

Não bastasse o transtorno causado pela cirurgia, os transexuais, após a ablação de órgãos, estão sujeitos a novo calvário: conseguir a alteração do prenome e a mudança de sexo no Registro Civil.

Deveras, após a cirurgia, os transexuais brasileiros têm de ingressar na Justiça para, após um longo processo, ter a sua pretensão deferida. Isto se o julgador for menos conservador. Mesmo assim, corre o risco da decisão ser revertida em 2ª instância. Insta indagar o motivo pelo qual o Estado brasileiro opõe tantas barreiras à mudança de sexo. Quais os possíveis caminhos para inclusão social dessas pessoas que lutam dia-a-dia para serem aceitas pela sociedade?

2. O transexualismo

A mudança de sexo não é assunto novo e há tempos é referida na literatura. Relata Maria de Fátima Freire de Sá que na obra O banquete, de Platão, o homem com unidade dual é mutilado e separado em duas metades. Em Metamorfoses, de Ovídio, a ninfa Salmácia une-se a Hermafrodito, formando um ser de dupla personalidade. Segundo esta autora, existe uma lenda do império romano que “diz respeito a um imperador que mata a mulher em um momento de fúria. Desgostoso pelo ocorrido, encontra um jovem escravo que lhe fazia lembrar a esposa. Em razão desta semelhança, o imperador ordena a seus súditos que realizassem cirurgia de castração no rapaz e o transformassem em mulher, a fim de que ambos pudessem vir a se casar.”[4]

A sexualidade humana não se restringe ao aspecto biológico. A “sexualidade do ser humano consiste em um conjunto de aspectos, quais sejam, o biológico, o psíquico e o comportamental, que se integram entre si. A integração desses aspectos é denominada status sexual. A partir do status sexual, surge, para o indivíduo, o direito à identificação sexual, que por sua vez se insere no campo dos direitos da personalidade.”[5]

Assim, para determinação sexo, mister seja observado o conjunto de aspectos da sexualidade. Segundo Elimar Szaniawsky, estes aspectos são classificados em três grupos, a saber: o biológico, o psíquico e o civil.[6]

Transexual “é aquele que possui uma defasagem entre o aspecto externo dos genitais e o aspecto interno do seu psiquismo. Constitui-se em uma síndrome psicossocial definida, onde o indivíduo acha que nasceu com o sexo errado, ou seja, recusa-se a aceitar o sexo que a natureza lhe deu.”[7]

No mesmo sentido, salienta o professor Antônio Chaves (Rev. Inf. Legislativa, n.º 14, fl. 148) que os transexuais “repudiam o sexo para o qual se apresentam instrumentalmente dotados não apenas pelo seu comportamento, mas também biologicamente, procurando, quando o tratamento clínico não seja suficiente, o recurso extremo da cirurgia, a fim de viver regularmente como integrantes do sexo psíquico, ao qual sentem pertencer, procurando conciliar físico e espírito.”[8]

Não há que se confundir transexualismo com homossexualismo, bissexualismo e travestismo. Nestas, não há incompatibilidade entre o sexo psíquico e o físico. O homossexual aceita o seu sexo biológico. Seus hábitos são próprios do seu sexo. Eles têm atração e comportamento com indivíduos do mesmo sexo. Da mesma forma que os homossexuais, os bissexuais também aceitam o seu sexo biológico, seus hábitos são próprios do seu sexo e não há discrepância entre o sexo biológico e o psíquico. Apenas têm comportamento que se caracteriza pela atração por indivíduos de ambos os sexos. Já os travestis apresentam-se ora como indivíduos do sexo masculino, ora travestidos. Diferem basicamente dos transexuais por não apresentarem o desejo compulsivo de reversão sexual.

3. A mudança de sexo

A terapia para estas pessoas, cujo sexo físico não corresponde ao psíquico, é a cirurgia de transgenitalização. Inicialmente, tenta-se, através da psiquiatria, psicanálise ou psicoterapia, mudar a mente de forma a adequá-la aos atributos físicos. No entanto, este tratamento (técnicas psicoterapêuticas) tem falhado sistematicamente. Nesses casos, não resta outra solução senão seguir o caminho inverso, ou seja, adaptar o corpo à mente, por meio da cirurgia. [9]

O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução n.º 1.482, de 10/09/1997, autorizou a cirurgia de transgenitalização no Brasil. Tal cirurgia deve ser realizada em hospital universitário ou público. Para se submeter a ela, o interessado, maior e capaz, deve ser submetido à terapia por, no mínimo, dois anos, além de ser tratado e diagnosticado por equipe multidisciplinar. O procedimento cirúrgico não é simples, custa em torno de vinte mil reais, mas pode ser custeado pelo Sistema Único de Saúde – SUS, mas, conforme reportagem do Jornal Estado de Minas, em agosto de 2004, oito pessoas aguardavam na fila há mais de quatro anos.[10]

Segundo Maria Helena Diniz, a cirurgia de ablação consiste, no caso de homem para mulher, na: “a) extirpação dos testículos ou o seu ocultamento no abdômen, aproveitando-se parte da pele do escroto para formar os grandes lábios; b) amputação do pênis, mantendo-se partes mucosas da glande e do prepúcio para formação do clitóris e dos pequenos lábios com sensibilidade erógena; c) formação de vagina, forrada, em certos casos, com a pele do pênis amputado; d) desenvolvimento das mamas pela administração de silicone ou estrógeno.” Se de mulher para homem, ocorrerá: “a) ablação dos lábios da vulva sem eliminação do clitóris; b) fechamento da vagina; c) histerectomia, ou seja, ablação do útero; d) ovariotomia, para fazer desaparecer a menstruação, se o tratamento com testosterona não a eliminar; e) elaboração do escroto com os grandes lábios, (…); f) faloneoplastia, ou seja, construção de neopênis; (…); g) ablação das glândulas mamárias.”[11]

Após o procedimento cirúrgico, os transexuais passam a ter uma vida normal, inclusive no que tange às relações sexuais. O único problema é o preconceito social. De acordo com Berenice Bento, “80% dos transexuais entrevistados por ela afirmam ter vida sexual ativa. O grupo não apresenta problemas quanto às relações sexuais e ao prazer, mas releva um grande desejo em ser aceito pela sociedade.”[12] O caminho para a inclusão social dessas pessoas passa, sem dúvida, pela alteração do sexo e do prenome no Registro Civil.

4. A questão do Registro Civil

Após a realização da cirurgia transformadora, o transexual depara-se com um novo problema, qual seja a alteração do sexo e do prenome. [13]

Tal pretensão não encontra respaldo no direito positivo brasileiro. Muitos julgados, de índole conservadora, ainda vedam a alteração do registro ao fundamento de que há prevalência do sexo biológico sobre o sexo psíquico. É o caso de Luís Roberto Gambine Moreira (Roberta Close), que embora tenha obtido êxito parcial em 1ª instância, foi derrotado na 2ª.

O único meio de se conseguir a alteração do sexo e do prenome no Registro Civil é por meio de autorização judicial. Segundo Maria de Fátima Freire de Sá, doutrina e jurisprudência têm dado uma interpretação mais liberal ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), sob os seguintes fundamentos: 1) o artigo 1º, III, da CF, coloca a dignidade do ser humano como um dos fundamentos da República, o que possibilita o livre desdobramento da personalidade, “garantindo ao transexual o direito à cidadania e a posição de sujeito de direitos no seio da sociedade”; 2) a cirurgia não tem o caráter mutilador, mas sim corretivo; e 3) o direito ao próprio corpo é direito da personalidade, o que faculta ao transexual o direito de buscar o seu equilíbrio psicofísico.[14]

Importa salientar que a cirurgia de transgenitalização já é uma realidade, inclusive com a aprovação do Conselho Federal de Medicina. Uma vez realizada a cirurgia, a mudança do sexo e do prenome no Registro Civil são conseqüências lógicas. Sob este fundamento, muitos julgados já foram prolatados.

Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, o juiz Wladimir de Abreu autorizou a mudança de nome no registro de nascimento do transexual Paulo Sérgio Flauzino de Oliveira para Layne de Paula Sérgio Flauzino de Oliveira.[15]

Em Rio Largo, Alagoas, foi concedido o direito ao primeiro transexual alagoano de trocar seu nome. Edson Gomes da Silva vai passar a assinar documentos com o nome de Pámela Gomes de Lima. [16]

No Distrito Federal, duas decisões autorizaram mudança de nome e de sexo de transexual. A primeira, sem precedente na Justiça local. O juiz Carlos Frederico Maroja, da 1ª Vara de Família de Brasília, autorizou a alteração do nome de nascimento de um homem vítima de hermafroditismo. Na mesma decisão, o magistrado concedeu a mudança de sexo no registro do interessado que mudará de “masculino” para “feminino”. Em outra decisão do TJDFT, o juiz Carlos Eduardo Batista dos Santos, da 6ª Vara de Família de Brasília, aceitou o pedido de J.R.S.G., autorizando a mudança, inclusive quanto à designação sexual do autor, que passará a ter a indicação “sexo feminino” em todos seus documentos. [17]

Em Belo Horizonte, o juiz da 1ª Vara de Família, Newton Teixeira Carvalho, autorizou modificação do nome do transexual R.N.R. para B.N.R., nome feminino, bem como a indicação do sexo, de masculino para feminino.[18] Infelizmente, esta decisão foi reformada pelo Tribunal de Justiça, após apelação do Ministério Público.[19] Atualmente, a matéria encontra-se no Superior Tribunal de Justiça, onde certamente será modificada, e poderá, inclusive, chegar ao Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que foram interpostos recursos especial e extraordinário.

Tais precedentes demonstram, de forma clara, que a tendência do Judiciário é autorização da mudança de sexo e do prenome no Registro Civil. Tanto é que o STJ – Superior Tribunal de Justiça – homologou sentença estrangeira que concedeu a alteração do sexo e do prenome no Registro Civil, nos termos seguintes:

“1. Alessandro Garcia de Oliveira formulou pedido de homologação de sentença estrangeira, proferida em 18/02/2004 pelo Tribunal de Busto Arsizio, República Italiana, que determinou a retificação de seu assento civil para que lhe sejam atribuídos sexo e prenome femininos, com fundamento em parecer médico.O requerente juntou aos autos a seguinte documentação: procuração (fl. 7); cópia autenticada do inteiro teor da sentença homologanda (fls. 17/19-verso), devidamente chancelada pelo consulado brasileiro em Milão (fl. 20-verso) e respectiva tradução oficial (fls. 50/58), bem como a prova de seu trânsito em julgado (fl. 57).O Ministério Público Federal, na pessoa do Subprocurador-Geral da República Edson Oliveira de Almeida, opina pelo deferimento da homologação (fls. 62/66).Decido.2. A jurisprudência brasileira vem admitindo a retificação do registro civil de transexual, a fim de adequar o assento de nascimento à situação decorrente da realização de cirurgia para mudança de sexo.Conforme consignado no parecer ministerial, nesse sentido há acórdãos proferidos por vários Tribunais pátrios, dentre eles os Tribunais estaduais de Pernambuco, Amapá, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, sendo proveniente deste último decisum prolatado na Apelação Cível nº 165.157-4/5, Relator Desembargador Boris Kaufmann, julgada em 22/3/2001, do qual se extraem os seguintes excertos:”É verdade que essa desconformidade entre o prenome e o aspecto físico somente surgiu em razão das modificações provocadas pela cirurgia plástica e pela forma do autor se vestir e agir no meio social. Mas, como salientou a magistrada citada, ‘manter-se um ser amorfo, por um lado mulher, psíquica e anatomicamente reajustada, e por outro lado homem, juridicamente, em nada contribuiria para a preservação da ordem social e da moral, parecendo-nos muito pelo contrário um fator de instabilidade para todos aqueles que com ela contactassem, quer nas relações pessoais, sociais e profissionais, além de constituir solução amarga, destrutiva, incompatível com a vida’ (transcrição de Antonio Chaves in ‘Direito à vida e ao próprio corpo’, 1994, pág. 160).Portanto, ainda que não se admita o erro, não se pode negar que, com o aspecto hoje apresentado pelo autor, o prenome ‘Adão’ o expõe a ridículo, autorizada a sua modificação pelo art. 55, parágrafo único, combinado com o art. 109, ambos da Lei n. 6515, de 31 de dezembro de 1973, inexistindo qualquer indicação de que a alteração objetive atingir direitos de terceiros. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome ‘Lucimara’ para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguida do sobrenome familiar.A alteração da indicação do sexo necessita exame mais cuidadoso.(…) omissisComo o erro no assento não existiu, em princípio na alteração não seria possível. No entanto, não se pode ignorar a advertência feita pelo magistrado Ênio Santarelli Zuliani, em brilhante voto vencido proferido na Apelação Cível n. 052.672-4/6, da Comarca de Sorocaba: ‘Como a função política do Juiz é de buscar soluções satisfatórias para o usuário da jurisdição – sem prejuízo do grupo em que vive -, a sua resposta deve chegar o mais próximo permitido da fruição dos direitos básicos do cidadão (art. 5°, X, da Constituição da República), eliminando proposições discriminatórias, como a de manter, contra as evidências admitidas até por crianças inocentes, erro na conceituação do sexo predominante do transexual’. E, mais adiante, aludindo à dubiedade existente no portador da síndrome de identidade sexual, acrescenta: ‘A medicina poderá aliviar o peso da dubiedade, com técnicas cirúrgicas. O Estado confia que o sistema legal é apto a fornecer a saída honrosa e deve assumir uma posição que valoriza a conquista da felicidade (‘soberana é a vida, não a lei’, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, in ‘O aprimoramento do Processo Civil como pressuposto de uma justiça melhor’, AJURIS 57/80), quando livre da ameaça de criar-se exceção ao controle da paz social’.A tendência que se observa no mundo é a de alterar-se o registro adequando-se o sexo jurídico ao sexo aparente. O jornal ‘EI Mundo’, edição de 18 de março de 2000, anunciou: ‘Um juez ordena el cambio de nombre del primer transexual  operado por Ia Seguridade Social’. Embora a manchete aluda apenas à mudança do nome, a alteração envolveu também o sexo, esclarecendo que o Juizado n. 21, de Primeira Instância de Sevilha – Espanha, ordenou a alteração do nome e do sexo de Suzana G. G., o primeiro transexual operado na Espanha pela Previdência Social, acrescentando: ‘La sentença recoge que há quedado debidamente acreditado que Susana, antes Antonio, há ‘assumido y ejercitado desde su irifância roles claramente femeninos’, que solo se han manifestado em su comportamiento, relaciones, o forma de vestir, sino que incluso lé llevaron a ‘intentos de mutilación por Ia adversion y repugnância que sentida hacia sus órganos genitales masculinos, existiendo uma disociatión entre tales órganos y sus sentimientos’  (…)Já na Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, afirmava-se que a dignidade é inerente a todos os membros da família humana. E a Constituição em vigor inclui, entre os direitos individuais, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5°, X). Reside aqui o fundamento legal autorizador da mudança do sexo jurídico, pois sem ela, ofendida estará a intimidade do autor, bem como sua honra. O constrangimento, a cada vez que se identifica, afastou o autor de atos absolutamente normais em qualquer indivíduo, pelo medo da chacota. A busca da felicidade, que é direito de qualquer ser humano, acabou comprometida.Essa preocupação é que levou esta 5ª  Câmara de Direito Privado a admitir a alteração do nome e do sexo no assento de nascimento de H. D. B., também transexual primário. Afirmou o acórdão – que curiosamente manteve a indicação de ‘transexual’ como sendo o sexo do registrado – que “não se pode deixar de reconhecer ao autor o direito de viver como ser humano que é, amoldando-se à sociedade em que quer fazer parte. E não quer viver o autor como marginalizado,como discriminado, num estado de anomia e anomalia. Ele quer simplesmente merecer o respeito de sua individualidade, de ser cidadão, um indivíduo comum’ (Apelação Cível n. 86.851.4/7, de São José do Rio Pardo, reI. Des. Rodrigues de Carvalho). E tem levado o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao mesmo caminho (RTJRGS195/356; Apel. Cível 59517893, reI. Des. João Selistre, julgado em 28/12/95 pela 3ª Câmara Cível (…).”Na hipótese dos autos, consoante a tradução oficial de fl. 55, está assinalado na sentença homologanda que, considerando os resultados da instrução realizada, “julga-se que a modificação das características sexuais tenha tido êxito e que a identidade sexual adquirida corresponde à psicológica.” Tal fundamentação coaduna-se, portanto, com a orientação traçada pela jurisprudência pátria, revelando-se, assim, razão suficiente a ensejar o acolhimento da pretensão deduzida na peça exordial.Dessa forma, restam atendidos os pressupostos indispensáveis ao deferimento do pleito; além do mais, a pretensão não ofende a soberania, a ordem pública ou os bons costumes (art. 17 da LICC c/c arts. 5º e 6º da Resolução/STJ nº 9/2005).Posto isso, homologo a sentença estrangeira.Expeça-se a carta de sentença.” [20]

5. Projetos de Lei

Tramitam, na Câmara dos Deputados, alguns Projetos de Lei que visam regulamentar o Registro Civil dos transexuais.

O Projeto de Lei n.º 3349/1992, de autoria do Deputado Antônio de Jesus – PMDB/GO – propunha a proibição para alteração do prenome nos casos das intervenções cirúrgicas. Foi arquivado em 02.02.1995.

O Projeto de Lei n.º 70/1995, de autoria do Deputado José Coimbra – PTB/SP – propõe a alteração do art. 58 da Lei de Registros (Lei Federal n.º 6.015/73). O Projeto foi apresentado em plenário e encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça. Esta Comissão acertadamente aprovou o projeto com as ressalvas de alteração do § 3º e inclusão do § 4º. Pela redação original do Projeto de Lei n.º 70/1995, deveria ser averbado no Registro Civil e no documento de identidade que a pessoa era “transexual”. Imaginem os dissabores a que estariam sujeitos os transexuais caso fosse mantida tal redação. A mácula seguiria a pessoa por toda a sua vida. Se não guardado sigilo, o transexual seria ridicularizado a vida inteira. Em boa hora prevaleceu o bom senso da Comissão de Constituição e Justiça. Com as ressalvas, repita-se, acertadas ao nosso sentir, o projeto passou a ter a seguinte redação:

“Art. 58. O prenome será imutável, salvo nos casos previstos neste artigo.

§ 1º. ……………………………………………………………..

§ 2º. Será admitida a mudança do prenome mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido a intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.

§ 3º. No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro.

§ 4º. É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial.”

Os que são contrários a sua aprovação alegam que a alteração do sexo e do prenome sem a identificação do “transexual” poderá acarretar prejuízos a terceiros que com ele possam se relacionar. Insta, pois, indagar quais seriam estes prejuízos. No que tange ao casamento, a omissão do transexual, quanto a sua condição de operado, acarretaria a sua anulação, sob o fundamento de erro essencial quanto à pessoa (art. 1.556 do Código Civil). Da mesma forma, a união estável também poderia ser desfeita sob o mesmo fundamento. Além disso, se o transexual omitir a sua condição, deverá indenizar o terceiro de boa-fé pelos danos morais e materiais causados.

O que não se pode fazer é criar um “terceiro sexo”, rotulando as pessoas, em seus documentos, de “transexual”. Estes seres humanos seriam ridicularizados a vida inteira.

O Projeto visa ainda excluir o crime de lesão corporal do cirurgião que realiza a cirurgia. Para realização desta, o paciente deve ser maior e capaz. A cirurgia deve ser precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica. Maria de Fátima Freire de Sá, analisando o dispositivo, deixa entender que é favorável também à cirurgia dos menores incapazes. Nesse sentido, faz a seguinte indagação: “Como ficaria a situação do transexual menor? Não poderiam eles requerer judicialmente a ablação dos órgãos assistidos pelos pais ou tutores?” [21]

Neste pormenor, data maxima venia, não podemos compartilhar com a opinião da ilustre professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Com efeito, a cirurgia de mudança de sexo é deveras importante para deixar a sua decisão ao talante do menor, criança ou adolescente, mesmo representado ou assistido. A ablação trará reflexos na vida inteira do transexual. É no mínimo ponderável que a pessoa atinja a maioridade para manifestar-se sobre o seu próprio corpo. E se depois da cirurgia o jovem descobrisse que não era aquilo que queria. Ao nosso sentir, mister seja o indivíduo maior e capaz para tomar tamanha decisão.

Atualmente, este Projeto encontra-se Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Foram apensados a ele, os Projetos n.ºs 3727/1997, 5872/2005 e 6655/2006.

O Projeto de Lei n.º 3727/1997, de autoria do Deputado Wigberto Tartuce – PPB/DF – propõe, “em caso de mudança de sexo, mediante cirurgia, será permitida a troca do nome por sentença.” Embora permita a troca do nome, não faz referência expressa a alteração do sexo no Registro Civil. Em 28.10.1997, a Mesa Diretora determinou que este Projeto fosse apensado ao Projeto n.º 70/1995.

O Projeto de Lei n.º 5872/2005, de autoria do Deputado Elimar Máximo Damasceno – PRONA/SP – propõe a proibição da mudança no prenome nos casos de transexualismo. Também foi apensado ao Projeto n.º 70/1995.

O Projeto de Lei n.º 6655/2006, de autoria do Deputado Luciano Zica – PT/SP – não faz referência expressa à alteração do sexo no Registro Civil, mas permite a alteração do prenome do transexual ainda que ele não tenha sido submetido a procedimento cirúrgico:

“Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição, mediante sentença judicial, nos casos em que:

I – o interessado for:

a) conhecido por apelidos notórios;

b) reconhecido como transexual de acordo com laudo de avaliação médica, ainda que não tenha sido submetido a procedimento médico-cirúrgico destinado à adequação dos órgãos sexuais;

……………..

Parágrafo único. A sentença relativa à substituição do prenome na hipótese prevista na alínea b do inciso I deste artigo será objeto de averbação no livro de nascimento com a menção imperativa de ser a pessoa transexual. (NR)”

Ao nosso sentir, o referido Projeto peca em dois pontos fundamentais. Primeiro, ao permitir o reconhecimento de transexual, mesmo sem o procedimento cirúrgico, uma vez que, se é com a cirurgia de transgenitalização que a pessoa passa a ser transexual, como poderia ser “transexual” quem não fez a cirurgia? Segundo, ao prever a averbação no livro de nascimento da “menção imperativa de ser a pessoa transexual”. Tal menção criaria um “terceiro sexo”. As pessoas seriam rotuladas em seus documentos. Estes seres humanos seriam ridicularizados a vida inteira. Esse Projeto também foi apensado ao Projeto 70/1995.

6. Conclusão

É inegável a constatação de que a sexualidade humana não se restringe ao aspecto biológico, mas sim da interação entre este, o psíquico e o comportamental.

Quando não se pode amoldar a mente ao corpo, a única saída é a mudança de sexo, adequando-se, dessa forma, o corpo à mente. Tanto é que o Conselho Federal de Medicina autorizou a realização da cirurgia (Resolução n.º 1.482/1997). Esta cirurgia vem sendo cada vez mais utilizada, como forma de solução do drama existencial dos transexuais. No entanto, a transgenitalização não resolve totalmente o problema, posto que, após a sua realização surge a necessidade de alteração do sexo e do prenome no Registro Civil.

Estas mudanças surgem como conseqüência lógica do procedimento cirúrgico. Se alterado o sexo biológico, não faz sentido que o sexo civil continue o mesmo. Por outro lado, a mudança do sexo civil implica na alteração do prenome.

Assim, o Congresso Nacional deveria aprovar projeto de lei que permitisse a alteração do sexo e do prenome no Registro Civil, sem a criação de rótulos, sem ofensa aos transexuais. Nesse sentido, louvável o Projeto de Lei n.º 70/1995, pois possibilita a mudança do sexo e do prenome nos casos em que a pessoa tenha se submetido a intervenção cirúrgica destinada a alteração sexual, sendo vedada a expedição de certidão, “salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial.” A sua aprovação certamente amenizará a dor sofrida por essas pessoas e, ao mesmo tempo, possibilitará a sua inclusão social.

No entanto, os transexuais não precisam aguardar a sua aprovação, posto que a identificação sexual, direito da personalidade, já possui salvaguarda no direito positivo pátrio (Constituição Federal, Código Civil etc). Ademais, conforme vários precedentes citados, a autorização da mudança de sexo e do prenome é a tendência do Judiciário brasileiro.

 

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Notas:

[1] In UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Assessoria de Comunicação Social. A reinvenção do corpo.
[2] “Cheguei a ficar em depressão e com muita angústia, que me impediram de conviver socialmente. A natureza errou comigo e, com certeza, com várias pessoas. Quem nasce com deficiência visual, sonha um dia em poder enxergar, quem tem problema de audição quer ouvir. Eu queria consertar o meu corpo”, relata Rafaela, transexual submetida à cirurgia em 28/08/2004. (In CIRURGIA para a vida nova. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 29 ago. 2004, p. 26. Caderno Gerais)
[3] Berenice Bento, ob. cit.
[4] In Bioética, Biodireito e o novo Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 202-203
[5] Idem.
[6] Apud Maria de Fátima Freire de Sá, ob. cit. p. 203.
[7] In COIMBRA, José. Projeto de Lei n.º 70-B, de 1995. Diário da Câmara dos Deputados. Brasília, 23 jan. 1999, p. 3357.
[8] Apud José Coimbra, ob. cit. p. 3358.
[9] Dr. Roberto Farina, especialista da área, citado por José Coimbra, ob. cit. p. 3358.
[10] In CIRURGIA para a vida nova. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 29 ago. 2004, p. 26. Caderno Gerais.
[11] Apud Maria de Fátima Freire de Sá, ob. cit. p. 208.
[12] Idem.
[13] “Já estamos começando a mexer nos papéis. Agora que Jéssica é mulher completa não tem porque continuar sendo homem na identidade”, relata Eunice Rosa Daló, mãe da transexual Jéssica, submetida à cirurgia no Hospital Universitário São José. (In FARIAS, Ana Luiza. Transexual agora sonha em mudar de nome. Jornal Estado de Minas. Belo Horizonte, 1 nov. 1999, p.23. Caderno Gerais)
[14] Ibidem ob. cit. 210.
[15] PAULO agora é Layne. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 1 dez. 2000, p. 8. Caderno Nacional.
[16] TRANSEXUAL. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 24 jul. 2001, p. 20. Caderno Gerais.
[17] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL. Assessoria de Comunicação Social. Sentença autoriza transexual masculino a usar nome de mulher.
[18] MUDANÇA de sexo. Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 11 jun. 2002, p. 20. Caderno Gerais.
[19] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, Apelação Cível n. 1.0000.00.296076-3/000, 4ª Câmara Cível, Relator Des. Almeida Melo, p. 02/04/2003; Embargos Infringentes n. 1.0000.00.296076-3/001, 4º Câmara Cível, Relator Des. Almeida Melo, p. 08/06/2004.
[20] Superior Tribunal de Justiça. Sentença Estrangeira n.º 1.058 – EX (2005/0067795-4), Rel. Ministro Barros Monteiro. DJ 17.08.2006.
[21] Ibidem p. 219.

 


 

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Luiz Carlos Alvarenga

 

 


 

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