Coisa julgada inconstitucional: divagações.

Sumário: 1. Introdução. 2. Supremacia da Constituição e
controle. 3. A
formação da coisa julgada material está sempre sujeita a uma condição
resolutiva? 4. A
ação rescisória, em matéria constitucional, tornou-se despicienda de interesse?
5. Retroatividade dos efeitos das decisões do Pretório Excelso, em sede de
controle de constitucionalidade. 6. Conclusões.p

1.
Introdução

O fundamento da coisa julgada é puramente
pragmático: evitar a perpetuação dos conflitos. Dito isto de outro modo, a
coisa julgada existe por uma questão de conveniência, já que é desejável que
seja conferida segurança às relações jurídicas atingidas pelos efeitos da
sentença, na busca da paz na convivência social. Mas quais seriam os contornos
dessa tal segurança jurídica?

Observa-se, no Brasil, forte tendência no
sentido de mitigar ou relativizar o instituto da coisa julgada. É que, em
alguns casos, a busca cega pela segurança jurídica pode implicar em desprezo a
outros valores também protegidos constitucionalmente, como a igualdade, a justiça,
a dignidade da pessoa humana etc.

A bem da verdade, em nosso ordenamento
jurídico, o instituto de que ora se trata não é tão intangível quanto se
costuma preconizar, notadamente em virtude da previsão constitucional da ação
rescisória, ação, esta, que permite que a coisa julgada material seja
desconstituída, através de um provimento judicial rescindente.

Uma das grandes
questões que hoje se coloca é: existe
coisa julgada inconstitucional? Sendo afirmativa a resposta, seria a ação
rescisória o único meio para se desconstituir a coisa julgada acoimada de tal
vício e obstar a sua eficácia no plano jurídico?

Partindo do
pressuposto de que a Constituição não admite mais do que uma interpretação,
processualistas de escol têm defendido que as decisões do Pretório Excelso, em
sede de controle de constitucionalidade, seja difuso, seja concentrado, devem
retroagir sempre, atingindo diretamente as coisas julgadas materiais de outros
processos cujos fundamentos colidam com a decisão do Supremo Tribunal Federal,
ainda que ultrapassado o biênio decadencial da ação rescisória. É correto esse
entendimento?

O
presente ensaio visa a buscar soluções para estas e outras questões, fruto da
nossa divagação acerca do interessante – e perigoso – tema da coisa julgada
inconstitucional.

2.
Supremacia da constituição e controle.

Devemos
asseverar, primeiramente e em epítome que, tratando-se de atos administrativos
e legislativos, sabe-se que o ordenamento jurídico pátrio os coloca sob o
controle do Poder Judiciário através das formas difusa e concentrada. Com
efeito, podemos mencionar como exemplo do controle difuso – estendido a
todos os julgadores de qualquer grau de jurisdição
– o quanto prelecionado
pelo art. 102, III, “a” e “c” da Norma Normarum, os quais enunciam ser
da competência do Supremo Tribunal Federal julgar, mediante Recurso
Extraordinário, as causas decididas em única ou última instancia, quando a
decisão recorrida afrontar dispositivos da Carta Política ou quando conferir
validade a lei ou ato administrativo de governo local que se mostrem em
dissonância com a mesma. Quanto ao controle concentrado, realizado através de
ação direta de inconstitucionalidade ou constitucionalidade, é da competência
exclusiva do referido Sodalício, estando previstas ditas ações no art. 102, I,
“a” da Carta Magna para leis e atos normativos federais e estaduais.

Aqui,
impende-se ressaltar que os atos emanados do Poder Judiciário também se
sujeitam às mais variadas espécies de controle. Com efeito, o direito positivo
é prenhe de multifárias espécies recursais que objetivam a reforma, a
invalidação, o esclarecimento e a integração das decisões recorridas, bem como
o impedimento para que em as mesmas opere-se o fenômeno da preclusão máxima ou
trânsito em julgado.

Os
controles sobreditos afiguram-se absolutamente legítimos e têm, como ratio
essendi
que os referidos atos emanados dos Poderes Constituídos (Executivo,
Legislativo e Judiciário) mantenham-se em harmônica consonância com os ditames,
princípios, normas expressas e implícitas encartados na Carta Política de 1988.
Positivamente, a Constituição é, como sabido, a Lei Suprema, onde se encontra
toda a estruturação do Estado e onde é esmiuçada a organização dos seus mais
importantes órgãos. Ademais disso, encerram-se no seio da Lex Legum  as normas fundamentais do Estado, donde
inferir-se que as mesmas são dotadas de superioridade em relação às outras
normas jurídicas, que possuem, conseguintemente, hierarquia inferior, devendo,
para sua validade e eficácia, conformarem-se com os ditames estabelecidos no
texto constitucional.

Confira-se,
por oportuno, o sempre abalizadíssimo escólio de JOSÉ AFONSO DA SILVA, verbatim:
“Nossa Constituição é rígida. Em conseqüência, é a lei fundamental e suprema do
Estado Brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere
poderes e competências governamentais. Nem o governo federal, nem os governos
dos Estados, nem os dos Municípios ou o do Distrito Federal são soberanos,
porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas
daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela
estabelecidos. Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação
jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da
Constituição Federal.”

3. A formação da coisa
julgada material está sempre sujeita a uma condição resolutiva?

Para saber
se a formação da coisa julgada material está sempre sujeita a uma condição
resolutiva, faz-se mister tecermos algumas digressões acerca do instituto da
coisa julgada, sua conceituação e fundamentos.

Como
consabido, na dicção do art. 467 do Código de Processo Civil Brasileiro, “Denomina-se
coisa julgada material a eficácia que torna indiscutível e imutável a sentença,
não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”

Podemos
conceituar a coisa julgada, sinoticamente, como sendo o fenômeno da
imutabilidade que açambarca uma sentença definitiva – provimento jurisdicional
que compõe determinada res in iudicium deducta, examinando-lhe o mérito
– devido à ocorrência de preclusão máxima.

Dessarte, o comando emergente
da sentença, pelos motivos acima sobreditos, adquire foros de imutabilidade
dentro da relação jurídica litigiosa trazida à apreciação – coisa julgada
formal – e fora do processo – coisa julgada material – tornando-se,
conseguintemente, imodificáveis os seus efeitos. Ë uma distinção
recorrentemente brandida pelos doutrina, chegando LIEBMAN a afirmar que a coisa
julgada formal e a coisa julgada material constituem-se em degraus do mesmo
fenômeno. Segundo MOACYR AMARAL SANTOS, “proferida a sentença e preclusos os
prazos para recursos, a sentença torna-se imutável (primeiro degrau – coisa
julgada formal); e, em conseqüência, tornam-se imutáveis os seus efeitos
(segundo degrau – coisa julgada formal.”

Devemos
salientar que diversas teorias e fundamentos objetivam explicar o fenômeno da autorictas
rei judicatae.
Calha à justa trazermos à baila o fundamento de ordem
política – que consideramos o de maior relevância – do qual nos discorre o
insigne processualista MOACYR AMARAL SANTOS, litteratim: “A verdadeira
finalidade do processo, como instrumento destinado à composição da lide, é
fazer justiça, pela atuação da vontade da lei ao caso concreto. Para obviar a
possibilidade de injustiças, as sentenças são impugnáveis por via de recursos,
que permitem o reexame do litígio e a reforma da decisão. A procura da justiça,
entretanto, não pode ser indefinida, mas deve ter um limite, por uma exigência
de ordem pública, qual seja a estabilidade dos direitos, que inexistiria se não
houvesse um termo além do qual a sentença se tornasse imutável. Não houvesse
esse limite, além do qual não se possa argüir a injustiça da sentença, jamais
se chegaria à certeza do direito e à segurança no gozo dos bens da vida.”

Como acima explicitado, verifica-se que o
fundamento da autoridade da coisa julgada, formal e material, assim como de
todas as preclusões em geral (das quais a coisa julgada constitui-se na
preclusão máxima) afigura-se puramente pragmático: objetiva, pautado em razões
de segurança e certeza, a estabilidade das relações jurídicas, a fim de que
seja evitada a perpetuação de relações litigiosas levadas à apreciação do Poder
Judiciário, assim como a existência de decisões contraditórias acerca das
pré-faladas lides, o que, por suposto, acarretaria um total descrédito dos
jurisdicionados em relação à Justiça. O fundamento da coisa julgada é a
pressuposição de que a sentença contém a verdade. Ulpiano dizia: res
iudicata pro veritate habetur
. A autoridade da coisa julgada estaria na
ficção de que a sentença atingiu a verdade real.

O valor da
segurança das relações jurídicas, pois, é a principal razão de ser do fenômeno
da coisa julgada.

Ousamos, agora, fazer o seguinte
questionamento: seria o sobremencionado valor da segurança das relações jurídicas,
e por via de conseqüência, a garantia da coisa julgada (seu corolário), diante
do princípio já analisado da supremacia da Constituição, absoluto? Vamos mais
além: uma determinada sentença, ainda que já acobertada pelo manto da autorictas
rei juducatae
, que encerrasse em seu bojo flagrantes violações a
princípios, normas explícitas e implícitas da Carta Magna seria válida e
eficaz?

Observa-se, hodiernamente, no Brasil, forte
tendência no sentido de mitigar ou relativizar o instituto da coisa julgada, tendo,
assim, perdido força o brocardo latino res judicata facit de albo nigrum.
Autorizados processualistas têm bradado que, em alguns casos, a busca cega pela
segurança jurídica pode implicar em desprezo a valores superiores, protegidos
constitucionalmente, como a igualdade, a justiça, a dignidade da pessoa humana etc.

Devemos trazer à colação, por sua inteira
pertinência com o tema, a lição de CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, verbis: “Sendo
a coisa julgada matéria estritamente de índole jurídico-processual, portanto
inserta no ordenamento infra-constitucional, sua intangibilidade pode ser
questionada desde que ofensiva aos parâmetros da Constituição. Nesse caso,
estar-se-ia operando no campo da nulidade. Nula é a sentença desconforme com os
cânones constitucionais, o que desmistifica a imutabilidade da res judicata.
Pensar que a decisão jurisdicional, coberta pelo manto da irreversibilidade,
faz-se ato jurisdicional intocável é relegar a regra geral, segundo a qual
todos os atos estatais são passiveis de desconstituição. Não há hierarquia
entre os atos emanados dos Poderes da República, pois, todos eles são
decorrentes das funções desenvolvidas pelos agentes políticos em nome do
Estado.”

O excerto acima transcrito afigura-se
inteiramente pertinente, eis que entendimento diverso seria o mesmo que fazer
tábua rasa do princípio da igualdade entre os Poderes Constituídos, erigido à
condição de princípio fundamental do ordenamento pátrio pelo Legislador
Constituinte, conforme se observa da dicção do art 2o da Carta Magna,
porquanto estar-se-ia salvaguardando-se da apreciação do exame de
constitucionalidade os atos emanados do Poder Judiciário, diferentemente dos
atos executivos e legislativos que podem, a qualquer tempo, ser objeto de
controle de constitucionalidade.

Abordando o tema ora sub examen,
CANDIDO RANGEL DINAMARCO assim pontifica: É inconstitucional a leitura
clássica da garantia da coisa julgada, ou seja, sua leitura, com a crença de
que ela fosse algo absoluto e, como era hábito dizer, capaz de fazer do preto
branco e do quadrado, redondo. A irrecorribilidade de uma sentença não apaga a
inconstitucionalidade daqueles resultados substanciais política ou
substancialmente ilegítimos que a Constituição repudia. Daí a propriedade e a
legitimidade sistemática da locução, aparentemente paradoxal, coisa julgada
inconstitucional.

Poder-se-ia obtemperar o raciocínio até
aqui desenvolvido, afirmando-se que a intangibilidade da coisa julgada encontra
guarida no Texto Magno ante o quanto prelecionado pelo seu art. 5o,
XXXVI, que determina que a lei não prejudicará o direito adquirido,o ato
jurídico perfeito e a coisa julgada. Contudo tal linha de argumentação cai por
terra ante uma análise mais acurada, senão vejamos.

Como se verifica da análise da
supramencionada disposição constitucional, objetivou o legislador constituinte,
para a salvaguarda dos direitos dos jurisdicionados, tão-apenas impedir que uma
determinada lei que adentrasse o ordenamento jurídico alterasse uma relação
jurídico-processual litigiosa que fora objeto de decisão judicial da qual não
pudesse ser mais interposta qualquer modalidade de recurso. Fê-lo da mesma
maneira em relação aos atos jurídicos perfeitos e aos direitos adquiridos,
sendo exclusivamente uma regra concernente à irretroatividade da lex posterior
que não podem alterar situações já consolidadas sob o pálio da lex antiqua.
O tratamento que a Constituição conferiu ao instituto da coisa julgada foi,
dessarte, somente de colocá-la ao abrigo da retroatividade das leis, norma de
direito intertemporal, pois, não se encontrando no texto constitucional, como
querem os que ferrenhamente defendem a total intangibilidade da coisa julgada,
disposição alguma que a erija em condição de principio constitucional.

Por oportuno, cite-se a lição
do insigne Ministro JOSÉ AUGUSTO DELGADO: “O tratamento dado pela Carta Maior à
coisa julgada não tem o alcance que muitos interpretes lhe dão. A respeito,
filio-me ao posicionamento daqueles que entendem ter sido vontade do legislador
constituinte, apenas, configurar o limite posto no art. 5o, XXXVI,
da CF, impedindo que a lei prejudique a coisa julgada.”

De tudo quanto já fora até o momento
acrescentado, tem-se, por meridiana implicação lógica, que a autoridade da
coisa julgada, por não se constituir em princípio constitucional, não pode
servir de empeço ao reconhecimento da nulidade da sentença transitada em
julgado, prolatada em contrariedade ao quanto disposto pela Carta Política.
Entender-se diversamente, ademais de incorrer-se em clara violação ao princípio
da obrigatoriedade da conformidade dos atos estatais com os ditames
constitucionais e ao princípio da igualdade dos Poderes Constituídos, já
sucintamente analisados, estar-se-ia subtraindo ao jurisdicionado o direito ao
acesso à efetiva Justiça, princípio constitucional consagrado pelo art. 5o,
XXXV, da Lei Magna e corolário lógico do princípio da indeclinabilidade da
prestação jurisdicional, vez que restariam acolhidos no ordenamento jurídico
provimentos jurisdicionais injustos, muita vez contrários à moralidade, à
legalidade e outros tantos princípios e normas constitucionais implícitos e
explícitos.

Assim,
afirmamos com destemor que cremos que a formação da coisa julgada material está
sempre sujeita a uma condição resolutiva, qual seja, a de não ser inconstitucional
a decisão passada em julgado.

4. A ação
rescisória, em matéria constitucional, tornou-se despicienda de interesse?

Acatada a existência da coisa julgada
inconstitucional, temos, antes de adentrarmos na questão dos meios utilizáveis
para a sua impugnação, responder ao seguinte questionamento: a sentença
transitada em julgado contendo, em seu bojo, eivas de inconstitucionalidade é
ato nulo ou inexistente?

Parte minoritária da doutrina entende que a
sentença que ofende os princípios maiores contidos na Lex Legum, como os
da legalidade, isonomia, hierarquia das normas, moralidade etc
afigura-se absolutamente injusta e ilegítima e, por conseguinte, inexistente no
mundo jurídico. Todavia, afigura-se evidente que, para que se tenha qualquer
ato jurídico (seja ele administrativo, legislativo ou jurisdicional) como
inexistente, é necessário que lhe falte algum elemento indispensável para a sua
ocorrência, enquanto os atos nulos ou anuláveis possuem os sobreditos elementos
em sua integridade, porém contendo vícios de qualquer natureza que os torna
inaptos a produzirem efeitos no mundo jurídico (atos nulos) ou ditos efeitos
são produzidos até que a nulidade do ato seja decretada, em se tratando dos
atos anuláveis.

Devemos transcrever o sempre atual
ensinamento do eminente MIGUEL REALE, que, em sua celebérrima monografia nos
leciona, ad litteram: O ato inexistente, na realidade, carece de
algum elemento constitutivo, permanecendo juridicamente embrionário, ainda
inferior, devendo ser declarada a sua não-significação jurídica, se alguém os
invocar como base de uma pretensão. Os atos nulos ou anuláveis, ao contrário,
já reúnem todos os elementos constitutivos, mas de maneira aparente ou inidônea
a produzir efeitos válidos, em virtude de vícios inerentes a um ou mais de seus
elementos constitutivos.

Parece-nos que uma sentença que tenha sido
proferida regularmente em qualquer processo, com a presença de todos os seus
elementos constitutivos, regular publicação, esgotamento da possibilidade de
interposição recursal e, alfim, o seu trânsito em julgado, jamais poderá ser
reputada de inexistente. Ora, inexistente é algo que chega a ser mesmo anterior
ao mundo do direito. Situa-se no campo do ser. Permanece no campo embrionário,
como bem posto no excerto acima transcrito. Afigura-se cristalino e induvidoso
que presentes todos os requisitos para a caracterização de um provimento
jurisdicional que componha uma res in iudicium deducta, ainda que em o
mesmo venha incrustado de máculas ao texto constitucional, em hipótese alguma
deixará de existir como sentença, não podendo, por conseguinte, ser tachada de
inexistente.

Outra não é a visão do emérito
processualista HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e da Profa. JULIANA CORDEIRO DE FARIA,
que lecionam: “Obviamente, não se pode ter como mera aparência uma sentença
proferida em processo regular, e que tenha transitado em julgado, ainda que
contaminada por inconstitucionalidade (…) A impotência de alcançar efeitos
jurídicos decorre, não da falta de elementos materiais, mas da situação de
contraposição entre o conteúdo da sentença e o mandamento constitucional.
Inexistente seria a sentença proferida por quem não é juiz ou lançada sem o
pressuposto de um processo que pudesse sustentá-la, ou ainda aquela a que
faltasse uma conclusão ou um dispositivo.

Na esteira do raciocínio desenvolvido, só
podemos chegar à inevitável conclusão que a sentença (contendo todos os seus
elementos materiais necessários) que haja transitado em julgado violando
comandos constitucionais só poderá ser tachada de nula, id est, como
a inconstitucionalidade está sujeita a controle pelo Poder Judiciário, dito
provimento jurisdicional só poderá ter sua nulidade admitida e conseguintemente
ser retirado do mundo jurídico após declaração daquele referido Poder
Constituído.

Resta agora saber quais os meios de
impugnação da sentença que tenha sido acobertada com a capa da res judicata
agasalhando máculas de inconstitucionalidade. Seria apenas a ação rescisória?
Vejamos.  

Acatada que fora a tese da nulidade da
sentença maculada pelo vício da coisa julgada inconstitucional, parece razoável
admitir-se, como quis o jurista lusitano PAULO OTERO, que as “as normas
inconstitucionais nunca se convalidam juridicamente, podendo, a todo momento,
serem destruídas judicialmente.” É evidente que nos estamos referindo a um
princípio decorrente do sistema geral de nulidades e que, por conseqüência
lógica, não se sujeita a prazos prescricionais e decadenciais.

Doutrinadores há que defendam que o meio
impugnatório para a desconstituição de sentença transitada em julgado, no
sistema processual brasileiro, seria apenas a ação rescisória, disciplinada
pelos arts. 485 e ss. do Código de Processo Civil. Estribam sua opinião na
hipótese autorizativa contida no art. 485, V, do CPC, que preceitua o cabimento
da rescisória para a sentença de mérito que viola frontalmente qualquer
disposição legal. Desta forma, em se admitindo tal linha de intelecção, para
que fosse expurgada do mundo jurídico a sentença ferida do vício da coisa
julgada inconstitucional, tal provimento deveria ser impugnado no prazo de 02
(dois anos) após passar em julgado, eis que o art. 495 do Código de Ritos
estabelece este lapso prazal. Outros autores chegam ao disparate, data venia,
de afirmarem a impossibilidade de desconstituição da coisa julgada
inconstitucional (!). Isto porque o nosso ordenamento jurídico carece de
previsão constitucional e legal para impugnação de provimentos jurisdicionais
que contém o vício aludido, eis que, conforme afirmado no início deste tópico
fundamentativo, a Constituição Federal contemplou, em seu art. 102, I, “a”, o
controle de constitucionalidade tão-somente para leis ou atos normativos,
deixando desagasalhadas de dito controle os atos emanados do Poder Judiciário.

Dissentimos dos sobreditos posicionamentos,
a uma porquanto se se admitir que o meio impugnatório para a desconstituição da
coisa julgada inconstitucional seria apenas a ação rescisória prevista para o
caso de provimentos jurisdicionais de mérito que violassem literal disposição
de lei seria comparar uma mera ilegalidade a um vício de inconstitucionalidade,
o que se revela verdadeiro absurdo – principalmente se considerarmos o exíguo
prazo para a propositura da ação rescisória –; a duas porque afirmar a
inadmissibilidade de qualquer meio impugnatório para o vício ora sob comento
seria chancelar a possibilidade da entrada e permanência insanável, em nosso
ordenamento jurídico de atos judiciais que se mostrassem em dissonância com
normas e princípios constitucionais que, conforme já ventilado, devem ser observados
e obedecidos em todos os atos emanados dos Poderes Estatais.

Neste diapasão, fazemos coro com a melhor
doutrina processualista, que afirma ser cabível, in casu, por tratar-se
de nulidade ipso iure, qualquer meio processual admitido em direito para
a retirada de validade ou de eficácia das decisões judiciais, podendo,
inclusive, ser decretada ex officio pelo magistrado que dela tiver
conhecimento. Demais disso, admite-se a ação autônoma declaratória de nulidade
(antiga actio querela nullitatis) como remédio idôneo para
expurgar do mundo jurídico a sentença transitada em julgado que carrega em seus
trajos a nódoa do vício da inconstitucionalidade.

Nada impede, outrossim, a utilização da
ação rescisória, a fim de que – repita-se – não se proceda a equiparação entre
uma ilegalidade e uma inconstitucionalidade, o que, na abalizada lição dos já
citados HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e JULIANA CORDEIRO DE FARIA, “é não só
inconveniente como avilta o sistema e valores da Constituição.”

Convém, por oportuno, a fim de corroborar
nossas colocações acima assinaladas, transcrevermos excertos da moderna
doutrina processual civil.

CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, assim
pontifica, verbis: “Se a sentença inconstitucional é nula, contra ela
não cabe rescisória, por incabível lançar-se mão dos recursos previstos na
legislação processual. Na espécie pode-se valer, sem observância do lapso
temporal, da ação declaratória de nulidade de sentença, tendo presente que ela
não perfaça relação processual, em face de grave vício que a contaminou,
inviabilizando, assim, seu trânsito em julgado. Nesse
caso, há de se buscar suporte na actio querela nullitatis.” 

HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e JULIANA CORDEIRO
DE FARIA explicam, ad litteram: Deste modo a admissão da ação
rescisória não significa sujeição da declaração de inconstitucionalidade da
coisa julgada ao prazo decadencial de dois anos, a exemplo do que se dá com a
coisa julgada que contempla alguma nulidade absoluta, como é o exemplo do
processo em que há vício de citação. (omissis) Em verdade, a coisa
julgada inconstitucional, à vista da sua nulidade, reveste-se de uma aparência
de coisa julgada, pelo que, a rigor, nem sequer seria necessário o uso da
rescisória. Esta tem sido admitida pelo princípio da instrumentalidade e
economicidade. O certo é que ‘verificando-se a inconstitucionalidade direta de
uma decisão judicial, não deve haver qualquer preocupação em evitar que o
tribunal seja colocado na situação de contradizer a decisão anterior
desconforme com a Constituição.”

Deveremos
agora, por absoluta pertinência ao tema, tecermos breves considerações acerca
do art 741, II, do Código de Processo Civil.

Com
efeito, podemos iniciar esta ponderação afirmando que o supramencionado
dispositivo do Código de Ritos Pátrio admite a interposição de embargos à
execução fundada em sentença para argüição da inexigibilidade do título
executivo. Partindo desta premissa, questiona-se: se, acaso, o juiz da execução
constatar que o título judicial exeqüendo viola dispositivos constitucionais,
deverá julgar improcedemte a execução, supedaneando seu decisum na
inconstitucionalidade – e conseqüente nulidade – do título executivo, pelo que
o mesmo volveu-se em inexigível?

Diante de
todas considerações, a resposta somente poderá ser afirmativa.

Com
efeito, conforme exaustivamente ventilado nos parágrafos anteriores, a sentença
sobre a qual se operou o fenômeno da rei judicatae, caso viole
princípios e normas da Lei Maior, padece de nulidade e, como consabido, a
nulidade do ato jurídico deve ser decretada a qualquer tempo pelo magistrado, ex
officio
ou a requerimento das partes interessadas. Não fora este
raciocínio, se estaria verificando uma verdadeira contraditio in re ipsa em
nosso ordenamento. De fato, sendo cediço que ao julgador é atribuído o dever de
negar aplicabilidade às normas que violem a Constituição, subtrair-lhe o poder
de declarar absolutamente nulo um título executivo judicial cuja ratio
decidendi
malferiu a Norma Normmarum seria negar-lhe aquele dever, o
que, sem sobejo a quaisquer dúvidas, seria um absurdo.

Na esteira
deste entendimento, foi editada a Medida Provisória n° 2.180/2001, que acresceu
um parágrafo único ao artigo 741 do CPC, com o seguinte teor, verbatim:
“Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também
inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou em
interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal.”

Alfim,
podemos afirmar, em resposta à indagação formulada no início deste tópico, que,
diante da admissibilidade da coisa julgada inconstitucional, salta aos olhos a
desnecessidade da propositura da ação rescisória quando se colima a sua
invalidação, malgrado a mesma deva ser conhecida se interposta, vez que as nulidades
ipso jure independem de procedimento especial para a sua declaração.
Outros meios de impugnação há, podendo sua nulidade ser declarada a qualquer
tempo, ex officio, conforme dispõe o art. 168 e seu parágrafo único do
novo Código Civil, ou mediante a ação autônoma declaratória de nulidade
(antiga actio querela nullitatis) e, inclusive, como sobrevisto, através
do processo incidente de embargos à execução, fundados em inexigibilidade do
título executivo judicial.

5.
Retroatividade dos efeitos das decisões do Pretório Excelso, em sede de
controle de constitucionalidade.

Declarada
a nulidade de uma sentença já transitada em julgado, porquanto
inconstitucional, a eficácia de dita declaração operar-se-ia ex tunc
quedando-se desconstituídas todas as situações jurídicas estribadas no aludido
provimento jurisdicional extirpado do mundo jurídico – ou, ao revés, seria ex
nunc
, alcançando apenas situações futuras?

É aqui que
a teoria da coisa julgada inconstitucional encontra o seu temperamento, para
que não se perca de vez estabilidade e segurança jurídica.

Seria, de
fato, inconcebível que, após o trânsito em julgado, até quando a parte teve a
oportunidade de provocar o controle de constitucionalidade do decisum
através do sistema difuso, que, sem motivo plausível, revolvesse-se a questão
da (in)constitucionalidade. E o que seria esse “motivo plausível”?

Entendemos
que a invalidação da coisa julgada inconstitucional somente tem lugar após o
Supremo Tribunal Federal, na via concentrada de controle de constitucionalidade,
declarar a inconstitucionalidade ou constitucionalidade de algum ato normativo
federal ou estadual. E por que somente na via concentrada? Porque se afiguraria
sem razão nenhuma imaginar, num sistema onde existe controle difuso – inclusive
com previsão constitucional – que, após a possibilidade de, incidenter
tantum
, a parte alcançar o seu objetivo, ou seja, não se sujeitar à decisão
eivada do vício da inconstitucionalidade, aproveitar-se de decisão proferida em
processo, onde se decidiu um caso concreto, para desvencilhar-se dos efeitos da
rei judicate. Consabido é que a declaração de inconstitucionalidade incidenter
tantum
somente tem efeito inter partes; apenas a declaração de
inconstitucionalidade ou constitucionalidade pela via concentrada é que tem
efeitos erga omnes.

Outro
temperamento à teoria da coisa julgada inconstitucional é quanto à sua eficácia
temporal. Modernos doutrinadores têm sustentado que, uma vez declarada a
inconstitucionalidade ou constitucionalidade na via concentrada, seus efeitos
sempre retroagirão, para atingir as coisas julgadas pretéritas.

Entendemos,
contudo, que isso somente será verdadeiro se o próprio Supremo Tribunal
Federal, na decisão declaratória, não fizer a ressalva hoje permitida pelo art.
27 da Lei 9.868/1999, que enuncia, verbattim: “ao declarar a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo
Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os
efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu
trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

6. Conclusões.

A
inconstitucionalidade da coisa julgada é algo perfeitamente concebível
hodiernamente. Não se pode descurar do fato de que todos os atos dos Poderes
Constituídos devem subordinar-se e harmonizar-se aos princípios e normas
cogentes emanados da Constituição Federal. Dessarte, a sentença proferida,
estando eivada de inconstitucionalidade, ainda que esgotadas todas as vias
recursais e operado-se sobre a mesma a autoridade da coisa julgada, afigura-se
absolutamente passível de invalidação e conseqüente retirada do mundo jurídico,
prestigiando-se, assim, o princípio da isonomia dos Poderes.

A
antiga coisa julgada – que tornava preto o branco e o redondo quadrado – não
pode mais subsistir diante do fato acima referido. A revisitação do instituto
da coisa julgada é algo que, longe de desestabilizar o ordenamento jurídico,
torna-o mais sólido, sendo a pesquisa dogmática da inconstitucionalidade da
coisa julgada e a sua aplicação um estudo atual.

Temperamentos,
todavia, devem haver, o que poderá ser feito, precipuamente, restringindo-se a
invalidação da coisa julgada inconstitucional naquelas situações em que o
Supremo Tribunal Federal apenas tenha se manifestado na via difusa de controle
de constitucionalidade, outrossim quando o Pretório Excelso restringir, na
forma da Lei nº 9.868/99, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

 

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Informações Sobre o Autor

Marcus Vinícius Caminha

Pós-graduando em Direito Processual Civil pelas Faculdades Jorge Amado (BA) Pós-graduando em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia Advogado militante no Estado da Bahia.


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